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A crise da p sicologia clínica no m undo contem p orâneo
Th e crisis of clin ical psych ology in t oday’s w orld
Marco Antônio PORTELA1
Resumo
O m undo contem porâneo determ ina novas form as de relação, que afetam a constituição da subjetividade e, por conseguinte, levam ao advento de um novo sujeito. Neste trabalho, fez-se um a análise a fim de com preender quem é o sujeito pós-m oderno. No estudo realizado acerca do percurso da psicologia clínica, concluiu-se que suas principais abordagens são individualistas, confirm ando o paradigm a dom inante, ou seja, o paradig m a d a su b jet ivid ad e, q u e levo u à exacerb ação d o in d ivid ualism o na Pós-Modernidade. Procurou-se fazer um a análise da crise na clínica contem porânea, a fim de com preender suas causas e buscar saídas viáveis para os im passes que se apresentam . Este estudo pautou-se na idéia de que um a nova visão de m undo e do próprio hom em está sendo presentem ente construída, visão esta que aponta para conceitos com o intersubjetividade, dialogia, narrativa, ecologia, entre outros, em bora não tenha sido propósito deste trabalho aprofundar estes conceitos.
Unitermos:Crise. Pós-m odernidade. Psicologia clínica. Sub jetividade.
Abstract
The text considers that the contem porary w orld is determ ining new form s of relationships, w hich affect the constitution of subjectivity and,
consequently, lead to the advent of a new type of individual. An an alysis w as perform ed w it h t h e aim of un derst an din g exact ly w h o t h is post-m odern individual is. In the study carried out concerning the progression of clinical psychology, it is concluded that its principal approach
is individualist, confirm ing the dom inant paradigm , in other w ords, the paradigm of subjectivity, that has led to the escalation of individualism in the post-m odern period. The text seeks to analyze the contem porary clinical crisis in order to understand its causes, and attem pts to find viable solutions for the im passes w hich this crisis presents. The study is predicated upon the idea that a new vision of the w orld and of m an
him self is now under construction, a vision w hich points to concepts such as inter-subjectivity, dialogue, narrative, and ecology, am ong
others. It w as not, how ever, the purpose of this text to explore these concepts.
Uniterms: Crises. Postm odernism . Clinical psychology. Subjectivity.
1Faculdade de Estudos Adm inistrativos de Minas Gerais, Núcleo de Graduação. R. Cláudo Manoel, 1162, Savassi, 30140-100, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Este artigo tem com o ob jetivo tecer
conside-rações e reflexões acerca de um tem a, de certa form a,
const ant e e fam iliar à ciência p sicológ ica. Ab ord a a questão da crise da e na Psicologia Clínica nesta p
assa-g em d e século, d iant e d os im p asses d o p arad iassa-g m a
dom inante, entre eles, a crise da subjetividade, que não está m ais dando conta, por ela m esm a, da com plexidade
do sujeito pós-m oderno e de seu contexto histórico
social. Esta crise, já delatada no início do século XX p or
vários p sicólogos, hoje tornou-se crônica, p ois se agra-vou e se am pliou sobrem aneira. Pode-se dizer, na
reali-dade, que a Psicologia já nasceu dividida e em crise, e
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Clínica cont em p orânea. Porém , t ransit a p or aut ores
sociólogos e p sicólogos sociais, p rocurando olhar p ara
a clínica de fora; trata-se, portanto, tam bém de um a leit ura social da clínica.
Os atuais referenciais teóricos parecem não m ais
atender às novas dem andas de um sujeito que, assim
com o o m undo, encontra-se em m utação; os velhos m odelos e paradigm as já não dão conta de toda sua
riqueza e com plexidade. Isto coloca o profissional de
psicologia diante de um a nova clínica, a ser por ele des-vendada. “Utilizam o-nos de nossa linguagem fronteiriça,
ajustam os nossos velhos conceitos de m odo a fazê-los
dizer coisas novas, e nos encontram os em um a situação desconfortável a qual, acredito, deveríam os explicitar”
(Melucci, 1996, p.208). Ou seja, tenta-se dizer coisas novas,
utilizando um a linguagem velha.
Crise, neste contexto, refere-se à “quebra de um a concepção de m undo. O que na consciência coletiva
era evidente, agora é posto em discussão” (Boff, 1996,
p.16). E qual é a concepção de m undo que se está pondo em xeque? No caso que interessa a este trabalho,
trata-se do p aradigm a individualista e da concep ção
cons-truída e alim entada ao longo de séculos acerca do que é o sujeito e a subjetividade. O m odelo de sociedade
que os seres hum anos projetaram para si, pelo m enos
nos últim os 400 anos, estão em crise. “Crise do nosso paradigm a dom inante, do nosso m odelo de relações
m ais determ inante, de nosso sentido de viver
prepon-derante” (Boff, 1996, p.24).
O tem a da crise na Psicologia Clínica é extre-m aextre-m ente atual, relevante e necessário. A extre-m odernidade
tardia (Giddens, 2002) tem colocado em xeque esta área,
co m seu en fo q u e p red o m in an t em en t e su b jet ivo e individualista, o tem po todo. Correntes novas surgem ,
ou antigas ressurgem das cinzas a cada instante.
Pichon--Rivière (1998, p .165) ressaltou com o p articularidade fundam ent al da p sicologia social ser ela op erat iva e
instrum ental, “com características de um a interciência,
cujo cam po é abordado por um a m ultiplicidade interdis-ciplinar (epistem ologia convergente) da qual deriva a
m ult ip licid ad e d as t écnicas”. O conceit o d e ep ist
e-m ologia convergente se encaixa não só para a Psicologia Social, com o tam bém para a Psicologia Clínica e, porque
não dizer, para toda a Psicologia que, em suas várias
linhas, se constituiu em um verdadeiro caleidoscóp io interdisciplinar.
Faz-se necessário, neste m om ento, um a definição
sucinta de clínica. O term o vem do grego Klín e, que
quer dizer cam a ou leito, e refere-se às m icroações. É a arte de olhar, observar e tratar o paciente que está na
cam a. É o atendim ento um por um (Garcia, 1997); no
caso da Psicologia, é o cont at o diret o do p sicólogo com o paciente. E é, antes de tudo, um a prática que
p ro d u z u m sab er. O d iscu rso clín ico , n est a área,
interessa-se pelo sujeito, pela subjetividade. O problem a que se coloca neste m om ento é: que sujeito é este de
quem a clínica está falando? Ou m elhor, que sujeito a
teoria da clínica construiu, ao longo do século XX?
A fim de fazer um a análise da clínica no m undo cont em p orâneo, na p rim eira p art e d est e t rab alho,
p rocurou-se d efinir os t em p os p ós-m od ernos, b em
com o o novo sujeito que surge a partir destes novos contextos. Na segunda parte, abordou-se a questão da
clínica propriam ente dita, os im passes que enfrenta na
contem poraneidade e possíveis saídas.
Que a Psicologia está e sem pre esteve em crise, isto é claro. Porque e com o m ergulhou nessa crise ainda
são questões em aberto. E qual a saída para esta situação
d e crise inint errup t a é aind a m ais ob scuro. O m ais p rovável é que não seja um a única saída, m as várias,
t alvez t an t as q uan t o s sejam o s livres p en sad o res a
m editar sobre esta questão. Um novo paradigm a em clín ica est á se co n st ru in d o an t e o s o lh o s d o s p ro
-fissionais da área. O que se apresenta neste artigo são
apenas reflexões, que visam contribuir para a construção d e um a p rát ica clín ica m ais con t ext ualizad a e q ue
atenda às m ais prem entes necessidades e dem andas
de um sujeito, em vários aspectos, desnorteado.
A pós-modernidade e seu sujeito
Pós-m odernidade, juntam ente com outros
ter-m os coter-m o ter-m undo conteter-m p orâneo, era p ós-industrial,
sociedade da inform ação e era do cap italism o tardio são algum as denom inações dadas aos tem p os atuais,
ou seja, os novos cont ext os a q ue se referem t ais
term inologias, iniciados nos anos 60 e evidenciados a p art ir d o s an o s 80. Gid d en s u t iliza o s t erm o s alt a
m odernidade, ou m odernidade tardia, designando-os co m o a “p re sen t e fase d e d esen vo lvim en t o d as
inst it uições m od ernas, m arcad a p ela rad icalização e
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(Giddens, 2002, p.221). De qualquer form a, “a necessidade
de adjetivos ou p refixos é um sintom a m aior da
inde-cisão teórica corrente” (Melucci, 1996, p.199), ou seja, a
p róp ria indefinição conceitual acerca da contem p
o-raneidade é um a característica m arcante da m esm a.
O m und o p ós-m od erno se inicia a p art ir d a
cham ada crise da m odernidade, da percepção de que
as grandes visões filosóficas, políticas e religiosas típicas
da m odernidade perderam a legitim idade, a hegem onia
e foram , portanto, invalidadas, postas em xeque. Se-gundo Azevedo (1993, p.30), “O pós-m oderno desqualifica
esta visão das coisas e esvazia o m oderno de seus sonhos de alcance universal”.
A p ós-m odernidade não rom p e com o p
ara-digm a m oderno da sub jetividade. Pelo contrário, há
um a e x ac e r b aç ão d o i n d i v i d u al i sm o r u m o ao
hiper-individualism o, com o diz Lipovetsky (1983, p.116),
“o pós-m oderno não passa de um a ruptura de superfície...
que leva a lógica m oderna aos seus lim ites extrem os”. O
saber n a m o d ern id ad e era exclu sivo , o u seja, suas
teorias, seus conceitos e lim ites eram estanques, rígidos
e n ão in co rp o ravam n o vo s sab eres, en q u an t o n o
p ó s-m o d ern o é in clusivo , o u seja, flexível, p erm it e
produzir contrastes e aceita as diferenças.
No m odernism o coexistem duas forças, ou duas
lóg icas: um a b urocrát ica, h ierarq uizad a, d iscip lin ar,
rígida, coercitiva, exclusiva, que im p erou nos tem p os
m odernos; outra flexível, lib eral, igualitária, op cional,
perm issível, inclusiva, prevalente na pós-m odernidade.
Pod e-se d izer q ue, na m od ernid ad e, p red om inou a
lógica das est rut uras b urocrát icas e que, a p art ir de
m eados do século, principalm ente dos anos 60, houve
um a inversão e o pêndulo se deslocou, então, para a
lógica flexível, hedonista, consum ista e im ediatista da
pós-m odernidade.
“A idade pós-m oderna, deste ponto de vista, não
é de m aneira nenhum a a idade p aroxística lib idinal e
pulsional do m odernism o; pensaríam os antes o
contrá-rio: o tem po pós-m oderno é a fase cool e desencantada
do m odernism o...” (Lipovetsky, 1983, p.105).
Para Giddens (2002, p.27), são três os elem entos
cap azes de exp licar o caráter dinâm ico e com p lexo da
pós-m odernidade: 1) a separação tem po/ espaço, que
envolve, acim a de tudo, o desenvolvim ento de um a
dim ensão vazia de tem po, sendo esta a alavanca principal
que tam bém separou o espaço do lugar; 2) os sistem as
d e d esen caixe, q ue se t rat a d o d eslocam en t o d as relaçõ es so ciais d o s co n t ext o s lo cais e sua reco m
-b in ação at ravés d e d ist ân cias in d et erm in ad as d o
espaço/ tem po; 3) a reflexividade, que subm ete a m aioria dos aspectos da vida social, pessoal e da relação do
sujeito com as coisas e a natureza a um a revisão intensa,
à luz de novos conhecim entos ou inform ações. “A infor-m ação especializada, coinfor-m o parte da reflexividade da
m odernidade, é de um a form a ou de outra
constan-tem ente apropriada pelos leigos”.
Pode-se dizer que a reflexividade, o desencaixe e a entrada em outra lógica de vivência do tem po e do
esp aço são características de um m undo glob alizado.
Para Giddens (2002, p.27): “o conceito de globalização é m elhor com p reend id o com o exp ressand o asp ect os
fundam entais do distanciam ento entre tem po e espaço.
A globalização diz respeito à interseção entre presença e ausência, ao entrelaçam ento de eventos e relações
sociais à distância com contextualidades locais”.
Dest a fo rm a, am izad es e relaçõ es já n ão se
restringem nem a locais e nem a tem pos determ inados, m as sim , aos inst rum ent os d e m ed iação - int ernet ,
celular, TV etc. -, que determ inam form as diferentes de
relações, ou seja, face a face e m ediadas (Thom pson, 2004).
Melucci (1996), por outro lado, prefere utilizar o
term o plan et arização p ara salient ar o fat o de que o
hom em chegou aos lim ites, a um a fronteira além da qual não há nem espaço nem tem po: o planeta. Portanto,
não há m ais espaço que não faça parte do sistem a, e
nem m esm o do tem po. Segundo o autor, “o que experi-m entaexperi-m os agora é uexperi-m deslocaexperi-m ento e uexperi-m a p
lane-tarização do espaço, de um lado, e um a presentificação do tem po de outro, o que m uda radicalm ente as cate-gorias em que se baseia a construção da experiência hum ana” (p.202).
Outro aspecto im portante na pós-m odernidade
é o da p rodução e utilização da inform ação com o p rin-cipal recurso m ediador e guia das relações: “A m aior parte de nossa experiência cotidiana é experiência em enésim o grau, o que significa que ela se situa em
con-textos que são cada vez m ais construídos p or
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Portanto, a m ídia exerce um papel fundam ental
na construção do self, principalm ente por interm édio
do que Giddens (2002) denom ina “efeito colagem ”, ou seja, justap osição de histórias, notícias, curiosidades e
itens que nada têm em com um , exceto serem
opor-tunos. O efeito colagem faz com que nunca se tenha um a visão com pleta dos fatos e fenôm enos; nunca se
fecha com pletam ente um a gestalt, pois só se recebe da
m ídia recortes, pequenos fragm entos, já devidam ente filtrados e preparados para atrair e entreter, antes de
chocar e fragm entar. Por outro lado, é hum anam ente
im possível apreender tudo o que acontece no m undo em um dado m om ento. O sujeito tem que se contentar
com os fragm entos e recortes, e com pletar as lacunas
com sua exp eriência, im ag inação, e com o sent id o com p artilhado que constrói em suas relações.
A g lo b alização , co m t o d o s o s seu s efeit o s,
conduz à tensão dialética entre o local e o global, entre
o aqui e o lá, o agora e o depois. Antes, podia-se ver o glob al a p artir do local; o sujeito p ós-m oderno vê o
local a p artir do glob al. Antes, o local era aqui, hoje
pode ser em qualquer lugar. Antes, tinha-se no anco-ram ento da situação im ediata um a referência estável
p ara organização da ident idade, o que p ossib ilit ava
lançar-se no m undo glob alizado.
Desta form a, o m undo contem porâneo se encon-tra diante de um sujeito em conflito, dividido. “A noção
d e sujeit o é ext rem am en t e co n t ro vert id a. Desd e o
princípio, m anifesta-se de form a paradoxal: é sim ulta-neam ente evidente e não evidente” (Morin, 1996, p.45).
Com o diz Touraine (p.75), “a idéia de sujeito não cresce
em estufas m uito bem protegidas. É planta selvagem ”. O sujeito p ós-m oderno, com toda a sua com p lexidade,
não pode ser totalm ente contido em nenhum a
defi-nição, e escapa a qualquer tentativa de apreensão; está em transform ação, em m etam orfose, em constituição.
Para To m ka (1997, p .394), “No sso p resen t e
confronta-nos com um a situação nova. Ap esar de toda
coerência lóg ica, nosso m und o d e exp eriências se decom põe em fragm entos”. Perderam -se os laços com
o passado, caíram os m itos e deuses, o futuro se
descor-tina negro, em aberto. As relações com o espaço e o t em p o m ud aram e se am p liaram ; “os horizont es d a
experiência e da apreensão do m undo com eçaram a se
dilatar ao infinito. As grandes descobertas fizeram de todo o globo terrestre o espaço vital do hom em ” (Melucci,
1996. p.199); o cidadão está em um a “sociedade
plane-tária”, que perdeu sua unidade orgânica, segm
entando--se e tornandoentando--se desigual, descontínua, im previsível e inapreensível. Está fragm entado, cindido entre as
diver-sas arenas em que sua vida se desenrola. O espaço
priva-do t em p ouca ligação com o esp aço p úb lico, onde acontece o jogo de tensões e pressões sociais. Neste
cenário:
o hom em m oderno vive sob o ataque cerrado de experiências carregadas de tensão. O m undo em sua m undanidade incondicional, com suas leis pró-prias, suas diferenças, é por ele experim entado sem um a coesão interior. E dia a dia, ele sente sua inca-pacidade de apreender suficientem ente e de dom i-nar soberanam ente a variedade e a dinâm ica da reali-dade que o envolve e o enlaça. Muitas pessoas não resistem (Tom ka, 1997, p.22).
Segundo Hall (2002), há na m odernidade tardia
a visão de que as identidades m odernas estão
descen-tradas, deslocadas, fragm entadas; trata-se da perda de um sentido de si estável. Ora, se a identidade deixa de
ser percebida com o um a essência substancial, com o se
pode construir a sensação de perm anência do sujeito? A continuidade da identidade está cada vez m ais sendo
deslocada dos conteúdos para a capacidade pessoal
do indivíduo de organizar todas as inform ações e estí-m ulos que recebe, eestí-m uestí-m todo coerente para si, e eestí-m
um p rocesso contínuo.
O m undo pós-m oderno é, com o diz Thom pson,
o m undo da experiência m ediada. Para ele, são três as possíveis form as de relação: a face a face; a m ediada
(cartas, telefones, internet etc);ea quase m ediada (TV,
jornais, revist as, In t ern et , rád io et c.), q ue criam , na pós-m odernidade, um a nova form a de relação, na qual
os indivíduos podem criar e estabelecer um a form a de
intim idade não com p artilhada e essencialm ente não recíproca (Thom pson, 2004).
Cerca de 30 ou 40 anos atrás, o sujeito se
consti-tuía basicam ente a partir das relações face a face; as
relações m ed iad as e q uase m ed iad as eram ap en as
form as de relações acessórias e, apesar de o sujeito
lan-çar m ão delas, eram p ontuais e não tinham m aiores
influências na constituição da subjetividade. Hoje, no
m undo inform atizado, globalizado, da internet, do
celu-lar, dos satélites, na sociedade da inform ação, as relações
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vância que pode-se afirm ar, sem m edo, que o sujeito se
constitui em grande m edida a partir delas. As relações
m ed iad as e q uase m ed iad as con st it uem , p ort an t o, fatores de grande im portância para a form ação do self.
Com o diz Thom pson (2004, p.181):
com o desenvolvim ento das sociedades m odernas, o processo de form ação do self se torna m ais reflexivo e aberto, no sentido de que os indivíduos dependem cada vez m ais dos próprios recursos para construir um a identidade coerente para si m esm os. Ao m es-m o tees-m po, o processo de fores-m ação do self é cada vez m ais alim entado por m ateriais sim bólicos m e-diados.
Isto ap onta p ara um self com o p rojeto sim b
ó-lico, reflexivo e n arrat ivo . No co n t ext o d a o rd e m
pós-industrial, o “eu” se torna um projeto reflexivo. Com o afirm a Gid d en s (2002, p .37), “No s am b ien t es da
pós--m odernidade, o eu alterado tem que ser explorado e
construído com o parte de um processo reflexivo de
conectar m udança pessoal e social”. Desta form a, o self
p assa a ser visto “p rincip alm ente com o um p roduto ou
idealização de sistem as sim bólicos que o precedem ”
(Thom pson, 2004, p.183), com o um p rojeto sim b ólico, reflexivo e narrativo, que o indivíduo constrói
ativa-m ente a partir de sua história, de sua biografia.
Nunca, na história da hum anidade, o local e o
global estiveram tão intim am ente ligados na form ação
do self. Cabe ao sujeito construir, em m eio ao
caleidos-cópio de inform ações que recebe a cada dia em suas
relações, um a narrat iva coerent e e consist ent e, que
am arre t odo o cab edal de inform ações que receb e,
criando um a identidade estável e que se sustente na
tram a histórica que se desenrola no tem po e no espaço.
Ora, hoje, isto se torna extrem am ente com
pli-cado, considerando o grande peso das relações m
e-diadas e quase m ee-diadas na constituição do self. Pois,
por m eio dessas relações, o sujeito recebe inform ações
fragm entadas, incom pletas, quando não distorcidas. Este
tipo de relação tem características próprias. Para m uitos
indivíduos, a relação quase m ediada é apenas um a entre
tantas outras form as de interação pelas quais o sujeito intercam b ia m ateriais sim b ólicos, incorp orando-os ao
seu projeto reflexivo (Thom pson, 2004).
Thom pson fala da dupla dependência m ediada,
ou seja,
o self se torna m ais e m ais organizado com o projeto reflexivo através do qual ele constrói, na form a de autobiografia narrativa, a própria identidade. Ao m es-m o tees-m po, contudo, os indivíduos se tornaes-m cada vez m ais dep endentes de um leque de instituições e sistem as sociais que lhes proporcionam os m eios -tanto m ateriais quanto sim bólicos - de construção de seus projetos de vida (Thom pson, 2004, p.187).
Portanto, a reflexividade, o desencaixe, o efeito
colagem , a relação local global, as relações m ediadas e
quase m ed iad as com t od os os m at eriais sim b ólicos disponíveis, dos quais o sujeito hoje lança m ão, a fim de
realizar seu projeto narrativo, todo estes são fatores que
tornam esse sujeito fragm entado e desenraizado.
O sujeito está perdendo a capacidade de dialeti-zar passado, presente e futuro em um a narrativa coesa.
Está cada vez m ais desnarrativo, à m ercê de m om entos
pontuais e estanques, em que ele não consegue m ais tecer sua tram a histórica. Um sujeito im ediatista e
hedo-nista, cada vez m ais globalizado e m ais desm aterializado,
tornando-se cada vez m ais virtual, etéreo, a cada dia m ais distante do outro concreto, da vida concreta, da
relação face a face. Está envolto em um casulo protetor
(Giddens, 2002), que não só o protege com o o isola. Tem -se, portanto, o advento de um novo sujeito.
Tudo se passa com o se o hom em pós-m oderno
se deparasse com sua condição existencial m ais radical:
a de não p ossuir um núcleo identitário central estável, contínuo e linear, e sim um vazio que ele tem que
preen-cher, fazendo uso da consciência prática do dia-a-dia.
Portanto, não dando m ais conta - com o fazia em épocas p assad as - d e t am p onar a ang úst ia ad vind a d e sua
condição existencial, desenvolve diversas estratégias, a
fim de coordenar e ordenar todas as variáveis de sua vida em um todo coerente e contínuo: desde um
enrije-cim ento de suas fronteiras de contato, ou casulo prote-tor, até a evolução para com portam entos desviantes, patológicos e sintom áticos. Pode-se m esm o dizer que a pós-m odernidade inaugura novas form as de
adoeci-m ento psíquico.
A crescente disponibilidade dos m ateriais sim bólicos
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Sujeito do cogit o, da consciência, do
inconscien-te, do desejo, da existência; sujeito biológico, cerebral;
sujeito da ação e da percepção; sujeito do com porta-m ento; sujeito cognitivo. Sujeito cindido eporta-m sua
essên-cia, q u e t am b ém se frag m en t a em su a exist ên essên-cia,
passando a sujeito histórico, social, político, epistêm ico. Portanto, a partir de m eados do século XX, esse sujeito
sofre um a fragm entação definitiva.
Um sujeito desiludido, deprim ido, ansioso. Um
sujeito que rom peu com o passado e com as tradições, m as tam bém não tem um futuro próspero que o
aguar-de. Um sujeito hedonista, im ediatista, narcisista, que
p recisa ter p razer agora, p ois p oderá não ter tem p o depois. Um sujeito tam bém m uito m ais inform ado que
em eras precedentes, que busca sua independência e
autonom ia, que defende seus direitos e o das m inorias.
As principais polaridades em que se dividiu este sujeito são as contraposições sujeito/ indivíduo,
autono-m ia/ h et ero n o autono-m ia, au t en t icid ad e/ in au t en t icid ad e e
independência/ dependência. Autonom ia, liberdade e independência são term os com um ente relacionados
ao sujeito, e heteronom ia, alienação e dependência são
term os relacionados ao indivíduo.
Mas Renaut (1998, p.63) aponta um equívoco
nesta correlação: “... a supervalorização hiperbólica da
independência pode levar à afirm ação pura e sim ples
do eu enquanto valor im p rescritível, não lim itável p or
essên cia e livre d e q ualq uer n orm at ização”. É um a
arm adilha, um engodo; p orém , p ode-se dizer que é
exatam ente o que ocorre hoje, na era do
hiper-indivi-dualism o: a ênfase exagerada na subjetividade e em
um sujeit o in d ep en d en t e e livre. A socied ad e est á
construindo um sujeito idealizado, desenraizado, que
busca a independência e a liberdade a todo custo, a
despeito do outro e do m undo, que não passam de
utensílios que m aneja para atingir seus fins.
A busca pela independência na m odernidade
tardia é regra: todos devem ser eles m esm os, originais,
autênticos. Ser sujeito hoje é um a exigência e, quando
isto ocorre, quando todos em um a sociedade têm que
ser eles m esm os, seres únicos, cai-se então na esfera da
heteronom ia. Portanto, a busca pela autonom ia já foi
ab sorvida, assim ilada e integrada em um a sociedade
essencialm ente heterônom a; quanto m ais aut ênt ica a pessoa for, m ais heterônom a estará sendo.
Porém , neste contexto, autonom ia e
indepen-dência não são sinônim os e, com o diz Renaut, não existe
liberdade natural, sem regras.
A b usca d a in d ep en d ên cia est á m ais p ara o indivíduo que para o sujeito, pois baseia-se na
sepa-ratividade, na liberdade absoluta e sem regras, im
pli-cando na noção de um sujeito auto-fundante, de form a que, no ideal de autonom ia e liberdade, incluem -se o
o u t ro e o m u n d o . Au t o n o m ia, aq u i, g an h a n o vo s
contornos, no dizer de Renaut: “no ideal de autonom ia, continuo a ser dep endente de norm as e leis, com a
condição de que eu as aceite livrem ente” (Renaut, 1998,
p.63). Neste contexto, carrega em seu bojo a idéia de interdependência e, portanto, de intersubjetividade - a
qual, para Giddens (2002), Hall (2002) e outros, é a âncora
da subjetividade. “A idéia de sujeito, precisam ente na m edida em que ela não se reduz à de indivíduo, m as, ao
contrário, im plica um a transcendência, um a
ultrapassa-gem da individualidade do eu, com porta nela a inter-subjetividade ... nela está incluída por definição a relação
com o outro” (Renaut, 1998, p.100).
Portanto, a autonom ia está para a
interdepen-dência assim com o a heteronom ia está p ara a inde-pendência. De form a análoga, a subjetividade, com o
independência, se desliga do conceito de autonom ia e
se liga à heteronom ia. Renaut (1998) tam bém coloca a intersubjetividade com o condição da subjetividade, o
que a clínica não p ode m ais deixar de considerar: o
outro vem antes da própria pessoa, a sociedade antes do indivíduo, a filogênese antes da ontogênese, e se há
algo im anente ou auto-fundante, este não é o sujeito
nem a sociedade, p ois am b os constituem um a relação dialética e dialógica, de reciprocidade e m utualidade.
A clínica
A crise d a Psicolog ia é t am b ém a crise, sem p recedentes, da lógica do sujeito, do p aradigm a da
subjetividade, que deve ser delatada sem m edo na
bus-ca por um a saída para os im passes, busbus-ca esta em que a Psicologia se encontra hoje.
A Psicolog ia Clínica d o século XX, no afã d e
conhecer quem é este sujeito, exaltou a subjetividade, vendo o am b iente com o epifenôm eno e reforçando o p arad ig m a d om inant e, q ue se ap oiava na id éia d e
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feit a p ela Psicolog ia Clín ica, veio resp on d er a um a
dem anda ideológica, fruto do individualism o m oderno.
“O individualism o teria im p edido a Psicologia de re-conhecer os aspectos culturais inerentes à cognição, à
exp eriência sub jet iva e à p sicop at ologia” (Moreira &
Sloan, 2002, p.13).
Em relação ao saber, as m udanças ocorridas na m odernidade tardia não o deixam intacto:
as d elim it açõ es clássicas d o s d iverso s cam p o s científicos passam ao m esm o tem po por um reques-tionam ento: disciplinas desaparecem , invasões se produzem nas fronteiras das ciências, de onde nas-cem novos cam pos. A hierarquia especulativa dos conhecim entos dá lugar a um a rede im anente, por assim dizer, ‘rasa’, de investigações cujas respectivas fronteiras não cessam de se deslocar (Lyotard, 1986,
p.71).
Assiste-se, p ortanto, ao nascim ento de novos
cam pos, híbridos, que surgem nos interstícios dos
diver-sos sab eres, cujas fronteiras, nítidas tem p os atrás, se
dilataram , ou m esm o, diluíram -se e se dissiparam . Cada
vez m ais os psicólogos e especialistas de diversas áreas
estão tendo que lançar m ão de outras disciplinas para
dar conta de seu objeto de estudo. No interior da própria
p sicologia, ocorre o m esm o fenôm eno, ou seja, os lim
i-tes até então existeni-tes entre as abordagens clínica e
social se dissolveram , e o p rofissional deve articular o
local e o global em um diálogo que dê conta do sujeito
pós-m oderno.
Quanto à clínica, as m atrizes ep istem ológicas
que a sustentavam já não o fazem m ais, e as abordagens
teóricas estão polissêm icas, dialogando entre si,
buscan-do suas fontes inclusive fora buscan-dos buscan-dom ínios da disciplina
de origem .
Trata-se do fenôm eno da com plexidade, em que
há um a nova form a de interação entre os saberes, onde
se consideram todas as possíveis relações entre o todo
e suas partes. Onde o todo é m aior que a som a das
par-tes e engloba não só as regularidades e certezas dos
saberes, m as leva em conta tam bém o caos, as
irregula-ridades, lacunas e incertezas. A c om plexidade causa um a
espécie de curto-circuito nos saberes, tornando possível
o relacionam ento entre conceitos tão antagônicos que,
até então, na m odernidade, seriam inarticuláveis, pois seu encontro seria sacrilégio (Neubern, 2004).
Por outro lado, as teorias vigentes em clínica,
hoje, chegaram a um ponto de seu desenvolvim ento
em que surge a tendência a inverter a relação entre teoria e prática. Ao invés de deixar o fenôm eno falar por
si, a despeito de am eaçar sua construção teórica,
tenta--se encaixar o fenôm eno no conceito. E o problem a é que, hoje, o fenôm eno do sujeito pós-m oderno já não
cabe e nem se sustenta em nenhum a das teorias
isola-dam ente e, na tentativa de não perder terreno, estas calcificam a dinâm ica histórica, aberta e factual do
fenô-m eno científico - no caso, o sujeito - para que caiba efenô-m
seus conceitos.
O que está em jogo aqui são as p róp rias teorias e o ap eg o d a racionalid ad e cient ífica p or m od elos.
Dupuy (1996) fala do fascínio da ciência pelos m odelos,
cuja fabricação é universal, m as cujo sentido é invertido nas ciências. Enquant o no senso com um m od elo é
aquilo que se im ita, nas ciências, trata-se o m odelo de
um a im itação, repetição, reprodução, representação do objeto ou fenôm eno estudado.
Arendt (a p u d Dupuy, 1996) denom ina o cientista
de Hom o Faber, isto porque, antes de tudo, é ele quem
concebe e fabrica m odelos. Isto lhe confere um controle sobre os próprios fenôm enos. Segundo Arendt, “Controle
exp licativo e p reditivo, em p rim eiro lugar, graças ao poder da ferram enta m atem ática ... . Controle do poder criador da analogia, sobretudo ... . Conhecer é produzir
um m odelo e efetuar sob re ele m anip ulações orde-nadas” (1996, p.23,27).
Mas a pós-m odernidade im pôs um a nova inver-são na relação teoria e prática, devolvendo a prim azia para a prática, de onde devem surgir os novos conceitos. Porém , este processo não está sendo tão fácil e linear
quanto parece. Os novos cam pos e as novas dem andas, surg id as no m ercad o d e t rab alho, est ão forçand o o psicólogo a sair do consultório e a descobrir novos fenô-m enos, que a todo fenô-m ofenô-m ento questionafenô-m e põefenô-m efenô-m
xeque suas teorias.
Pode-se dizer que esta inversão, em que a teoria é que determ ina o sujeito (ou o fenôm eno) e não o
con-trário, atingiu todas as abordagens em clínica, que se
encontram , dentro do enfoque de Vigotski (1998), infladas e com caráter ideológico.
Ao longo do século XX, as diversas abordagens estiveram brigando entre si pela hegem onia conceitual.
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terapias dinâm icas, profundas e analíticas, e tam bém as
terapias de caráter com preensivo, todas elas viviam um a
relação dialética e não dialógica. Chegaram às vias de um a relação ideológica com a verdade.
E nesta b riga interna, os p sicólogos clínicos não
p erceb eram q ue t od as est as ab ord ag ens, ind ep
en-d ent em ent e en-d e serem aen-d ap t at ivas, elab orat ivas ou sugestivas, são teorias individualistas, que p riorizam a
sub jetividade em detrim ento do histórico e do social;
por extensão, são teorias que reforçam o paradigm a dom inante, de olhar para o indivíduo ignorando os
dife-rentes contextos em que está inserido e suprim indo,
desta form a, o próprio sujeito.
Portanto, um as das críticas p ós-m oderna à Psi-cologia Clínica trata-se da exaltação à sub jetividade,
em detrim ento da dim ensão biológica e social. Ao longo
do século XX, a clínica se voltou para o estudo do psi-quism o, considerando as dem ais dim ensões da
existên-cia com o epifenôm enos, e tendendo, em m uitos casos, a en cerrar o sujeit o em m od elos t eóricos ríg id os e inflexíveis. É p reciso definir um a nova relação entre a teoria e seu ob jeto, um a relação dialógica, na qual a
teoria da clínica está sem pre pronta a alterar seus con-ceit o s em fun ção d as m ud an ças em seu o b jet o , o sujeito.
A ênfase na subjetividade levou as teorias da psicologia ao seu caráter abstracionista, ou seja,
tornou--as inclinadas a sep arar o fenôm eno p sicológico do sujeito que o p roduz, ob jetivando estes dois fatos e enfatizando o prim eiro em detrim ento do segundo, aca-bando por elim inar definitivam ente o sujeito. Porém , a
m ais im portante crítica pós-m oderna à clínica é quanto a seu caráter ideológico, p or ela rep roduzir em suas teorias o p aradigm a individualista. Existe um p aradoxo no p aradigm a dom inante na clínica: ao m esm o tem p o
em que afirm a sobrem aneira a subjetividade, ele a exclui em suas teorias e m odelos. Na m edida em que construiu um arcabouço teórico e conceitual generalista, abstrato e rígido:
... boa parte dos autores clínicos envolvidos nessa d iscussão p rom ove um q uest ionam ent o rad ical quanto à condição epistem ológica da teoria (seu
uso, suas possibilidades e princípios) na sua relação com a subjetividade e o sentido. Isto porque colocam o desafio sobre até que ponto seria possível construir um a teoria sobre a subjetividade sem descaracterizá--la em seus processos ... (Neubern, 2004, p.49).
O apego aos m odelos e às teorias leva tam bém
à busca das regularidades, ou seja, do repetitivo, da
con-firm ação dos m odelos, ao invés de atentar para os furos, as falhas, os m ovim entos desordenados e tudo aquilo
que faça as teorias caírem por terra.
Prat icam en t e t od as as ab ord ag en s t êm sua
teoria da personalidade, sua teoria do desenvolvim ento, sua p sicop atologia, e todas em consonância com seus
conceitos centrais e, de acordo com a ideologia vigente, privilegiam o subjetivo, o interno, o intrapsíquico, o indi-víduo (Moreira & Sloan, 2002). Neubern (2004) m ostra com o o paradigm a dom inante determ inou o
desenvol-vim ento de um m odelo clínico calcado nas noções de interno, essência, indivíduo, universalidade, determ ina-ção, natureza, inconsciente, em detrim ento de outros m odelos, que hoje já adotam conceitos de transição: “A
ausência de um a reflexão epistem ológica, ao m esm o tem po em que não perm itia a discussão sobre os pressu-postos teóricos, alim entava a idéia de que as teorias se legitim avam única e exclusivam ente em sua relação
com o m undo em pírico” (Neubern, 2004, p.26).
Portanto, o ideológico está em seu caráter indivi-dualist a e não social:
a personalidade é um a construção ideológica em dois sentidos. Prim eiro, com o conceito acadêm ico ... surge da conjunção do individualism o liberal e do positivism o das ciências naturais. Segundo, dentro da irracionalidade da ordem social contem porânea, a personalidade (o caráter individual) é sintom a de processos sociais de dom inação e opressão (Moreira & Sloan, 2002, p.77).
O fator ideológico das teorias surge tam b ém quando elas tentam inverter esta equação e colocar o p síquico com o anterior ao social e ao b iológico. Com o
se fosse possível ir contra a herança genética ou o m un-do onde se nasce, ou m esm o ir contra o fluxo un-dos acon-tecim entos sociais no tem po e no espaço.
Dessa form a, ou o sofrim ento é atribuído, quanto às suas fontes, ao indivíduo, ou seja, é ele o inadequado, e deve ser subm etido aos tratam entos existentes, a psicoterapia entre eles, ou então o sofrim ento é
torna-do ontológico e o indivíduo deve conviver com ele. Nos dois casos, a psicologia faz parte da ideologia e im pede que os conflitos sociais possam ser vistos com o origem do sofrim ento (Crochík, 1998, p.3).
Considera-se o “eu” com o um a construção frágil,
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histórico-social. Neubern (2004), vê a subjetividade com o
um “p rocesso sutil que p ossui várias relações com as
dim ensões b iológicas, sociais e culturais, m as não se esgota ou se explica por algum a delas”. Porém , a
inter-subjetividade e o sujeito do côm put o (Morin, 1996), ou
seja, o sujeito histórico-social e o sujeito biológico, vêm antes do sujeito psicológico; são estruturas a p riori, que
sustentam e fundam entam a este últim o.
Portanto, as propostas pós-m odernas em clínica
atrelam sua p rática não só a um a reflexão teórica, m as tam bém epistem ológica, tornando-se aberta e flexível,
p ossib ilit an d o “um a racion alid ad e esp ecífica p ara a
discussão sobre o hum ano”, segundo Neubern (2004, p.188). Racionalidade que rom pe com os dogm as das
teorias vigentes e busca um a articulação entre diversas
ab ordagens. As teorias devem voltar a se ab rir p ara o frescor do fato ou do fenôm eno, com o tam bém para as
outras teorias. A com plexidade perm ite esta abertura e
conduz às m ais variadas form as de articulações entre conceitos. É preciso ver as teorias hoje não com o
anta-gônicas, m as com o com p lem entares.
A incorporação de um a reflexão epistem ológica
sistem ática na p sicologia clínica serve com o antídoto p ara a tendência ao ab stracionism o, reducionism o, e
ao risco deste saber se tornar ideológico.
E é neste tripé biopsicossocial que se dá a
peque-na exist ência do hom em . Qualquer ab ordagem que t en h a a p ret en são d e ser d esid eo lo g iza d o ra d eve
considerar em suas análises estas três dim ensões da
existência. Antes de tudo há um m undo, um a cultura, um contexto histórico; há tam b ém um corp o, p rem
a-turo, virgem , à espera dos cuidados que lhe
possibili-tarão constituir um sujeito. Portanto, antes há um corpo e um m undo; antes há o outro, com seu olhar, seu toque,
seu corpo, sua palavra, e depois o “eu”, o self, com sua
persona, seu caráter. Biológico, social e psicológico não
se excluem nem se esgotam , m as se com plem entam e
interagem de form a dialética e dialógica.
O que se tem hoje em clínica não são novos paradigm as, m as o que se pode cham ar de paradigm as de transição, que, apesar de ainda afirm arem o m odelo dom inante, ao m esm o tem po apresentam rupturas em
relação a este. As abordagens hum anistas-existenciais, em algum as de suas vertentes, são alguns exem plos destes m odelos que, apesar de ainda guardar m uitos p ontos em com um com o p aradigm a dom inante, b
us-cam superá-lo pela evolução de seus conceitos ao longo
da história.
A p rodução contem p orânea em clínica deu um
passo a m ais em relação às abordagens m ais tradicionais citadas acim a, pois prega um retorno ao outro, à relação
e ao social. Busca novos conceitos para referendar sua
p rát ica, com o o d e narrat iva, d ialog ia e int ersub je-tividade.
A abordagem narrativa em terapia visa levar este
sujeito fragm entado, desnarrativo, um sujeito que rom
-peu com seu passado e com as tradições e que tam bém não tem um futuro, a recriar um a história coerente e
coesa com seus projetos. Levá-lo a dialetizar novam ente
passado, presente e futuro. Aprender a dar sentido a suas experiências e encaixá-las de form a coerente em
sua cadeia discursiva, dentro de um projeto biográfico.
Para Giddens (2002, p.222), narrativa é “estória (ou estó-rias) por m eio da qual a auto-identidade é entendida
reflexivam ente, tanto p elo indivíduo de que se trata
quanto pelos outros”.
O conceito de dialogia surgiu do entre da filosofia de Buber (Hycner, 1995). Trata-se da filosofia do diálogo.
Significa que o sentido dado pelo sujeito às suas expe-riências é construído na relação dialógica com o outro e com o m undo, a partir de seus repertórios interpre-tativos e das p autas interativas em questão. Boff, ao
tentar delinear o novo paradigm a em construção, dentre vários conceitos, fala tam bém da dialogia, am pliando-a a um a dim ensão p lanetária, ecológica: “há, p or fim , a lógica dialógica ou p ericorética. Por esta se p rocura o
diálogo em todas as direções e em todos os m om entos. Por isto sup õe a atitude o m ais inclusiva p ossível e a m enos p rodut ora de vít im as. A lógica do universo é dialógica: tudo interage com tudo em todos os pontos
e em todas as circustâncias” (Boff, 1996, p.49).
Portanto, a com p lexidade, a ep istem ologia e a adoção de conceitos de transição, com o os de narrativa e dialogia, ap ontam p ara a constituição de um novo paradigm a em clínica, e levam a um a visão m ais integral
do sujeito, na qual as dim ensões p sicológica, b iológica e social interagem m utuam ente na construção do self.
Considerações Finais
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do paradigm a da subjetividade inaugurado na entrada
da m odernidade. Está acontecendo hoje o declínio do
paradigm a dom inante, que teve seu m om ento de início e de expansão ao longo dos últim os duzentos anos. O
hiper-individualism o nada m ais é que um a defesa contra
o fato de que este já não está respondendo de form a satisfatória às prem entes necessidades de um sujeito e
um a hum anidade perplexa ante um m undo em
des-truição e decadência.
Um novo paradigm a está se construindo neste m om ento, e a Psicologia Clínica, no afã de dar conta
deste m om ento, busca tam bém alternativas e cam inhos
que apontem para o novo. A base construída ao longo do século XX foi fundam ental para este novo salto. É a
p onte p ara um a ab ordagem social em clínica, e p ara o
am adurecim ento de conceitos com o intersubjetividade, narrativa, dialogia, identidade, ideologia, entre outros.
O exposto neste trabalho está longe de esgotar
todas as possibilidades de interpretar o m om ento em
que a psicologia clínica se encontra hoje. Trata-se apenas de m ais um a form a de abordar a questão. E espera-se
que possa contribuir, m esm o de form a singela, para a
evolução das discussões e para o am adurecim ento de nossa ciência, ainda tão nova.
A am pla diversidade de saberes que com põem
o cam p o da Psicologia, que décadas atrás era alvo de
críticas, considerada fator negativo p ara a constituição do cam po, é hoje sua grande qualidade e o que lhe dá
subsídios para a superação desta crise em que se
encon-tra, e p ara a contrib uição na construção de um novo p aradigm a em clínica.
Portanto, o cam inho para um a nova clínica passa
por fazer um a “redução” - epoché - das teorias existentes, voltar novam ente para o fenôm eno do sujeito, com um
novo olhar, deixando que a observação e a prática clínica
façam em ergir um a nova teoria.
Com o se costum a dizer, a clínica é soberana, e
qualquer nova teoria ou conceito deve partir da prática,
sem deixar, é claro, de considerar o sab er instituído,
m as sim utilizá-lo com o fundam ento p ara o novo, ou o
instituinte. Na relação entre teoria e prática, esta últim a
passa novam ente a ser instituinte da prim eira, agora aberta e flexível.
A crise da psicologia apenas reflete a crise do
m undo pós-m oderno e, por outro lado, a busca e
cons-trução de saídas pela Psicologia certam ente consistirão
tam bém em cam inhos para que a sociedade contem
-porânea encontre novos m odelos nos quais possa calcar as relações sociais.
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Recebido em : 2/ 5/ 2006