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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

FREDERICO SOUZA DE QUEIROZ ASSIS

Para Além do Cachimbo de Magritte: Messianismo e Utopia

na Construção da Figura do Subcomandante Marcos

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2 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

Para Além do Cachimbo de Magritte: Messianismo e Utopia

na Construção da Figura do Subcomandante Marcos

Frederico Souza de Queiroz Assis

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Robert Sean Purdy

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3 ASSIS, Frederico Souza de Queiroz. Para Além do Cachimbo de Magritte:

Messianismo e Utopia na Construção da Figura do Subcomandante Marcos.

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de mestre em História.

Email: frederico.assis@usp.br

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. _______________________________________ Instituição:______________

Julgamento:_____________________________________ Assinatura:______________

Prof. Dr. _______________________________________ Instituição:______________

Julgamento:_____________________________________ Assinatura:______________

Prof. Dr. _______________________________________ Instituição:______________

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4 A Thyrso Francisco de Queiroz Assis, meu avô,

(5)

5 A mí solo me matarán, pero mañana volveré y seré millones.

Tupac Katari, 1781

Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy,

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6

Resumo

ASSIS, Frederico Souza de Queiroz. Para Além do Cachimbo de Magritte:

Messianismo e Utopia na Construção da Figura do Subcomandante Marcos. 2013.

126 f. Dissertação (Mestrado em História Social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo.

O trabalho tem o objetivo central de identificar como se construiu historicamente a figura do Subcomandante Marcos, na esteira do processo de formação do movimento zapatista em Chiapas. Marcos, cuja identidade era ocultada por si mesmo (embora o governo mexicano tenha declarado publicamente, em 1995, que ele era o professor Rafael Sebastián Guillén Vicente), é o principal porta-voz do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e destaca-se como figura-símbolo do referido movimento. Diante disso, busca-se apresentar a importância chave do indivíduo para o movimento zapatista (no plano intelectual e político), bem como compreender como se deu a dissolução de sua própria individualidade – no plano simbólico – na medida em que Marcos pareceu encarnar o ideário revolucionário zapatista. A ênfase analítica, para tanto, recairá sobre os aspectos de messianismo inseridos nesse processo, assim como sobre os elementos que sinalizem em Marcos a representação da própria experiência utópica, para que então se compreenda as razões pela quais sua liderança pareceu ter uma dimensão sui generis. Tal análise, feita a partir do levantamento de fontes primárias e da revisão da literatura secundária, mostra-se necessária frente à constatação de que o zapatismo constituiu-se como um dos movimentos políticos mais relevantes da contemporaneidade. Assim, realizando um estudo sistemático desse conjunto de aspectos, busca-se articular os temas de modo pertinente, para que se compreenda, então, o significado histórico deste ator político contemporâneo.

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Abstract

ASSIS, Frederico Souza de Queiroz. Beyond Magritte's Pipe: Messianism and

Utopia in the Construction of Subcomandante Marcos. 2013. 126 f. Thesis (Master’s

Degree in Social History), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo.

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SUMÁRIO

Agradecimentos...9

Introdução...12

Parte I – A Vida e a Morte de Rafael Guillén...26

Parte II – A Morte e a Vida de Marcos...38

Parte III – O Rei está Nu! A Construção do Mito Subcomandante Marcos...72

Considerações Finais...114

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Agradecimentos

Agradeço inicialmente ao Professor Sean Purdy pela orientação em todo o processo de pesquisa, onde encontrei um permanente canal aberto de diálogo. Agradeço sobretudo pela paciência e atenção demonstradas.

Tive o privilégio de estar junto a uma geração incrível no Bacharelado de Relações Internacionais da USP, pessoas especiais com quem construi laços de amizade e a quem devo boa parte de minha formação política e intelectual. Agradeço – com saudades – pela época de movimento estudantil, no Centro Acadêmico Guimarães Rosa, o “Guima”. Aos companheiros da chapa “Sete de Ouros”, a cada membro das gestões “Veredas”, da querida “Terceira Margem do Rio”, da “Meio da Travessia” e d’“A Hora e Vez”: muito obrigado, “velhos”! Não tenho como deixar de agradecer nominalmente a amizade de Bruno Zanetta, Caio Favaretto, Ernesto Salles, Felipe Teixeira Gonçalves, Jonas Medeiros, José Henrique Bortoluci, Leonardo Fontes, Melina Rombach e Sérgio Guedes Reis.

Agradeço aos professores que tive durante a graduação na Universidade de São Paulo; em especial: Maria Hermínia Tavares de Almeida, coordenadora do Bacharelado em Relações Internacionais e diretora do IRI-USP, com quem tive a oportunidade de travar um diálogo sempre franco durante dois mandatos como Representante Discente na Congregação do IRI (e agora mais um como representante dos ex-alunos); Peter Demant, quem me abriu as portas para ser monitor do curso “Globalização em Perspectiva Histórica” e me proporcionou uma experiência bastante enriquecedora; Leila Leite Hernandez, quem me ajudou a dar os primeiros passos no mundo da pesquisa acadêmica, por quem tenho muita consideração; e Nicolau Sevcenko, cujas aulas inspiradoras me abriram horizontes e aguçaram meu senso crítico.

Agradeço a todos os professores que tive antes de entrar na universidade, a quem homenageio nos nomes da Professora Alice e da Professora Áurea.

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10 imensamente a cada aluno(-professor) com quem dividi uma sala de aula e com quem aprendi constantemente a me transformar num professor(-aluno).

Agradeço a todos os companheiros do Coletivo Alvorada Vermelha, grupo junto a quem tenho o prazer de militar no Partido dos Trabalhadores – mais um grupo de jovens a se somar nessa longa tradição de lutas, cujoobjetivo é contribuir, na medida de nossas humildes capacidades, para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, que seja capaz de escrever as linhas de sua própria história: Andreza Galli, Anita Stefani, Danilo Bertazzi, Danilo Fiore, Éder Terrin, Fernanda Lima, João Paulo Paixão, Luis Henrique Campos, Marcello Baird, Marcos Lopes Campos, Mariana Brito, Nádia Nakamura Vieira, Pedro Henrique Lopes Campos, Talita Capela, Tassia Toffoli e Thiago Badaró. Tenho muito o que aprender com cada um de vocês. Em especial agradeço a Felipe Teixeira Gonçalves, com quem trabalhei e aprendi muito, a Ernesto Salles e a Leonardo Fontes.

Agradeço imensamente ao Prefeito Fernando Haddad e à Vice-prefeita Nádia Campeão, com quem tive a oportunidade de estar em contato e aprender muito desde a pré-campanha das eleições municipais de 2012. A Cida Perez, Luís Fernando Massonetto e Gustavo Vidigal, com quem trabalhei na equipe do programa de governo e no governo de transição – certamente uma das épocas mais intensas e de grande aprendizado em minha vida.

Agradeço imensamente a Leonardo Barchini, Vicente Trevas, Paulo Massi Dallari e Marcelo Costa e à toda equipe da Secretaria Municipal de Relações Internacionais e Federativas da Prefeitura de São Paulo; em especial, agradeço às queridas Cássia Costa, Guísela de Pereira, Jessica Marano e Luiza Pinheiro – a quem devo também agradecer pela valiosa ajuda na tradução de citações desta dissertação.

Agradeço aos grandes amigos, parceirinhos de sempre, Bruno Corrêa de Queiroz, Calixto Freitas Filho, Diogo Venturelli, Mariana Chagas, Rodrigo Venâncio Castanho e Vítor Cavina, responsáveis por momentos agradáveis e com que sei que posso contar sempre.

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11 Agradeço a oportunidade de ter frequentado na pós-graduação as excelentes aulas dos professores: Eduardo Natalino dos Santos, Francisco de Assis Queiroz, Maria Lígia Coelho Prado e Renato Braz Oliveira de Seixas.

Agradeço as valiosas contribuições dos professores da minha banca de qualificação: Renato Braz Oliveira de Seixas e Pedro Ortiz. Espero que o resultado final desta pesquisa faça jus às expectativas depositadas. E agradeço desde já aos membros da banca de defesa do mestrado.

Aos meus pais, Sílvio e Nina, e ao meu irmão André, serei eternamente grato por tudo.

(12)

12

Introdução

O trabalho tem o objetivo central de identificar como se construiu historicamente a figura do Subcomandante Marcos, na esteira do processo de formação do movimento zapatista em Chiapas. Marcos, cuja identidade era ocultada por si mesmo (embora o governo mexicano tenha declarado publicamente, em 1995, que ele era o professor Rafael Sebastián Guillén Vicente), é o principal porta-voz do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e destaca-se como figura-símbolo do referido movimento. Diante disso, busca-se apresentar a importância chave do indivíduo para o movimento zapatista (no plano intelectual e político), bem como compreender como se deu a dissolução de sua própria individualidade – no plano simbólico – na medida em que Marcos pareceu encarnar o ideário revolucionário zapatista. A ênfase analítica, para tanto, recairá sobre os aspectos de messianismo inseridos nesse processo, assim como sobre os elementos que sinalizem em Marcos a representação da própria experiência utópica, para que então se compreenda as razões pela quais sua liderança pareceu ter uma dimensão sui generis. Tal análise, feita a partir do levantamento de fontes primárias e da revisão da literatura secundária, mostra-se necessária frente à constatação de que o zapatismo constituiu-se como um dos movimentos políticos mais relevantes da contemporaneidade. Assim, realizando um estudo sistemático desse conjunto de aspectos, busca-se articular os temas de modo pertinente, para que se compreenda, então, o significado histórico deste ator político contemporâneo.

Na madrugada de 1º de Janeiro de 1994, cerca de três mil indígenas insurgentes armados tomaram o controle de quatro municípios do estado de Chiapas: San Cristóbal de las Casas, Ocosingo, Altamirano e Margaritas. Tomaram uma estação de rádio, atacaram um quartel do Exército e divulgaram a “1ª Declaração da Selva Lacandona”, um manifesto à sociedade afirmando as condições hostis enfrentadas pelas comunidades locais, declarando guerra ao governo e clamando por apoio popular.1 O presidente da República Carlos Salinas de Gortari rapidamente enviou mais de dez mil homens para combater os membros do Exército Zapatista de Libertação Nacional, o EZLN. Os autointitulados zapatistas, contudo, contribuíram para que se desse primeiro grande

1

BUENROSTRO y ARELLANO, Alejandro. As Raízes do Fenômeno Chiapas: o Já Basta da

(13)

13 passo para que a imagem mexicana – tanto em âmbito nacional como, principalmente, no internacional – de estabilidade e progresso começasse a ruir.2

A partir de então, surgia no cenário político mexicano um novo ator: o Subcomandante Insurgente Marcos, cuja identidade mantinha-se em mistério, em função do intermitente uso de balaclavas (também chamadas de passa-montanha) e da deliberada negação de seu próprio passado. Marcos apresentava-se como o porta-voz do comando militar (e não propriamente seu líder), declarando publicamente as demandas das comunidades chiapanecas, propalando princípios de não-vanguardismo político e não-disputa pelo poder, bem como elucidando o processo de formação do movimento ao qual estava ligado. Em suas palavras:

Nós chegamos à selva como uma clássica elite revolucionária em busca desse sujeito, o proletariado, no caso da revolução marxista-leninista. Mas essa proposta inicial entrou em choque com as propostas das comunidades indígenas, que têm outro substrato, uma complexa pré-história de emergências e insubmissões. Nós modificamos nossa proposta interativamente. O EZLN não nasce de propostas urbanas, mas tampouco de propostas vindas exclusivamente das comunidades indígenas. Nasce dessa mescla, desse coquetel molotov, desse choque que produz um novo discurso. O que dissemos é que a transformação histórica não deve ser feita à custa da exclusão de setores da sociedade.3

Progressivamente, sua imagem como espécie de “anti-herói” se consolidava no imaginário político, transcendendo, inclusive, as fronteiras nacionais mexicanas. Baschet4 e Buenrostro y Arellano5 identificam claramente que vários dos princípios defendidos pelo Subcomandante Marcos serviriam de inspiração para o surgimento do denominado altermundismo, materializado nos movimentos antiglobalização. A grande repercussão nacional e internacional, nos círculos políticos, midiáticos e acadêmicos, fez com que alguns rótulos fossem atribuídos a Marcos, como “novo Che Guevara”,6

2 GILBRETH, Chris; OTERO, Gerardo. “Democratization in Mexico: The Zapatista Uprising and Civil

Society”. Latin American Perspectives 28(4): 7-29, 2001, pp.11-12.

3 ARELLANO, A. B.; OLIVEIRA, A. U. (Org.). Chiapas: construindo a esperança. São Paulo: Paz e

Terra, 2002, p.42.

4 BASCHET, Jérôme. L’étincelle Zapatiste: Insurrection Indienne et Résistance Planétaire. Paris:

Denoël, 2004.

5

BUENROSTRO y ARELLANO, Op. cit., 2002.

6“Como muitos tinham o mito de Che Guevara e gostavam de palavras como revolução e guerrilha, a

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14 “terrorista” ou até mesmo como “popstar” (como o denominou a BBC) e sex-symbol, entre outros.

Em 1995, o governo central mexicano, na administração do Presidente Ernesto Zedillo (1994-2000), declarou que havia descoberto a identidade oficial de Marcos, identificando-o como Rafael Sebastián Guillén Vicente, cidadão de Tampico, do Estado de Tamaulipas, ex-aluno de Filosofia da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), professor universitário e militante comunista. Embora praticamente não haja nenhuma dúvida que o Subcomandante e Rafael Guillén sejam a mesma pessoa, Marcos nunca assumiu sua verdadeira identidade. Segundo ele, “Marcos é o nome de um colega que morreu, e sempre usamos os nomes daqueles que morreram nesta idéia de que um não morre se a luta continuar”.7

Nessa esteira, parece se desenvolver o ponto crucial para o entendimento do que sua figura representa historicamente. Norteados pela linha de sua afirmação, parece-nos que a figura do Subcomandante Marcos, construída no bojo do processo de formação do movimento zapatista, adquiriu um caráter sui generis tal como as inovações trazidas pelo próprio movimento. Com efeito, o processo ocorreu em uma via de mão dupla: além de sua importância pessoal (intelectual e política) como agente na formulação dos princípios zapatistas, Marcos dissolveu sua própria individualidade, representando a encarnação do ideário que propunha e congregando imageticamente em torno de si todos os novos sujeitos de sua revolução (vide os inúmeros cartazes dos militantes e/ou simpatizantes do zapatismo com os dizeres “Todos Somos Marcos”). O Subcomandante, munido nas aparições públicas de seu aparato “icônico” – blusa militar, calça preta, coturno, cartucheiras no peito, boina, um fone de ouvido de comunicação de rádio, balaclava e cachimbo – parece nutrir-se dessa ambivalência entre os aspectos messiânicos que se coadunam com o conteúdo de autonomia (enquanto exercício de livre determinação dos povos e organização horizontal) do próprio projeto utópico zapatista.

Em resumo, as palavras de Naomi Klein delineiam o significado histórico recuperado pela figura do Subcomandante, de um modo bastante representativo:

7 Este não seria, portanto, um acrônimo, como alguns têm sugerido, das comunidades onde o EZLN

(15)

15 Marcos, a quintessência do anti-líder, insiste que sua máscara preta é um espelho, de

modo que ‘Marcos é gay em San Francisco, negro na África do Sul, asiático na Europa,

um chicano em San Ysidro, um anarquista na Espanha, um palestino em Israel, um índio maia nas ruas de San Cristobal, um judeu na Alemanha, um cigano na Polônia, um mohawk em Quebec, um pacifista na Bósnia, uma mulher sozinha no metrô às 10 da noite, um camponês sem-terra, um membro de uma gangue nas favelas, um trabalhador desempregado, um estudante infeliz e, é claro, um zapatista nas montanhas’ (palavras do próprio Marcos). Em outras palavras, ele é simplesmente nós:.. nós somos o líder que estávamos à procura (tradução nossa).8

O cumprimento do objetivo central implica em trabalhar com três questões fundamentais: a primeira questão diz respeito ao exercício de examinar documentos que descrevam a trajetória de Rafael Sebastián Guillén Vicente, que se apresenta como a identidade oficial do Subcomandante Marcos; desta maneira, busca-se relacionar sua vida pregressa – e o contexto em que foi formado – com a construção do ícone político em que ele se transformou. Cabe, assim, investigar sua vida de militância, tanto como estudante da UNAM, quanto como professor universitário, bem como traços relevantes no âmbito de sua vida pessoal, tal como sua família politizada e os motivos conjeturados por seu sumiço. No conjunto, parece importante empreender tal estudo biográfico anterior ao ingresso de Guillén em Chiapas, a fim de atentar para os aspectos relevantes que apontam para o foco de nosso trabalho.

A segunda questão é relativa ao estudo do processo histórico de entrada dos jovens militantes mexicanos, de matriz marxista (categoria social em que Rafael Guillén se enquadrava), na selva de Chiapas, que, de início, tentariam formar grupos guerrilheiros com o objetivo de realizar uma luta armada na região contra o governo central – a partir da ideia de que seriam motores da conscientização indígena – e que originou, em novembro de 1983, o EZLN. Nesse sentido, busca-se compreender os desdobramentos de sua atuação, a fim de identificar os fatores que, conjugados, culminaram justamente no abandono de certos princípios de um marxismo mais ortodoxo. Cabe essencialmente verificar em que medida o Subcomandante Marcos

8KLEIN, Naomi (2002). “Farewell to the End of History: Organization and Vision in Anti-Corporate

(16)

16 influencia nesse processo – levando-se, ainda, em conta o contexto mais amplo de adoção de políticas macroeconômicas neoliberais pelo governo central do México.

A terceira questão se refere à observação de documentos que revelem o modo como o Subcomandante Marcos foi retratado após o levante de janeiro de 1994, na perspectiva da construção do “culto a Marcos”9

, em especial atentando para os pontos em que seu papel como (anti-)líder pareceu se coadunar justamente com os princípios do movimento zapatista. Diante disso, faz-se necessário observar as respostas de Marcos (presentes em comunicados, declarações, entrevistas, poesias, vídeos e livros) aos questionamentos sobre sua figura, a fim de identificar características apreendidas em documentos produzidos por ele mesmo; e atentar para as adjetivações atribuídas a Marcos, a fim de compreender as representações construídas em torno de sua figura. Vale assinalar que, nesse ponto, a análise deve ser demarcada cronologicamente, observando documentos produzidos entre 1º de janeiro de 1994, quando se tornou uma pessoa pública, e o momento imediatamente posterior à revelação de sua identidade oficial pelo governo central, que se deu em 9 de fevereiro de 1995.

No conjunto, busca-se empreender um abrangente esforço de levantamento, revisão e sistematização da literatura sobre a trajetória histórica do Subcomandante Marcos e o seu significado para o movimento zapatista, aproximando os múltiplos entendimentos a respeito do tema, a fim de enriquecer a pesquisa.

Uma pesquisa mais aprofundada sobre a trajetória história do Subcomandante Marcos, enquanto construção de um sujeito político “mitificado”, permite uma melhor compreensão acerca do próprio fenômeno zapatista, pela sistematização de um conjunto de aspectos que, relacionados, dão condições à emergência de um dos movimentos políticos mais relevantes da contemporaneidade. O conflito em Chiapas teria grande significado para o contexto social, político e econômico no México, bem como para sua reputação internacional (até então, em alto nível perante os policy-makers dos países mais desenvolvidos), para a intelectualidade (especialmente para os que compartilhavam visões do denominado “marxismo ortodoxo”) e para alguns movimentos vindouros de contestação ao capitalismo, como os críticos à globalização de Seattle (1999) e o Fórum Social Mundial (cuja primeira edição se daria no ano de 2001).

9

(17)

17 Nosso argumento é que a análise do caso da emergência do (anti-)líder mexicano, a partir do olhar à história dos povos periféricos do país, nos permite não somente uma melhor compreensão dos processos sociais e políticos que lhe são peculiares, mas também pode servir como caso paradigmático, a partir do qual se poderia extrair um grande número de questões com relação a movimentos políticos e sociais contemporâneos em toda a região latino-americana – sobretudo quanto aos que possam apresentar maior proximidade com a realidade social daquele do país estudado. Este trabalho, longe de propor resolver tais questões, procura contribuir para o esforço coletivo de compreensão dessas sociedades e dos processos políticos em curso a partir do caso proposto.10

Em primeiro lugar, é preciso salientar a relevância acadêmica e política de nossa proposta. Quanto ao primeiro ponto, no Brasil, o número de pesquisas relacionadas ao tema do zapatismo já não chega a ser insignificante, atestada pelo número até razoável de especialistas e de publicações sobre o tema específico; ainda, a presença de temáticas sobre o México – país com crescente relevância geopolítica no cenário internacional – nos programas brasileiros de Pós-Graduação já não é tão tímida. Por outro lado, existem poucos estudos cujo foco recaia sobre o papel e o significado do Subcomandante Marcos para o movimento e que sistematizem a trajetória histórica deste ator proeminente na política contemporânea latino-americana.

A reversão desse quadro se faz necessária tanto pela relevância acadêmica em estudar a região quanto pela sua inquestionável importância política – segundo ponto aqui destacado. A insurreição zapatista repercutiu em debates acadêmicos ao redor do mundo: correntes distintas do ponto de vista ideológico buscavam compreender o caráter do movimento, em meio a um contexto de “consenso global” quanto ao triunfo final do capitalismo e da democracia liberal, fundamentado pelas teses do “fim da história”.11 A resposta contra-hegemônica zapatista acabou por questionar tanto os alicerces teóricos da intelectualidade crítica quanto por colocar em xeque o domínio da ortodoxia econômica no México.12 A prática política zapatista nega a política eleitoral e

10 Conforme o raciocínio de Ortiz, “o zapatismo é um sintoma do que está ocorrendo no mundo, algo

maior e mais geral, que em cada continente aparece de uma forma. Em cada lugar essa rebeldia apresenta formas e reivindicações próprias. Por isso dizemos que as rebeliões pelo mundo afora têm muito do zapatismo”. (ORTIZ, Pedro H. F. “Ya Basta!”. Atenção, 2(8), 1996).

11 Ver, por exemplo, a célebre tese de Fukuyama (1992).

12 Ainda, o levante zapatista representou uma evidência da quebra do pacto nacional historicamente

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18 se opõe radicalmente à tomada de poder e à conquista do Estado; sua dinâmica social é fruto da interação do mundo maia, dos padres progressistas ligados à Teologia da Libertação e dos jovens revolucionários de origem urbana e marxista.13 Diante desses novos ingredientes, pode-se dizer que as mesmo análises sobre as possibilidades da esquerda nos dias de hoje são, em certa medida, referenciadas pela experiência zapatista, dentro da qual o Subcomandante Marcos exerceu um papel inquestionável. Por isso, parece-nos extremamente importante compreender o processo que deu origem ao vínculo peculiar entre tal agente individual e a coletividade revolucionária. Conforme aponta Adolfo Gilly, essa conjunção de fatores deu ensejo à relevância do Subcomandante Marcos dentro do próprio movimento:

Nesta combinação singular de mitos antigos, comunidades mobilizadas, exército clandestino, golpes de cena, recursos literários e iniciativa política, a figura do chefe militar da rebelião, Subcomandante Marcos, é extremamente importante... O mérito mais importante de Marcos, se for necessário designar um, seria então que ele sabia o suficiente, primeiro para compreender e assimilar a substância e, então, para ser o mediador ou guia pelo qual sua imagem foi transmitida para a sociedade urbana.14

Além disso, torna-se válida a proposta de pesquisa também como tentativa de jogar luz sobre processos históricos que se desdobram até o tempo presente. O Ya basta! (Já chega!, em tradução para o português) da primeira declaração zapatista em 1994 foi fundamental no encerramento dos 71 anos no poder por parte do Partido Revolucionário Institucional,15 na reorganização da sociedade civil mexicana na segunda metade da década de 1990 e nos anos 2000,16 bem como na expressão, por exemplo, da já mencionada rearticulação em âmbito global da insatisfação com a estrutura capitalista existente, materializada nos movimentos altermundistas.

13 Segundo Buenrostro y Arellano (2002), o sincretismo teórico efetivado transcende todos os paradigmas

existentes, incluindo-se aí o pacifismo de Martin Luther King e Gandhi e o marxismo de Che Guevara, Mao Tse Tung e Lênin.

14GILLY, Adolfo. “Chiapas and the Rebellion of the Enchanted World”.

In: NUGENT, Daniel. Rural

Revolt in Mexico. Durham: Duke University Press, 1998, p.312.

15 Nas eleições presidenciais de 2000, venceu Vicente Fox, pelo Partido da Ação Nacional (PAN).

16 Vale mencionar dois eventos históricos que são reflexos diretos da organização zapatista: 1) no ano de

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19 É possível notar a existência de uma vasta literatura estrangeira que busca compreender as origens do levante do EZLN na região.17 E, por isso, torna-se extremamente válido empreender uma pesquisa de mestrado sob a perspectiva da construção da figura do Subcomandante Marcos, na esteira do processo de formação do movimento zapatista, levantando fontes primárias e revisando a literatura secundária, a fim de examinar suas formulações em relação às questões básicas que norteiam nossa proposta de pesquisa. Tais estudos e a perspectiva utilizada serão brevemente expostos abaixo.

Tendo isso em vista, é necessário destacar, como forma de esquematização, que a bibliografia a ser apresentada divide-se em três grandes conjuntos: conteúdo de núcleo; conteúdo “instrumental”; e conteúdo de base (teórica e historiográfica).

Dentro do primeiro conjunto de trabalhos, deve-se apontar a literatura que observa fatores particulares da realidade chiapaneca sobre os quais almejamos nos debruçar: é preciso destacar estudos de literatura secundária que tratam especificamente da trajetória histórica do Subcomandante Marcos tais como seu passado como o estudante (e depois professor) Rafael Guillén, seu ingresso em Chiapas, seu papel na formulação dos princípios zapatistas, e seu significado político, intelectual e simbólico para o próprio movimento. Sob essa perspectiva, deve-se mencionar os trabalhos de Grange e Rico18, Montalbán19, Conant20, Vargas21, Figueiredo22, Fuser23 e Henck.24

O segundo conjunto diz respeito às fontes primárias de duas ordens, quais sejam, as de autoria de Marcos e as da cobertura da imprensa mexicana e internacional. Há

17 Os estudos sobre o tema são elaborados e debatidos amplamente pela comunidade norte-americana e

mexicana de especialistas. Como é sabido, a produção brasileira acerca de Chiapas ainda é relativamente limitada e mesmo a literatura traduzida para língua portuguesa é escassa e pouco acessível em bibliotecas.

18 GRANGE, Bertrand de la; RICO, Maité. Marcos: La Genial Impostura. Madrid: Alfaguara, Santillana

Ediciones Generales, 1998.

19

MONTALBÁN, Manuel Vázquez. Marcos: el Señor de los Espejos. Madrid: Aguilar, 1999.

20 CONANT, Jeff. A Poetics of Resistance: the Revolutionary Public Relations of the Zapatista

Insurgency. Oakland, CA: AK Press, 2010.

21 VARGAS, Sebastião. Mística de Resistência: culturas, histórias e imaginários rebeldes nos

movimentos sociais latino-americanos. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

22 FIGUEIREDO, Guilherme Gitahy de. A Guerra é o Espetáculo: Origens e Transformações do Exército

Zapatista de Libertação Nacional. São Carlos: RiMa, FAPESP, 2006.

23

FUSER, Igor. México em Transe. São Paulo: Scritta, 1995.

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20 uma quantidade razoável de declarações, discursos, entrevistas (audiovisuais e em mídia impressa)25 dadas pelo porta-voz do movimento zapatista, que tocam na temática de sua identidade, na relação peculiar travada entre sua individualidade “dissolvida” e as ideias do coletivo. Existem, também, alguns livros em que o Subcomandante Marcos é autor ou coautor, e que, de mesmo modo, nos deteremos na articulação dos eixos temáticos que propomos estudar. Além disso, há um rico acervo de notícias que desvelam o retrato construído por outrem acerca da imagem de Marcos, como pode se verificar em canais midiáticos como a BBC, The New York Times e Le Monde. Utilizamo-nos fartamente de duas fontes mexicanas, a saber, La Jornada e a revista Proceso – ambas cobriram de modo intenso e independente o levante zapatista e seus desdobramentos durante os anos de 1994 e 1995, trazendo uma série de entrevistas com o Subcomandante Marcos, analistas e intelectuais, habitantes chiapanecos, e, depois do desmascaramento, familiares e amigos de Guillén. Em resumo, cada documento examinado pode, de modo articulado, contribuir significativamente para nosso estudo, ao realizarmos um amplo e sistemático levantamento e revisão das fontes primárias sobre o Subcomandante Marcos, a partir dos quadros referenciais que objetivamos pesquisar. Praticamente todos os tipos de documentos foram encontrados disponíveis na internet, em geral em espanhol ou inglês.26

Por último, o terceiro conjunto diz respeito ao conteúdo que pode servir de base histórica e teórica para o trabalho, uma vez que oferecem subsídios para a compreensão do período e dos temas a serem estudados. As obras que fornecem base histórica são as que se relacionam mais amplamente com a história geral do México (e particularmente com a história de Chiapas) no período e estão todas listadas nas referências bibliográficas. Quanto às obras que fornecem base teórica, é preciso destacar, ainda que muito sucintamente, entre os trabalhos publicados indicados, a importante contribuição de Michael Löwy (obras diversas). Para o autor, o zapatismo aparece como portador de um reencantamento do mundo, por considerá-lo um movimento repleto de utopias (...) e

25 Pode-se, por exemplo, enunciar as entrevistas a Huerta e Higgins (1999); bem como a célebre

entrevista a Garcia Marquez e Roberto Pombo (2001). Sem contar compilações de entrevistas diversas em livros, além da farta documentação audiovisual (acessível na Internet), que pode ser selecionada conforme nossos objetivos de pesquisa. Cabe lembrar que, para Castells (1999), os movimentos sociais devem ser entendidos em seus próprios termos, ou seja, eles são o que dizem ser. Suas práticas (sobretudo as práticas discursivas) são a sua autodefinição.

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21 romantismo.27 E, nesse sentido, pareceu pertinente nos ancorarmos na articulação entre o pensamento romântico, enquanto rejeição da autenticidade do mundo moderno, e o ideário zapatista, pela reconstrução de experiências coletivas como alternativa emancipatória. Aí parece residir o nexo crucial entre o recorte proposto e a hipótese, a partir da qual o objetivo desse trabalho se sedimenta, qual seja, a construção da figura do Subcomandante Marcos relacionada ao teor messiânico e à veia utópica do projeto político zapatista – enquanto aglutinador simbólico da tentativa de superação dessas tensões.

A análise das fontes primárias foi complementada por uma sistemática revisão da literatura secundária sobre a formação do movimento zapatista, sobretudo a partir da perspectiva dos estudantes marxistas, com foco nas obras que tratam da trajetória e das idéias do Subcomandante Marcos – tomadas como fontes indispensáveis para a execução do trabalho. A literatura secundária foi composta, predominantemente, por livros, artigos, ensaios e textos extraídos da internet. Assim, desempenhando uma análise cuidadosa dos materiais, a pesquisa pode se tornar algo consistente do ponto de vista acadêmico.28

A partir da delimitação de nosso objeto de pesquisa, buscamos realizar uma leitura atenta de obras que identificassem os aspectos fundamentais acerca do papel e do significado do Subcomandante Marcos dentro do movimento zapatista, observando como se constituem as especificidades na relação entre ambos, com o objetivo principal de compreender como se constrói sua (anti-)liderança dentro do EZLN.

O eixo bibliográfico caracterizou-se pelo uso das obras que tratam mais especificamente da vida de Marcos – antes e depois de seu ingresso na Selva Lacandona, em Chiapas. Tais estudos de natureza mais biográfica apresentaram-se como fio condutor de nossa pesquisa, a partir dos quais pudemos extrair um grande número de questões pertinentes aos nossos objetivos. Evidentemente, nossa

27 LÖWY, 1997, p.199. O autor afirma, em outra obra (2010) que “o EZLN nasceu da fusão do

guevarismo (que não deixa de ter uma dimensão milenarista) de um punhado de militantes urbanos com a revolta ‘arcaica’ de comunidades indígenas maias e com o messianismo cristão das comunidades de base (fundadas nos anos 70 pelo bispo de Chiapas, monsenhor Samuel Ruiz), sob a égide suprema da legenda milenarista de Emiliano Zapata. O resultado desse explosivo coquetel político-cultural e sócio-religioso foi uma das rebeliões camponesas mais originais dos anos 90”.

28 Além das atividades específicas à pesquisa, o trabalho incluiu freqüência a disciplinas do mestrado,

(22)

22 preocupação não foi empreender um estudo meramente biográfico, reduzindo-se a descrever os feitos individuais, visando esgotá-los cronologicamente.

Nosso intuito – como atesta nossa própria hipótese relativa à simbologia em torno da figura do Subcomandante – foi o de compreender fenômenos mais amplos a partir do caso emblemático do Subcomandante Marcos. Com efeito, tudo o que for dito sobre Marcos passa a ser sem sentido se o foco do interesse for individual e não coletivista,29 mesmo que ele passe a se caracterizar como ponto focal de uma pesquisa, como é nosso caso: Marcos se apresentaria, portanto, como um one-man movement.30

Nesse sentido, foi fundamental a utilização da obra de Henck31, Grange e Rico32 e Montalbán33 – sem apontar, aqui, trabalhos diversos que abordam o papel de Marcos pontual ou transversalmente, e que, igualmente contribuíram para elucidação de questões biográficas em nossa pesquisa.

Foi significativa a contribuição de Nick Henck, primeira biografia em inglês sobre o principal protagonista do movimento. O autor apresenta uma visão alternativa de Marcos (e, em alguma medida, parece se propor a ser espécie de “biografia definitiva”), tentando desmitificar o personagem (sobretudo no período anterior à insurreição de 1994). Propõe-se, a partir do levantamento de fontes primárias e da revisão da literatura secundária (o livro é bastante rico nesse sentido, inclusive), a realizar um trabalho que não fosse deliberadamente laudatório ou difamatório quanto à figura do Subcomandante, como vinham sendo muitas das publicações veiculadas nos círculos midiáticos e, inclusive, acadêmicos.34

Antes de Henck, havia poucos trabalhos com foco no homem Marcos, em sua maioria em espanhol e francês, sendo importante destacar um deles: a polêmica obra de Bertrand de la Grange e Maité Rico, da qual também nos utilizamos. Os autores foram acusados de, durante o ano de 1994, levantar material para servir como propaganda antizapatista, subsidiando sobretudo o serviço de informação do presidente Ernesto

29MONSIVAÍS, Carlos. “From the Subsoil that the Mask Reveals: The Visible Indian”. Proceso, Mar,

1995. In: HAYDEN, 2002, p.127.

30 Ibidem, p.128.

31

HENCK, Op. cit., 2007.

32 GRANGE; RICO, Op. cit., 1998.

33 MONTALBÁN, Op. cit., 1999.

34

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23 Zedillo, na tentativa de desmascarar Marcos e os outros zapatistas.35

Os autores, entretanto, negam essa afirmação. Respondem argumentando que não pretendiam difamar o Subcomandante, mas sim dar maior complexidade ao personagem (autores alegam que alguns analistas só faltam canonizar Marcos). Grange, que era correspondente do jornal francês Le Monde no México (que o suspenderia em razão daquelas acusações), teve bastante contato com Marcos e passa a imagem de ser pessoalmente ressentido com o porta-voz do movimento.36

Tal fato não inviabiliza por completo a leitura da produção. Embora as acusações nos forcem a ler a obra com alguma suspeição, ela se mostrou referência obrigatória, tanto pela quantidade de dados levantados (há diversas entrevistas com personagens ligados de alguma forma ao movimento) quanto pela recorrência com que outros autores acabam travando um diálogo crítico com ela.

No caso de Montalbán, o autor lança mão do material adquirido a partir de uma extensa entrevista com o Subcomandante, onde explora várias das temáticas relativas à sua individualidade, no que tange particularmente aos nossos propósitos – e nessa mesma linha efetuamos a leitura de outras entrevistas, como a de Garcia Marquez e Roberto Pombo.

Outras produções que foram muito importantes para a execução deste trabalho são as de Guilherme Figueiredo, que narra analiticamente as situações das origens e transformações da estratégia do EZLN; de Sebastião Vargas, tese de doutorado que tem preocupação em compreender e analisar as novas formas de cultura política que emergem no campo latino-americano (comparando a mística do EZLN e a do MST brasileiro), ancorado nos estudos dos processos de resistência das populações rurais; de Jeff Conant, cujo objetivo é examinar narrativa dos zapatistas, desemaranhando sua poética de resistência, a partir da observação de Marcos enquanto “relações públicas revolucionário”; e de Igor Fuser, primeira obra em português a tratar do zapatismo, mostra-se referência obrigatória para entender o contexto no qual surge o Subcomandante Marcos e o EZLN.

A exposição dos resultados obtidos obedecerá a estrutura que nos pareceu mais viável a ser construída e será, então, discutido em que medida confirmamos nossas

35

O próprio Nick Henck faz essa ressalva quanto ao livro de Grange e Rico.

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24 hipóteses iniciais, nos aproximamos ou nos afastamos delas, articulando os elementos mais importantes a partir das diversas leituras que fizemos durante o tempo de pesquisa. Nosso trabalho se divide em três partes, cujos desenvolvimentos serão expostos adiante: 1) a vida de Marcos anterior à sua entrada em Chiapas; 2) o período da vivência de Marcos na selva Lacandona até o momento imediatamente anterior à insurreição de 1º de janeiro de 1994 e; 3) o período compreendido entre a insurreição e o momento imediatamente posterior à descoberta da identidade de Marcos pelo governo mexicano, em 9 de fevereiro de 1995. Em entrevista a Saul Landau, o Subcomandante afirmaria a existência desses “três Marcos diferentes”.37

Na primeira parte de trabalho exporemos a leitura dos textos que remontam à vida de Marcos anterior ao seu ingresso em Chiapas, com a finalidade de observar, em particular, os antecedentes históricos que conformaram a trajetória do professor Rafael Guillén e o levaram a optar pela atuação política naquele Estado. De modo abrangente, examinamos também os eventos históricos que delinearam às perspectivas da militância de esquerda no México, categoria em que Rafael se encaixava.

Em seguida, adentraremos no período de aproximadamente dez anos (1984-1993) em que Marcos atua no EZLN em Chiapas, antes da insurreição zapatista. Buscamos verificar questões de fundo relevantes, tais como o histórico de exclusão social de Chiapas, um breve histórico de grupos revolucionários no México antes do EZLN, os governos do Partido Revolucionário Institucional (PRI) da década de 80, a formulação e os impactos do NAFTA. O foco, nessa etapa, foi verificar o processo de formação do EZLN, a partir da perspectiva dos militantes comunistas (e não dos padres progressistas ou até mesmo dos indígenas chiapanecos, ambos igualmente importantes para a consolidação da utopia zapatista), observando, especialmente, o papel político e intelectual do Subcomandante Marcos nesses anos.

Na terceira parte, faremos a sistematização das leituras do período compreendido entre 1º de janeiro de 1994, data do levante zapatista, e 9 de fevereiro de 1995, data do desmascaramento de Marcos pela Procuradoria-Geral da República Mexicana. Privilegiamos abordar criticamente as fontes e análises que tratassem da questão do uso da máscara e dos aspectos de “teatralidade” do Subcomandante Marcos, verificando como impactam na construção dos significados de sua imagem, associando esse

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(26)

26

A Vida e a Morte de Rafael Guillén

“(...) Por eso cuando al mundo, triste contemplo, yo me afano y me impongo ruda tarea y sé que vale mucho mi pobre ejemplo, aunque pobre y humilde parezca y sea. ¡Hay que luchar por todos los que no luchan! ¡Hay que pedir por todos los que no imploran! ¡Hay que hacer que nos oigan los que no escuchan! ¡Hay que llorar por todos los que no lloran! Hay que ser cual abejas que en la colmena fabrican para todos dulces panales. Hay que ser como el agua que va serena brindando al mundo entero frescos raudales. Hay que imitar al viento, que siembra flores lo mismo en la montaña que en la llanura. Y hay que vivir la vida sembrando amores, con la vista y el alma siempre en la altura.

Dijo el loco, y con noble melancolía por las breñas del monte siguió trepando, y al perderse en las sombras, aún repetía:

¡Hay que vivir sembrando! ¡Siempre sembrando!...”

(El Sembrador, Marcos Rafael Blanco Belmonte)

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27 Revolucionário Institucional, o PRI. A maioria das fontes que utilizamos para tratar deste período advém de entrevistas de familiares, amigos e professores de Rafael Guillén (em versões de revistas disponíveis em sites ou compiladas em livros) e do próprio Subcomandante Marcos. No conjunto, buscamos examinar toda a documentação que aborda a trajetória de Rafael Guillén, dando relevo, aqui, aos traços mais relevantes no âmbito de sua vida pessoal que apresentaram ter maior conexão com a figura do ícone político em que ele se transforma, nos termos do objetivo central desta pesquisa.

Rafael Sebastián Guillén Vicente nasceu em Tampico, no Estado de Tamaulipas,38 em 19 de junho de 1957,39 no seio de uma família letrada de classe média-alta, descendentes de imigrantes zamoranos. Quarto de oito filhos,40 passou sua infância na Colonia Lauro Aguirre e depois na Colonia Petrolera, na Calle Ébano 205 – local onde seus pais ainda moravam à época do desmascaramento do Subcomandante Marcos e que se transformaria em “espécie de santuário para peregrinações de dezenas de jornalistas e curiosos” após o 9 de fevereiro de 1995.41

Seu pai, Alfonso Guillén, estimulou desde cedo aos oito filhos a leitura de notícias de jornal, romances e poesias; é ele quem apresentou a Rafael, como exemplo, os autores do chamado “boom latino-americano”, cuja influência no Subcomandante Marcos sobressairia abertamente em seus escritos, entrevistas e comunicados. Rafael era considerado por seu pai uma criança precoce, em virtude de recitar, após ter decorado sem saber ler, o poema “El Sembrador” do escritor espanhol Marcos Rafael Blanco Belmonte (1871-1936).

A valorização do exercício intelectual desde casa propiciou que Rafael obtivesse uma educação prematura, mesmo antes de ingressar na escola. Segundo afirmou a Garcia Marquez e Pombo,42 sua família estimulava a leitura de noticiários para

38 No Estado de Tamaulipas, famoso pelos ciclones, foi onde operou um pequeno mas influente grupo de

maoístas próximos aos irmãos Salinas, Carlos (presidente do México entre 1988 e 1994) e Raúl.

39

A título de curiosidade: em 2010, no mesmo dia, morreria Carlos Monsiváis, declaradamente um dos maiores ídolos do Subcomandante Marcos.

40 Dos oito filhos do casal Guillén Vicente, sete são homens. A única mulher é Mercedes del Carmen

Guillén Vicente, conhecida como Paloma, atualmente subsecretária de Migración, Población y Asuntos

Religiosos na Secretaría de Gobernación do Presidente Enrique Peña Nieto. Ela havia ocupado vários

cargos na administração pública, sendo eleita deputada pelo PRI nas décadas de 1980 e 1990.

41 ESPINOSA, Javier. La verdadera historia del subcomandante Marcos, El Mundo, 26 de fevereiro de

1995.

42

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28 alfabetização, a fim de que, idealmente, debates internos fossem suscitados em torno dos temas lidos. Contudo, os padres jesuítas, professores da escola Félix de Jesús Rougier, onde obteve sua educação primária entre 1963 e 1969, afirmaram em diversas entrevistas que Rafael não teria se mostrado a eles uma “criança-prodígio” (ao contrário de seu irmão Alfonso, ele não recebia costumeiramente fitas e medalhas de honra), manifestando seu talento e obtendo maior destaque intelectual ao longo dos anos43.

Foi justamente na década de sua infância, nos anos 60, que o regime do PRI começou a sofrer alguns abalos no México. Apesar de três décadas do chamado “Milagre Mexicano”, que assegurou crescimento econômico sustentado entre os anos 1940 e 1970,44 a insatisfação popular tendia a crescer em razão da insuficiência de canais alternativos para participação política, que não fosse pelas entradas institucionalizadas garantidas pelo priísmo.45

A resposta governamental aos descontentamentos culminou no “Massacre de Tlatelolco”46

: no dia 2 de outubro de 1968, dez dias antes da abertura dos Jogos Olímpicos da Cidade do México, centenas de estudantes que faziam demonstrações de protesto contra o governo na Plaza de Las Tres Culturas, foram ferozmente reprimidos pelas forças de segurança, em uma ação que acarretou em mortos e feridos e causou grande comoção internacional. Os vários tiros de snipers, disparados pelo Batallón Olimpia e pelo Exército Mexicano, resultaram em várias mortes: ao menos 30, segundo

43

O que se assemelharia, em certa medida, ao Subcomandante Marcos, que vai processualmente aprendendo a reformular suas ideias a partir do contato com os povos de Chiapas.

44 Durante esses anos, a taxa de crescimento do PIB variava entre 3% e 4% por ano e a taxa de inflação

não passava dos 3% por ano.

45

Segundo Figueiredo, “o PRI foi idealizado para congregar em um só partido todas as forças políticas que, na promoção de seus interesses, reivindicavam as causas da Revolução. Implantado a partir do Estado em 1928, passou a ter o papel de arena para a disputa dos vários setores segundo regras estáveis, ao mesmo tempo em que visava preservar o poder da facção dominante, ‘fazendo que manifestações de posições conflitantes econtrassem canais institucionais para o acordo ou a imposição hierárquica de soluções’ (GURZA, 2000, p.10). em relação à ideologia, todos os setores incorporados no PRI adaptavam os seus discursos em torno dos argumentos da ‘paz social’, dos benefícios para as camadas populares, do progresso material promovido pelo Estado e do nacionalismo. A principal ‘linha divisória’ da política não estava na dicotomia entre esquerda e direita, e, sim, na organização de interesses no interior ou exterior do Estado. As organizações que tentavam escapar à tutela das instituições oficiais eram sistematicamente reprimidas (GURZA, 2000, pp.10-11). Ou seja, havia canais para a representação de interesses econômicos e a promoção de objetivos pessoais, mas, grosso modo, não era permitido o questionamento da ordem política” (FIGUEIREDO, 2006, p.57).

46

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29 os dados oficiais, e próximo de 300, de acordo com os números não-oficiais. O episódio incitou uma atitude de oposição ainda mais crítica em setores da sociedade civil – muitos analistas concordam em dizer que vários grupos revolucionarios mexicanos nasceram como decorrência direta do massacre47 –, o que, por sua vez, deu ensejo ao início do período conhecido como “Guerra Suja”, em que o governo do PRI deu encaminhamento a um conjunto de medidas para reprimir e dissolver os movimentos de contestação política e armada.

Se Rafael Guillén veio ao mundo em 1957, o futuro Subcomandante Marcos parece ser fruto justamente dos acontecimentos de 1968.48 Um líder estudantil à época, Eduardo Valle, havia vaticinado que o massacre promovido pelas tropas do governo central provocaria um efeito indiscutível nas crianças, alertando que “o governo deste país terá que ficar muito precavido com aqueles que tinham 10 ou 15 anos em 1968... eles sempre se lembrarão dos ataques, dos assassinatos de seus irmãos”.49A “profecia” de Valle parece, pois, ter valido para o caso do Subcomandante; exatamente trinta anos depois, em 2 de outubro de 1998, Marcos escreveria o comunicado “Trinta Anos Depois, A Luta Continua”, em homenagem às vítimas de Tlatelolco, em que exalta a “geração de dignidade de 68” e explicita como o evento de havia impactado em sua formação crítica. Antes, em entrevista ao La Jornada de fevereiro de 1994, quando perguntado se é produto de 68, Marcos se coloca como “pós-68”, mas tributário de tudo que se seguiu a partir daqueles anos.50

Nesta época de sua vida, teve contato pela primeira vez com a obra literária que iria influenciar marcadamente toda a vida de Rafael Guillén, qual seja, Dom Quixote de la Mancha, do espanhol Miguel de Cervantes. Como pudemos perceber pela análise de várias fontes, o personagem principal da obra parece ocupar lugar central no imaginário do Subcomandante, fazendo-se referência obrigatória em diversos comunicados, entrevistas e declarações. Rafael, inclusive, chegou a levar o livro a Chiapas e afirmaria, em entrevista, estar ao seu lado (como espécie de Bíblia) sempre que possível,

47

MENTINIS, Mihalis. Zapatistas: The Chiapas Revolt and What It Means for Radical Politics. London: Pluto Press, 2006, p.2.

48STAVANS, Ilan. “Unmasking Marcos”. Transition, 1996. In: HAYDEN, Tom. The Zapatista Reader.

New York: Nation Books, 2002, p.392.

49

KRAUZE, Enrique. Mexico: Biography of Power. NY: Harper Collins, 1997.

50

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30 classificando-o como “o melhor livro de teoria política já escrito”.51 A própria criação ficcional dos escritos do Subcomandante Marcos – que se configura como espécie de alterego –, qual seja, Don Durito, o escaravelho a quem Marcos dá um pouco de tabaco em troca de ensinamentos (e de quem depois vira escudeiro), é uma clara referência ao mundo quixotesco.

Pudemos observar, ainda, seu percurso no ginásio e no colegial, atentando também para características que seriam observáveis nas performances do Subcomandante; depoimentos de professores do ginásio (que ele realizou entre 1970 e 1973) comentando sobre seu lado criativo e irreverente na execução de tarefas escolares, bem como relatos de professores do ensino médio insinuando um ímpeto pragmático do jovem Rafael, ao buscar envolvimento em trabalhos comunitários, como atividade extra-curricular.

Além disso, tivemos a oportunidade de descobrir que o teatro mostrou-se tema de grande interesse de Rafael Guillén desde aquela época (ele apreciava o dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett desde então) – a teatralidade constituiu-se como elemento central nas atitudes do Subcomandante Marcos,52 o que será abordado mais adiante) –, participando de peças como protagonista, como no caso de “El Tuerto es Rey” da autoria de Carlos Fuentes, ou mesmo interpretando trechos de poemas nas aulas de literatura.

O desenvolvimento da retórica, aliás, obteve grande ênfase na formação pedagógica de Rafael, sendo estimulado no seio familiar e, de mesmo modo, pelo professores jesuítas do Instituto Cultural de Tampico, onde estudou entre 1974 e 1976. Observamos em vários relatos de professores e colegas da época de colégio que Rafael era considerado um grande orador e, por ocasião de debates (espontâneos ou provocados como atividade de classe pelos professores), sempre lançava mão dos melhores argumentos. É nessa esteira, inclusive, que reside o cerne das divergências sobre a personalidade de Rafael/Marcos, tanto para colegas de colégio, quanto para futuros companheiros da guerrilha: enquanto uns dizem que, ao debater, ele seria uma pessoa aberta e tolerante, outros afirmam que era fechado às suas ideias e “dono -da-razão”. Muito disso está em discussão para examinar seu papel na formulação do ideário

51 GARCIA MARQUEZ e POMBO, 2001, p.79.

52

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31 zapatista e na condução dos rumos do EZLN, na medida em que aparentou, de maneira geral, ter sido aberto a ouvir mais do que a impor; de outro lado, porém, alguns se contrapõem afirmando que, ao fim e ao cabo, eram suas vontades que prevaleciam.

Identificamos, também, que Rafael passou, a partir dessa época, a cultivar uma admiração crescente pela figura de Ernesto Che Guevara, pelo romantismo que a figura do heroi guerrilheiro transmitia. Em várias fases da juventude, Rafael parecia buscar emular Che, fazendo, por exemplo, uso de uma boina como adereço cotidiano, bem como iniciando um costume que iria caracterizar sua imagem como Subcomandante Marcos, qual seja, o ato de fumar cachimbo – ele teria visto Che fumando cachimbo (e não os famosos charutos) em fotografias.53

Sobre esse hábito, Elia Ester, ex-namorada de seu irmão Carlos, atenta, em entrevista para revista Proceso, de agosto de 1995, que no começo Rafael sequer os fumava, apenas andava com o cachimbo no bolso, o colocava na boca, de modo que acabava aparentando ser um traço de afetação.

Outra característica que se mostrou perceptível em diversas fontes foi a disposição de Rafael em fazer caridade, manifestando-se solidário com os sofrimentos alheios. O depoimento do monge Refúgio Marín, professor de Rafael, à revista Proceso em agosto de 1995, ilustra esse aspecto presente na postura de Rafael, dizendo que

ele sempre ajudou seus compañeros, ele sempre dividiu o que ele tinha, sempre, sempre, sempre. Ele guardava um dinheiro no bolso e se algum compañero não tivesse dinheiro, ele comprava um bolo ou algo pra beber. Ele era um bom compañero. Ele sempre ajudou os necessitados.

Na mesma entrevista, Marín, faz uma avaliação de como se sentia em ter contribuído para a formação do Subcomandante Marcos, com as seguintes palavras:

Estou contente com meu antigo pupilo, admiro seu valor heroico, seus objetivos são nobres e eu os respeito e admiro. É ótimo que ele se preocupe com os indígenas. Hoje em dia não há ninguém como ele no México. O governo não só é ruim para os indígenas, é ruim para todos os cidadãos, mas nós não temos a coragem que Rafael tem.

53

(32)

32 Só discordo de seus métodos, a guerra, mas talvez as circunstâncias ditem isso. Se eles têm falado e ninguém os escuta... só Deus pode julgá-lo (tradução nossa).54

Formado, então, a partir desse substrato (intelectual e político) crítico latino-americano, Rafael disse a Rubén Núñez de Cáceres, seu professor de colégio: “agora estou indo fazer a revolução”,55

em referência ao fato de estar indo à capital nacional para iniciar um novo ciclo em sua vida, ao começar o curso de Filosofia na Universidade Nacional Autônoma do México, a UNAM.56

*

Até agora os filósofos se limitaram a interpretar o mundo.

Cabe-lhes agora transformá-lo.”

(Karl Marx, “Teses sobre Feuerbach”)

Rafael Guillén mudou-se para a Cidade do México em 1977, e vai morar com seu irmão Carlos, que também estudava na UNAM. Segundo relato do próprio Carlos, Rafael terminou o curso de Filosofia, na Faculdade de Filosofia e Letras, em apenas seis meses e não nos dez estipulados.57 É interessante apontar que, no ano de 1994, desde os primeiros meses da aparição pública do Subcomandante Marcos, ele chegou a insinuar ser aluno egresso da instituição (em comunicado em que fez um relato detalhado do campus e da rotina na universidade) – embora em outros momentos negue tal fato, como parte de sua postura recorrente de dissimular seu próprio passado.

54“I’m happy with my former pupil, I admire his heroic valor, his aims are noble and I respect and admire

them. It is great that he cares about the indigenous. In Mexico today there is no one like him. The government is not only bad to the indigenous, it is bad to all the citizens, but we don’t have the courage that Rafael has. The only thing I disagree with is his methods, the war, but perhaps the circumstances dictate this. If they have spoken and no one listens… only God is able to judge him”.

55

GRANGE e RICO, 1998, p.73.

56

Antes, porém, de começar os estudos na UNAM, Rafael ajudou seu pai Alfonso na loja de móveis da família (fez entregas de produtos e explorou seu lado criativo criando slogans como “Mueblerías Guillén, las de crédito humanitario”) e, ainda, teve a oportunidade de viajar a turismo com a família para a França e a Espanha.

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33 Pudemos observar, no período em que Rafael estudou na UNAM, um crescente envolvimento com a política estudantil,58 a partir do contato com estudantes de orientação trotskyista, embora ele mesmo nunca tivesse se sentido inteiramente membro desses grupos, segundo relatos de colegas de UNAM: participou de atividades de greve, confecção de pôsteres e cartazes59 e atividades de extensão universitária. Do ponto de vista acadêmico, aproximou-se da filosofia francesa do século XX, como Althusser (o althusserianismo era pensamento predominante na Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM à época), Derrida e Foucault. Como afirma Pablo Ortellado,60 a heterodoxia da formação de Rafael pode ter contribuído substancialmente como raiz para que o programa zapatista contemplasse já em 1992 uma aplicação criativa e renovadora do marxismo. Alberto Híjar, seu professor, afirma, entretanto, que não há nada do Subcomandante Marcos no Guillén althusseriano,61 e que suas teses e convicções não apontavam para o líder revolucionário que surgiria.

Muito influenciado pelos autores mencionados, Rafael Guillén escreveu um trabalho de conclusão de curso entitulado “Filosofía y Educación: Práticas discursivas y práticas ideológicas. Sujeto y cambio históricos en libros de texto oficiales para la

educación primaria en México”, orientado por Cesáreo Morales, que viria a ser assessor do ministro e presidenciável assassinado Donaldo Colosio e deputado pelo PRI (1991-1994). No trabalho de 121 páginas, várias das metáforas e temas usados com frequência nos comunicados do Subcomandante Marcos (como formigas, sexo, entre outras) estão presentes. Em 1980, Rafael recebeu das mãos do Presidente José López Portillo o prêmio Gabino Barreda, nome em homenagem ao famoso positivista mexicano, que era concedido anualmente ao melhor estudante do país, o que certamente demonstrava sua distinção acadêmica.62 O trabalho, que tinha como objetivo geral pensar a educação enquanto aparelho ideológico de Estado, seria discutido na revista Proceso, nº 954, de 13 de fevereiro de 1995, logo após o desmascaramento do Subcomandante Marcos.

58 Muito embora, como enfatiza Henck (2007), Rafael tivesse pouca influência na condução dos rumos da

política do movimento estudantil na UNAM, uma vez que sua atuação se restingia a pequenos círculos políticos, não liderando, portanto, o conjunto dos estudantes.

59Com frases como “Muera el Mal Gobierno!”, expressão tão típica do zapatismo, embora não inventada

por ele.

60 In: FIGUEIREDO, 2006, p.XIV.

61 GRANGE e RICO, 1998, p.93.

62

(34)

34 Guillén era considerado eloquente nas discussões políticas e até mesmo irreverente em relação aos outros estudantes de filosofia,63 os quais, por vezes, tendiam a forjar um comportamento mais ortodoxo, a fim de reforçar um ethos de seriedade que se manifestava, por exemplo, pelo distanciamento com o mundo da política – tipos a quem ele denominou, no próprio trabalho de conclusão de curso, de “marxistas de mesa de café”.64 No período de estudos na UNAM, Guillén namorou Rocío Casariego (militante próxima a ele e que iria à Nicarágua, no início dos anos 80, com o nome de Mercedes), a quem ele chegou a apresentar à família; em entrevista, ela também fala bem de sua oratória (mas afirmando que, afinal, não era nada excepcional) e destaca o fato de Guillén ser bastante machista, como a maioria dos outros mexicanos do norte.65 É na UNAM, também, que aprendeu outros idiomas, como francês, italiano e português – fato que chamaria a atenção dos turistas que estavam em Chiapas no fatídico 1º de janeiro de 1994.

É fundamental destacar que foi neste período do fim dos anos 70 que Rafael encontrou a perspectiva revolucionária por meio da ação em guerrilhas. A partir da recomendação de um professor (várias fontes apontam que seja Alberto Híjar), ele passou a lecionar, por quatro anos, na Universidade Autônoma Metropolitana, a UAM, fundada em 1974 e famosa pela reputação de abrigar radicais de esquerda, local onde se vivia uma atmosfera de “efervescência permanente”66

. Os grupos guerrilheiros das Forças de Libertação Nacional, as FLN, tinham muitos membros na UNAM e sobretudo na UAM, de modo que a historiografia não consegue afirmar peremptoriamente qual das duas universidades teria sido o canal definitivo para Rafael ingressar na corrente sulista das FLN, em Chiapas.

63 OPPENHEIMER, Andres. Bordering in Chaos. Boston: Little Brown, 1996, p.250.

64

Idem, pp.251-252.

65 GRANGE e RICO, 1998, pp.87.88.

66 O expressão é de Velasco Ugalde, um dos líderes políticos na UAM à época. Para ele, a UAM foi:

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35 A carreira Guillén como professor na UAM começou em 16 de janeiro de 1979 e foi até o dia 3 de fevereiro de 1984. Lecionou no Departamento de Ciências e Artes para Design, no campus Xochimilco (os outros dois campi eram Azcapotzalco e Iztapalapa), onde os professores eram famosos por serem os mais heterodoxos e radicais. A filosofia pedagógica da instituição valorizava a interdisciplinariedade e o contato permanente com sociedade, dando grande relevo à dimensão prática, tomada como elemento indissociável da teoria.

O contexto das vitórias sandinistas na Nicarágua, em 1979, animava Rafael em seu primeiro ano como professor. Segundo os depoimentos de ex-alunos (a maioria documentados na revista Proceso e nas obras de Grange e Rico, e de Henck), o Professor Guillén recomendava leituras de Foucault, Althusser, Poulantzas, Matelard, Marcuse, Mao e Marx. Testemunhos de ex-alunos e assistentes da UAM caracterizam o professor Guillén como alguém de popularidade entre os alunos, tendo ganhado os apelidos de Guillomas e também de “Patas Verdes”, por usar só um tênis de cor verde (o testemunho da ex-namorada Rocío Casariego aponta para a simplicidade e desapego de Rafael: diz que, nesta época, ele tinha um par de calças e três camisetas no armário). Para prender a atenção dos alunos e estimular o debate, fazia costumeiro uso da ironia e lançava mão de piadas – um showman, em resumo67 –, características também observáveis nos futuros comunicados do Subcomandante Marcos. De todo modo, quando indagados sobre a relação entre o professor Guillén e o Subcomandante Marcos, os alunos da época da UAM não conseguem exatamente provar que fossem a mesma pessoa, embora pudessem apontar vários elementos de semelhança.68

Quanto ao seu ingresso em atividades de guerrilha, Rafael foi gradativamente construindo laços com as FLN. Tello Díaz sugere que o professor Híjar, por ter envolvimento com as FLN, teria colocado Rafael em contato direto com o movimento, indicando seu aluno para dar aulas na UAM, onde havia vários membros. Junto de tais forças revolucionárias, cuja célula original era proveniente da Universidade de Nuevo León (o grupo apresentava ativismo sobretudo em jovens universitários), Rafael – que, nesta época, atendia pelo codinome de Zacarías – visitou fronts das FLN na Sierra Tarahumara em Chihuahua, em Veracruz e na capital do país. Viajou, ainda, a Cuba

67 HENCK, 2007, pp.46-48.

68Uma outra “pista” – que a jornalista Alma Guillermoprieto recorre é o fato de o anfiteatro zapatista

Referências

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