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Da poética das lágrimas a uma poética do riso: de Aristóteles ao One-man show

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

RODRIGO CÉSAR DO NASCIMENTO XAVIER

DA POÉTICA DAS LÁGRIMAS

A UMA POÉTICA DO RISO:

DE ARISTÓTELES AO

ONE-MAN SHOW

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

DA POÉTICA DAS LÁGRIMAS A UMA POÉTICA DO RISO:

DE ARISTÓTELES AO ONE-MAN SHOW.

RODRIGO CÉSAR DO NASCIMENTO XAVIER

Orientador: Prof. Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como Requisito Parcial à Obtenção do Título de Mestre em Artes Cênicas.

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Catalogação da Publicação na Fonte.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Xavier, Rodrigo César do Nascimento.

Da poética das lágrimas a uma poética do riso : de Aristóteles ao One-man show / Rodrigo César do Nascimento Xavier. – 2012.

127 f.: il.

Dissertação (Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Artes, Natal, 2012.

Orientador: Prof.Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante.

1. Comédia. 2. One-man Show. 3. Riso. I. Cavalcante, Alex Beigui de Paiva. Jefferson Fernandes. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

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Agradecimentos

Agradeço, aos deuses: O que tem regido minha existência e oferecido as condições essenciais para meu amadurecimento espiritual e intelectual, e os deuses artísticos, Apolo e Dioniso, regentes da inspiração e das criações artísticas.

À minha avó, Maria Lúcia Nunes do Nascimento, que esteve comigo no início dessa trajetória e sempre torceu pelo sucesso dela.

Às minhas mães, Rossana Régia do Nascimento Xavier e Rejane Rhilma Nunes do Nascimento, pelo apoio incondicional, compreensão, incentivo e presenças constantes; pelo diálogo, carinho e amizade; por todo o afeto. Ao meu padrasto, Mafran Pereira da Silva, pela constante ajuda nas resoluções de questões práticas.

Ao meu primo, Artur do Nascimento Oliveira, e à minha irmã, Luna Beatriz do Nascimento Silva, que diziam suas primeiras palavras na vida ao mesmo tempo em que eu escrevia as minhas primeiras aqui; pela alegria, diversão e relaxamento que proporcionavam enquanto cresciam juntos à dissertação.

Ao professor Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcanti, pela crença, incentivo, diálogo e orientação da pesquisa, e pelo compartilhamento generoso do conhecimento que possui.

Aos professores Nara Salles, Robson Haderchpek, Sandra Erickson, Maria Helena Braga e Vera Rocha pelos olhares atentos, questionamentos pertinentes e contribuições significativas para o desenvolvimento da pesquisa. Aos professores Adriano Cruz e Maria de Lourdes Rabetti pelas participações na banca de defesa, apreciações cuidadosas e sugestões para a melhoria da dissertação.

Aos colegas da turma Joevan Oliveira, Raphaelly Souza, José Veríssimo, Frederico Nascimento, Mayra Montenegro e Lílian Carvalho, pelos risos e lágrimas, pelos abraços e conselhos, pelas inter-ações poéticas.

Aos amigos Gisele Carvalho, Dr. Elson Ferreira, Jonas Sales, Nathália Macedo, Robson Santos, Anderson Leão e Rodolfo Rodrigues, pelo apoio e estímulo diário e por saberem escutar pacientemente minhas recusas a inúmeros programas.

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“[...] a antítese da flor e do esterco é atuante tanto no reino das imagens como no reino das ideias. [...] Se colaboramos com o misterioso trabalho das terras pretas, compreendemos melhor o devaneio da vontade jardineira que se prende ao ato de florescer, ao ato de aromatizar, de produzir a luz do lírio com a lama tenebrosa”.

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RESUMO

Desde a década de 1970, o mundo observa a fragmentação, o hibridismo, a pluralidade e a miscigenação que vêm tomando conta das artes da cena. A poesia contemporânea sente-se livre das regras clássicas; o teatro já não mais obedece às prescrições dos “manuais” poéticos; desaparecem as fronteiras rígidas entre os gêneros; os artistas deixam de representar para o público para dialogar com ele. Como consequência dessa evolução das artes cênicas, emerge nas últimas décadas do século XX e início do século XXI na cena brasileira o fenômeno derrisível objeto de estudo dessa pesquisa, o One-man Show. Trata-se de um formato teatral que despontou no cenário brasileiro arrebatando a atenção do público em espaços alternativos, teatros e, como não poderia deixar de ser, também na internet, sendo muitas vezes confundido com o Stand-up Comedy. Uma pesquisa que delimite e busque identificar as características fundamentais do One-man Show brasileiro, faz-se necessária não somente pela ausência de estudos sobre o referido assunto, mas também para se compreender alguns aspectos da cena brasileira e da situação do riso e do cômico dentro dela. No primeiro capítulo, apresenta-se uma discussão sobre a comédia e o riso na Antiguidade clássica, tomando os escritos de Platão e Aristóteles como ponto de partida; no segundo, são analisadas algumas das principais teorias clássicas do riso procurando identificar características gerais que permitam entender também a construção da comicidade; no terceiro, aborda-se de um modo geral o momento da cena teatral brasileira em que emerge o One-man Show e, no quarto capítulo, há a explanação acerca de tal fenômeno e a descrição do exercício prático intitulado Experimento One-person Show: Damas.

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ABSTRACT

Since the 1970s, the world observes the fragmentation, hybridity, plurality and miscegenation that are taking over the scenic arts. The contemporary poetry feels free of the classical rules; theater no longer obeys the requirements of the poetic "manuals"; the rigid boundaries between genres disappears; artists cease to represent to the public to talk with him. In the last decades of twentieth century and in the twenty-first century, emerges the laughable phenomenon of One-man Show in the brazilian scene, object of this research, as a result of this evolution of the performing arts. It is a form of theater that emerged in the brazilian context, snatching public attention in alternative spaces, theaters and, as it should be, also on the Internet, often confused with the Stand-up Comedy. It is necessary a research that delimitate and pursue to identify the essential characteristics of the brazilian One-Man Show, not only by the absence of theoretical references concerning this, but also to understand some aspects of the brazilian scene and the situation of laughter and comedy in it. In the first chapter, a discussion about comedy and laughter in classical antiquity is presented, using the writings of Plato and Aristotle as a starting point; in the second, some of the main classical theories of laughter are reviewed, attempting to identify the general characteristics that enable to understand the construction of the comedy; the third chapter generally dicussesabout the moment of the brazilian theatrical scene in which emerges the One-man Show; and in the fourth chapter, there is an explanation about this phenomenon and a description of the practical exercise titled Experimento One-person Show: Damas.

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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

1 - Isabelle Molina, personagem da cena Depilação Cavada _______________87

2 - As personagens Maria Alice, Branca de Deus e Laurita Paula da cena As

Meninas de Veríssimo ___________________________________________ 89

3 - Os personagens Candiota e Laurita Paula ___________________________91

4 - Gorete, a Carpideira______________________________________________94

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO _____________________________________________________ 11

CAPÍTULO 1 – POÉTICA DAS LÁGRIMAS ______________________________ 18

CAPÍTULO 2 – POÉTICAS CLÁSSICAS DO RISO ________________________ 47

CAPÍTULO 3 – A QUARTA IDADE DA POESIA __________________________ 64

CAPÍTULO 4 – ONE-MAN SHOW ______________________________________ 78

CONSIDERAÇÕES FINAIS __________________________________________ 105

REFERÊNCIAS ___________________________________________________ 110

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11 INTRODUÇÃO

O fato de estar inserido em processos artísticos e pedagógicos1, primeiramente nos grupos de escola2 e, logo em seguida, nos grupos e nas

companhias profissionais e/ou amadoras, vinculadas ou não à universidade3; fizeram-me observar que o trabalho em grupo, e não só ele, mas também a forma de encarar a profissão são vistos de modos bastante diferentes pelos aspirantes ou profissionais do teatro e da dança.

Enquanto há na dança uma preocupação constante com o corpo, um cuidado com a saúde, a alimentação e o bem estar físico, com a diária preparação técnica e artística, que cobra pontualidade, assiduidade, participação, ou seja, que suscita e impõe disciplina e seriedade para com o que se está construindo individual e coletivamente; no teatro, pude observar exatamente o oposto, atores se unem em volta de um projeto, decoram o texto em casa ou fazem “um jogo teatral” e começam a montagem, ao descrever esse contexto torna-se desnecessário dizer que compromisso e disciplina não são palavras de ordem para tal processo.

Discutir posturas artísticas de atores e bailarinos está longe de ser o objetivo dessa introdução, no entanto, a insatisfação com as práticas vivenciadas nos grupos de teatro que participei foi um dos fatores determinantes pelo meu interesse no treinamento individual e nos espetáculos solos dos atores.

Concomitantemente, inquieto por natureza, cheio de perguntas a fazer e buscando conhecer um pouco de cada função que compõe a linguagem/ofício teatral, durante o curso de Licenciatura em Educação Artística, com Habilitação em

1 O trajeto pelo caminho das artes, algumas vezes prazeroso, sempre tortuoso, e que

conduziu às inquietações e reflexões presentes nesta pesquisa, iniciou-se em 1995/96 na Oficina de Teatro da Cidade da Criança, com os professores Lenilton Teixeira e Carminha Medeiros; e, paralelamente, na turma de terceiro ano do Ballet Clássico da Escola de Dança Corpovivo, com a professora Wanie Rose Medeiros.

2 Falas e Pantomimas, Grupo de Teatro do CEFET-RN (com a professora Isabel Dantas) e

Sentidos, Grupo de Dança do CEFET-RN (com a professora Karenine Porpino), de 1998 até 2000.

3 Dança: Grupo de dança da UFRN (com o diretor Edeilson Matias, nos anos de 1999 a

2000, e entre 2006 e 2007), Cia de Dança dos Meninos (sob a direção de Edson Claro, nos anos de 2003 e 2004);

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12 Artes Cênicas (1998-2001), surgiu-me o interesse de escrever e de transpor para a cena as ideias presentes nos meus escritos; estava, porém, em um período que alguns mestres da academia não aceitavam, e até combatiam, a possibilidade das funções de atuação e direção serem exercidas pela mesma pessoa em um único espetáculo, sob a alegação de que uma ou as duas não seria bem desenvolvida.

No entanto, ao observar práticas bem sucedidas como as dos artistas Ricardo Castro, em seu espetáculo 1,99, e da criadora do fenômeno Terça Insana, Grace Gianoukas; comecei a compreender que, na verdade, o sucesso e/ou o fracasso de um espetáculo independe das funções que o artista acumula para produzi-lo, mas sim das escolhas estéticas feitas por ele para se chegar ao resultado.

No ano de 2008, em São Paulo, com a Cia. Teatral Phyrulas D’art, dirigida por Herculles Moreno, na montagem do espetáculo one-man showA comédia dos Iskizitos” 4, tive a oportunidade de participar de uma prática teatral em que o trabalho individual não comprometia o coletivo, pois que as cenas construídas individualmente para o espetáculo poderiam entrar ou sair dele a qualquer minuto, sem que isso gerasse nenhum tipo de transtorno ou prejuízo à criação. E, embora houvesse um diretor, tínhamos como uma das opções para a criação do espetáculo, construir sozinhos nossas próprias cenas. É importante deixar claro que foi também durante esse processo que conheci os livros da Judy Carter5 e seu método de construção de piadas, usados atualmente no Brasil como “Bíblias do Humor

Stand-up e One-man Show”. Ou seja, encontrei numa prática teatral One-man Show

respostas para duas das grandes inquietações que tinha: a de lidar com o trabalho em grupo e a de poder dirigir, escrever e atuar em um mesmo espetáculo.

Na década de 2000, o Brasil foi cenário de uma efervescência política e esportiva, de contrastes entre a estabilidade e a crise econômica, de uma intensa globalização da informação pela internet e de uma importação de cultura de entretenimento dos Estados Unidos. É nesse contexto que entra pelas portas dos teatros, das casas de shows, dos bares, dos restaurantes e das lan houses, duas

4 O espetáculo A Comédia do Iskisitos estreou em São Paulo no dia 08/08/08 e ficou em

temporada durante três meses. Não cheguei a estrear com a Cia., mas minha saída não prejudicou em nada a dinâmica da temporada, pois minhas cenas logo foram substituídas por outras que já estavam prontas e seriam usadas para diversificar as apresentações.

5 CARTER, Judy. Stand-up Comedy: the Book. New York: Bantam Dell, 1989.

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13 formas de se fazer comédia, duas poéticas do riso: o Stand-up Comedy e o

One-man Show (também conhecido por One-person Show).

“O riso”, de acordo com Georges Minois (2003, p. 19)6, “faz parte das respostas fundamentais do homem confrontado com sua existência” e estando “na encruzilhada do físico e do psíquico, do individual e do social, do divino e do diabólico, ele flutua no equívoco, na indeterminação. Portanto, tem tudo para seduzir o espírito moderno.” (2003, p. 16). Não somente as palavras de Minois, mas também o fato de que o risível tem mantido seu vínculo com o público revitalizado desde sua origem até os dias atuais, leva a crer que é provavelmente essa dedicação dos artistas one-man e stand-up, ao fazer rir, que vem promovendo a aceitação, a legitimidade e a expansão dos formatos no país.

Embora esta expansão esteja diante dos olhos de todos, faltam referenciais teóricos que subsidiem os profissionais da área ou esclareçam algumas curiosidades peculiares àqueles que querem entender o que está acontecendo na cena contemporânea brasileira. Esta pesquisa teve como objetivo, portanto, sanar, pelo menos em parte, a escassez de referenciais sobre o fenômeno teatral One-man

Show brasileiro e, em menor proporção, investigar o já mencionado Stand-up

Comedy.

Tendo, pois, um objeto de estudo intrinsecamente vinculado ao gênero cômico e cuja principal matriz também objetiva a evocação do riso, considerou-se necessária para esta pesquisa uma aproximação das principais considerações e/ou teorias do cômico e do riso que surgiram na Antiguidade e que de certo modo ainda reverberam no pensamento ocidental até os dias atuais.

Verena Alberti7 apresentando uma rápida, porém não superficial revisão sobre

alguns estudos recentes dedicados ao riso, afirma que

a questão “o que é risível?” parece ter perdido a urgência. Quando a encontramos hoje, temos a impressão de estar diante de uma

6 MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. Tradução de Maria Elena O. Ortiz

Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

7 Pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do

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14 repetição estéril daquilo que os pensamentos de outrora disseram com muito mais vigor e atualidade. (2002, p. 24).8

Segundo a autora, são tantos os escritos sobre o riso, principalmente os que intentam descobrir sua essência que, atualmente, não são mais necessárias teorias do riso, haja vista que as que estão surgindo não passam de compilações que preenchem lacunas, reiteram ou refutam as já existentes. A revisão histórica e a análise contrastiva entre as teorias feitas pela autora, e também as leituras de teorias contemporâneas, como as de Henri Bergson e de Vlademir Propp, levaram esta pesquisa a concordar com a premissa de que as teorias do riso atuais apenas atualizam as teorias do passado e, por isso, a fazer um estudo sobre o riso tendo como pano de fundo algumas teorias da Antiguidade.

É importante frisar que o riso e o risível podem suscitar discussões do ponto de vista da ética (Ética à Nicômaco, de Aristóteles; As Paixões da Alma, de Descartes), da retórica (Arte Retórica, de Aristóteles; Institutio Oratoria, de Quintiliano); da política (Leviatã, de Thomas Hobbes); da fisiologia (Tratado do Riso, de Laurent Joubert). Contudo, a este estudo interessam essencialmente as considerações relacionadas diretamente à poética. Buscar-se-á contribuições de teorias e/ou considerações situadas nas áreas supramencionadas desde que elas ajudem no esclarecimento ou corroborem com alguma ideia que se faça importante para o estudo.

O percurso traçado nas linhas seguintes aparenta ser o mais viável e seguro para o entendimento da atualização do riso e de seus objetos, de Aristóteles ao

One-man Show. O primeiro capítulo busca na Antiguidade, principalmente nos

escritos aristotélicos, e em suas interseções com os escassos comentários de Platão sobre o tema, a base do que seria uma teoria do cômico. O segundo capítulo trata de algumas teorias da Antiguidade que, discutindo direta ou indiretamente o assunto, fornecem indícios de como o riso e o risível evoluíram no pensamento ocidental. O terceiro capítulo apresenta brevemente o contexto no qual se expandem no Brasil o formato de derrisão mencionado para, em seguida, no quarto capítulo, o one-man show é estudado e definido aliado à descrição de uma prática cênica.

8 ALBERTI, Verena. O Riso e o Risível: na História do Pensamento. 2. ed. Rio de Janeiro:

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15 Fazer uma pesquisa cujo corpus possui a comédia e, consequentemente, o riso em sua raiz não foi labor fácil e/ou rápido. Tratou-se, em verdade, de um trabalho exaustivo, pois o referencial teórico sobre o riso é incontável e acerca da comédia, escasso. As principais referências teóricas utilizadas para esta pesquisa, além do livro já mencionado “O riso e risível: na história do pensamento”, da autora Verena Alberti, foram:

A Poética9, com tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Souza, por se apresentar como o documento mais completo referente ao pensamento de Aristóteles que aqui se faz presente, e embora não seja um tratado relativo à comédia, mas sim à tragédia e à epopeia, traz considerações sobre alguns aspectos do cômico (origem, caracteres, entre outros) que continuam influenciando o pensamento ocidental até os dias de hoje.

A Gargalhada de Ulisses: a Catarse na Comédia10, o livro de Cleise Furtado

Mendes, que além de apresentar uma compreensão do fenômeno catártico provocado pela comédia, ou seja, uma visão da recepção do cômico; oferece um excelente guia sobre algumas das principais obras e autores que trataram do assunto atualmente.

O livro do Marvin Carlson, Teorias do Teatro: Estudo Histórico-crítico, dos

Gregos à Atualidade11, como o próprio título indica, traz uma pesquisa histórica da

teoria12 do teatro ocidental. Ao apresentar, dentre outros assuntos, um revisionismo

sobre as principais considerações feitas acerca do cômico no teatro, tornou-se uma das mais importantes referências para o segundo capítulo desta pesquisa.

O prefácio de Cromwell13, escrito pelo francês Victor Hugo, e que trata de

algumas das principais reivindicações que os românticos fazem para a poesia, ofereceu, ao tratar das Três Idades da Poesia (a lírica primitiva, a épica antiga e a dramática romântica), um breve panorama de sua evolução, ao qual foi possível

9 ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de

Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966. (Biblioteca dos Séculos).

10 MENDES, Cleise Furtado. A Gargalhada de Ulisses: a Catarse na Comédia. São Paulo:

Perspectiva; Salvador: Fundação Gregório de Mattos, 2008. (Estudos, 258).

11 CARLSON, Marvin. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade.

Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

12 Carlson entende teoria como “a exposição dos princípios gerais relativos aos métodos,

objetivos, funções e características dessa forma de arte específica”. (1997, p. 9).

13 HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do prefácio de Cromwell. Tradução e

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16 acoplar uma quarta idade, a do contemporâneo Teatro Pós-Dramático, e situar o

One-man Show.

Há escassez também de estudos, em língua portuguesa, relacionados ao

One-man Show. Fato que, ao mesmo tempo em que se revela como um estímulo, é

igualmente problemático, pois o diálogo com referenciais teóricos se revela dificultado. É, portanto, através de obras que tratam do objeto de estudo, em língua inglesa, ou que abordam, em língua portuguesa, outros temas que tangenciam o formato cômico estudado que se dá a aproximação do One-man Show, respectivamente. Tais obras são: o livro Teatro Pós-dramático14, de Hans-Thies Lehmann que, ao discutir uma lógica estética do teatro dos anos 70 aos 90, tornou-se um material fundamental para tornou-se entender a evolução das formas cênicas e textuais do teatro ocorridas após os movimentos de vanguarda do século XX, e para compreender o paradoxo teatro dramático versus teatro pós-dramático.

Nerina Raquel Dip, em sua dissertação Espetáculo Solo, Fragmentação da

Noção de Grupo e a Contemporaneidade15, contribuiu para este estudo ao analisar a

prática de teatro de grupo da segunda metade do século XX, indicando através dela as motivações para o surgimento do espetáculo solo. A definição de espetáculo solo também é muito importante, pois é com base nela que o one-man show é situado dentro dessa categoria.

Odette Aslan, no livro O Ator no Século XX16, traça um panorama da evolução do ator nesse século, refletindo sobre questões que são muito elucidativas para a compreensão do ator contemporâneo, como a relação ator-autor, ator-encenador, ator-espectador etc.

No livro The Comedy Bible, a humorista americana Judy Carter, além de oferecer um guia para a construção de diversos formatos cômicos, entre eles, os stand-up comedies e os sitcoms; conceitua, apresenta um breve histórico, cita exemplos e dá “dicas” de como se escrever e produzir espetáculos “one-person

14 LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. São Paulo:

Cosac Naify, 2007.

15 DIP, Nerina Raquel. Espetáculo solo, fragmentação da noção de grupo e a

contemporaneidade. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Teatro - Mestrado). Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, 2005.

16 ASLAN, Odette. O ator no século XX: evolução da técnica, problema da ética. Tradução

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17

shows”. Para esta pesquisa, tal material se mostra imprescindível por ser referencial

na produção do Stand-up Comedy produzido no Brasil e, principalmente, pela sua reflexão acerca do One-person Show norte americano.

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18 CAPÍTULO 1 – POÉTICA DAS LÁGRIMAS

O historiador francês George Minois afirma no primeiro capítulo de seu livro

História do Riso e do Escárnio que “lendo as análises de Aristóteles sobre o assunto

[o riso], tem-se a impressão de que os gregos de vinte e três séculos atrás riam como nós, com as mesmas nuances e pelas mesmas razões.” (2003, p. 18).

Essa questão apresentada de forma tão simples por Minois servirá de base, senão para toda esta pesquisa, para grande parte dela, e se mostra como o ponto de partida para este capítulo primeiro.

Do que se ria na Antiguidade? Por que razões tais objetos eram risíveis? Ao buscar responder tais questões, uma incursão será feita pelos escritos do filósofo que contribuiu de modo decisivo para as teorias subsequentes do riso e do risível no pensamento ocidental, Aristóteles.

Configura-se como uma verdade não passível de contestação, principalmente ao se observar os modos diferentes de entendimento e da utilização da Poética, que o poder sugestivo do tratado atualiza-se em cada época, à medida que paradigmas são substituídos ou construídos paralelamente a outros já existentes (o que acontece com frequência no campo das artes).

Ciente de que outros trabalhos já foram desenvolvidos utilizando o mesmo objetivo e percursos semelhantes, mas confiando na necessidade renovada de voltar, “diretamente, ao texto da Poética para que a constelação de soluções já cristalizadas não [impeça] o exercício da reflexão pessoal, o que constitui, certamente, a maior lição deixada pelo estagirita” (BRANDÃO, 1997, p. 5-6)17, busca-se nas fontes – na Poética e em outros textos do filósofo (Partes dos Animais,

Política, Arte Retórica, Ética à Nicômaco e o livro I da Metafísica) –, um conceito de

comédia análogo ao de tragédia.

A tradução utilizada como alicerce para este capítulo, resulta de – e é acompanhada por – uma exploração minuciosa que, provavelmente, é a mais

17 BRANDÃO, Roberto de Oliveira. “Introdução”. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO.

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19 completa desenvolvida em língua portuguesa sobre a Poética18. Tal estudo se deve a Eudoro de Sousa e sua publicação data de 1966.

A existência e a finalidade da arte se configuraram como problemas filosóficos pela primeira vez em A República de Platão. Ali se encontram as problematizações iniciais a respeito de temas como mimesis, efeitos morais e psicológicos da poesia e da música, essência e aparência dos objetos artísticos, beleza, entre outras. No entanto, segundo alguns estudiosos (NUNES, 1991;19 CARLSON, 1993), a primeira teoria sobre Arte (mais especificamente sobre teatro) que nos foi legada pela Antiguidade é a Poética, de Aristóteles.

Dedicado ao estudo da teoria do teatro, Carlson (1997, p. 13) atribui aos “conceitos principais e linhas de argumentação” da Poética e, consequentemente, a Aristóteles, o começo e o desenvolvimento da teoria do teatro ocidental ao longo dos séculos.

Discípulo de Platão, Aristóteles nem sempre usa em suas lições o mesmo esquema de mundo que é utilizado pelo mestre. Enquanto aquele se dedica a refletir sobre o mundo inteligível, a teorizar a imutabilidade das essências, a idealizar uma cidade utópica calcada em princípios abstratos como verdade, bem e belo, e a submeter a arte à moral; este, dando atenção à predileção dos homens por suas experiências visuais e ao conhecimento que delas advém, legitima e dialoga com o que é concreto, com o mundo sensível, e esse “não é o mundo do não-ser; é o dos sinais e testemunhos positivos do ser” (SOUZA, 1966, p. 27), nele a arte caminha lado a lado com a moral sem, no entanto, submeter-se à ela20.

A Poética, que testemunhou uma efervescência em torno de si durante o Renascimento, passou despercebida pela Idade Média, como ressaltam alguns autores (BRANDÃO, 1997; PEREIRA, 2004;21 SOUZA, 1966). A primeira edição de

18 Junto à tradução da obra, Eudoro apresenta uma Introdução composta por três capítulos:

1) História e crítica literária em Aristóteles; 2) Origem da tragédia; 3) Essência da tragédia; comenta todos os parágrafos do tratado; exibe índices analítico e onomástico; e finaliza expondo apêndice composto por a) Fragmentos de História e Crítica Literária, b) Nota acerca da História da filologia grega na antiguidade, c) Distribuição dos argumentos trágicos pelos ciclos mitológicos tradicionais.

19 NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. 2. ed. Rio de Janeiro: Ática, 1991. (Série

Fundamentos, 38).

20 É importante deixar claro que nem Platão lida somente com o mundo inteligível, nem

Aristóteles unicamente com o sensível. A Teoria das Ideias, do primeiro, e os dois livros dedicados à Metafísica, do segundo, testemunham isso.

21 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Prefácio. In: ARISTÓTELES. Poética. Tradução de

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20 que se tem notícia tornou-se pública no ano de 1498 e se tratava de uma versão latina sobre o original grego.

Pelo modo como se deu a conhecer: com passagens obscuras e conceitos não desenvolvidos (como os dos quatro tipos de tragédia, diferenciados pelo “nó” e pelo “desenlace”), a obra é entendida por alguns pesquisadores (CARLSON, 1997; PEREIRA, 2004; SOUZA, 1966) como uma série de apontamentos para aulas. Seria um tipo de roteiro que, segundo Eudoro de Souza, deveria ser acompanhado por explanação oral e que, de acordo com os estudos de Carlson, destinava-se “a circular privativamente entre os discípulos já familiarizados com as lições de Aristóteles.” (1997, p. 14).

No entanto, nem essa semelhança com anotações para aulas, nem tampouco as mutilações, deformações e incoerências que se apresentaram na obra – algumas identificadas a partir da descoberta do Parisinus 174122 – impediram que se potencializassem os ensinamentos sobre arte, literatura e teatro; bem como, não ofuscaram discussões que até hoje se mantêm atuais, como, por exemplo, a confusão entre estética e moral; a tendência a observar objetos artísticos como meras cópias da realidade; a necessidade de atribuir à arte fins educacionais ou catárticos, entre outras.

Outro aspecto relativo à Poética e que merece atenção, versa sobre as maneiras como o conteúdo de tal obra tem sido tratado por e a partir dos diversos estudos, interpretações e recriações que dela têm sido feitos durante sua trajetória. É Roberto Brandão23, no Brasil, quem especifica e analisa com clareza três das

principais tendências de utilização do conteúdo da Poética.

A primeira, pondera o professor (1997), é a interpretação dos enunciados da obra como problemas a serem solucionados, daí advém a obstinada e incansável especulação acerca dos sentidos exatos de cada palavra e dos conceitos ali

22 O Parisinus 1741 (Paris, Bibliotèque Nationale, séc. X-XI) é reconhecido, principalmente

por estar completo, como o manuscrito mais importante para a reconstituição da Poética. Além dele, servem ao mesmo fim, o Riccardinus 46 (Florença, Biblioteca Medicea Laurenziana, séc. XIV), manuscrito mutilado no início e no fim, [...] e a versão árabe que se encontra no Ar. 882 a (Paris, Bibliotèque Nationale, início do séc. X). Cf. POÉTICA,

de Aristóteles. [S.l]: Greciaantiga.org, 2007. Disponível em:

<greciantiga.org/arquivo.asp?num=0589>. Acesso em: 26 ago. 2010.

23 Roberto de Oliveira Brandão é professor-assistente de Literatura Brasileira da Faculdade

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21 apresentados; tal tendência é atribuída aos humanistas italianos do Renascimento, responsáveis pela difusão da doutrina aristotélica no Ocidente.

Um comentário de Eudoro de Souza (1966, p. 15-16) ilustra bem a tendência acima citada:

a Poética [...] é um livro em que o enunciado e as soluções de certo problema, se encontram patente ou aparentemente coordenados com os enunciados e as soluções de outros problemas afins, que iam surgindo na via de formação de uma grandiosa enciclopédia.

Na segunda tendência, os conceitos são abordados isoladamente e aprofundados. Retirados do contexto aristotélico, são postos em diálogo com diferentes fenômenos artísticos, na tentativa de suscitar, através de sua inserção, novas reflexões sobre a arte. Brandão (1997) exemplifica tal tendência com a utilização do conceito de “verossimilhança”; afirmando que ele transpôs os limites da

Poética e da Retórica e, atualmente, se encontra no discurso literário, no cinema, na

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A terceira tendência, contrária àquela que vê nos conceitos problemas a serem solucionados, atribui a Poética uma função normativa e tenta legitimá-la como um preceituário, que deve orientar a criação e a crítica em teatro. Difundida nos manuais de retórica e poética do século XIX, essa utilização do pensamento do estagirita, pondera Brandão (1997, p. 4), fundamentava-se em uma

[...] crença na possibilidade de disciplinar a força criativa interior, isto é, o talento ou o engenho, através da habilidade técnica fornecida pela arte [...], representava, em princípio, um esforço da razão por encontrar explicações para a natureza e o funcionamento da obra literária.

Os estudos e manuais com base nesse paradigma viraram os principais alvos de crítica das escolas românticas subsequentes.

Além das questões mencionadas acerca do tratado de poesia aristotélico, outra suscita o interesse dos estudiosos e está relacionada à existência de uma

Poética dedicada ao estudo da comédia.

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22 Partes dos Animais (apud MINOIS, 2003, p. 72), que “o homem ‘é o único animal que ri’” 24 e assegura, na Arte Retórica25, que “como são agradáveis o jogo, o riso e toda a espécie de folga, necessariamente, o deve ser tudo o que provoca o riso: pessoas, ditos, atos” (s/d. p. 74). Ao acompanhar com atenção as ideias acima apresentadas: o imitar é inerente ao homem, ele se compraz com o imitado, o homem ri, o riso é agradável e todas as coisas que provocam o riso também o devem ser; poder-se-ia inferir que, sendo prazerosa e agradável por, respectivamente, tratar-se de uma imitação e se dedicar à provocação do riso, a comédia é um gênero imitativo que agrada sobremaneira à humanidade.

Se essa fosse a visão do filósofo, não seria obsoleta nos dias de hoje, principalmente por ser possível observar tantos formatos emergirem com o intuito de fazer rir nos teatros (entre eles o one-man show), nas casas de shows, em espaços alternativos, na televisão e inclusive na internet.

Contudo, não é possível encontrar uma Poética aristotélica dedicada à comédia. Tão interessado que se mostra pela mimesis, ao tratar da tragédia e da epopeia, não teria o estagirita dedicado a mesma atenção à comédia?

A resposta a essa pergunta é fácil de obter nas obras do próprio filósofo: na Poética (1966, p. 74), ele promete no capítulo VI, que da arte de “imitar em hexâmetros” e da comédia tratará depois; e termina a obra sinalizando uma possível continuação: “dos jambos e da comédia...” 26 Na Arte Retórica, o estagirita afirma

24 Essa afirmação é usada apenas como uma premissa de sustentação do raciocínio que se

segue acerca do pensamento Aristotélico sobre o cômico, pois é sabido que animais como a hiena e o macaco emitem sons semelhantes ao riso humano. De acordo com Charles Darwin (1872, p. 362 apud ALBERTI, 2002, p. 182), “podemos secretamente crer que o riso, como um signo de prazer (pleasure) ou alegria (enjoyment), era praticado por nossos progenitores muito antes que merecessem ser chamados humanos, porque vários tipos de macacos, quando contentes, articulam um som reiterado, claramente análogo a nosso riso, [frequentemente] acompanhado de movimentos vibratórios de suas mandíbulas ou lábios, com os cantos da boca puxados para baixo e para cima, com o enrugamento das bochechas e até com o brilho dos olhos.”

Cf. DARWIN, Charles. (1872) The expression of the emotions in man and animals. In: The works of Charles Darwin. Nova York: AMS Press, 1972. V. 10. [Reimpressão da edição de 1896.]

25 ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho.

Introdução e notas de Jean Voilquin e Jean Capelle. Estudo introdutório de Goffredo Telles Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. (Coleção Universidade de Bolso).

26 Souza declara que encontrou esta última frase na versão Riccardinus 46, e que havia

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23 que “[...] sobre o que provoca o riso damos as definições úteis na Arte Poética” (s/d. p. 74) e que “tratamos destas diferentes espécies de facécias27 em nossa obra sobre

a Poética, onde precisamos que umas convêm ao homem livre, e outras não” (s/d, p.

219). Ou seja, se na Poética a explanação sobre a comédia ficou prometida; na Arte

Retórica, o filósofo afirma, em dois momentos, o cumprimento da promessa.

Diante de tais considerações, defende-se que um segundo livro sobre poesia deve ter sido escrito e que temas como comédia, jambo, catarse, foram nele desenvolvidos. Há quem vai mais longe em suas suposições e afirme que tal tratado teria um final análogo ao do primeiro livro. Neste se confrontou a tragédia com a epopeia, naquele haveria uma comparação entre a comédia e a poesia jâmbica e/ou o poema Margites28 de Homero. Eudoro de Souza (1966, p. 17), atribui tal perda ao hábito de “epitomizar” os livros:

desde o tempo de Aristóteles, a comédia já havia tomado considerável ascendência sobre a tragédia, no gosto do público, [...] Por isso, ao passo que a teoria da tragédia se ia recolhendo ao gabinete dos eruditos, do mesmo passo a teoria da comédia se ia difundindo e vulgarizando, até [...] soar a desgraçada hora dos epítomes [...]. É sabido como, efetivamente, o epítome repele da tradição o livro que resumiu. Sobram os exemplos do lamentável e lamentado desaparecimento de tantas obras [...].

Valentín García Yebra (1974, p. 15)29 explica que o hábito de criar epítome, “ancestral dos livros de bolso”30, contribuiu para o desaparecimento de obras extensas, porém, supõe que o livro II da Poética não foi epitomizado por sua extensão, mas por sua linguagem excessivamente filosófica sobre um tema vulgar, corriqueiro.

A Poética que reverberou pelo Ocidente e que encontra eco ainda nas teorias

contemporâneas da literatura e do teatro é organizada da seguinte maneira:

27 Facécia. Substantivo feminino. 2. Dito chistoso, meio termo entre a graça e a zombaria.

Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004.

28Margites ou Louco Enfatuado de Si Mesmo e de seu Balofo Saber. [...] se perdeu este

poema satírico, atribuído por Aristóteles a Homero, não podemos saber até que ponto Aristóteles tem razão, ao ver nele a origem da comédia, do mesmo modo que vê na Ilíada e na Odisséia a origem da tragédia”. (VOILQUIN; CAPELLE, s/d, p. 245).

29 YEBRA, Valentín García. Introducción. In: ARISTÓTELES. Poética de Aristóteles.Edición

Trilingüe por Valentín García Yebra. Madrid: Gredos, 1974. (Biblioteca Románica Hispánica: IV. TEXTOS, 8).

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24 A poesia é imitação e esta, congênita ao homem, proporciona-lhe aprendizado e prazer; essas são as considerações basilares sobre as quais Aristóteles estrutura sua Poética. Será redundante, mas não desnecessário concluir que a obra é, portanto, um tratado sobre a poesia.

O autor, em suas primeiras palavras, indica as diferentes espécies de poesia (ditirambo, nomo, epopeia, tragédia, comédia...), enfatizando que três aspectos são condições responsáveis para diferi-las: os meios (linguagem, harmonia e ritmo), os objetos (qualidades dos indivíduos que praticam a ação) e os modos (narrativo e dramático) pelos quais se dá a imitação. Embora se refira aos vários tipos de poesia, ele se detém à tragédia (à qual dedica grande parte da obra) e à epopeia; tecendo poucas considerações sobre a comédia (cujo desenvolvimento, conforme já ressaltado, apresenta-se como uma promessa).

Terminadas as considerações sobre poesia de um modo geral, o filósofo passa a tratar, mais especificamente, da tragédia e da comparação entre os gêneros trágico e épico. No que diz respeito à tragédia, apresenta seu conceito; indica seu princípio improvisado (“os solistas do ditirambo”) e sua evolução; enumera suas partes quantitativas: recitadas ou dialogadas (prólogo, episódio e êxodo) e cantada (coral – dividido em párodo e estásimo); e discute os elementos essenciais ao drama (mito, caráter, pensamento, elocução, melopéia e espetáculo), avaliando a importância de cada um para a construção da poesia.

O mito (simples ou complexo) aparece como o elemento mais importante do drama, ao qual o caráter, o pensamento e a elocução devem estar submetidos. Aristóteles (1966, p. 75)31 argumenta que

[...] a tragédia não é imitação de homens, mas de ações e de vida [...] não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar certas ações; por isso as ações e o mito

31 Todas as citações extraídas da Poética, e aqui utilizadas, são da mesma tradução:

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25 constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa32.

Com sua atenção voltada ao mito trágico, o estagirita detalha algumas de suas necessidades: I) ação completa constituída daquilo “que tem princípio, meio e fim” (p. 76), ou seja, de um todo; II) ordem e grandeza, características básicas do que é “belo”; III) unidade de ação (poética e histórica); e IV) mito composto de ações paradoxais, verossimilhantes e necessárias, que gerem terror e piedade e promovam a purificação de tais sentimentos (a tão polêmica catarse).

Ainda dentro da explanação sobre mito, o autor diferencia as funções da história (narrar o que sucedeu e se refere a indivíduos particulares) e da poesia (representar o que poderia ocorrer, sendo verossímil e necessário, e mais universal33); contrapõe o mito simples ao complexo (afirmando ser esse o mais belo entre os dois); apresenta os elementos que devem fazer parte da estrutura do mito complexo: “reconhecimento”, “peripécia” e erro ou falha (hamartia); e explica o que é “nó” e “desenlace”.

Como já foi assinalado, poucas são as linhas da Poética dedicadas à comédia, ainda assim, pode-se encontrar: a) especificação dos meios (linguagem, harmonia e ritmo usados alternadamente), modo (dramático) e objeto (homens inferiores) de imitação; b) definição construída de forma análoga à da tragédia; c) referência à sua origem improvisada “dos solistas dos cantos fálicos” (p. 72); d) menção aos primeiros poetas cômicos (Epicarmo e Fórmide na Sicília; e Crates em Atenas); e e) alusão à ausência de informação quanto ao seu processo evolutivo.

Depois de dedicar quatro capítulos (XIX-XXII) à elocução, o filósofo conclui sua obra comparando as poesias épica e trágica. Com base em tal cotejo, atribui à esta um status de superioridade em relação àquela, ao declarar que

[...] a tragédia é superior porque contém todos os elementos da epopeia (chega até a servir-se do metro épico), e demais, o que não

32 Embora não faça alusão direta ao pensamento e a elocução no comentário, ambos os

elementos estão presentes no personagem.

33 A comédia é, com base nas palavras de Aristóteles, a mais “universal” das poesias, pois

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26 é pouco, a melopéia e o espetáculo cênico, que acrescentam a intensidade dos prazeres que lhe são próprios. Possui, ainda, grande evidência representativa, quer na leitura, quer na cena; e também a vantagem que resulta de, adentro de mais breves limites, perfeitamente realizar a imitação. (p. 102).

“Falemos da poesia, - dela mesma e das suas espécies” (p. 18)... Utilizando as palavras com as quais Aristóteles inicia seu tratado, esta pesquisa – após aproximação inicial do autor e de sua Poética – tece algumas considerações sobre aquele que se mostrou como um dos conceitos mais polêmicos, presente nos escritos acerca da poesia que nos foram legados pelos gregos, a “mimesis”. A dedicação ao estudo de tal conceito foi impulsionada pela ideia de que os escritos gregos sobre o drama são melhor compreendidos quando se entende o pensamento que trazem acerca da imitação.

Antes de tudo, faz-se necessário esclarecer que, embora a tradução utilizada para este estudo faça uso da expressão “poesia imitativa”, aqui se usará um termo (poesia) ou outro (imitação), já que o próprio Aristóteles define poesia como imitação. Supõe-se, no entanto, que a redundância do tradutor não é fortuita, longe disso, advém da necessidade de diferenciar as poesias imitativas (épica e dramática) das composições líricas.

Iniciando a especulação sobre a “mimesis”, pode-se dizer que cabe a Platão, em sua República34, os pensamentos mais controversos acerca desse assunto. Pois, como entender que a República, obra forjada a partir da imitação (com seus personagens vivendo diálogos fictícios) sugira a construção de uma cidade – utópica – da qual serão expulsos os imitadores?

Discorrendo sobre diversos assuntos (educação, estética, religião, metafísica.), mas tendo como tema central a justiça35, a República é um diálogo de Platão no qual Sócrates propõe a Adimanto que fundem em imaginação uma cidade

34 PLATÃO. A República.Tradução de Pietro Nassetti. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2000.

(Coleção a obra-prima de cada autor).

35 Maria Helena Pereira (s/d: XXX) aponta como tema central “o comportamento da natureza

humana, conforme ela é ou não submetida à educação.” Em verdade, os três temas (natureza humana, educação e justiça) estão no centro da discussão proposta pelo filósofo, permanecendo os dois primeiros submetidos ao terceiro.

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27 ideal, Calípole (cidade bela). Tal lugar ficaria sob a “custódia” de guardiões, escolhidos de acordo com sua natureza (afável aos amigos, cruel aos inimigos e de instinto filosófico) e com qualidades físicas apropriadas para o cargo (perspicácia, rapidez, força, coragem). A educação desses guardiões deveria se dar através da ginástica para o corpo, e da música – na qual se inclui a literatura – para a alma. A literatura a ser ensinada a eles não seria de qualquer tipo, já que existe uma verdadeira, responsável pela transmissão dos princípios morais necessários à justiça, e outra falsa, a da “mentira sem nobreza.”

É versando sobre a poesia da “literatura falsa”, nos livros II e III da República, que Platão começa a esboçar seus primeiros argumentos contrários à imitação, assegurando que as “palavras [...] quanto mais poéticas, menos devem ser ouvidas por crianças e por homens que devem ser livres e temer a escravatura mais do que a morte” (2000, p. 75). As ponderações sobre o ofício do poeta, encontradas nas primeiras páginas, convertem-se, no livro X, em críticas mais contundentes estendidas a outros tipos de imitação.

Na base do pensamento do filósofo sobre imitação estão suas concepções de um mundo inteligível, que se contrapõe ao mundo sensível, e de uma essência, que corresponde à verdade, e é contrária à aparência. Assim, a natureza, simulacro do mundo inteligível, mostra-se como uma primeira imitação, uma cópia da essência, afastando-se do que é verdadeiro; e a poesia, imitação da natureza, é, portanto, uma cópia da cópia, e está ainda mais longe da verdade; Platão afirma ainda que “se [a poesia] executa tudo, ao que parece, é pelo fato de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de uma aparição.” (PLATÃO, 2000, p. 296).

Outra crítica de Platão a propósito do ofício do poeta e que aqui se apresenta no final do parágrafo anterior, apóia-se na ideia de que um “criador de fantasmas”, um imitador não deve tratar de todo tipo de assunto em sua obra, pois que ao homem não é dada a capacidade de conhecer em essência as coisas que copia a partir do mundo sensível, senão um pouco de sua aparência.

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28 [...] a parte da alma que há pouco contínhamos pela força, nossos desgostos pessoais, que tem sede de lágrimas e de gemidos em abundância, até se saciar, porque a sua natureza é tal que a leva a ter esses desejos, é [...] a parte a que os poetas dão satisfação e regozijo. (PLATÃO, 2000, p. 305).

Do mesmo argumento que utiliza para falar das paixões suscitadas pela poesia trágica, Platão lança mão para tratar do efeito gerado pelo cômico. Ele explana que o riso estimulado pela comédia, ou até mesmo o riso cotidiano presente nas conversas, quando não refreado pela razão, gera no indivíduo que se diverte rindo o desejo despercebido de fazer rir. O filósofo complementa essa análise do que as poesias dramáticas provocam afirmando que

[...] o poeta imitador instaura na alma de cada indivíduo um mau governo, lisonjeando a parte irracional, que não distingue entre o que é maior e o que é menor, mas julga, acerca das mesmas coisas, ora que são grandes, ora que são pequenas, que está sempre a forjar fantasias, a uma enorme distância da verdade. (PLATÃO, 2000, p. 304-305).

Contudo, o pensamento de Platão em relação à poesia e aos seus artífices não era tão radical como suas palavras o faziam parecer. Nem todos os poetas deveriam ser mandados “embora para outra cidade, depois de lhe [terem]36 derramado mirra sobre a cabeça e de o [terem] coroado com grinaldas. [...]” (PLATÃO, 2000, p. 89). Defensor da arte como um meio de conhecimento a serviço da moral, o filósofo aceitava em Calípole aqueles poetas que, por meio de seu ofício, orientassem os guardiões no caminho da virtude.

Após sua arguição contrária aos poetas da “falsa literatura”, Platão (2000, p. 306) conclui seu pensamento com uma “deixa” 37 ou desafio:

[...] se a poesia imitativa voltada para o prazer tiver argumentos para provar que deve estar presente numa cidade bem governada, a

36 Aqui são feitos ajustes de concordância para adequar a fala de Platão ao parágrafo no

qual está inserida.

37 Utilizada em teatro, esta expressão corresponde a uma fala de personagem que antecede

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29 receberemos com gosto, pois temos consciência do encantamento que sobre nós exerce.

Tal provocação parece ser o mote sobre o qual Aristóteles constrói seus escritos sobre poesia. Alguns pesquisadores (CARLSON, 1997; PEREIRA, 2004; SOUZA, 1966; VOILQUIN; CAPELLE, s/d) afirmam ser a Poética uma resposta ao desafio lançado por Platão, na qual o discípulo defende a poesia refutando alguns conceitos do mestre.

Uma das passagens que situa bem a Poética como uma resposta irônica a Platão pode ser encontrada no capítulo IV:

a poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa índole particular [dos poetas]38. Os de mais alto ânimo imitam as ações nobres e dos mais nobres personagens; e os de mais baixas inclinações voltaram-se para as ações ignóbeis, compondo, estes, vitupérios, e aqueles, hinos e encômios. (p. 72, grifos meus).

Pois, no livro X da República, Platão (2000, p. 306, grifos meus) afirma que “quanto à poesia, somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encômios aos varões honestos e nada mais.” Em relação aos tipos de poesia, o discípulo cita exatamente os mesmos que o mestre (hinos e encômios); no que diz respeito ao que deve ser imitado – “ações nobres e dos mais nobres personagens” – claro está que tais mimesis se encontram nos mitos dos “deuses” e dos “varões honestos”.

Como dito anteriormente, Aristóteles centrou suas observações e construiu seu pensamento acerca de fenômenos do mundo sensível, concreto, ao contrário de Platão. Essa forma dessemelhante de olhar para o mundo já seria suficiente para determinar posturas diferenciadas em relação ao trabalho do poeta, no entanto, suas divergências vão mais além, e o que colabora ainda mais com a distância que existe entre o pensamento dos dois nessa área são suas compreensões de mimesis, embora ambosconcordem com a acepção de imitação.

Como um devir, é assim que o estagirita entende a realidade. Os seres naturais – criados pela inteligência divina independente de suas vontades – possuem, na grande maioria, movimento próprio e se apresentam na natureza como

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30 matéria ou potência parcialmente realizada e predisposta à atualização e à perfeição, mister atribuído à forma (enteléquia).39 Em relação ao pensamento do

filósofo sobre arte, Carlson (1997), Voilquin e Capelle (s/d) expõem que, ao se debruçar sobre a matéria bruta, o artista se inspira nas formas e nos processos de atualização da própria natureza não para copiá-la, nem para embelezá-la, mas para propor o que seria seu ideal de completude. Portanto, o imitar aqui, deixa de ser a cópia de Platão, e passa a ser uma recriação do objeto vislumbrando a atualização de sua potência. Não se reproduz o que é, mas o que deveria ser. Assim, “a natureza seria então uma espécie de arte da inteligência divina e a arte, o prolongamento da natureza na atividade humana.” (NUNES, 1991, p. 28).

Como prolongamento da natureza (gerada pela inteligência divina), a arte não poderia prescindir do “reto raciocínio” e ser composta tão somente por inspiração das musas. O Liceu40 também se diferencia da Academia por não submeter o fazer artístico a uma função moralizadora e por valorizar sua essência imitativa e o prazer que dela deriva.

Passando a tratar da mimesis, mais especificamente, as próximas linhas serão utilizadas para refletir sobre as duas causas da imitação indicadas pelo estagirita: “imitar é congênito no homem” e “os homens se comprazem com o imitado.” (p. 71). Em relação à primeira frase, não paira nenhuma dúvida sobre o que o filósofo pretendeu dizer, até porque ele continua seu pensamento assegurando que as primeiras noções são apreendidas pelo ser humano por meio da imitação (referindo-se, pois, à aquisição de conhecimentos pelos bebês e pelas crianças). No que diz respeito à segunda, Souza (1966) afirma que há entre os intérpretes divergência de entendimento: uns compreendem a sentença como: “o homem sente prazer ao imitar”; outros defendem o seguinte sentido para a proposição: “o homem sente prazer em apreciar o imitado”.

É o próprio Aristóteles que parece responder a essa questão quando afirma que:

39 “Aristóteles [criou] este vocábulo apoiando-se na expressão ‘o fato de possuir perfeição’.

Enquanto designar isto, o termo enteléquia significa atividade ou perfeição resultante de uma atualização.” Cf. MCCASTRO. “Enteléquia”. In: SPECULUM. Vocabulário de Filosofia. [S.l.]: FiloInfo. Portal de Filosofia: 2010. Disponível em:<www.filoinfo.bem-vindo.net/filosofia/modules/lexico/entry.php?entryID=654>. Acessom em: 30 ago. 10.

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31 nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância [...]. Causa é que o aprender não só muito apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal é o motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas [...]. (p. 71).

Ratificando o que deixou escrito na Poética, em Arte Retórica, argumenta ainda que

aprender e admirar comportam prazer as mais das vezes. Com efeito, na admiração está contido o desejo de aprender; por conseguinte, o que admiramos é desejável; por outro lado, aprender é voltar ao estado natural. [...] Além disso, sendo agradável aprender e admirar, tudo o que a isto se refere desperta em nós o prazer, como, por exemplo, o que pertence ao domínio da imitação, como a Pintura, a Escultura e a Poesia, numa palavra tudo o que é bem imitado, mesmo que o objeto de imitação careça de encanto. De fato, não é este último que causa prazer, mas o raciocínio pelo qual dizemos que tal imitação reproduz tal objeto; daí resulta que aprendemos alguma coisa. (ARISTÓTELES, s/d, p. 73).

Ou seja, atribuindo um tipo de prazer ao aprendizado humano que pode ocorrer através da apreciação de uma mimesis, o filósofo deixa explicado que o homem sente prazer em apreciar o imitado. Quanto a sentir prazer imitando, infere-se aqui, que tal ideia está preinfere-sente na primeira formulação, a da congenialidade do homem, e não na segunda.

É interessante observar que as oposições entre discípulo e mestre ainda ecoam pelo Ocidente, os escritos de Friedrich Nietzsche (1844-1900) em oposição à Metafísica são um exemplo disso. Enquanto esta continua propagando a ideia de arte (imitação) como uma aparência leviana da verdade, da essência imutável, aquele afirma que tudo é aparência. Alexandre Ferreira de Mendonça, em seu artigo Nietzsche e o Riso: por uma ‘Gaya Scienza’41, declara que, para o filósofo:

por trás da aparência, não haveria nada de estável, nenhum fundamento, nada a ser conhecido definitivamente, nenhum X a ser decifrado. [...] E se não há nada a ser conhecido, se a própria vida

41 MENDONÇA, Alexandre Ferreira. Nietzsche e o riso: por uma ‘gaya scienza’. In: LINS,

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32 não é outra coisa além de jogo de aparências, o conhecimento se revela também como parte desse jogo, como meio de prolongá-lo e preservar a universalidade do sonho no qual, inevitavelmente, vivemos. Tanto a vida como o conhecimento são concebidos como um jogo artístico, no qual o que está em questão jamais é a verdade, mas criações. (2001, p. 17).

Nos pensamentos de Aristóteles e de Nietzsche, centrados em reflexões sobre o mundo concreto, da aparência, algumas semelhanças podem ser encontradas, principalmente no que diz respeito à relação entre arte e conhecimento – pois para ambos os filósofos arte é conhecimento e o aprender pode se dar através da arte –; no entanto, suas divergências se tornam claras no que diz respeito à conexão entre arte e natureza, pois se para aquele a arte se constrói a partir da natureza, para este, a natureza em si é artística, “por ser construída pelas pulsões estéticas apolínea e dionisíaca.” (MACHADO, 2006, p. 227)42.

É óbvio que as incursões pelo mundo mimético não pararam em Aristóteles, como seguramente não se iniciaram com Platão. Plutarco, de acordo com SOUZA ( 1966, p. 62), narra que Sólon, após assistir uma apresentação de Téspis (na época em que os autores representavam seus próprios textos), perguntou-lhe se não se envergonhava por representar (por ser a representação uma mentira), ao que o tragediógrafo retorquiu dizendo não ter feito nada que merecesse censura. Sólon concluiu o diálogo com a seguinte profecia: “’aplaudindo e apreciando este jogo, cedo virá o dia em que havemos de encontrá-lo nos nossos contratos públicos’”. Souza (1966, p. 62) avalia que “Platão e Sólon repelem a ‘mentira’ ou a ‘ilusão’ trágica, por [ser] indigna da pedagogia política”.

É interessante observar que na época de Téspis, os artistas atuavam, escreviam e dirigiam seus próprios textos; ou seja, esta característica tão presente nas práticas One-man Shows e que será abordada com detalhe no Capítulo 4, não se trata de uma novidade, mas de um resgate de práticas do trabalho do ator/artista da Antiguidade, sua atualização.

Escritas estas linhas sobre a imitação, chega-se ao momento de abordar a poesia dramática: a tragédia e a comédia. Platão não dedicou muito do seu tempo a escrever sobre as “espécies” de poesias compostas “toda de imitação”, pelo menos é o que indicam os diálogos atribuídos ao filósofo. No que deixou escrito, não há

42 MACHADO, Roberto. O Nascimento do trágico de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro:

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33 uma distinção apurada entre uma e outra, na verdade apresenta máximas que servem tanto para o gênero de Agatão quanto para o de Aristófanes. É a esses dois dramaturgos clássicos que, no último parágrafo do diálogo O Banquete43, Sócrates afirma “que é de um mesmo homem o saber fazer uma comédia e uma tragédia, e que aquele que com arte é um poeta trágico é também um poeta cômico”. (PLATÃO, 2006, p. 88).

J. Cavalcante de Souza (2006, p. 73-74), na introdução do livro O Banquete, expõe seu entendimento sobre tal afirmação. Para ele, Platão critica nos poetas o “confinamento à possessão divina” – à inspiração – em detrimento da prática de uma arte racional. Atentos às relações que ocorriam em torno de si e dedicados à criação de um modo racional, tanto o tragediógrafo quanto o comediógrafo poderiam sair de suas áreas de conforto e se aventurar no gênero oposto.

Analisando puramente as palavras de Platão, sem levar em consideração o pensamento apresentado no parágrafo anterior, poder-se-ia considerá-lo contraditório, já que no livro III, de A República, ele (2000, p. 86) afirma que uma mesma pessoa não é capaz de imitar bem tanto a comédia quanto a tragédia. Tecendo tais considerações sobre os poetas, expande o pensamento aos atores, assegurando a inata incapacidade do ser de representar bem nos dois gêneros dramáticos.

Ainda sobre a questão da atuação, Platão (2000, p. 86-87) declara que os guardiões de sua cidade utópica, quando dados à imitação, só deveriam representar o que lhes direcionassem à virtude: “coragem, sensatez, pureza, liberdade, e todas as qualidades dessa espécie”; já os vícios e baixezas jamais deveriam ser objetos de cópia, pois que “se se perseverar [neles] desde a infância, se transformam em hábito e natureza para o corpo, a voz e a inteligência.”

Ou seja, o filósofo já definia um perfil de atuação para sua cidade ideal e, como é possível observar, suas prescrições para o que os guardiões deveriam ou não representar configuram uma censura mais veemente à comédia do que à tragédia, pois que as qualidades passíveis de representação estão na estrutura dos mitos trágicos, enquanto os vícios e baixezas dão origem ao ridículo cômico. Sua

43 PLATÃO. O Banquete, ou, Do amor. Tradução, introdução e notas de J. Cavalcante de

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34 crítica à representação cômica, embora não se diga em nenhum momento que disso se trate, também se apresenta na seguinte passagem:

logo, não ordenaremos a um daqueles de quem queremos ocupar-nos e que é preciso que se tornem homens superiores, que, sendo homens, imitem uma mulher [...] nem que imitem escravas e escravos, procedendo como tais. [...] Nem homens perversos e cobardes [...] que falam mal e troçam uns dos outros e dizem coisas vergonhosas [...] não devem habituar-se a assemelhar-se aos loucos em palavras nem em atos. [...] E o relinchar dos cavalos, o mugir dos touros, o murmúrio dos rios, o bramir do mar, os trovões, e todos os ruídos dessa espécie, acaso deverão imitá-los? (PLATÃO, 2000, p. 87).

Além de O Banquete e de A República, Filebo44 é outro diálogo do filósofo no qual poucas considerações sobre os gêneros são tecidas. Nele, Platão (s/d, p. 41) trabalha sobre a ideia de que existem dois tipos de prazeres: um que “se [relaciona] com as belas cores e as formas e a maioria dos odores e dos sons, e todas as coisas cuja privação não é sensível nem dolorosa, mas de fruição agradável e estreme [livre] de qualquer sofrimento”; e outro que resulta do encontro e da mistura de prazeres e dores, do deleite que surje quando cessam as penas. É esse segundo prazer que o filósofo diz estar presente na comédia e na tragédia, da vida real e do palco45.

Aristóteles, ao contrário de Platão, enveredou-se pelos caminhos que levam ao teatro e, na Poética, apresenta uma definição bastante ampla sobre a tragédia, porém, como já mencionado, o mesmo não acontece com o gênero cômico. Principia-se, pois, uma tentativa de ampliação do conceito de comédia proposto pelo estagirita, com base no conceito de tragédia e em considerações sobre os gêneros dramáticos e o riso, presentes em outras obras do filósofo.

“Começando, como é natural, pelas coisas primeiras” (p. 68), Aristóteles inicia sua explanação tratando dos três aspectos que diferenciam as formas poéticas: a) os meios e b) os modos pelos quais imitam e c) os objetos imitados. Para explicar a diferença de utilização dos meios de imitação, o filósofo (p. 69) contrapõe o

44 PLATÃO. Filebo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. [S.l.]: Acropolis, s/d. Disponível em:

<http://www.megaupload.com/?d=45DZP740>. Acesso em: 16 set. 2010.

45 Sobre os efeitos “prazer” e “dor” a que visam os gêneros dramáticos. Cf. MENDES, Cleise

Imagem

Ilustração 1 - Isabelle Molina, personagem da cena Depilação Cavada
Ilustração  2 - As personagens Maria Alice (Saia amarela); Branca de Deus (Saia laranja) e  Laurita Paula (Saia vermelha) da cena As meninas de Veríssimo
Ilustração 3 - Os personagens Candiota e Laurita Paula
Ilustração 5 - Maria Joana, personagem da cena Correio do Povo

Referências

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