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Lacan gramático.

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Academic year: 2017

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RES UMO:Partindo do conjunto de noções gram aticais encontradas na obra de Lacan ( com o o uso dos tem pos verbais e da negação) , o autor procura situar as relações que aí se colocam entre a linguagem e a estrutura do inconsciente. Percorrendo os antecedentes teóricos da reflexão lingüística lacaniana, os resultados indicam um a dupla tentativa, por parte de Lacan: prim eiram ente, de aproxim ar certas particularidades entre os conceitos de inconsciente e de língua, em que o funcionam ento da segunda revela aspectos im portantes para a apreensão do prim eiro, e, posteriorm ente, de distanciar os conceitos consagrados do terreno lingüístico daqueles que ele m esm o propõe para ocupar esse lugar.

Palavras - chave : Lacan, linguagem , gram ática, inconsciente, estrutura.

ABSTRACT: Lacan the gram m arian. Starting off based on som e gram -m ar notions found very often in the works of Jacques Lacan ( like negation’s and verbal tenses’ usage) , the author brings up the rela-tionship between the language and the unconscious’ structure. Revis-iting the theoretical antecedents of the Lacanian reflection, this text points to the double facet of Lacan’s aim : on the one hand, he binds close together som e particularities between the concepts of unscious and language, w hose operations reveal im portant issues con-cerning the form er, and, on the other hand, he tries to avoid the tra-ditional linguistic perception of those concepts, claim ing to have them replaced by his ow n re-creations.

Ke yw ords : Lacan, language, gram m ar, unconscious, structure. Professor titular do

Departam ento de Ciências da Linguagem da Universidade de Paris X.

LACAN GRAMÁTICO

*

Mich e l Arrivé

*Tradução de Tereza Cristina Pinto e Marcos Lopes. Revisão de Ivã Carlos

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I. O INCONSCIENTE ESTRUTURADO COMO UMA LINGUAGEM

“Olhem bem o lado form al, gram atical, das coisas.”

Le Sém in aire, livre III: Les p sych o ses, p. 2 3 6

Gostaria, antes de m ais nada, de indicar de que m aneira trabalhei na preparação deste texto sobre “Lacan gram ático”.

Um a prim eira fase do trabalho im punha-se de form a im perativa: era preciso reunir todos os pontos do texto de Lacan em que são abordados problem as de gram ática, no sentido usual da palavra: questões de m orfologia e de sintaxe das línguas, ou m elhor, com o verem os em breve, essencialm ente de um a língua: o francês. Cum pri essa tarefa com os instrum entos que tinha à m ão: o texto dos

Escritos e os dez volum es publicados do Seminário. Reli esse conjunto de form a

exaus-tiva. Quanto aos outros textos — livros ainda inéditos do Seminário e publicações diversas — eu dispunha som ente — com um a exceção, a do Seminário XV — daqui-lo que é citado sobre os problem as de gram ática em m eus livros de 1986 e 1994. A prim eira fase do trabalho forneceu-m e um a espécie de inventário dos pro-blem as gram aticais presentes na obra de Lacan. Nesse ponto, duas trilhas se abri-ram para a continuidade de m eu trabalho:

1. A prim eira consistia na construção de um tratado de gram ática lacaniana de acordo com os term os do inventário, na descrição de seu conteúdo e na aprecia-ção do interesse de tal gram ática, do ponto de vista lingüístico.

2. A segunda consistia na atividade de pôr em relação o conjunto das posições gram aticais de Lacan — ou esta ou aquela porção privilegiada entre elas — com as concepções desenvolvidas por ele a respeito da estrutura do inconsciente.

A prim eira dessas tarefas não é desprovida de interesse. No entanto, trata-se em grande m edida de um interesse negativo, que pode ser resum ido nas três seguintes observações:

1. A gram ática, no sentido usual que é em pregado aqui, não é, entre as dem ais disciplinas da lingüística, aquela que m ais seduz Lacan. Ela é ultrapassada com folga por m uitas outras disciplinas:

• Em prim eiríssim o lugar aparece sem som bra de dúvida a reflexão geral sobre o signo, que reaparece insistentem ente — com o é natural — com a referência constante a Saussure. Não é m inha intenção estender a discussão sobre os num ero-sos problem as que daí advêm , m as não hesitarei em entrar nos porm enores da-queles que são ainda fonte de dificuldades: sabem os m uito bem que a relação de Lacan a Saussure é tudo, m enos sim ples.

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pensam os reconhecer essencialm ente a influência de Jakobson, que tinha certa sim -patia por Lacan, com o se observa no Séminaire XX ( Encore), p. 20. Mas é preciso assi-nalar que Lacan efetua um alargam ento considerável da noção de fonem a, a ponto de fazê-la designar tanto as unidades estritam ente distintivas quanto as unidades significativas, quaisquer que sejam suas dim ensões: o sentido dessa extensão é evidentem ente m arcar a unidade dos funcionam entos lingüísticos, fundados so-bre o regim e da oposição recíproca. Assim , as duas fam osas “oralizações” fort e da ( “lá” e “aqui”) do garotinho de Além do princípio do prazer ( 1921-1951) são fonem as, no entender de Lacan:

“A form a de m atem atização na qual se inscreve a descoberta do fonema com o função

de pares opositivos form ados pelos m enores elem entos discrim inativos apreensíveis

da sem ântica leva-nos aos próprios fundam entos nos quais a últim a doutrina de Freud vê, diante de um a conotação vocálica da presença e da ausência, as fontes subjetivas da

função sim bólica.” (Écrits, p. 284-285; ver tam bém Le Séminaire, V, p. 49, 63 e 222, XI, p.

60-1 e XX, p. 22)

Quanto à etim ologia, ela com parece todo o tem po à reflexão de Lacan, m as com algum as precauções. Assim , ele se interessa, com o Freud, pela relação entre

Seele ( “alm a”) e selig ( “m orto”, logo “feliz”) : m as essa relação é para ele “m enos

etim ológica ( diacrônica, precisam ente) que hom ófona ( sincrônica, precisam en-te) ” (Écrits, p. 569) . Da m esm a form a, ele diz “dar m ais peso” à apreensão da opo-sição entre das Ding e die Sache, à “percepção do uso do significante na sincronia”, que às “sondagens etim ológicas” (Le Séminaire, livre VII, p. 56) . No entanto, não se deve pensar que ele deixa com pletam ente de lado essas sondagens: assim , o nom e francês da coisa determ ina as observações a seguir:

“Se tentássem os ancorar na linguagem a constituição do objeto, seríam os forçados a

constatar que ela só se apresenta no nível do conceito, m uito diferentem ente de

qual-quer nom inativo,1 e que a coisa, tom ada redutivam ente com o substantivo, reparte-se

no duplo raio divergente da causa na qual ela se abrigou em nossa língua e do nada

[rien, N. T.] ao qual ela deixou sua vestim enta latina (rem) .” (Écrits, p. 498)2

1 Deve-se com preender aqui nom inativo não com o um a referência ao prim eiro caso da

declina-ção, m as com o sentido de “ designativo” , “referencial” , em oposição ao “ nível do conceito” .

2 Confira-se tam bém nos Écrits,p. 29 ( sobre purloined) e no Sém inaire, livre IV, p. 170 ( sobre fétiche

[ fetiche] , fée [ fada] , factice [ factício] ) , p. 211 ( sobre tuer [ m atar] : “ vem do latim tutare,que quer dizer conservar” ) , p. 306, sobre “ a raiz MR, que se encontra tanto em mère [ m ãe] , mara e tam bém

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signi-A gram ática aparece, então, salvo engano, em quarto lugar entre as disciplinas lingüísticas utilizadas por Lacan. Entretanto, trata-se de um corpus tão am plo que, por fim , um grande núm ero de problem as gram aticais acaba sendo m encionado de form a m ais ou m enos fugaz: listo aqui, naturalm ente sem preocupação de exaustividade, os problem as da concordância do verbo com o sujeito,3 do tem po e dos aspectos do verbo,4 as questões levantadas pela categoria da pessoa — falarei disso m ais adiante. Lacan se interessa m uito pela pontuação, a tal ponto que ele im agina “um a pontuação sem texto” (Écrits, p. 388) : m etáfora para significar a for-m a da castração quando, subfor-m etida à Verwerfung, reaparece erraticam ente no real. Por aí vem os a im portância que ganha para ele esse aspecto não-textual da escrita.5 A noção central da sintaxe — a frase — está no cerne das preocupações de Lacan. O problem a repetitivo que ele coloca sobre isso é a m aneira pela qual se “encerra” o sentido da frase: “Existe frase quando algum a coisa se encerra no nível do signi-ficante, ou seja, tudo aquilo que foi enunciado de signisigni-ficante, no seu lugar, entre o com eço e a pontuação” (Le Séminaire, Livre V, p. 514;6 ver tam bém , sobre esse

“en-cerram ento” do sentido pela sua últim a palavra, Écrits, p. 838 e Le Séminaire, Livre III, p. 154-155, Livre V, p. 15 e 90) .

Resum indo, seria possível extrair da reflexão de Lacan um a gram ática pratica-m ente copratica-m pleta: ela traria observações sobre a exclapratica-m ação (Le Séminaire, Livre V, p. 63) , a interrogação (Écrits, p. 661) e, certam ente, um a generosa porção de disserta-ções sobre a negação: voltarei a esse tem a na segunda seção de m eu texto.

2. As observações de Lacan sobre a gram ática dizem respeito sobretudo ao fran-cês. Se m e pedissem para dar um a idéia da proporção, eu diria que ela fica em torno de 80%. As outras poucas línguas que aparecem esporadicam ente são o la-tim ( por exem plo sobre os verbos depoentes, Le Séminaire, Livre III, p. 317-318) , 7 o

fica qualquer coisa com o acariciar, brincar” ) p. 197-198 ( sobre as teorias etim ológicas de Hans Sperber) , p. 233 ( sobre a etim ologia de m êm e [ m esm o] ) e p. 292 ( sobre ém oi [ perturba-ção] ) , Livre VIII, p. 244-245 ( sobre as “ am bigüidades significantes” ilustradas pela história da palavra réglisse [ alcaçuz] ) , Livre XX, p. 85 ( sobre αληθεια) , etc.

3 Trata-se do problem a da diferença que existe entre eu sou a m ulher que não te abandonarei e eu sou a

m ulher que não te abandonará (Le Sém inaire, Livre III, p. 308) .

4 Lacan se interessa particularm ente por essa distinção, que se oferece a ele com o um a form a

elegante de contor nar o problem a da ausência do tem po no inconsciente. Assim , ele aconselha a um tum ultuador im pertinente, incom odado por esse problem a, que “ volte às aulas de gra-m ática para distinguir as ‘forgra-m as de aspecto’ que vislugra-m bragra-m , da enunciação, aquilo no que o sujeito se transform a, daquelas que colocam o enunciado na linha dos acontecim entos. Assim , ele não confundirá o sujeito do acabado com a presença do passado” (Écrits, p. 664; ver tam bém p. 629 e Le Sém inaire, Livre III, p. 322) .

5 Ver tam bém Écrits p. 255, 310, 314-315, 373, 503 e 806 e Le Sém inaire, Livre III, p. 337. 6 Esse texto foi estabelecido com base nas notas tom adas por um ouvinte, que foram reelaboradas

pelo editor do Sem inário.

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grego antigo ( com um pouco m ais de freqüência, sobretudo pelo problem a da negação — e especificam ente a com paração do

µη

grego ao ne francês, ver especi-alm ente Le Séminaire, Livre VII, p. 353) e, dentre as línguas vivas, quase que exclusi-vam ente o inglês e o alem ão. A situação de quase-m onopólio dada ao francês não deixa de ser interessante. Com sua fonte calcada na prática, ela testem unha em favor de um aspecto da interpretação que proponho m ais adiante, sobre o postu-lado fundam ental do “inconsciente estruturado com o um a linguagem ”: de fato, a m eu ver, a língua é que constitui o m odelo da estrutura do inconsciente. A língua, desde que ela não seja ultrapassada pelo seu outro: alíngua [lalangue] . E onde m ais a alíngua poderia ser encarnada, senão na língua m aterna?8 Não seria preciso insistir

m uito para que eu dissesse que o inconsciente está estruturado, segundo Lacan, com o o francês. No fundo, quem poderia se surpreender com isso? A “língua fun-dam ental” do presidente Schreber é o alem ão, não é? E ainda por cim a um alem ão bem alem ão, por assim dizer, “um pouco arcaico, m as ainda m uito vigoroso, e riquíssim o em eufem ism os” ( SCHREBER, 1903-1975, p. 28-13) .9 Ora, é

justa-m ente essa “língua fundajusta-m ental” que Freud assijusta-m ila explicitajusta-m ente ao inconsci-ente, num a nota m uito negligenciada das “Rem arques psychanalytiques” ( 1911-1979, p. 308) . Assim , vem os Freud antecipar literalm ente Lacan, enunciando antes dele a fórm ula “o inconsciente é linguagem ”, m as com a condição de atribuir a

linguagem o sentido de “língua m aterna”.

3. Num grande núm ero de problem as levantados por Lacan, a inform ação gra-m atical provégra-m de fontes bastante fáceis de se identificar, ainda que não estejagra-m citadas em todos os casos. Em prim eiro lugar entre essas fontes, aparecem os ilus-tres duetistas Dam ourette e Pichon, particularm ente citados por sua análise da ne-gação francesa em dois com ponentes, a discordância e a foraclusão. Benveniste vem em segundo lugar. Sabe-se que Lacan tinha por ele m enos sim patia que por Jakobson, certam ente em decorrência da publicação de “Observações sobre a função da lin-guagem na descoberta freudiana” ( BENVENISTE, 1956-1966) . Mas, antes desse incidente e tam bém depois, ele o lia. Tanto assim que é a ele que Lacan se refere quando fala da terceira pessoa:

“A cham ada terceira pessoa não existe. Aproveito esta ocasião de lhes dizer isso para

com eçar a abalar alguns princípios que com certeza as aulas de gram ática na escola prim ária inculcaram -lhes tenazm ente. Não existe terceira pessoa, Benveniste o

de-m onstrou de forde-m a clara.” (Le Séminaire, Livre III, p. 314, ver tam bém p. 322)

8 Sobre o problem a das relações entre

alíngua e a linguagem, confira-se igualm ente o texto citado na nota 20.

9 A dupla paginação refere-se à tradução francesa ( prim eiro núm ero) e à edição original

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Passagem interessante: traz um exem plo de com o Lacan realiza um a torção do ensinam ento de Benveniste. Este últim o substitui a noção de terceira pessoa pela noção — que de fato é difícil de apreender — de não- pessoa.10 Lacan transform a essa substituição em negação, e estabelece o aforism o “não existe terceira pessoa” a partir do m odelo das fam osas fórm ulas negativas “não existe m etalinguagem ” ou “não existe relação sexual”.

Por fim , Gustave Guillaum e, citado explicitam ente um a vez, é utilizado na aná-lise do pretérito im perfeito ( ver abaixo) .11

Certam ente m inhas três observações fazem ver que a prim eira trilha que se abriu para m im — o exam e intrínseco das posições de Lacan sobre a gram ática — não era nada desinteressante. Entretanto, é óbvio que a segunda trilha será, no contex-to de nossa discussão, m uicontex-to m ais interessante. Ela consiste, volcontex-to a lem brar, num a tentativa de trazer à luz a articulação das posições de Lacan sobre a gram ática com suas concepções sobre a estrutura do inconsciente. É essa segunda trilha — “estra-da principal”, esperem os, e não “trilha de elefante” — 12 que m e ponho a seguir agora.

Um a condição inicial se im põe, contudo: levar em consideração a m aneira pela qual Lacan concebe a estrutura do inconsciente. Por um lado, é extrem am ente sim ples e, por outro, extrem am ente com plexa. Extrem am ente sim ples por causa da insistência em um a fórm ula, na m aioria das vezes idêntica a si própria.13 E extrem am ente com plexa porque cada um dos term os que a constitui cria proble-m as. O inconsciente, por exeproble-m plo, é tão in- consciente un- bewusst — quanto seu nom e diz? Lacan denuncia em diversas ocasiões ( por exem plo em Télévision [1973a], p. 15) o caráter negativo da palavra, “que perm ite que se suponha qualquer coisa do m undo, sem contar o resto”. O particípio estruturado seria m ais transparente? De m odo algum , já que a noção pressuposta por ele — a estrutura — é intim am ente vinculada à linguagem , tão intim am ente que os dois objetos chegam a se confun-dir: “Na m edida em que o inconsciente está im plicado nisso, existem duas facetas oferecidas pela estrutura, quer dizer a linguagem ” (Télévision, [ 1973a] , p. 18) .

1 0 Alguns excelentes lingüistas — cujos nom es não cito, para não constranger ninguém —

sem pre tropeçaram nessa noção, que foi introduzida em “ Str ucture des relations de personne dans le verbe” , 1946-1966, p. 225-236.

1 1 Outros gram áticos e lingüistas entram tam bém no inventário dos inform antes de Lacan, por

exem plo a dupla hom ófona Ferdinand Brunot e Charles Brunot: Lacan zom ba cruelm ente (Écrits, p. 663 e 800) das declarações que eles sustentam em Précis de gram m aire historique de la langue

française ( 1931-1966) sobre o ne cham ado de “expletivo” ou “expressivo” ( ver m ais adiante) .

1 2 Os leitores do

Sém inaire III terão reconhecido o em préstim o da m etáfora com a qual Lacan apresenta a função do significante ( p. 321-331) .

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Resta o artigo: o indefinido uma. Não parece deixar entrever, precisam ente, que a linguagem em questão não é uma, e que é com o uma delas, dentre várias outras, que o inconsciente está estruturado? Pluralidade problem ática, ao m enos para os lingüistas: em geral eles não falam de linguagem no plural, exceto quando se referem a objetos — linguagens lógicas, linguagens de program ação, etc. — que, precisa-m ente, não estão no caprecisa-m po da linguagem , no singular. Mas está descartado de saída que seja a esse tipo de linguagens que a fórm ula lacaniana rem ete. Convém , pois, voltarm os a essa fórm ula, tanto ao que tem de sim ples quanto ao de com plexo.

1. O que tem de sim ples é sua insistência: ela reaparece m uitas e m uitas vezes no discurso de Lacan. Não pretendo fazer disso um cavalo de batalha. Direi sim -plesm ente que creio tê-la encontrado ao m enos um a vintena de vezes em m inhas releituras dos Escritos e dos Seminários. Para ilustrar sua perm anência e sua im portân-cia, contento-m e em observar que Lacan, depois de ter dado à fórm ula sua form a canônica ( por exem plo nos Écrits, p. 868) ,14 volta a citá-la logo em seguida. Às vezes lem bra que ela é de sua autoria: é o que vem os em 1972 no Séminaire XX ( “Meu dizer, que o inconsciente está estruturado com o um a linguagem , não faz parte do cam po da lingüística”, p. 20) . Mas outras vezes age com o se a fórm ula viesse de outro alguém ; assim , no “L’Étourdit”: “O inconsciente sendo ‘estrutura-do como uma linguagem ’, quer dizer, alíngua onde ele habita, está sujeito ao equívo-co pelo qual cada um a delas se distingue.” (Scilicet, 4 [ 1973b] , p. 47; voltarei m ais adiante sobre esse fragm ento) .

2. No entanto, as coisas não são tão sim ples quanto parecem . Com efeito, per-m anência não significa que a fórper-m ula seja constanteper-m ente idêntica a si per-m esper-m a: ela evoluiu com o passar do tem po. Assim , em 1957 vam os encontrá-la sob outra roupagem :

“Tudo aquilo que é da ordem do inconsciente — na m edida em que este é estrutura-do pela linguagem — coloca-nos diante estrutura-do seguinte fenôm eno: nem o gênero, nem

tam pouco a classe nos perm item apreender as propriedades m ais significativas; a

única via se encontra no exem plo particular.” (Le Séminaire, livre V, p. 60)15

O leitor terá notado as duas diferenças consideráveis que separam essa form a antiga do aforism o de seu aspecto posterior: a preposição pela aparece no lugar do como e a linguagem é agraciada com o artigo definido. Dezesseis anos depois, no

1 4 O texto, “ La Science et la vérité” , é a conferência de abertura do sem inár io do ano

1965-1966.

1 5 Dois anos antes, Lacan fizera um a descrição m etafórica das relações entre linguagem e

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Séminaire XX, Lacan recusaria com pletam ente a concepção do inconsciente

estrutu-rado pela / por uma linguagem :

“ Vocês percebem que, ao conservar ainda esse como, continuo indo na m esm a direção

de quando m e arrisco a dizer que o inconsciente é estruturado como um a linguagem .

Digo como para não dizer, bato sem pre nessa tecla, que o inconsciente é estruturado por

um a linguagem . O inconsciente é estruturado com o as reuniões de que trata a teoria

dos conjuntos, que são com o letras.” (Le Séminaire, Livre XX, Encore, p. 46-47)

Ficou claro: o por fazia intervir um a relação causal, com o m ostra a transform a-ção ativa da frase (a linguagem estrutura o inconsciente) . Lacan substitui essa relação cau-sal pela relação hom ológica m anifesta pelo como. E esse é um problem a diferente daquele que se coloca quando se pergunta de que m aneira o caráter estritam ente hom ológico dessa relação se articula com a proposta, freqüente tam bém , que diz que “a condição do inconsciente é a linguagem ” (Télévision [ 1973a] , p. 15) . Aqui, não há relações causais, m as sim um a pressuposição: sem linguagem , nada de in-consciente.

A segunda divergência, aparentem ente m ais radical, é provavelm ente m enos im portante, apesar do seu caráter espetacular. Consiste na supressão pura e sim ples do segm ento estruturado como uma e no estabelecim ento da identidade entre lingua-gem e inconsciente. É o que é feito sob a form a m ais rapidam ente categórica: “ O inconsciente é linguagem ”, Écrits, p. 866. Ou de form a m ediata: “O inconsciente não tem por si próprio nenhum a outra estrutura, afinal de contas, além de um a estrutura de linguagem ” (Le Séminaire, Livre VII, p. 42) .

Certam ente, não há equivalência form al entre a m etáfora — no sentido tradi-cional da retórica — dessas fórm ulas e a com paração do aforism o canônico. Entre-tanto, as duas proposições parecem ter em vista um m esm o referente. Poderíam os decerto dem onstrá-lo fazendo um a análise rigorosa — fora de nosso propósito de agora — das condições sob as quais elas aparecem na sincronia do m esm o texto.16 Não tenho, pode-se perceber, nenhum desprezo por tais problem as de análise literal do texto. Mas não posso fazer nada além de obrigá-los a esperar que seja feito um trabalho sobre a história do pensam ento lacaniano. E concentro-m e a partir de agora no problem a capital: de que form a Lacan concebe essa “linguagem ” que aparece em seu dizer com o tendo o inconsciente estru tu rado à su a m an eira? O problem a se põe de form a redundante, e sob todos os seus aspectos, até a ques-tão das origens, nos Escritos e no Seminário. Os leitores assíduos do Seminário se lem -bram com certeza das longas discussões sobre a fórmula bíblica In principio erat verbum

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e dos debates inflam ados que ela provocou sobre a tradução de verbum: verbo? lin-guagem ? discurso? fala? (Le Séminaire, Livre II, p. 355 e ss. e Livre VII, p. 12 e 354) .

Que é feito, volto à questão, da linguagem , essa sobre a qual Lacan fala quando diz que o inconsciente se estrutura com o ela? Para essa questão extrem am ente delicada, desenvolvo agora a resposta já sugerida acim a.

Com o os lingüistas — ou, em todo caso, com o alguns ( a m aioria?) deles, a com eçar por Saussure — , Lacan concebe a linguagem com o sendo constituída por dois objetos distintos. A dificuldade é que ele nem sem pre dá a esses objetos o m esm o nom e, e ainda por cim a estabelece novas distinções no seio dos dois obje-tos distinobje-tos.

A prim eira dicotom ia é aquela norm alm ente fixada pela oposição entre língua e

fala. Sobre a língua cito, entre outros possíveis, um fragm ento dos Écrits extraído de

“La direction de la cure”, texto que data de 1958:

“Nossa doutrina do significante está fundada no fato de que o inconsciente tem a estrutura radical da linguagem , que um m aterial que aí está deve jogar de acordo com

leis que são aquelas descobertas pelo estudo das línguas positivas, das línguas que são

ou que foram efetivam ente faladas.” (Écrits, p. 594)

A proposição é isenta de qualquer am bigüidade, de qualquer obscuridade: a estrutura da linguagem é aquela que observam os nas línguas reais. É que, para citar um fragm ento ligeiram ente anterior ( 1955) do Seminário, “a linguagem [ é] encar-nada na língua hum ana” (Le Séminaire, Livre II, p. 367) .

Aqui, tudo está claro. E continuaria a sê-lo, afinal, se Lacan continuasse a dar o nom e de língua a esse com ponente propriam ente estrutural da linguagem . O pro-blem a é que age assim raram ente, ou, francam ente falando, quase nunca: ele usa m uito m ais linguagem no lugar de língua. Com certeza, isso ajuda a explicar o uso do artigo indefinido uma na form a canônica da fórm ula: pois as línguas são, diferen-tem ente da linguagem , m ais que um a só. Em sum a, o term o linguagem é tom ado, alternativam ente, com o senso global que geralm ente os lingüistas lhe conferem e com o senso lim itante de língua.

Qual é, pois, o segundo com ponente da linguagem segundo Lacan? Aqui os lingüistas não terão nenhum a surpresa m etodológica: de acordo com sua expecta-tiva saussuriana, eles encontrarão a fala. Num erosas passagens do texto lacaniano evidenciam essa oposição da fala com o ato à língua com o estrutura, com eçando por esta belíssim a, em bora breve, m etáfora alfabética nos Escritos: “O abc da estrutu-ra de linguagem e o bê- á- bá esquecido da fala” (Écrits, p. 321) .

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lacaniano da língua — à fala: a prim eira está estruturada por um conjunto de regras que é aqui m etaforizado pela sucessão ordenada das letras do alfabeto: a seqüência

abc é a im agem de todas as regras. A fala consiste em fazer aparecer as unidades na sua seqüência discursiva, diferente daquela das regras do alfabeto: b seguido de a resulta no pequeno segmento de discurso ba.17 Por último, percebemos que o exem-plo de unidade lingüística que está na ponta do lápis — é bem o caso, aqui — de Lacan é justam ente a letra, “esse suporte m aterial que o discurso concreto pega em prestado da linguagem ”18 (Écrits, p. 495) . Mas essa referência à letra não é

cons-tante: um conteúdo m uito próxim o é articulado, sem a m etáfora do alfabeto, no fragm ento a seguir: “A fala se institui com o tal na estrutura do m undo sem ântico que é o da linguagem ” (Le Séminaire, Livre I, p. 267) .

Nesse m om ento de sua análise, o lingüista pensa estar em terreno m ais ou m enos conhecido: reencontra um a oposição que conhece com os m esm os nom es em Saussure, e sob outros term os em outros aparatos term inológicos. Por isso, ele se sente seguro. Será que ele tem razão de estar seguro? De m aneira algum a! Ele se encontra, sem se dar conta, em cam po m inado. E isso por várias razões; eis aqui as principais:

1. A oposição da língua — será necessário lem brar m ais um a vez que ela é m ui-tas vezes cham ada linguagem? — é articulada com a oposição saussuriana da sincronia e da diacronia. Isso aparece de form a m ais ou m enos clara em diversas passagens, sendo a m ais explícita a seguinte:

“O sistem a do significante ou da linguagem para descrevê-lo sincronicamente, o sistem a

do discurso [ que deve ser tom ado, com o foi dito na nota 18, com o sentido de fala]

para descrevê-lo diacronicamente, a criança entra nisso logo de saída.” (Séminaire IV, p.

261; ver tam bém p. 299, além de Séminaire V, p. 31 e 493 e Écrits, p. 658 e 805)

Assim , a linguagem é duplam ente estruturada: enquanto “sistem a do signifi-cante” ( é o abc de que falávam os antes, e vê-se que a expressão sistema do significante assum e tam bém um estatuto equivalente a língua) e enquanto “sistem a do discur-so”: é o bê- á- bá ” que vislum bram os acim a, e é a fala que, com o se pode perceber

1 7 Coloco-m e aqui a pequena e fútil questão de saber se Lacan pensava claram ente, quando

propôs essa m etáfora alfabética, na intenção de Freud sobre a sílaba gráfica na Interpretação dos

sonhos:“ [ Em nosso sistem a de escrita] ab indica um a só sílaba, a e b separados por um espaço nos per m ite entender que a é a últim a letra de um a palavra, b a prim eira de um a outra” ( FREUD, 1900-1967, p. 271) . Fútil, reconheço, essa m inha questão. Mas a aproxim ação, que se im põe, m ostra claram ente o interesse igual atribuído pelos dois autores ao significante em sua m anifestação m ais literal: a letra do alfabeto.

1 8 Constata-se que nesse ponto Lacan utiliza, conform e o previsto,

linguagem com o sentido de

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nesse m om ento, é também sistem a. O prim eiro sistem a é de natureza sincrônica, e o segundo, de natureza diacrônica. É preciso tom ar cuidado com essa utilização espe-cificam ente lacaniana da oposição saussuriana: para Lacan , a sincronia é o m odo de existência do sistem a do significante, quer dizer, a língua, aliás a linguagem . A diacronia é a diacronia breve do ato de fala. Nesse ponto, assim com o em alguns outros, Lacan parece se distanciar o m ínim o possível da letra do ensinam ento saussuriano: aquilo que ele cham a de “diacronia do discurso” seria talvez traduzi-do em term os estritam ente saussurianos por “caráter linear traduzi-do significante”. Mas sabe-se que existe um a relação — subterrânea, eu estava prestes a dizer: m as não é o caso, apesar da aparência — entre as duas noções saussurianas de diacronia e de

linearidade. Apresentei m inhas explicações sobre esse problem a em Arrivé 1995, e contento-m e aqui em rem eter o leitor a elas.19

2. Para o “sistem a do significante”, nom e propriam ente lacaniano da língua, o terreno é repleto de m inas não m enos perigosas. Efetivam ente, a estrutura desse sistem a não é idêntica à que os lingüistas descrevem sob esse nom e. Entro aqui num problem a m uito vasto e árduo. Não o abordarei diretam ente: já se vê que não é nada m ais nada m enos que o problem a da estrutura do inconsciente. Contentar-m e-ei coContentar-m uContentar-m a observação relativa à história da reflexão de Lacan.

O conceito de a língua, com o corte, visível m as não audível, entre o artigo e o substantivo, será, relativam ente tarde, acom panhado pelo de alíngua num a só gra-fia.20 Lacan quer com isso destacar a especificidade da estrutura desse sistem a, fundado principalm ente sobre o equívoco e a hom ofonia: é o que fica explícito no fragm ento, já citado acim a, de “L’étourdit”. Não hesito, e verem os por que, em repetir a prim eira frase:

1 9 Durante essa discussão, Sém ir Badir fez notar que a oposição sincronia / diacronia no sentido

que lhe confere Lacan evoca um a outra distinção saussuriana: a das relações sintagm áticas ( fundadas, com o estam os lem brados — ver CLG p. 170 — sobre o “ caráter linear da língua” ) e das relações associativas. Ele continuava, perplexo pelo fato de Lacan não ter utilizado essa oposição. Perplexidade interessante, que Badir m e fez com partilhar. É certo que, a m enos que eu m e engane ou tenha deixado passar algum a coisa, Lacan não utiliza, ou utiliza pouquíssim o a oposição do sintagm a e do paradigm a. É sem dúvida pelo fato da dupla sincronia e diacronia pôr de saída a questão da inscrição dos fenôm enos, a com eçar pelo fenôm eno da fala, no tem po. Convém além disso notar que Lacan utiliza tam bém a oposição sincronia / diacronia no seu sentido estritam ente sausseriano: é o que vim os, há pouco, nas suas observações sobre a etim ologia.

2 0 A etim ologia lacaniana dessa palavra parece dupla: a supressão ( por integração) do artigo

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“O inconsciente sendo ‘estruturado como uma linguagem ’, quer dizer, alíngua onde ele habita, está sujeito ao equívoco pelo qual cada um a delas se distingue. Um a língua dentre outras não é nada m ais do que a totalidade dos equívocos que sua história deixou que nela subsistissem .” ( 1973b, p. 47)

Não sei se vocês perceberam , ao ler a prim eira frase, que é im possível determ i-nar o referente do ele que habita n’alíngua:21 seria a linguagem ? Seria o

inconscien-te? Mas o inconsciente não seria linguagem ? Aqui, a form a do texto se m olda pelo conteúdo que ele articula: o que estrutura alíngua é a “totalidade dos equívocos” que nela existem e subsistem. Compreende-se assim a insistência de Lacan, ao mesmo tem po, sobre o problem a teórico do equívoco e sobre seu m anejo discursivo: sabem os que a prática do equívoco progride na m edida em que avançam os diacronicam ente na produção de Lacan. Desde 1960, ele observa, com o que sabo-reando, “o aspecto irrem ediavelm ente estapafúrdio que o inconsciente conserva de suas raízes lingüísticas” (Écrits, p. 811) . Estapafúrdio, é claro, porque está fundado sobre o equívoco.

Já ficou claro: a “estrutura do significante”, tal com o a considera Lacan, não se confunde com que os lingüistas cham am de “estrutura da língua”. Certam ente não porque estes recusem o equívoco e a hom ofonia: basta que nos reportem os ao

CLG. Mas é verdade que os lingüistas não lhes dão a função fundam ental e

funda-dora que lhes é conferida por Lacan.

3. Passo agora à questão da fala [parole] .22 Aqui os fatos parecem m enos inquie-tantes, m as, na realidade, são ainda m ais. Efetivam ente, a fala lacaniana não se con-funde, a despeito das prim eiras aparências, com a fala saussuriana: é que ela se duplica. Os dois objetos que resultam desta duplicação são, de um lado, a fala plena — às vezes cham ada de fala verídica (Séminaire I, p. 59) ou ainda fala verdadeira (Écrits, p. 351) ou fala fundamental (Séminaire III, p. 181) — e, de outro lado, a fala vazia que é por vezes — infelizm ente, nem sem pre — assim ilada ao discurso (SéminaireV, p. 16) e, m ais tarde, ao discurso corrente [ fr. discours courant] ortografado, ludicam ente, “disque ourcourant”. Onde se situa a oposição entre esses dois tipos de fala? Precisam ente, no seguinte traço: a fala plena é ato. Cito aqui o segm ento m ais explícito:

“A fala plena é aquela que visa, que constrói a verdade tal com o ela é estabelecida no reconhecim ento de um pelo outro. A fala plena é fala que faz ato. Um dos sujeitos se

2 1 Essa passagem só pode ser com preendida se levarm os em conta que a palavra langage (

lin-guagem ) é, na língua francesa, um a palavra de gênero m asculino. [ N. T.]

2 2 Escolhem os aqui a tradução de parole por fala, pois a com paração com o conceito hom ônim o

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vê, depois, com o um outro que ele não era antes. É por isso que essa dim ensão não

pode ser evitada na experiência analítica.” (Le Séminaire, Livre I, p. 125-126; ver tam bém

Écrits, p. 351)

Texto fundam ental, a m eu ver, tanto para o analista quanto para o lingüista. Para o analista, ele m arca com grande força o laço indissolúvel entre a teoria e a prática: “É o fundam ento ou a fala fundadora — você é isso, minha mulher, meu mestre, m il outras coisas. Esse você é isso, quando o recebo, faz-m e, na fala, outro que não sou” (Le Séminaire, Livre III, p. 315) .

Para o lingüista, fixa claram ente ao m esm o tem po o que há de com um e o que subsiste com o diferença entre o que ele próprio entende por fala e a palavra hom ô-nim a de Lacan. Em com um , certam ente, a intersubjetividade: nos dois cam pos a fala institui um a relação entre os sujeitos. As diferenças se encontram na natureza dessa relação. Para o analista, a fala é ato. Aqui, por certo, o lingüista prestaria aten-ção: ele conhece bem , sob o nom e de enunciados performativos, fatos de fala que tam -bém constituem atos. Mas vê-se im ediatam ente o abism o que separa esses seg-m entos de discurso da fala plena. Ela é continuam ente perform ativa em cada um de seus segm entos, m esm o o aparentem ente m ais anódino, de sorte que se faz neces-sário aqui falar em performatividade generalizada. E a ação que ela produz é absoluta-m ente específica: nada absoluta-m enos que a transforabsoluta-m ação de uabsoluta-m dos sujeitos. Estaabsoluta-m os longe do efeito daqueles pobres e pequenos enunciados perform ativos: chegariam eles, em algum m om ento, a transform ar o sujeito? Vasto cam po de perplexidade, e quase deserto, certam ente. De todo m odo, este não é o m om ento de explorá-lo.

Em sum a, o que se pareceria m ais com a fala, sim plesm ente, seria talvez a fala

vazia. Mas Lacan só se interessa por essa últim a, precisam ente, para caracterizá-la

negativam ente em relação à fala plena.

Com o se pôde verificar ao longo desta contribuição, o cam po com um à lin-güística e a psicanálise é recoberto de m inas e arm adilhas. Resta-nos a constatação de que, a despeito dos perigos que correm os em percorrê-lo, esse cam po com um é o da linguagem , da língua e da fala. Para esses três objetos existe, com o todos sabem , já m uito antes da lingüística, um a disciplina antiqüíssim a: a gram ática. Qual é o lugar que Lacan confere a essa disciplina em sua reflexão?

II. A GRAMÁTICA FRANCESA: MODELO DO INCONSCIENTE?

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e-çou a enunciar” (Écrits, p. 629; o texto é “La direction de la cure”, que data de 1958) .

E Lacan se engaja logo na gram ática desse discurso, m obilizando sucessiva-m ente ( e talvez até usucessiva-m pouco avidasucessiva-m ente, no caso da segunda) as boas e velhas categorias gram aticais de m odo e de aspecto:

“É assim que os votos que ele [ o discurso do sonho] constitui não têm flexão optativa para m odificar o indicativo de sua fórm ula. Nisso veríam os, num a referência

lingüís-tica, que o que se cham a de aspecto do verbo é, aqui, o do acabado ( verdadeiro

senti-do de W unscherfüllung) .”23 ( Ibid.) .

Um pouco m ais tarde, falando sobre as curiosas idas e vindas de Freud sobre o problem a da ausência da negação no inconsciente, Lacan enuncia que:

“É então ao suporte do significante que som os dirigidos pelas proposições de Freud, e desde a prim eira [ a proposição freudiana segundo a qual não haveria negação no

inconsciente. Ver 1900-1967, p. 274-275] . Desnecessário sublinhar que os retornos pelos quais envereda a segunda [ aquela que reconhece a existência de certos m eios

de ‘exprim ir o não’, 1900-1967, p. 281-283] m arcam , pelas balizas sem pre gram

ati-cais que Freud coloca nessas retom adas, que se trata efetivam ente de um a ordem do

discurso.” (Écrits, p. 659; trata-se do texto “Rem arque sur le rapport de Daniel Lagache”,

que data de 1960)

Se “o inconsciente é estruturado com o um a linguagem ”, é realm ente necessá-rio que de algum a form a ele seja regido por um a gram ática. Aqui é preciso ler Lacan ao pé da letra e fazer o inventário das questões de gram ática sobre as quais ele se posiciona. A hipótese é que cada um a dessas posições e o conjunto que elas constituem m ostram de que m aneira o inconsciente é estruturado com o um a lin-guagem.

A dificuldade é que tal inventário das questões de gram ática, sobre as quais Lacan se inclina, é considerável. Mesm o se levarm os em conta que, com o acaba-m os de perceber, a coacaba-m preensão da graacaba-m ática é duplaacaba-m ente liacaba-m itada:

• a gram ática não é por certo a disciplina lingüística que retém m ais freqüente-m ente o autor: vifreqüente-m os acifreqüente-m a que ela continua relativafreqüente-m ente distante efreqüente-m relação à reflexão geral sobre o problem a do signo, e — apenas um pouco distante — em relação à fonologia e à etim ologia.

• vim os igualm ente acim a que se trata da gram ática de um a língua: a dele, pela

2 3 Podem os contestar:

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qual se interessa quase que exclusivam ente, com algum as exceções. Para essa pre-ferência cedida à gram ática francesa, ele fornece às vezes um a discreta justificativa: “Eu peço a vocês para verem com igo hoje alguns exem plos cuja im portância lin-güística é, para nós, franceses, absolutam ente sensível” (Le Séminaire, Livre III, p. 315. O problem a referido aqui é o da concordância entre a pessoa e o verbo em frases com o tu és aquele que me seguirás / seguirá) .24

A despeito dessa dupla lim itação, o corpus — com praticam ente apenas um a exceção (Le Séminaire XV) na obra de Lacan publicada até o m om ento ( outubro 1999) — recobre quase todas as questões de gram ática tratadas nos m anuais. O tratam ento que Lacan lhes dispensa tem um a particularidade com um , a m eu ver, jam ais desm entida: elas não são estudadas gratuitam ente, pelo prazer de falar de gram ática, m as sim exclusivam ente pela intenção de estreitar ainda m ais as rela-ções entre linguagem e inconsciente. O bom m étodo seria então tratar todos os pro-blem as gram aticais levantados por Lacan: cada um deles contém , à sua m aneira, um a indicação sobre a form a pela qual “o inconsciente é estruturado com o um a linguagem ”. Entretanto, essas indicações são por vezes m uito rápidas ou apenas alusivas. Chegam m esm o a ser, às vezes, quase im plícitas. É por isso que faço um a escolha dentre os problem as gram aticais oferecidos por Lacan: retive — de um a form a que, adm ito, guarda o risco de parecer um pouco arbitrária — os proble-m as que pareceraproble-m ilustrar da forproble-m a proble-m ais transparente as relações entre lingua-gem e inconsciente. São três:

1. O problem a dos tem pos verbais;

2. O problem a dos shifters, denom inação inglesa conservada por Lacan dos em breantes [embrayeurs]25 ou indicadores;

3. O problem a da negação e, m ais especificam ente, o dos elem entos da nega-ção francesa.

Gostaria de ter podido abordar um quarto problem a: o da concordância entre a pessoa e o verbo nas estruturas do tipo tu és aquele que me seguirás / seguirá, aliado ao problem a dos verbos depoentes latinos e da voz m édia (Séminaire III, p. 307-308, 315-319, 322, Séminaire V, p. 150-151, Écrits, p. 445) . Entretanto, os lim ites quanti-tativos m e im pediram de fazê-lo.

Verificarem os que os três problem as abordados ( o m esm o vale para o quarto) estão intim am ente ligados, a tal ponto que por vezes chegam a ser inseparáveis. Tal fato faz com que a ordem de exposição, a partir de agora em basada em critérios de inteligibilidade, seja, no fundo, pouco im portante.

2 4 No original:

tu es celui qui m e suivras / suivra. Em francês, não há diferença de pronúncia entre as form as suivras [ seguirás] e suivra [ seguirá] . [ N. T.]

2 5 Mantivem os a designação francesa, que figura na tradução em português dos textos de

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1. O pro ble m a do s te m po s ve rbais

Dentre os tem pos verbais — da língua francesa, obviam ente — Lacan se interessa sobretudo pelo presente, pelo futuro anterior26 e pelo im perfeito. Sobre o presente

não direi nada nesta prim eira seção: com efeito, ele é explicitam ente integrado ao problem a dos shifters: “( … ) o sujeito é designado aí pelos shifters ( ou seja, Eu, todas as partículas e flexões que fixam sua presença com o sujeito do discurso e, com elas, o presente da cronologia) ” (Écrits, p. 664) . Ele será, portanto, evocado quando da abordagem desse tem a.

O futuro anterior e o im perfeito são, cada um à sua m aneira, form as verbais específicas do estatuto do sujeito do inconsciente.

1 .1 . O futuro anterior

De m odo geral, Lacan não negligencia de form a algum a o problem a do aspecto verbal. Vim os acim a que ele identificava certo acabado no discurso do sonho. E, no texto “Rem arque sur le rapport de Daniel Lagache”, ele convida determ inado tum ultuador im pertinente27 a:

“distinguir o tem po da cronologia, as “form as aspectuais” que focalizam , da enun-ciação, aquilo em que aí se transform a o sujeito, das que situam o enunciado na linha dos acontecim entos. Então ele [ o tum ultuador] não confundirá o sujeito do acabado

com a presença do passado.” (Écrits, p. 664)

Quanto ao futuro anterior, o que im porta é o seu valor tem poral, valor que lhe perm ite situar um processo no futuro com o anterior a outro processo. Aquilo que desse valor é selecionado por Lacan é o caráter evanescente da ação que ele designa: ainda não realizada no m om ento da enunciação, m as já ultrapassada e im ersa no passado no m om ento em que se efetua o processo em relação ao qual ela é dada com o anterior.

26 O futuro anterior, em francês, é um a form a de conjugação com posta em dois term os ( verbo

auxiliar ter ou ser m ais um verbo no particípio) e usada em dois casos típicos: 1) para m arcar a aspectualidade da frase, ou seja, o caráter conclusivo da ação ( “ Nous serons bientôt arrivés à Paris” [ Logo terem os chegado a Paris] ) ou 2) para m arcar a tem poralidade da frase, isto é, indicar a anterioridade de um acontecim ento futuro por relação a outro tam bém futuro. O prim eiro acontecim ento ( isto é, aquele que se realizará prim eiro) é indicado no futuro ante-rior, o segundo no futuro sim ples. Assim , por exem plo, “ Je serai parti quand il viendra” ( [ Já] Terei saído quando ele chegar” ) . É esse valor, de tem poralidade, que Arrivé destaca nas discus-sões de Lacan sobre o assunto. O leitor interessado encontrará m ais porm enores na gram ática publicada pelo autor deste artigo — ARRIVÉ, Michel; GADET, Françoise & GALMICHE, Michel.

La Gram m aire d’aujourd’hui: guide alphabétique de linguistique française, Paris, Flam m arion, 1986, sobretu-do às páginas 274-277. [ N. T.]

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Essa análise se m anifesta im plicitam ente, na língua-objeto, pelo em prego do futuro anterior para descrever o m odo de existência tem poral do inconsciente. É o que se pode observar principalm ente no Séminaire I, na sessão de 7 de abril de 1954:

“De um lado o inconsciente é ( … ) algo negativo, idealm ente inacessível. De outro lado, é algo quase real. Enfim , algo que será realizado no sim bólico ou, m ais

exata-m ente, que, graças ao progresso siexata-m bólico na análise, terá sido [ sublinhado por Lacan] .”

(Séminaire I, p. 181; ver um outro exem plo, p. 182)

Entretanto, já no “Discurso de Rom a” ( que data de setem bro de 1953) , Lacan tinha teorizado m etalingüisticam ente o em prego do futuro anterior do seguinte m odo:

“Identifico-m e na linguagem , m as som ente se m e perco nela com o objeto. O que se realiza na m inha história não é passado definido do que foi, nem m esm o o perfeito

do que foi no que eu sou, 28 m as sim o futuro anterior do que terei sido para aquilo

em que estou m e transform ando.” (Écrits, p. 299-300)

Mais tarde, em 1960, em “Subversion du sujet et dialectique du désir”, as eta-pas do percurso do sujeito sobre o grafo do desejo serão descritas com o as que possibilitam “um efeito de retroversão pelo qual o sujeito, a cada etapa, transfor-m a-se naquilo que era no transfor-m otransfor-m ento antecedente, e só é capaz de anunciar-se no futuro anterior: ele terá sido” (Écrits, p. 808) .

1 .2 .O imperfeito

De um a form a aparentem ente paradoxal, o m odo de existência tem poral signifi-cado pelo im perfeito não é, para Lacan, fundam entalm ente diferente do futuro anterior. Para se com preender esse parentesco lacaniano entre duas form as tão di-ferentes, é preciso levar em conta que, orientado por Dam ourette e Pichon e so-bretudo, aqui, por Gustave Guillaum e, ele considera a unicidade absoluta dos va-lores do im perfeito. A referência — única, se vi bem — a Guillaum e se encontra no

Séminaire XV, de 10 de janeiro de 1968:

“Será que dentro desse ‘eu penso’, ‘eu sou’? É de fato certo que a revelação do ‘eu

penso’ do inconsciente im plica ( … ) algum a coisa que, lá onde o cogito de Descartes

nos faz tocar a im plicação ‘logo sou’, é essa dim ensão que cham arei do desarm am

en-to que faz com que seguram ente eu pense e, ao m e perceber, eu era aí, m ais

exata-2 8 Vem os aqui um novo traço do interesse de Lacan pela categoria do aspecto, do qual um a das

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m ente com o se diz — vocês sabem que eu já utilizei esse exem plo, m as a experiência m e ensinou que não é inútil repetir — é no m esm o sentido que, segundo o exem plo extraído das observações do lingüista Guillaum e, no m esm o sentido do em prego tão específico do im perfeito em francês, que dá toda a am bigüidade da expressão ‘um

instante m ais tarde, a bom ba explodia’. O que quer dizer, justam ente, que ela não

explode.” (Séminaire XV, p. 79)

Lacan não contesta a im portância do cogito cartesiano para o sujeito do incons-ciente. Com um a ressalva apenas, m as ela é m uito im portante: o eu sou cartesiano se vê substituído por um eu estava lá. Além disso, esse im perfeito deve ser com preendi-do com o aquele que com enta Guillaum e29 a propósito do exem plo um instante

de-pois / mais tarde, o trem descarrilava, levem ente m odificado para a ocorrência. Tanto para

o trem com o para a bom ba, o acontecim ento pode suceder ou não. Tendo notado tal “suspense” — é o term o guillaum iano — sob a form a da “am bigüidade”, Lacan opta, nesse caso, pelo não-acesso da ação ao acontecim ento. Tal é o estatuto do sujeito do inconsciente: “desarm ado” justo antes de advir, um pouco com o aquele que, sujeito de um terá sido, não terá tocado as raias do ser senão para se transform ar naquilo que já era. “Desm ontado”, com o a bom ba logo antes de explodir.

Alguns anos antes, a análise proposta — sem a referência a Guillaum e — era m uito sem elhante:

“Resta som ente esse ser cuja consagração ele só alcança quando não é m ais. Tal é o encontro no tem po m ais am bíguo da m orfologia do verbo francês, aquele que se

designa com o o im perfeito. Ele estava aí contém a m esm a duplicidade na qual fica

suspenso: um instante mais tarde, a bomba explodia, quando, por falta de contexto, não se

pode deduzir se o acontecim ento se produziu ou não.” (Écrits, p. 678)

Essa análise, percebe-se logo, é bastante litigiosa do ponto de vista lingüístico. Isso se deve ao fato de que Lacan distorceu um pouco a análise guillaum iana. Exa-tam ente em dois pontos:

1. Guillaum e, de fato, apresenta a hipótese da unicidade do im perfeito ( com o tam bém de todos os outros tem pos) . Lacan parece então se inscrever na continui-dade dessa hipótese. Mas, contrariam ente a Guillaum e e, na vercontinui-dade, a qualquer análise lingüística do im perfeito, ele vê essa unidade — ouso dizer — na

dupli-2 9 Guillaum e volta a esse problem a em vários episódios. A análise m ais detalhada encontra-se

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cidade: com preendo que Lacan coloca o im perfeito com o sendo sempre am bíguo, tanto no exem plo de ele estava aí com o no exem plo do trem ou da bom ba. E isso não é absolutam ente o que Guillaum e diz: a am bigüidade do exem plo do trem que hesita em descarrilar se produz apenas sob o “ponto de vista do discurso” que, segundo a escolha que se faz entre um instante depois e um instante mais tarde faz desviar a “decadência do acabado” do im perfeito para o lado positivo ( e o trem descarrila, a bom ba explode) ou para o lado negativo ( e o trem prossegue o seu cam inho, a bom ba é “desarm ada”) . Nenhum a dessas com utações é possível com os tranqüi-los im perfeitos do tipo ele estava aí, que não têm absolutam ente nada de am bíguo.

Um a vez estabelecidas a “am bigüidade” e a “duplicidade” fundam entais do im perfeito, Lacan dissolve constantem ente o equívoco em favor do não-advento do processo: donde o estatuto específico desse “ser cujo advento só se apreende quando não é m ais”.

Acharem os um outro exem plo desse sofism a — será preciso dizer que, com o Lacan, não confiro nenhum valor negativo a esse term o?30 — na ilustre análise do

sonho ele não sabia que estava morto. Lacan o utiliza três vezes (Séminaire VI, não consul-tado; Séminaire VII, p. 36 e 289; Écrits, p. 801-802) . Frase paradoxal que m antém a vida suspensa na ignorância pela qual o sujeito é afastado de sua própria m orte.31 Lacan atribui o paradoxo ao valor am bíguo do im perfeito:

“Ele não sabia… Mais um pouco, e ele sabia, ah! que isso nunca aconteça! Prefiro

m orrer a que ele saiba. Sim , é assim que Eu32 venho aqui, aqui onde eu estava: quem

sabia que eu estava m orto?

Ser de não-sendo, é assim que advém Eu com o sujeito que se conjuga na dupla

aporia de um a subsistência verdadeira que se anula de seu saber e de um discurso no

qual é a m orte que sustenta a sua existência.” (Écrits, p. 802)

Sim , m as a dupla aporia que sustenta paradoxalm ente o advir do Eu com o sujeito não vem do valor do im perfeito. Por um a razão sim ples: o im perfeito não tem , nesse caso, o valor que lhe atribui Lacan, com o o m ostra de sobejo o fato de que a “dupla aporia” subsiste se o verbo for enunciado no presente: ele não sabe que

está morto. Mas Lacan persiste e, em seu com entário do célebre aforism o freudiano

3 0 Verem os m ais claram ente adiante quando da alusão ao “ sofism a” dos três prisioneiros. 3 1 Inversam ente, M. Valdem ar som ente se m anteve vivo por falar per iodicam ente, no sono

hipnótico em que foi m ergulhado in articulo m ortis, a frase eu estou m orto (Sém inaire II, p. 270) : se ele fala é porque está vivo, apesar de sua m orte.

3 2 Escolhem os aqui a tradução do pronom e pessoal reto je por eu, m as m antivem os o pronom e

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W o Es W ar soll Ich werden, continua a atribuir ao im perfeito o valor de “im inência

obstada” que este não tem . Lacan, aliás, quase o reconhece im plicitam ente, pois nota que o im perfeito traduz aqui o perfeito alem ão, totalm ente inapto para assu-m ir esse valor:

“O francês diz: Lá onde estava… Usem os da vantagem de um im perfeito distinto que a língua nos oferece. Lá onde estava, ainda agora, lá onde estava há pouco, entre essa extinção que ainda brilha e essa eclosão que tropeça, Eu posso vir ao ser de

desapare-cer do m eu dito.” (Écrits, p. 801)

Resta um a questão difícil: qual é exatam ente o sujeito que é afetado pelo esta-tuto tem poral tão específico do futuro anterior e do im perfeito, tal com o o conce-be Lacan? Pois observam os que o “ser de não sendo” que ( se) enuncia sob essas form as tem porais é designado unicam ente por eu, Eu e não moi e ainda m enos le

moi, em alemão Ich e não das Ich:33 pois no aforismo freudiano, Ich não é substantivado

pelo artigo das. Lacan, com essa observação — form ulada alguns anos antes em “A coisa freudiana” — procura elim inar a interpretação de Ich por le moi. E com o se a ausência do artigo das na fórm ula freudiana não fosse suficiente, ele traduz Ich por

Je e, para justificar sua tradução, alega rapidam ente um problem a de gram ática histórica do francês: a substituição do ce suis- je antigo pelo c’est moi34 m oderno.35

Ich, eu, lá devo ( com o se dizia: sou eu [ce suis- je] , antes de dizerm os sou eu [c’est moi] ) , werden, devir, quer dizer, nem sobrevir, nem m esm o advir, m as vir ao dia

nesse lugar m esm o enquanto lugar de ser” (Écrits, p. 417) .

É de fato do sujeito do inconsciente que se trata aqui, com o diz Lacan quase explicitam ente na conclusão da análise do sonho ele não sabia que estava morto:

“Esse ele não sabia, no im perfeito, guarda o cam po radical da enunciação, quer dizer, da

relação m ais fundam ental entre o sujeito e a articulação significante. Isso quer dizer

que ele não é o agente, m as o suporte, na m edida em que não saberia m esm o supor-tar as conseqüências. É na sua relação com a articulação significante que ele, sujeito,

surge com o conseqüência.” (Sém inaire VII, p. 258-259)

3 3 Será preciso lem brar que em alem ão não existe oposição m orfológica correspondente àquela

que, em francês, distingue a form a conjunta je da form a disjunta m oi? A oposição ich/ m ich tem um outro estatuto, e estritam ente casual ( nom inativo/ acusativo) .

3 4 Traduzindo am bas as expressões: “ sou eu” . [ N. T.]

3 5 A substituição foi feita progressivam ente a partir da segunda m etade do século XV, segundo

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2 . O pro ble m a do s s hifte rs

Se bem vi, Lacan não utiliza o term o embreante, introduzido por Ruwet em 1968 em sua tradução de Essais de linguistique générale de Jakobson ( 1963) , e m ais precisa-m ente do artigo “Les embrayeurs, les catégories verbales et le verbe russe”, publicado em inglês em 1957. Ele recorre ao term o inglês original shifter ( que, por sua vez, chegou a Jakobson por Jespersen, 1922) . Usa tam bém , m as raram ente, o term o indicador ( por vezes citado de form a inexata com o indicativo) que é o term o benvenistiano ( BENVENISTE; 1956-1966, p. 253) .36 Autorizar-m e-ei, logo m ais, a em itir um a

hipótese sobre o silêncio de Lacan em relação à palavra embreante que, de todo m odo, cronologicam ente ao m enos, ele chegou a conhecer.

Não vam os perder o rum o ao nos em brenharm os pelos em breantes: tirando o trocadilho, arriscam o-nos a fazer confusão. É por isso que m e perm ito um breve esclarecim ento da noção.

Tom o, com o exem plo, o em breante por excelência: eu ou, naturalm ente, suas diferentes realizações flexivas: em francês, m e e moi. Vem os, pelo destino que lhes deu Lacan em sua teoria do sujeito, que elas são significantes no m ais alto grau. Mas elas têm exatam ente o m esm o estatuto de shifter que eu. A propriedade com um a essas form as — em breantes actanciais — é a de ter sim ultaneam ente com o refe-rente o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação. Essa reunião de dois sujei-tos tem com o efeito im ediato fazer mudar (to shift)37 o referente quando se m uda o

sujeito da enunciação. Ela explica tam bém certas propriedades atualm ente bem conhecidas dos enunciados que com portam o em breante eu. Por exem plo, posso dizer eu sei que Francis veio e eu não sei se Francis veio, m as não posso dizer, ao m enos nas condições norm ais, ( 1) *eu não sei que Francis veio nem ( 2) *eu sei se Francis veio: o m es-m o sujeito designado por eu, enquanto sujeito do enunciado, é necessariam ente im pedido, enquanto sujeito da enunciação, de m arcar ao m esm o tem po — com o faz o presente — sua ignorância sobre o que ele apresenta com o verificado, com o em ( 1) , ou seu saber sobre o que ele coloca com o dúvida, com o em ( 2) .38

3 6 O texto de Benveniste “ La nature des pronom s” foi originalm ente publicado em 1956 na

coletânea For Roman Jakobson. Entretanto, esse artigo repousa, na parte conceitual, sobre duas conferências realizadas por Jakobson em 1950, que Benveniste pode ter conhecido. Sobre esses problem as de cronologia, ver Norm and 1985 e Perret 1988.

3 7 Constata-se que o term o em breante introduz um a m etáfora m ecânica e, especificam ente,

autom obilística, que não estava presente no term o shifter; a palavra em breante, com o o diz Ruwet em sua nota da tradução, “ pareceu-nos própr ia para designar as unidades do código que fazem em breagem da m ensagem sobre a situação” ( Jakobson, 1963, p. 178) . Todo m otorista sabe a diferença que existe entre trocar de m archa (to shift [gears]) [ N. T.: com a utilização da em breagem , presum ivelm ente] e em brear (to let [in the clutch]) [ N. T.: Isto é, acionar a em brea-gem para liberar o veículo da tração do m otor] . Vale notar que o term o shifter não teria podido proporcionar de nenhum m odo um a teoria da debreagem, na esteira da teoria da em breagem.

3 8 Sucessivam ente, interressaram -se pelo problem a Borillo ( 1976) , Milner ( 1978) , Martin

(22)

Até aqui, tudo parece claro: o que visam os é o referente de eu. A partir do m o-m ento eo-m que se passa ao probleo-m a do enunciado, as coisas o-m udao-m : teo-m os a escolha entre a cacofonia e o silêncio.39 Entretanto é indispensável supor um

sig-nificado para o shifter, com o tam bém para qualquer outro elem ento lingüístico: é precisam ente a condição que lhe perm ite assum ir um referente. Para não entrar aqui em debates confusos ( e seguram ente extem porâneos) , contentar-m e-ei com um a fórm ula que pode parecer decepcionante por sua aparência tautológica: o significado de eu é a propriedade que ele tem de juntar o sujeito do enunciado com o da enunciação.40 Propriedade inteiram ente específica, que ele partilha — com m odalidades que se diferenciam para cada um deles apenas pelo com ponente ado-tado da instância da enunciação — som ente com os outros em breantes: com po-nente actancial para eu, tu e seus derivados, tem poral para hoje, ontem e amanhã e com panhia, com ponente espacial para aqui, e seus sim ilares.

E quanto à posição de Lacan em relação aos shifters? No início, é m uito sim ples. Lacan está de acordo com o fato de que o shifterdesigna, no enunciado, o sujeito da enunciação.

“À estrutura da linguagem , um a vez reconhecida no inconsciente, que tipo de sujeito podem os conferir? Pode-se aqui tentar, por um a questão de m étodo, partir da

defini-ção estritam ente lingüística do Eu com o significante: onde ele é apenas o shifter ou

indicativo que no sujeito do enunciado designa o sujeito com o aquele que fala

atual-m ente.” (Écrits, p. 800. Ver tam bém p. 663-664, com um a alusão ao “presente da

cronologia”, tem po do verbo que, de m odo legítim o — e m uito benvenistiano — ele

integra à classe dos indicadores)

Até aqui, tudo vai bem : Lacan segue exatam ente os passos de Jakobson e de Benveniste, que está presente, com o m ostrei acim a, no term o indicativo, retom ado, quase com o um lapso, do indicador benvenistiano. Mas logo surge a divergência fundam ental: ela se encontra na insurreição de Lacan contra a idéia de que o shifter possa significar o sujeito da enunciação:

“ Vale dizer que ele designa o sujeito da enunciação, m as que ele não o significa.

Com o é evidente, a propósito, que todo significante do sujeito da enunciação pode não com parecer no enunciado, além disso, há aquelas que diferem do Eu, e não

so-3 9 O silêncio? Freqüentem ente. A cacofonia? Confesso que tenho dificuldades em encontrar

um … sentido para a fór m ula de Milner “ o sentido do eu é proferir o significante eu ” ( 1978, p. 78. Por outro lado, quando da abordagem do referente, a análise de Milner era plenam ente aceitável: “ o referente de eu é aquele que em prega eu” ; 1975-1976, p. 70) .

4 0 Observa-se que essa fórm ula se distingue da definição referencial pela introdução da noção

(23)

m ente o que cham a, de form a insuficiente, os casos da prim eira pessoa do singular,

acrescentaríam os o seu lugar na invocação plural e até m esm o no Si [Soi] da

auto-sugestão.” ( Ibid.) .

Deixo de lado essa argum entação, ela parece bem fraca. Não é porque o signi-ficante pode “não comparecer”que ele é desprovido de significado quando com pare-ce. Aliás, Lacan, quatro anos antes, aparentem ente não dava a m esm a im portância a um a observação sem elhante:

“ ( … ) O eu nunca está lá onde aparece sob a form a de um significante particular. O eu

é o eu daquele que pronuncia o discurso. Tudo o que se diz tem sob si um eu que o

pronuncia. É no interior dessa enunciação que o tu aparece.”41 (Séminaire III, p. 310)

A principal dificuldade está na disjunção, proposta por Lacan, entre designa-ção e significadesigna-ção. Tal disjundesigna-ção coloca de fato três questões um tanto desconcertantes: 1. O que acontece com a própria possibilidade dessa disjunção? Um elem ento lingüístico, qualquer que seja ele, pode designar sem significar? Lem bram os que essa possibilidade foi longam ente sustentada acerca dos nom es próprios, que não deixam de possuir suas relações com os embreantes. Mas sabem os tam bém que essa teoria da “vacuidade” dos nom es próprios é contestada há m uito tem po ( ver prin-cipalm ente Martin 1983-1987b e Gary-Prieur 1994) . De toda form a, Lacan, ao m enos até onde li, não levanta essa lebre: ele age com o se fosse evidente que os

shifters pudessem designar sem significar.

2. Se o sujeito da enunciação não é significado pelo shiftereu, seria ele então significado por algum outro elem ento? E qual? A resposta aparece im ediatam ente: “Crem os ter reconhecido o sujeito da enunciação no significante ne, cham ado pe-los gram áticos de ne expletivo” ( Ibid.) .

Vê-se por esse exem plo: o problem a dos shifters é, para Lacan, estreitam ente ligado ao da negação, ao m enos da negação francesa, e a um dos elem entos que a ela se referem : o ne, efetivam ente cham ado de expletivo quando se m anifesta só. Sou entretanto levado a protelar o exam e desse problem a, que terá seu lugar quan-do quan-do estuquan-do da negação.

3. Vendo as coisas sob o aspecto “form al, gram atical” — segundo a exigência de Lacan — , um fato aparece claram ente: se o eu do enunciado designa sem signi-ficar o sujeito da enunciação, devidam ente significado por um outro elem ento —

4 1 É evidentem ente difícil, lendo esse texto, não pensar no artigo de Benveniste “ Structure des

relations de personne dans le verbe” , onde se encontram principalm ente as form ulações se-guintes: “ Dizendo eu, não posso não falar de m im . Na segunda pessoa, tu é necessariam ente designado por eu e não pode ser pensado fora de um a situação a partir do eu; ao m esm o tem po,

(24)

o ne cham ado expletivo — então a coalescência dos dois sujeitos é, rigorosam ente falando, im possível. Será então que há entre o enunciado e a enunciação um a clivagem com pleta, um a discordância absoluta? Aqui tam bém a resposta de Lacan é totalm ente segura: sim , existe m esm o “disjunção”, “discordância”, Spaltung — divisão, cisão, clivagem — entre o enunciado e a enunciação. Os textos nos quais se m ostra essa cisão são num erosos e concordantes, tanto nos Séminaires — princi-palm ente os de núm eros V, p. 15-19, VII, p. 353 ( com um a análise talvez dem asia-dam ente sutil do

µη

do grego antigo)42 e XI, p. 127-188, quanto nos Écrits,

princi-palm ente às p. 664 e 800. Em várias dessas ocorrências, a discordância entre essas duas linhas é ilustrada pelo grafo cham ado de “abridor de garrafas” (Écrits, p. 815) que, em sua form a prim itiva — a m ais sim ples — apresenta-se assim :43

Vem os, no sentido m ais concreto dessa palavra, que os dois níveis nada fazem além de se cruzar, e é no intervalo, no sentido m ais literal do term o, que se situa o significante do sujeito da enunciação:

“O ne tem seu lugar flutuante entre os dois níveis do gráfico que eu os ensinei a usar

para aí encontrar a distinção: aquilo que é da enunciação e aquilo que é do enunciado.

Enunciando temo que… qualquer coisa,44 faço essa coisa surgir em sua existência, e ao

4 2 O excesso de sutileza se justifica porque, a m eu ver, Lacan quer a qualquer custo fazer do µη do grego antigo o ne do francês. Nenhum helenista pode aceitar tal assim ilação: o µη do grego antigo constitui por si só um a negação, ao contrário do ne francês. Mas as análises um pouco capciosas a que Lacan se dedicou para sua dem onstração perm itiram -lhe enunciar com grande clareza duas proposições: “ [ o ne] não tem nenhum a razão de ser, se ele não é o sujeito, ele m esm o” , e “ o µη está aí pela Spaltung entre enunciação e enunciado” ( p. 353) .

4 3 Foi dessa form a que ele foi apresentado pela prim eira vez, salvo engano m eu, no Sem inário V.

Será preciso lem brar que a utilização desse gráfico se apóia na análise gram atical do ilustre

W itz do fam ilionário no Chiste e suas relações com o inconsciente?

4 4 A frase “tem o que... qualquer coisa” em francês pode ( e m esm o deve, de acordo com a nor m a

culta) com portar um ne expletivo. Por exem plo, para “ Tem o que ele venha” , diz-se “ Je crains qu’il ne vienne” , que é exatam ente o contrário de “ Je crains qu’il ne vienne pas” ( “ Tem o que ele

não venha” ) .

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