R e v is ta d a S o c ie d a d e B r a s ile ir a d e M e d ic in a T r o p ic a l 2 7 ( 4 ) : 2 5 1 - 2 5 3 , o u t- d e z , 1 9 9 4 .
NOTA PRÉVIA
ATAQUE DE POPULAÇÕES HUM ANAS POR TRIATOMÍNEOS
SILVESTRES NO AMAZONAS: UMA NOVA FORMA DE
TRANSMISSÃO DA INFECÇÃO CHAGÁSICA?
José R odrigues C oura, Toby V. B a ife tt e M arg arita A rboleda N aran jo
C o m p ro v o u -se o “a ta q u e ” d e tr ia to m in e o s s ilv e s tr e s (Rhodnius brethesij a c o lh e d o r e s d e p ia ç a v a (L e o p o ld in ia p ia ç a b a ) , em p ia ç a b a l n a lo c a lid a d e d e A c u q u a ia , n o R io P a d a u a r i, a flu e n te d o R io N e g r o , n o M u n ic íp io d e B a rc e lo s , E sta d o d o A m a zo n a s , o n d e em tr a b a lh o a n te r io r v e rific a m o s u m a p r e v a lê n c ia s o r o ló g ic a p a r a a n tic o r p o s an ti-T . c r u z i em 1 2 ,5 % d a p o p u la ç ã o n a s e d e d o m u n ic íp io , c o m um a f o r té a s s o c ia ç ã o d o c o n ta to d e s s a p o p u la ç ã o c o m tr ia to m in e o s s ilv e s tr e s , c o n h e c id o s na á r e a c o m o “p io lh o d a p ia ç a v a " , o s q u a is v iv e m p re d o m in a n te m e n te n a s p ia ç a b e ir a s . O “a ta q u e ” d e tr ia to m in e o s a p o p u la ç õ e s h u m a n a s f o i p o s s iv e lm e n te o m e c a n ism o in ic ia l d e a b o r d a g è m d o s tria to m in e o s a o h o m e m , a d a p ta n d o -s e p o s te r io r m e n te a o s e u p e r id o m ic ílio e d o m ic ílio , p rin c ip a lm e n te em á r e a s d e s m a ia d a s o u d e c e r r a d o c o m p o u c o s r e s e r v a tó r io s s ilv e s tr e s . N o c a s o d o A m a zo n a s , r e la ta d o n e ste tr a b a lh o , o s tr ia to m in e o s e sta v a m p ro v a v e lm e n te fa m in to s p o r e s c a s s e z d e o u tr o s a n im a is d e sa n g u e q u e n te p a r a s u a a lim e n ta ç ã o .
P a la v r a s -c h a v e s : A ta q u e d e tria to m in e o s. D o e n ç a d e C h a g a s. A m a zô n ia B ra sile ira .
A doença de Chagas sempre foi considerada uma enzootia silvestre na Amazônia Brasileira. A partir de 1924, quando Carlos Chagas3 confirmou como c r u z i tripanosomas encontrados por Aben- Athar em macacos da espécie S a im ir i s c iu r e u s do Estado do Pará, diversas espécies de animais silvestres entre marsupiais, quirópteros, roedores, desdentados e primatas, têm sido descritas como p o rta d o ra s do T r y p a n o s o m a c r u z i na Amazônia5 7 8 11.
Por outro lado, pelo menos 18 espécies de triatomineos já foram encontradas naquela região, nove das quais infectadas com T r y p a n o s o m a c r u z i ou “cruzi-like” 1 5 7 11.
Os riscos de endemização da doença de Chagas na A m azônia B rasileira foram recentem ente revistos4 7, inclusive os 38 casos humanos daquela região publicados até 1992. Jáo inquérito sorológico nacional realizado pela SUCAM (hoje Fundação Nacional de Saúde), entre 1975-19802, revelava
Departamento de M edicina Tropical, Instituto Oswaldo Cruz (FIO CRUZ), Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia e Serviço de Saúde da Antióquia, Colômbia.
T rabalho financiado pelo CN Pq (Proc. 520287/93-2) E n d e r e ç o p a r a c o r r e s p o n d ê n c ia '. Prof. José Rodrigues Coura. Depto. de M edicina Tropical (Pavilhão A rthur Neiva). Instituto Oswaldo C ruz (FIO C R U Z). A v. Brasil 4365,21045-900 Rio de Janeiro, RJ.
Recebido para publicação em 23/09/94.
inusitada prevalência de 1,88% de sorologia positiva na população humana do Estado do Amazonas, fato que não foi considerado na época, tendo em vista a possibilidade de reações cruzadas, migração de pessoas de regiões endêmicas e até mesmo de casos “falso- positivos” .
Considerando-se o exposto e indícios anteriores de casos humanos da infecção chagásica no município de B a rc e lo s, no R io N e g ro , E sta d o do Amazonas9 10, onde encontram os na sede do município 12,5% da população com sorologia positiva6, com forte associação da positividade dessa sorologia com o contacto da população com triatomineos silvestres, conhecidos na área como “piolho da piaçava". Isolamos por xenodiagnóstico uma cepa de T r y p a n o s o m a c r u z i em um caso com título sorológico de 1:320, e decidimos desenvolver um projeto m ultidisciplinar sobre a infecção chagásica, abrangendo a área urbana e rural daquele município.
M ATERIAL E MÉTODOS
Localização da área estudada
O município de Barcelos está localizado na microrregião do Rio Negro, no norte do Estado do Amazonas, limitando-se a leste com o Estado de Roraima, a oeste com o município de Santa Izabel,
N o ta P r é v ia . C o u r a J R , B a r r e tt T V , N a r a n jo M Á . A ta q u e d e p o p u la ç õ e s h u m a n a s p o r tr ia to m ín e o s s ilv e s tr e s n o A m a z o n a s : u m a n o v a f o r m a d e tr a n s m is s ã o d a in fe c ç ã o c h a g á s ic a ? R e v is ta d a S o c ie d a d e B r a s ile ir a d e M e d ic in a
T r o p ic a l 2 7 : 2 5 1 - 2 5 3 , o u t- d e z , 1 9 9 4 .
ao norte com a República da Venezuela e ao sul com os municípios de Novo Airão e Maraã. A sede municipal está localizada na margem direita do Rio Negro, a 490km de Manaus por via fluvial. Dentro do M unicípio de Barcelos o Rio Negro tem como principais afluentes os rios Padauari, AracáeDemeni na margem esquerda e os rios Arirará, Quiuini e Cuarés na margem direita (Figura 1).
F ig u ra 1 - L o c a liz a ç ã o d a á r e a e stu d a d a .
E studo realizado
Inicialmente, foi feito um estudo sorológico através das reações de imunofluorescência e de ELISA em uma amostra de 25 % da população da
sede do Município de Barcelos e, em seguida um estu d o sec cio n al c lín ic o , e p id e m io ló g ic o , eletrocardiográfico e xenodiagnóstico da população com sorologia positiva para infecção chagásica e planejado um estudo clínico e soroepidemiológico da população ru ral dos rio s an terio rm en te mencionados, incluindo hemocultura para T. c r u z i.
Em agosto de 1994, foram selecionadas as localidades de Tapera, Acuacu e Acuquaia, no Rio Padauari, afluente da margem esquerda do Rio Negro, paraum estudo clínico e soroepidemiológico sobre a infecção chagásica, às quais chegamos em um barco da Universidade do Amazonas, que nos servia de residência e laboratório. Nas localidades j á mencionadas, entrevistam os a população e colhemos sangue para sorologia e hemocultura para o T r y p a n o s o m a c r u z i . Em A cuquaia fom os informados de um piaçabal a aproximadamente cinco horas em canoa, via igapó, com história nítida de contato da população com triatomíneos silvestres, quando acampada no local.
Acesso e atividade no piaçabal
Após cinco horas e meia em canoa, através de um igapó, orientados por um caboclo da área, chegamos às 17:3 Oh a um acampamento onde se encontravam duas famílias de piaçabeiros (Figura 2). Em um piaçabal próximo ao local foi colocada uma armadilha de Shannon, visando a atração de
N o ta P r é v ia . C o u ra J R , B a r r e tt T V , N a r a n jo M A . A ta q u e d e p o p u la ç õ e s h u m a n a s p o r tr ia to m ín e o s s ilv e s tr e s n o A m a z o n a s : u m a n o v a f o r m a d e tr a n s m is s ã o d a in fe c ç ã o c h a g á s ic a ? R e v is ta d a S o c ie d a d e B r a s ile ir a d e M e d ic in a
T r o p ic a l 2 7 : 2 5 1 - 2 5 3 , o u t- d e z , 1 9 9 4 .
flebótom os e triatom íneos. A arm adilha foi observada de 19:30h às 23:30h por um dos autores (T .V .B .). No dia seguinte foi derrubada uma piaçabeira (L e o p o ld in ia p ia ç a b à ) e dissecadas as suas fibras em busca de triatomíneos. Foram também entrevistados os membros das duas famílias e colhido sangue p ara so ro lo g ia e hem o cu ltu ra para T r y p a n o s o m a c r u z i.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Durante a visita às três comunidades rurais de Tapera, AcuacueAcuquaia, tivemos a oportunidade de confirmar o contato dessas populações com o “piolho da piaçava” . Na última delas, depois de colher sangue de toda a população para sorologia e hemocultura como nas demais, incursionamos em canoa durante cinco horas através de um igapó, até chegarmos a um acampamento de colhedores de piaçava, onde havia duas famílias acampadas.
No início da noite, quando nos dirigimos para montar uma armadilha de Shannon no piaçabal próximo ao acampamento, o chefe de uma das famílias que nos acompanhava foi “atacado” na perna por um R h o d n iu s b r e th e s i adulto, como se fosse uma Glossina (mosca tsé-tsé). Contou-nos que em noites anteriores, sua família fora atacada várias vezes, nas redes, no próprio acampamento, obrigando-o a ficar “matando os insetos até ser vencido pelo sono” , o que ocorria principalmente nas noites quentes e sem chuva. Inclusive um dos autores (M .A .N .), foi picado por um triatomíneo em sua rede durante a noite, deixando-lhe um nódulo no rosto que permaneceu durante 10 dias.
Observando a armadilha de Shannon, de 19:30 às 23:30h, um dos autores (T.V .B.) verificou o impacto e capturou 12 R h o d n iu s b r e th e s i adultos, um dos quais a ele se dirigiu com a probócita armada para sugar. No dia seguinte ao derrubarmos e dissecarmos uma piaçabeira (L e o p o ld in ia p ia ç a b a), próxima ao local onde foi colocada a armadilha, encontramos numerosas ninfas e adultos de R. b r e th e s i entre as fibras da palmeira. O estudo desses triatomíneos está ainda sendo realizado.
De 86 soros da população das três localidades ru ra is do R io P a d a u a ri, ex am inado s po r imunofluorescência indireta 36 (41,8% ), foram positivos para anticorpos anti-r. c r u z i, inclusive um d eles te v e h e m o c u ltu ra p o sitiv a p ara
T ry p a n o s o m a c r u z i ou “c r u z i- lik e ”, em fase de identificação. Considerando apenas os 14 pacientes de Acuquaia, 6 (42,8 %), tiveram sorologia positiva e de 8 pessoas das duas famílias examinadas no p iaçab al, 5 (6 2 ,5 % ) tiv era m a reação de imunofluorescência positiva.
O “ataque” de triatomíneos a populações foi possivelmente o mecanismo inicial de abordagem dos triato m ín eo s ao hom em , ad ap tan d o -se posteriormente ao seu peridomicílio e domicílio, principalmente em áreas desmatadas ou de cerrado com poucos reservatórios silvestres. No caso do Amazonas, relatado neste trabalho, os triatomíneos estavam provavelmente famintos por escassez de outros anim ais de sangue quente p ara sua alimentação.
SUMMARY
A n "attack" o f w ild tr ia to m in e s (Rhodnius brethesij
to p ia ç a c a w o r k e r s (Leopoldinia piaçaba) is c o n firm e d in th e lo c a lity o f A c u q u a ia , a t P a d a u a r i r iv e r , a fflu en t o f R io N e g ro in th e m u n ic ip a lity o f B a r c e lo s , S ta te o f A m a z o n a s , B ra zil. A s e r o lo g ic a l p r e v a le n c e o f 1 2 .5 % f o r T. cruzi
a n tib o d ie s in h u m an p o p u la tio n , in th e c ity o f B a rc e lo s , h a s a lr e a d y b e e n d e s c r ib e d in a p r e v io u s p a p e r . A s tro n g a ss o c ia tio n b e tw e e n th e s e r o lo g ic a l p o s itiv ity a n d th e p o p u la tio n c o n ta c t w ith w ild tr ia to m in e s, k n o w n in th e a r e a a s " p ia ç a v a 's lic e ", w a s v erifie d .
K e y -w o r d s : A tta c k o f w ild tria to m in e s. C h a g a s' d is e a s e . B ra zilia n A m a zo n .
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Barrett T V , Guerreiro JCH. Os triatom íneos
(Hemiptera, Reduviidae) em relação à doença de
Chagas na Amazônia. In: Vai A L, Figliuolo R,
Feldelberg R (eds) Bases científicas para estratégia de preservação e desenvolvim ento da Amazônia: fatos eperspectivas. M onografia, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia p. 119-130, 1991.
2. Camargo M E, Silva GR, Castilho E A , Silveira AC.
Inquérito sorológico da prevalência da infecção chagásica no Brasil, 1975-1980. R evistado Instituto de M edicina Tropical de São Paulo 26:192-204,
1984.
3. Chagas C. Infection naturelle des singes du Pará
(■C ry so trix sc iu re u s) par T ry p a n o so m a c ru zi. Comptes Rendus des Séances de la Societé de B iologie et des Ses Finales 90:873-876, 1924.
4. Coura JR. The risk o f endem ic C hagas’ disease in
N o ta P r é v ia . C o u ra J R , B a r r e tt TV , N a r a n jo M A . A ta q u e d e p o p u la ç õ e s h u m a n a s p o r tr ia to m ín e o s s ilv e s tr e s n o A m a z o n a s : u m a n o v a f o r m a d e tr a n s m is s ã o d a in fe c ç ã o c h a g á s ic a ? R e v is ta d a S o c ie d a d e B r a s ile ir a d e M e d ic in a
T r o p ic a l 2 7 : 2 5 1 - 2 5 3 , o u t- d e z , 1 9 9 4 .
the Brazilian A m azon. R evista da Sociedade Brasileira de M edicina Tropical 23:67-70, 1990.
5. Coura JR, A rboledaM N , W illcoxH P F . D oença de
Chagas na Amazónia Brasileira. Revista da Sociedade Brasileira de M edicina Tropical 26(supl II): 15-17, 1993.
6. Coura JR, Arboleda M N , W illcox HDF. C hagas’
disease in the Brazilian Amazon. II. A serological survey. Revista do Instituto de Medicina T ropical de São Paulo, 1994.
7 . Coura JR, Junqueira A C V , Giordano CM , Funatsu
IRK. C hagas’ disease in the Brazilian Amazon. I. A short review. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo 36:363-368, 1994.
8. D eane LM. Animal reservoirs o f T ry p a n o so m a
c r u z i in Brazil. Revista Brasileira de Malariologia e
D oenças Tropicais 16:27-48, 1964.
9. FerraroniJJ, M elo JA N , Camargo M E. M oléstia de
Chagas na Amazônia. Ocorrência de seis casos suspeitos, autóctones, sorologicam ente positivos. Acta Amazônica 7:438-440, 1977.
10. Souza Lima M Z, Miranda Santos IKF, Souza A A , N aiff RD, C zeco Y M T, M iles M A. Caso humano de in fecção m ista por T r y p a n o s o m a c r u z i e
organismos tipo T ry p a n o so m a ra n g e li procedente
de Barcelos, Rio N egro, A m azonas. In: Programa
e Resumos do XXI Congresso da Sociedade Brasileira de M edicina Tropical São Paulo p .4 4 , 1985. 11. V alenteSA E , Valente V C . Situação atual da doença
de Chagas na Amazônia. Revista da Sociedade Brasileira de M edicina Tropical 26(supl II):68-70, 1993.
/
