DO LAMENTO AO GESTO: Uma análise de Electra nas obras de Esquilo, Sófocles e Eurípedes
Ana Lúcia Hernandez DI GIORGI*
Introdução
Não s e r i a t a l v e z exagero a d m i t i r que aden-t r a r o mundo da aden-tragédia grega é n e l e reconhe-c e r a l g u n s aspereconhe-ctos do mundo que a i n d a h o j e nos e n v o l v e . Quão breve parece s e r o tempo que d e l e nos separa quando a i n d a em suas cordas v i b r a m os mesmos sons de a n t i g a m e n t e : os lamentos das mulheres, os clamores sufocados da r e v o l t a , os refrões da d o r , do medo e do desespero.
A q u a l i d a d e da a r t e está exatamente n i s s o : c a p t a r os sons da e t e r n i d a d e , ou porque e l e s mesmos já contêm os elementos do e t e r n o , ou porque através da magia das mãos conseguimos eternizá-los e t r a n s m i t i - l o s i n a l t e r a d o s até os nossos d i a s . Reunir os acordes das paixões h u -manas numa só peça e fazê-los v i b r a r em eco e
* Aluna do Programa de Pós-GraduaçSo.
Itinerários. Araraquara 5 113-177 1993
-cadência p o r sobre as montanhas dos séculos, e i s o que a a r t e f a z .
A voz de E l e c t r a a i n d a h o j e ecoa: o seu lamento, a sua impertinência, a sua cólera em "crescendo", o seu c a n t o de glória, a i n d a que amargo e melancólico. Vem l e m b r a r e e n s i n a r às mulheres a p o s s i b i l i d a d e do a g i r , a
inexeqüibi-l i d a d e do v i v e r afônico e i n e r t e quando se inexeqüibi-l h e s c a i sobre a cabeça o infortúnio, a desgraça, a injustiça.
Captar a voz de E l e c t r a , eternizá-la, con-seguindo assim a proeza admirável de e x t i n g u i r o tempo, e ofertála monocórdica aos nossos o u -v i d o s h o j e polifônicos, e s t e f o i o grande mé-r i t o dos tmé-rês m a g i s t mé-r a i s dmé-ramatumé-rgos g mé-r e g o s : Eurípedes, Sófocles e E s q u i l o . Cada um à sua maneira, conseguiram r e a l i z a r a verdade que sé-c u l o s mais t a r d e Goethe i m o r t a l i z o u em v e r s o s : Ars longa; vita breve.
V i d a b r e v e , s i m , a de E l e c t r a . F e l i z m e n t e p a r a nós, e n t r e t a n t o , a l o n g e v i d a d e da a r t e , a anciã mais v e l h a e encantadora da humanidade.
s e r ou não s e r , e n f i m o p o n t o crítico e d o l o -r o s o da i d e n t i d a d e , do -reconhecimento nítido do
"eu". -Quem sou eu? Quem somos nós? perguntamo-nos já até com c e r t o alívio após termos perguntamo-nos p e r g u n t a d o d u r a n t e séculos, i d e n t i f i c a d a s que éramos como meros o b j e t o s dos homens, -O que sou eu? 0 que somos nós?! Notável progressão...
Mundo trágico o dos homens também. Mas ao menos um mundo sonoro, em que suas vozes se f a
-zem o u v i r , um mundo de ação, em que se sabe que seus passos levam a algum l u g a r , mesmo que a um l u g a r pouco seguro. Mundo trágico porque t r a gado p e l o monstro marinho que e l e s mesmos r e c o nhecem t e r c r i a d o . Ao menos a a u t o r i a i d e n t i f i -cada... menos trágico, p o r t a n t o , que o das mu-l h e r e s .
Simone de Beauvoir realçou em sua o b r a p i o n e i r a que até mesmo a noção do s e r humano é uma noção m a s c u l i n a . Na e t i m o l o g i a das línguas, termos como humanidade, f r a t e r n i d a d e , e até v i r t u d e , remetem aos r a d i c a i s m a s c u l i n o s de homo, f rater e vir.
Não é t a r d i a , p o r t a n t o , a intenção de a i n d a e s t u d a r a mulher do ponto de v i s t a de sua i d e n t i d a d e ; não é i m p e r t i n e n t e repensá-la e v o l t a r a r e f l e t i r sobre o seu ser e a evolução dos seu s e n t i r , pensar e a g i r através dos
da nossa história e dos nossos m i t o s , mais do que nosso m i s t e r , é nossa a l a v a n c a de p r o g r e s s o i n t e l e c t u a l e condição imprescindível à r e a l i -zação de f u t u r a s e possíveis alterações no curso das c o i s a s .
A r e l e i t u r a e a consciência de que essas v i d a s podem s e r v i - n o s como f o n t e s f r u t u o s a s de aprendizagem é ao mesmo tempo reconhecer que o homem, na m a i o r i a das vezes o seu a u t o r ou o seu intérprete, nem sempre a g i u como o seu o p o s t o ou o seu i n i m i g o , a d e s p e i t o das p a l a v r a s cáusticas de P o u l a i n de La B a r r e , c o l o c a -das a título de epígrafe na o b r a de B e a u v o i r :
"Tudo o que os homens escreveram sobre as mu-l h e r e s deve s e r s u s p e i t o , p o i s e mu-l e s são a um tempo, j u i z e p a r t e . " ( 4 )
Passadas as p r i m e i r a s f a s e s de um f e m i -nismo mais r a d i c a l e décadas bem r e c e n t e s de um feminismo n a c i o n a l que soube, para nossa f e l i -c i d a d e , r e -c u s a r os p r e -c o n -c e i t o s e os exageros que marcam o início de q u a l q u e r movimento de reação (em que pese a definição que l h e deu A l -b e r t i n a O. Costa de "feminismo -bem comport a d o " ) , a l i n h a n d o os seus passos aos já a d i a n -t a d o s passos daquele que o i n s p i r o u , podemos e n t r e g a r n o s ao p r a z e r de uma investigação e s -pecífica no campo da l i t e r a t u r a . Não que t u d o
já e s t e j a i n v e s t i g a d o . Pesquisas de campo nas d i v e r s a s áreas do conhecimento a i n d a se fazem necessárias, diríamos até que u r g e n t e s , p o i s o nosso s o l o b r a s i l e i r o a i n d a é v i r g e m , m u i t o p r e c i s a s e r p l a n t a d o e m u i t a e r v a daninha pode
v i s t a sociológico, o s e r e o a g i r dessa e s t r a -nha personagem.
MODERNAS VERSÕES DO MITO
Diremos p o r que e s t r a n h a .
Sabe-se que quanto m a i o r o g r a u de comple-x i d a d e de um s e r ou uma e n t i d a d e , t a n t o mais difícil p a r a a sua interpretação e t a n t o mais ampla a área de sua polivalência. Assim sendo, E l e c t r a , j u l g a d a p o r sua intenção e / ou ação no a s s a s s i n a t o da mãe em conseqüência do a s s a s -s i n a t o de -seu p a i , é e q u i p a r a d a em no-s-so -século por C a r l Jung ao seu contemporâneo mitológico Édipo na explicação do amor e x c e s s i v o de uma criança p o r um de seus g e n i t o r e s e o conse-qüente d e s e j o de eliminação daquele que se l h e f i g u r a como r i v a l a esse o b j e t o de amor. Nesse s e n t i d o , assim como p a r a o menino e x i s t i r i a o "complexo de Édipo", p a r a a menina e x i s t i r i a o c o r r e s p o n d e n t e "complexo de E l e c t r a " . Esse é o p a r e c e r de Jung.
Édipo", a t r i b u i n d o - o da mesma forma a ambos os sexos e e x p l i c a n d o - o como uma segunda e t a p a ou conseqüência de um complexo de castração da me-n i me-n a me-naquela i d a d e . D i z e l e em seu t r a b a l h o Se-xualidade Feminina que "temos razão ao r e j e i t a r m o s a expressão "complexo de E l e c t r a . . . " , colocando em n o t a de rodapé que a expressão f o i u t i l i z a d a p o r Jung em sua Versuch einer Darstellung de psychoanalytischen Theorie (9,p.263) e t c . . . e t c . . . Em o u t r a instância, num seu t r a b a l h o denominado A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa Mulher, após r e l a t a r que a jovem em questão p a s s a r a p e l a a t i t u d e normal característica do complexo de Édipo f e m i n i n o , remete-nos a o u t r a n o t a de rodapé onde se lê: "Não v e j o q u a l q u e r p r o g r e s s o ou l u c r o na introdução da expressão "complexo de E l e c t r a " e não advogo a sua utilização."
( 8 , p . l 9 3 )
Desta forma, passada p e l o c r i v o de d o i s grandes i n t e l e c t u a i s e c i e n t i s t a s de nosso sé-c u l o , a f i g u r a de E l e sé-c t r a , tão e s t r a n h a porque complexa, f o i a l v o dé d i f e r e n t e s i n t e r p r e tações, polêmicas e discórdias no campo da p s i -canálise.
mais acurada dos 3 t e x t o s a seu r e s p e i t o e con-cluído que as razões tenham s i d o o u t r a s . . .
Da mesma f o r m a , em nosso século, o dramat u r g o americano Eugene O' N e i l l redramatoma a dramat r i l o -g i a de E s q u i l o , c u j a se-gunda p a r t e se r e f e r e mais d i r e t a m e n t e aos s e n t i m e n t o s e a t i t u d e s de E l e c t r a , e produz a monumental peça, também uma t r i l o g i a de s e i s horas de duração, e a chama de Mourning Becomes Electra, colocando-a assim como f i g u r a p r i n c i p a l da tragédia dos A t r i d a s . Nesta peça, Argos ou Micenas (em Sófocles) é a Nova I n g l a t e r r a c o n s e r v a d o r a dos anos 50, E l e c t r a é Lavínia e E g i s t o não é um t i o , mas um p r i m o b a s t a r d o chamado Adam B r a n t , p o r quem Lavínia é apaixonada. O' N e i l l agrega, p o r t a n t o , aos três t e x t o s clássicos esse novo f a t o r , essa nova razão à p s i q u e e às a t i t u d e s de E l e c t r a .
América do S u l s a l i e n t a m a lassidão m o r a l e o abuso do poder quando em mãos das mulheres e, p o r t a n t o , que a versão f i n a l desse c o n j u n t o mítico é a de que e l a s r e p r e s e n t a r i a m "o caos e o desgoverno através da s e x u a l i d a d e enganosa e desenfreada."(3,p.252)
Séculos mais t a r d e de suposta "civilização" e t o t a l assentamento do homem na e s f e r a c u l t u r a l que e l e próprio c r i o u , Auguste Comte, segundo nos dá conta E l i z a b e t h de Souza Lobo em seu t r a b a l h o sobre "Os Usos do Gênero" d e c l a r a que há uma inadaptação r a d i c a l do sexo f e m i n i n o ao governo ainda que da própria famí-l i a , r e p e t i n d o assim em p famí-l e n o sécufamí-lo XIX a noção mítica dos povos p r i m i t i v o s .
-d o r , a r e v i s t a é uma série -de ação e a v e n t u r a , na q u a l "um monstro m a l i g n o assume o c o n t r o l e da mente do próximo p r e s i d e n t e dos Estados U n i -dos e uma a s s a s s i n a n i n j a p s i c o p a t a ( E l e k t r a ) é a única pessoa que sabe d i s s o e pode i n t e r f e -r i -r " . ( 1 1 )
A história se d e s e n r o l a num mundo c r u e l , onde as diferenças e n t r e o Bem e o Mal não são p e r f e i t a m e n t e perceptíveis. Por i s s o mesmo, pessoas p s i c o p a t a s ou c o r r u p t a s , como E l e k t r a e G a r r e t t , podem p o s s u i r uma aptidão o c u l t a p a r a o bem, embora d i r i j a m suas a t i t u d e s a f a v o r do mal. E l e c t r a quer s e r o p i o r s e r humano da T e r r a , é uma f i g u r a dionisíaca dominada p o r emoções f o r t e s , de n a t u r e z a s e x u a l e v i o l e n t a (o a u t o r sugere no n2 1 da r e v i s t a , relações i n c e s t u o s a s e n t r e e l a e o p a i , também chamado Agamêmnon como nas tragédias clássicas), pos-s u i u angúpos-stiapos-s, p o i pos-s não a c r e d i t a no bem e na justiça. De q u a l q u e r forma, suas ações pendem p a r a o bem, p a r a a manutenção da ordem. O seu i l u s t r a d o r , B i l l S i e n k i e w i c z , a d e s c r e v e como uma "força pura maior do que a v i d a " . ( 1 2 )
p a r a um estudo sobre mais e s t a versão da personagem mítica, agora s i t u a d a num mundo contemporâneo v i o l e n t o e s u r r e a l i s t a ; p a r a uma rediscussão da n a t u r e z a f e m i n i n a e da conclusão de B e a u v o i r de que a mulher "é mais e s c r a v i z a d a às espécies do que o homem, sua a n i m a l i d a d e é mais m a n i f e s t a . "( 4 ) De q u a l q u e r m a n e i r a , m a t e r i a l v a l i o s o p a r a se reforçar ou não a t e s e e x p o s t a p o r O r t n e r nesse seu a r t i g o de que
"todo s i s t e m a é uma construção de c u l t u r a ao invés de um f a t o da n a t u r e z a . A mulher não está "na r e a l i d a d e " mais próxima (ou mais d i s t a n t e ) da n a t u r e z a do que o homem, ambos têm consciência e ambos são m o r t a i s . " ( 1 3 , p . 1 1 8 )
MULHERES DIANTE DO INFORTÚNIO
Se afirmamos na INTRODUÇÃO que o mundo dos homens (no s e n t i d o mesmo de sexo m a s c u l i n o ) a i n d a h o j e é trágico, m u i t o mais m o t i v o s temos p a r a a f i r m a r que o mundo das mulheres sempre f o i e a i n d a é mais trágico do que o d e l e s . To-mando os d e v i d o s resguardos e observadas as de-v i d a s proporções, o mundo das mulheres a i n d a é o do silêncio e o da i m o b i l i d a d e .
Confirmando a verdade h o j e u n i v e r s a l i n s -tituída p e l o s estudos das relações de gêneros na área da a n t r o p o l o g i a s o c i a l , p o r sua vez c a l c a d a em observações f e i t a s p o r Lévy-Strauss em seu e n s a i o sobre a proibição do i n c e s t o e em análise a n t e r i o r e s sobre a família f e i t a s p o r Marx, E n g e l s , Parsons e o u t r o s teóricos, de que a e s f e r a em poder dos homens e a e s f e r a domés-t i c a sempre e s domés-t e v e sob o domínio das m u l h e r e s , ou como p r e f e r e d i z e r Nancy Chodorow em seu t r a b a l h o sobre a função da m a t e r n i d a d e na v i d a da mulher de que e l a s "encontram sua p r i n c i p a l posição s o c i a l d e n t r o dessa e s f e r a " ( 5 ) , ou s e j a , da e s f e r a doméstica, N i c o l e Loraux, em seu e s t u d o sobre a morte das mulheres na tragé-d i a , i n i c i a sua exposição com a transcrição tragé-de um t r e c h o dos epitáfios gravados num monumento grego e ao que t u d o i n d i c a e s c r i t o s p o r P e r i
circunscrição senão física, ao menos m o r a l , da mulher ao l a r .
Enquanto aos homens mortos em combate se d e d i c a v a um epitáfio em que t o d a a c i d a d e ou t o d a s as cidades l h e s rendiam o seu p r e i t o e a sua homenagem, às mulheres, mesmo àquelas de v a l o r , como é o caso da desconhecida N i c o p t o l e m e , e s c o l h i d a p e l a a u t o r a p o r seu e p i táfio s i n g u l a r , a única homenagem que l h e s c a -b i a e r a a dos f i l h o s e/ou a dos maridos. Melhor d i z e n d o , que homenagem p o d e r i a r e n d e r uma c i dade a alguém que t e o r i c a m e n t e m o r r i a sem f e i -t o s r e l e v a n -t e s e g l o r i o s o s , submissa ao seu d e s t i n o do l a r , morta em seu próprio l e i t o ? D i z a a u t o r a que ao menos essa e r a a única
"história possível", p o i s , com e f e i t o , esse e r a o ensinamento que se deduzia dos epitáfios r e -d i g i -d o s p o r Péricles: a única realização p a r a uma mulher e r a l e v a r sem a l a r d e uma existência exemplar de esposa e de mãe ao l a d o de um homem que v i v i a a sua v i d a de cidadão. E sem ruído. Somente p a l a v r a s a f e t u o s a s do marido e o prêmio da e t e r n i d a d e do seu nome gravado a cinzél na pedra b r u t a da História s e r i a m a sua recom-pensa: "0 tempo jamais apagará em t e u m a r i d o a
N i c o l e Loraux, no e n t a n t o , lembra-nos de um f a t o r m u i t o i m p o r t a n t e que irá f a z e r com
e s s a "história possível",esse código cívico instituído p e l o s homens r e v e l e vazamentos incô-modos e i m p r e v i s t o s : a l i t e r a t u r a ( p o r i s s o há que sempre r e s p e i t a r os a r t i s t a s e não enqua-drá-los automaticamente na c a t e g o r i a de "homens comuns"). D i z e l a : "Há, porém, um gênero cívico que, comprazendo-se i n s t i t u c i o n a l m e n t e em con-f u n d i r a con-f r o n t e i r a do m a s c u l i n o e do con-f e m i n i s m o , l i b e r a a morte das mulheres dos l u g a r e s comuns onde a c o n f i n a v a o l u t o p r i v a d o . F a l o da tragé-d i a , ontragé-de, como é vertragé-datragé-de em Herótragé-doto, as
mu-l h e r e s só morrem de morte v i o mu-l e n t a . " ( 1 0 , p . 2 4 ) A c r e s c e n t a e l a que, como a morte m a s c u l i n a é sempre p o s t a sob o s i g n o da violência e t a n t o os homens como as mulheres a sofrem i g u a l m e n t e ,
" p e l o menos p o r algum tempo, r e s t a b e l e c e - s e uma espécie de equilíbrio e n t r e os sexos."
(10,p.25)
d e v i d a s ao a s s a s s i n a t o . Quanto às m u l h e r e s , e v a l e a pena a q u i t r a n s c r e v e r o t r e c h o em que d e l a s se f a l a , "apesar de eventualmente serem m o r t a s , como C l i t e m n e s t r a , como Mêgara, é m u i t o m a i o r o número daquelas que r e c o r r e m ao suicí-d i o como a única saísuicí-da numa suicí-desgraça extrema: J o c a s t a e, a i n d a em Sófocles, D e j a n i r a , Antí-gona e Eurídice; Fedra e, também em Eurípedes, Evadne e Leda, no segundo p l a n o da Helena; no
caso das moças, o c u t e l o do sacrifício é o i s -t r u m e n -t o p r i v i l e g i a d o da mor-te, podendo-se a c r e s c e n t a r à c o o r t e das esposas s u i c i d a s o grupo de v i r g e n s s a c r i f i c a d a s , de Ifigênia a P o l i x e n a , passando p o r Maçaria e p e l a s f i l h a s de E r e c t e u . " (10,p.26)
ou versões d i f e r e n c i a d a s que l h e s deram os três a u t o r e s , como é o caso da personagem Ifigênia que, segundo Sófocles em Agamêmnon é conduzida v i o l e n t a m e n t e ao a l t a r do sacrifício, amordaçada p a r a que não se ouçam os g r i t o s , f i nalmente degolada, c o n f i g u r a n d o s e então um s a -crifício não a c e i t o p e l a vítima e que, de acordo com Eurípedes em seu t e x t o Ifigênia em Âulis, d i a n t e do p a i , anuncia que dará com t o d a a l i berdade seu corpo para s e r s a c r i f i c a d o , a p r e -sentando s i l e n c i o s a e corajosamente o pescoço ao c u t e l o dos a r g i v o s . Versões d i f e r e n t e s , p o r -t a n -t o , de uma mesma his-tória.
Embora reconhecendo a complexidade da p e r -s o n a l i d a d e e u r i p i d i a n a , a -sua ambigüidade, a t e s t a d a mesmo até p e l a tradição da crítica l i -terária, N i c o l e Loraux a f i r m a o seu grande mé-r i t o : "Maçamé-ria, P o l i x e n a , Ifigênia: l i b e mé-r t a s do p a i quando e s t e as condena à imolação, p o i s desviam p a r a o seu próprio uso a l i b e r d a d e c a -racterística do kyriós ( t u t o r ) , as v i r g e n s e u -r i p i d i a n a s se a p -r o p -r i a m do sac-rifício que se l h e s impõe como sua morte, uma morte que l h e s p e r t e n c e . " (10,p.85-86)
Antes que se passe a considerações nossas a c e r c a dessas representações de E l e c t r a e suas p o s t u r a s d i a n t e do infortúnio, é i m p e r i o s o que transcrevamos a i n d a um belíssimo t r e c h o dessa a u t o r a que, antecipadamente, porque no início de sua o b r a e não no f i n a l como e r a de se espe-r a espe-r , poespe-rém bem a pespe-ropósito do tema que e s c o l h e u p a r a a b o r d a r , ou s e j a , a morte trágica das
QuestSo de identificação, i s t o é, de coerência i n t e r n a do personagem trágico? T a l v e z . Nem p o r i s s o o desequilíbrio é menos e v i d e n t e , p r o -vando, se f o r necessário lembrá-lo, que o gê-nero trágico domina p e r f e i t a m e n t e o j o g o da confusão e conhece os l i m i t e s que não pode t r a n s p o r . Ou, para d i z e r de o u t r a maneira, que a mulher n e s t e caso está mais a u t o r i z a d a a f a -z e r - s e de homem para m o r r e r que o homem a ado-t a r , mesmo na morado-te, q u a l q u e r conduado-ta f e m i n i n a , s e j a e l a q u a l f o r . L i b e r d a d e trágica das mulhe-r e s : l i b e mulhe-r d a d e na momulhe-rte..." ( 1 0 , p . 4 2 ) .
Sublinhemos mentalmente e s t a s suas melan-cólicas p a l a v r a s f i n a i s , reservando-as porém, p a r a mais t a r d e , p o i s que antes f a z - s e m i s t e r o comentário das suas considerações a n t e r i o r e s sobre os l i m i t e s éticos da produção literária, l i m i t e s que até h o j e nos i n t r i g a m e que l a s t i -mamos, como de r e s t o t u d o que tenha r e s t r i n g i d o e a i n d a r e s t r i n g e a l i b e r d a d e de pensamento e de expressão do a r t i s t a .
De f a t o , Platão, em seus Diálogos, f o r t e m e n t e
não às de caráter mais nobre - ou a homens de condições mais v i l , a f i m de que a imitação de t a l g e n t e repugne aos que tencionamos educar p a r a serem os d e f e n s o r e s de seus país".
( 1 4/ P. 9 0 ) .
A tragédia, r e a l m e n t e , só r a r a s vezes rom-peu com os cânones m a c h i s t a s , expondo ao pú-b l i c o , como de r e s t o já e x e m p l i f i c o u N i c o l e Loraux através dos personagens A j a x , Hêmon e Meneceu, as manifestações pouco v i r i s do homem grego. Sendo-lhe vedado o suicídio, t i p o de morte e x c l u s i v a m e n t e f e m i n i n a , e o sacrifício no a l t a r , já que o seu d e v e r i a e f e t i v a r - s e no campo de b a t a l h a , r e s t a v a l h e , p e r a n t e o i n f o r -túnio, s u p o r t a r a v i d a , a a t i t u d e mais c o e r e n t e com a andreia (coragem) que a e l e e x c l u s i v a m e n t e era atribuída...
lâmina de uma espada, e no p e i t o , como c a b i a a m o r t e a um homem, quando se l h e f a c u l t a v a e s t e a t o extremo (caso de Hêmon e A J a x ) , ou através de uma p o s t u r a a l t i v a d i a n t e do a l t a r do sacrifício, como a antológica P o l i x e n a que, mesmo nas Metamorfoses de Ovídio, l i v r o X V I I I , já é d e s c r i t a como uma "virgem i n f e l i z e l e v a d a p o r sua coragem acima de seu sexo" (plus quam femina virgo), mas através da e s c o l h a da v i d a . E s c o l h e r v i v e r , s u p o r t a r a v i d a , em que pese t o d o o infortúnio, a t i t u d e m u i t o mais conforme à ética v i r i l da tragédia. P o r t a n t o , não só de l i b e r d a d e na morte, como a f i r m a N i c o l e Loraux em seu último t r e c h o a q u i t r a n s c r i t o , mas tam-bém liberdade na vida. Não só C l i t e m n e s t r a , Mêgara, Medéia e Helena como exemplos, mas também E l e c t r a . Todas escolhendo a v i d a d i a n t e dos g o l p e s dos deuses ou do d e s t i n o , t o d a s r e f r e a n d o com as próprias mãos as rédeas do c a -v a l o que as quer conduzidas para a m o r t e . Hécuba assim repreenderá Helena:
"Alguém t e supreendeu alguma vez t e n t a n d o
d e p e n d u r a r - t e em laço de suspensa corda
ou a f i a n d o algum p u n h a l , como convinha
a uma mulher de s e n t i m e n t o s mais honestos,
Medéia matará i n d i r e t a m e n t e Jasão através dos próprios f i l h o s e d i r e t a m e n t e sua nova e s -posa. Mêgara não escolherá a morte d i a n t e da l o u c u r a de seu m a r i d o , que acaba matando-a e aos seus f i l h o s d u r a n t e um de seus acessos.
Não d e i x a de t e r razão, e n t r e t a n t o , N i c o l e Loraux, p o i s essa l i b e r d a d e de v i v e r que e l a e as o u t r a s a e l a s mesmas se concederam não l h e s f o i p e r m i t i d a sem um ônus pesado e c r u e l : a pe-cha de p e r v e r s a s ou i m o r a i s .
Uma afirmação que se pode f a z e r , p o r t a n t o , a n t e r i o r e extemporânea até aos próprios t e x t o s que iremos a n a l i s a r , é que E l e c t r a , independentemente das a t i t u d e s que venha a p e r p e t r a r s e gundo os 3 dramaturgos clássicos que a r e p r e sentaram, chamou a s i a q u a l i d a d e e x c l u s i v a -mente m a s c u l i n a da andreia, e f e t i v a n d o assim a sua primeira transgressão pessoal ao códigos dos homens, ou seja, manter- se viva. No caso de C l i t e m n e s t r a , o t r a t a m e n t o de p e r v e r s a ou má, dado p e l a própria f i l h a nas três peças a n a l i s a d a s , a interpretação d u v i d o s a de O' N e i l l é o q u a l i f i c a t i v o fantasmático dé a s s a s s i n a p e l o s c r i a d o r e s da r e v i s t a que l e v a o seu nome.
-g r e d i r até o f i r a a f r o n t e i r a que d i v i d e e opõe os sexos. Sem dúvida, a tragédia t r a n s g r i d e , confunde, e s t a é a sua l e i , e s t a é a sua ordem. Mas nunca a p o n t o de s u b v e r t e r i r r e v e r s i v e l -mente a ordem cívica dos v a l o r e s , na q u a l a
mu-l h e r v i r i mu-l pode chamar-se C mu-l i t e m n e s t r a , mas não P o l i x e n a , porque e l a deve s e r ameaçadora, e não s e d u t o r a . P o l i x e n a p o d i a p e r f e i t a m e n t e o f e r e c e r seu p e i t o como um g u e r r e i r o , e o exército grego v i a n i s s o apenas o desnudamento p o r uma v i r g e m de seus s e i o s de mulher." ( 1 0 , p . l 0 8 ) .
L i b e r d a d e então, nãò só na e s c o l h a do modo de m o r r e r , menos ou mais g l o r i o s o , menos ou mais próximo ao modelo v i r i l da m o r t e , mas l i -berdade em v i v e r , em ousar c o n t r a r i a r a l e i da f e m i n i l i d a d e que d e t e r m i n a que d i a n t e da a p o r i a da i n f e l i c i d a d e se ache uma saída no nó de um laço; de, d i a n t e dos golpes dos deuses, a mu-l h e r se r e c o mu-l h e r aos seus aposentos, a q u i e t a r seu espírito, p a r a l i s a r o seu g e s t o . E l e c t r a , a exemplo da mãe, p o r razões d i v e r s a s , no ent a n ent o , sairá do escuro do aposenento p a r a a c l a -r i d a d e do campo a b e -r t o da b a t a l h a , passa-rá do lamento ao g e s t o , da inércia, p o r t a n t o , à energeia . Executará a sua segunda transgressão: agir.
A n a t u r e z a dessa ação, as razões que a i m -p u l s i o n a m , esse es-paço -preenchido então e n t r e o
versões literárias do m i t o que l e v a o seu nome, o único m i t o , ao que se sabe, chegado às nossas mãos através de três versões d i f e r e n t e s .
Assim como O ' N e i l l nos l e v a a uma d e t e r m i -nada direção, e Frank M i l l e r r e c r i a com extrema l i b e r d a d e o m i t o de E l e c t r a , podemos também revê-lo com honesta isenção de p r e c o n c e i t o s , através de um d i s t a n c i a m e n t o adequado do o b j e t o em verificação, e n f i m , t e n t a n d o a mais que ne-cessária, a imprescindível a t i t u d e de
"estranhamento" (de que já f a l a v a Todorov em suas análises literárias e C y n t h i a A. S a r t i no âmbito da a n t r o p o l o g i a dos gêneros) r e q u e r i d a à reflexão.
Antes que assumamos d i r e t a m e n t e , porém, a análise das três obras em questão, ou s e j a , As Coéforas (segunda p a r t e da t r i l o g i a denominada Oréstia) de E s q u i l o , Electra de Sófocles e Electra de Eurípedes, v a l e a pena recordarmos os f a t o s que antecedem o assunto das três peças, o pano de fundo d e s t a tragédia.
ANTECEDENTES MÍTICOS DA TRAGÉDIA
f i l h a Pélops a conselho de um oráculo, p a r a que e s t a concebesse um f i l h o que v i n g a s s e a a f r o n t a
s o f r i d o p e l o p a i . Com e f e i t o , E g i s t o , f r u t o dessa união, mata mais t a r d e o t i o A t r e u e p a r a que os A t r i d a s não mais r e i n e m sobre Argos, deve também e l i m i n a r seu p r i m o Agamêmnon.
As três peças t r a t a m do mesmo tema, ou s e j a , o pano de fundo mítico tem a mesma t e s s i -t u r a : C l i -t e m n e s -t r a e E g i s -t o ocupam o -t r o n o que p e r t e n c e r a a Agamêmnon, assassinado p o r e l e s após a sua v o l t a da Guerra de Tróia; O r e s t e s , o único f i l h o homem de C l i t e m n e s t r a e Agamêmnon, s a l v o p e l a irmã E l e c t r a quando do a s s a s s i n a t o do p a i , r e t o r n a às o c u l t a s do exílio e d e p o s i t a o f e r e n d a s sobre o túmulo p a t e r n o ; e n c o n t r a - s e com E l e c t r a e se reconhecem; após o r e c o n h e c i -mento, p o r meio de um a r d i l , Orestes mata a mãe e E g i s t o , reparando assim a injúria f e i t a a Agamêmnon.
AS três peças, tendo então, p o r cená-r i o , Acená-rgos, são compostas p e l o s memos a t o s : o r e t o r n o de O r e s t e s , o reconhecimento e n t r e os 'irmãos e o a s s a s s i n a t o de C l i t e m n e s t r a e
E g i s t o . Três são também, segundo Aristóteles na Poética, as p a r t e s do m i t o complexo: a peripécia
reconhecimento ("a passagem do i g n o r a r ao c o -nhecer " ) ; e a catástrofe ("uma ação p e r n i c i o s a e d o l o r o s a , como o são as mortes em cena, as d o r e s veementes, os f e r i m e n t o s e mais casos s e -m e l h a n t e s " ) (2,p.118-119) .
I s s o p o s t o , ou s e j a , e s t a b e l e c i d a s as a s -sociações do conteúdo dos a t o s às três p a r t e s q u a l i t a t i v a s que c o n s t i t u e m o m i t o , cabe-nos e s c l a r e c e r que sua concatenação e espetáculo f o r a m t r a b a l h a d o s de modo d i f e r e n t e p e l o s poet a s poetrágicos, poet r a poet a m e n poet o dramapoetúrgico d i f e r e n c i a d o que irá g e r a r , p o r sua v e z , m i t o s d i f e -r e n t e s . I-rão v a -r i a -r o l u g a -r s o c i a l , o a -r d i l p r e p a r a d o p a r a o a s s a s s i n a t o , sua consumação, assim como a efetuação do reconhecimento, p a r t e que sobremaneira nos interessará, p o i s é o mo-mento em que, r e v e l a n d o - s e irmãos, Orestes e E l e c t r a revelarão também o seu caráter. É a p e r s o n a l i d a d e d e s t a que nos chamará a atenção mais de p e r t o , a análise de suas razões p a r a o a s s a s s i n a t o , melhor d i z e n d o , a reparação da i n -júria f e i t a ao p a i .
mesmo f i m : conhecer o que buscam. C o n s t i t u i - s e a s s i m o reconhecimento, a s s o c i a d o à cena subseqüente, como o a t o f u n d a m e n t a l , nos três p o e t a s , p a r a que se reconheça como são e o que buscam os heróis com a vingança". ( l l , p . l- 2 )
De f a t o , é através desse a t o , dos momentos que o precedem, que conheceremos a n a t u r e z a do caráter de E l e c t r a , mas, não é só a n a t u r e z a dessa p e r s o n a l i d a d e que nos i n t e r e s s a , e s i m como e l a se t r a n s f o r m a em e n e r g i a , em ação, p o i s e s t e é um processo, uma transformação v e -t a d a à mulher segundo o código do homem grego. A mensuracão de sua participação no a r d i l , então, dimensionará c o r r e t a m e n t e e estabelecerá a diferença e n t r e os m i t o s . Teremos a i d e n t i -dade ou as i d e n t i d a d e s de E l e c t r a d e f i n i d a s , a visão de cada um dos poetas trágicos e s c l a r e c i das ou r e v i s i o n a d a à l u z da modernidade f e m i -n i -n a .
Com esse i n t u i t o , comecemos p o r a s s e n t a r como verídica e t r a d i c i o n a l à i d e o l o g i a grega a r e g r a que a t r i b u i ao homem a reparação de uma injúria f e i t a ao g lie nos. Essa a s s e r t i v a é tão c e r t a como aquela que p e r m i t i a que o homem só morresse p e l a mão do homem, sob o gládio e no
sangue derramado.
C l i t e m n e s t r a , segundo a l e n d a , e segundo a
versão de E s q u i l o na p r i m e i r a peça de sua t r i
-l o g i a , Agamêmnon, mata o marido com a s suas
próprias mãos. E l a mesma anuncia ao Coro de an-ciãos :
"Contemplo e n f i m o r e s u l t a d o favorável
de p l a n o s pacientemente p r e p a r a d o s . Estou a q u i exatamente no l u g a r
em que seguida e firmemente o g o l p e e i no cumprimento de missão apenas
minha." (6,p.71)
Embora não estejamos a q u i a a n a l i s a r tam-bém e s t a peça, cabe e s t a transgressão à r e g r a m u i t o bem aos nossos propósitos, assim como a ênfase que a r a i n h a dá à missão de matar o mar i d o como única e e x c l u s i v a m e n t e sua. 0 que t e -mos quanto a esses aspectos nas peças dos três a u t o r e s em questão?
Na peça de E s q u i l o , As Coéforas, após E l e c t r a haver r e c o n h e c i d o o irmão e demonstrado o seu
júbilo quanto a i s s o , O r e s t e s , i n i c i a n d o um l o n g o d i s c u r s o d i z :
"Por c e r t o o o n i p o t e n t e oráculo de Apoio
não falhará d e p o i s de haver determinado
que eu e n f r e n t a s s e e s t e p e r i g o até o f i m
pe i t o —
se não v i n g a s s e um d i a a morte de meu p a i
punindo os h o m i c i d a s ; o deus ordenou que eu os e x t e r m i n a s s e em retaliação e n f u r e c i d o p e l a perda de meus bens. Se eu não obedecesse, d i s s e a i n d a o deus, t e r i a de pagar um d i a a minha dívida
com a própria v i d a e n t r e terríveis s o f r i m e n t o s . " ( 6 , p . l 0 2 ) .
A p a r t i r daí, passa a e n u n c i a r os vários c a s t i g o s que l h e caberiam, i n c l u s i v e os ataques das Fúrias, também chamadas de " c a d e l a s " , deu-sas antiqüíssimas, personificações do remorso, incumbidas de v i n g a r os crimes de morte c o n t r a os consangüíneos.
Em Sófocles, também a ordem para que Ores-t e s v i n g u e a morOres-te do p a i esOres-tá c l a r a aOres-través de suas próprias p a l a v r a s l o g o no início da peça:
"Quando me d i r i g i ao santuário pítico p a r a saber como v i n g a r em seus a l g o z e s o meu p a i morto, r e c e b i ordens de
Febo:
que sem e s c o l h a , p o r a r d i s e de s u r p r e s a , eu os matasse só, com minhas próprias mãos.
Quanto a Eurípedes, embora Orestes não a n u n c i e ou r e l a t e as circunstâncias em que a mesma ordem l h e f o i dada, em três ocasiões e l e a menciona: no início da peça,
"Agora, c o n f i a n d o na p a l a v r a de uma d i v i n -dade e sem que ninguém s a i b a , v o l t o a e s t a t e r r a a r g i a n a , d i s p o s t o a d a r a morte aos a s -s a -s -s i n o -s de meu p a i . " ( 7 , p . 3 1 ) ;
no meio, ao v e r a mãe se aproximando,
ó Febo: Por que me o r d e n a s t e , p e l o orá-c u l o , a prátiorá-ca de um a t o de tamanha l o u orá-c u r a ? "
( 7 , p . 6 7 ) ; e após matar a mãe,
"ó Apoio! Tu ordenaste a vingança, t u c a u -s a -s t e male-s tremendo-s e e v i d e n t e -s ! . . . "
( 7 , p . 7 6 ) .
Além das p a l a v r a s de O r e s t e s , temos, ao f i n a l da peça, também a dos Dióscuros, ou s e j a , Castor e Pólux, irmãos de C l i t e m n e s t r a :
"Com e f e i t o , Apoio, que t e i n d u z i u à prá-t i c a do maprá-tricídio, assumirá a r e s p o n s a b i l i d a d e desse c r i m e ; . . . " ( 7 , p . 7 8 ) .
No i n t e r e s s a n t e diálogo que se t r a v a e n t r e os d o i s irmãos ao verem a mãe se aproximando
questão de f o r o íntimo. D i z e l e a i n d a , e n t r e -meado p o r p a l a v r a s de E l e c t r a :
" S e r e i culpado de matricídio... eu que ne-nhum c r i m e até agora h a v i a p r a t i c a d o ! " e
"Mas s e r e i c a s t i g a d o , se a matar!" (7,p.67)
Nas três peças, p o r t a n t o , temos explícita a r e s p o n s a b i l i d a d e de Orestes de v i n g a r o a s s a s s i n a t o do p a i . Em t o d a s , há uma ordem e x -p r e s s a de A-poio ou Febo. O que v a r i a é a cons-ciência do c a s t i g o que sobre e l e recairá, caso não o cumpra.Em E s q u i l o , o c a s t i g o c o n c r e t o através de "...visões t e r r i f i c a n t e s " f i -l h o s d e s v a i r a d o s e n t r e convu-lsões.", "...carnes u l t r a j a n t e m e n t e laceradas / p o r um irresistível aguilhão de bronze", " c r i a t u r a desprezada p o r t o d o s , sem um só amigo /" e t c . e t c . . . ( 6 , p . l 0 2 -103). Em Sófocles, ao contrário, Orestes não menciona uma vez sequer a p o s s i b i l i d a d e do cas-t i g o , o que casa m u i cas-t o bem com a coerência do t e x t o em o m i t i r ao f i n a l , s e j a a presença dos Dióscuros p r e c o n i z a n d o p r i m e i r o as a g r u r a s p o r -que e l e terá -que passar até a t i n g i r a l i b e r d a d e
" A i ! A i de mira! C r i a d a s ! Já as v e j o a l i , /como se fossem Górgonas, com roupas n e g r a s , / e n v o l t a s em m u i t a s s e r p e n t e s s i n u o s a s ! " ou "Não são s i m p l e s fantasmas que me atemorizam, / v e j o a s m u i t o bem! Elas estão a l i ! São as c a -d e l a s rábi-das -de minha mãe!", ou a i n -d a "Apoio, meu senhor / E i - l a s a l i , olhando-me, / em número incontável e sempre c r e s c e n t e ! / G o t e j a de seus o l h o s sangue repugnante!" p.136-137). Em Eurí-pedes, como já f o i d i t o , a consciência do cas-t i g o não se sabe se é d e v i d a a uma ameaça r e a l p o r p a r t e de Febo ou se e l a d e r i v a do medo ínt i m o de Oresíntes de e s ínt a r comeíntendo um a ínt o i n -j u s t o e u l t r a -j a n t e . Pode e l a a d v i r também do conhecimento implícito da r e g r a básica dos câ-nones r e l i g i o s o s da Grécia A n t i g a : a punição sempre esperada p e l o s m o r t a i s à longa seqüência de a s s a s s i n a t o s r e s u l t a n t e s da aplicação da l e i do sangue, designados até p e l a p a l a v r a sphazo e seus d e r i v a d o s , de conotação e x c l u s i v a m e n t e r e -l i g i o s a .
mesma de a j u d a r Orestes a e n f i a r o p u n h a l na g a r g a n t a da mãe? A r e s p o s t a está na medida mesma do caráter de O r e s t e s , t a l como se r e v e l a em cada uma das peças, assim como no caráter de E l e c t r a , t a l como imaginado, i n v e n t a d o p e l o s três dramaturgos gregos. É na diferença e n t r e e l e s ao r e t r a t a r e m t a i s personagens que v e r i f i -camos o t e o r da segunda transgressão de E l e c t r a às r e g r a s do mundo m a s c u l i n o .
Somente a título de rememoração, r e i t e r e mos que sua p r i m e i r a transgressão se dá na i n s -tância da e s c o l h a e n t r e a morte e a v i d a , a transgressão à l e i implícita às mulheres de que e l a s encontrassem no suicídio uma saída à sua i n f e l i c i d a d e d i a n t e da desgraça.
E l e c t r a , nas três peças, sabe que a r e s -p o n s a b i l i d a d e da vingança cabe ao irmão, e que e l a está i s e n t a d e s t a t a r e f a p e r a n t e as l e i s da religião, que é, p o r assim d i z e r , o corolário da l e i s c i v i s de então. Em E s q u i l o , d i a n t e da sua hesitação em depor no túmulo de Agamêmnon as libações ordenadas C l i t e m n e s t r a ("Que deve-r e i d i z e deve-r quando f o deve-r dedeve-rdeve-ramadeve-r/ e s t a s funédeve-reas o f e r e n d a s ? Como achar,/ n e s t e momento r e p l e x o de hesitações,/ p a l a v r a s agradáveis? Como anun-c i a r / a p r e anun-c e a meu q u e r i d o p a i ? . . . " ( 6 , p . 9 2 ) , temerosa p o r assim e s t a r conspurcando a i n d a mais a memória e a honra do p a i m o r t o , o C o r i -f e u s u g e r e - l h e que -faça as orações em nome de quem o d e i a E g i s t o , ao que e l a l h e p e r g u n t a , após pensar em s i mesma e n e l e próprio: Devo i n c l u i r em minha prece mais alguém?" ( 6 , p . 9 4 ) . O C o r i f e u é quem a lembra da existência de O r e s t e s : "Pensa em O r e s t e s , i n d a que e l e e s t e j a a u s e n t e " . (6,p.94)
A hesitação cede l u g a r imediatamente, p o -rém, à confiança d e p o s i t a d a nas sugestões do C o r i f e u , e em sua prece a Hermes i n c l u i u : "...
Que um f e l i z acaso/ t r a g a de v o l t a O r e s t e sI "
( 6 , p . 9 5 ) .
Embora não a s s o c i e imediatamente a f i g u r a do irmão à do v i n g a d o r de seu p a i , d i z e n d o :
"Que um f e l i z acaso
t r a g a de v o l t a O r e s t e s l E i s a minha súplica;
ouve, p a i ! Concede-me que eu s e j a sempre
mais sensata que minha mãe e que tenha as mãos
m u i t o mais i n o c e n t e s ! São e s t a s as preces
r e f e r e n t e s a nós, mas quanto aos i n i m i g o s
i m p l o r o que a f i n a l venha j u n t a r - s e a mim um homem para t e v i n g a r , b a s t a n t e
f o r t e
p a r a matar t e u s a s s a s s i n o s , p a i q u e r i d o ,
em j u s t a retaliação..." ( 6 , p . 9 5 ) ,
-d a r a p a r a e l e quan-do e r a a i n -d a criança. Nesta ocasião, com g r i t o de júbilo mal c o n t i d o , e x -clama:
" Ah! Bem mais p r e c i o s o da casa p a t e r n a !
Ah! Esperança a c a l e n t a d a há t a n t o tempo,
causa de t a n t a s lágrimas! C o n f i a em t i
e recuperarás o l a r onde n a s c e s t e s ! " ( 6 , p . l 0 0 ) .
Estas últimas p a l a v r a s então, f i n a l m e n t e nos r e v e l a m o que E l e c t r a espera do irmão, a função que l h e a t r i b u i , e nos dão a medida de sua participação no a t o que deverá se consumar.
A q u i , nas Coefóras de E s q u i l o , E l e c t r a não participará nem da preparação do a r d i l , nem da consumação do a s s a s s i n a t o . Orestes fará t u d o s o z i n h o , reforçada a ordem de Apoio p e l a p r o f e -c i a que per-cebe p r o f e r i d a através do sonho de C l i t e m n e s t r a : a s e r p e n t e que, c o n f u n d i d a com uma criança, l h e suga o s e i o e d e l e e x t r a i san-gue m i s t u r a d o ao l e i t e . Orestes v i r a n e s t e so-nho mais um s i n a l de sua missão:
"Cumpre-me interpretá-lo então l i t e r a l m e n t e :
se, n a s c i d a do mesmo v e n t r e de onde v i m ,
no mesmo s e i o em que me a l i m e n t e i na infância
e m i s t u r o u sangue com l e i t e enquanto a mãe
g r i t a v a p e r t u r b a d a p e l a d o r i n t e n s a , i n d i s c u t i v e l m e n t e e l a , que n u t r i u
um monstro pavoroso, terá de o f e r t a r - me seu próprio sangue, e eu,
t r a n s f o r m a n d o p o r e l a
numa terrível víbora, matá-la-ei, como posso i n f e r i r do sonho
i n s p i r a d o r . " ( 6 , p . l l 4 )
Após t e r a interpretação do seu sonho aprovada p e l o C o r i f e u e i n s t a d o p o r e l e a i n s -t r u i r os amigos como a g i r , Ores-tes d i s p e n s a E l e c t r a :
"E t u , v o l t a ao palácio imediatamente para que tudo marche como desejamos. "
( 6 , p . l l 6 )
Esta r e t o r n a ao palácio e provavelmente só voltará à cena como uma das espectadoras dos cadáveres c o b e r t o s de sua mãe e de E g i s t o , a l i d e p o s i t a d o s d i a n t e dos o l h o s de todos os c i -dadãos como prova de reparação da injúria come-t i d a c o n come-t r a o p a i Agamêmnon.
come-d i come-d o , embora p o e t i c a m e n t e f o r t e , a se come-d e come-d u z i r da belíssima p a r t e do kommós em que p a r t i c i p a com o irmão da mesma reverência ao p a i , da mesma indignação f r e n t e às circunstâncias de
seu e n t e r r o , r e a l i z a d o sem pompas e sem as hon-r a s d e v i d a s a quem v i v e u bhon-ravamente e mohon-rhon-reu "traiçoeiramente" p e l a s mãos de uma mulher. Mais conforme ao código c i v i l m a s c u l i n o , temos então uma E l e c t r a t e r n a e l a m u r i o s a que, em mo-mento algum pensou em passar da p a l a v r a ao g e s t o , de f u n d i r o pensar ao a g i r , de t r a n s g r e -d i r as r e g r a s -do v i v e r . De q u a l q u e r m a n e i r a , a i n d a l h e cabe o mérito da p r i m e i r a t r a n s -gressão .
Coerente com o seu p a p e l , e e s t a é a be-l e z a do t e x t o e s q u i be-l i a n o , está a f i g u r a f o r t e e d e c i d i d a de O r e s t e s , o que quer d i z e r que, a contrabalançar a f i g u r a frágil e quase i n e r t e de E l e c t r a , temos a personagem m a s c u l i n a e l e -vada ao g r a u máximo da decisão ( a i n d a mais que, mais do que os seus congêneres em Sófocles e Eurípedes, está Orestes c i e n t e do r i g o r dos c a s t i g o s a que está s u j e i t o ) . E l e é um p e r s o n a -gem magnífico, do ponto de v i s t a e s t r i t a m e n t e
-nagem f e m i n i n a t e r i a que completar o seu p a p e l , compensando-o com v a l o r e s que t r a d i c i o n a l m e n t e não s e r i a m tão do seu gênero.
E s q u i l o , porém, atém-se aos l i m i t e s da tragédia, i n c l u s i v e d i v u l g a n d o através do t e x t o um s u b t e x t o de desvalorização do f e m i n i n o , como
se vê p e l a s p a l a v r a s de E l e c t r a que c l a s s i f i c a a mãe de despudorada e má:
"Aht Minha mãe despudorada e má! Ousaste s e p u l t a r um grande r e i
secretamente (Ah! f u n e r a i s cruéis!), sem o p r a n t o s e n t i d o de seu povo, sem uma simples lágrima de pena!"
( 6 , p . l 0 8 )
a i n d a r e v e l a através das p a l a v r a s do Coro, t o d o um c o n t e x t o c u l t u r a l de desvalorização da mu-l h e r , do seu n i v e mu-l a m e n t o à instância a n i m a l , da sua aproximação à n a t u r e z a , assim como já f o i comentado a n t e r i o r m e n t e n e s t e t r a b a l h o :
"Mas quem será capaz de d e s c r e v e r A imensa audácia que o homem o s t e n t a e as paixões d e s a s t r o s a s das mulheres de coração sempre despudorado,
causa c o n s t a n t e de terríveis penas para os frágeis m o r t a i s ? Os laços f o r t e s
que l i g a m os c a s a i s são destruídos insidosamente p e l a fúria
de sórdidos desejos i n c o n t i d o s ,
c u j o poder b r u t a l se impõe às fêmeas, s e j a e n t r e os a n i m a i s , s e j a e n t r e os homens." ( 6 , p . l l 6 )
A s e g u i r , passa a r e l a t a r f a t o s mitológi-cos e lendas como "verdades" ("Quem p o d e r i a negarme o d i r e i t o / de r e c o r d a r agora e s t a s v e r -dades?" ( 6 , p . l l 7 ) , todas dizendo r e s p e i t o a mul h e r e s c u j o s f e i t o s possam i mul u s t r a r os c o n c e i -t o s a n -t e s e x p o s -t o s .
a sua d o r p e s s o a l p e l a morte do p a i e da c i -dade, s u j e i t a à escravidão, já que governada agora p o r "duas mulheres". V a l e a transcrição do t r e c h o :
" . . . I n d a que não desse crédito
o f e i t o se consumaria, p o i s i m p u l s o s me impelem sempre para uma conclusão: além do mandamento nítido de A p o i o , a d o r p r o f u n d a p e l a morte de meu p a i , as ameaças da pobreza detestável e s o b r e t u d o o d e s e j o de não d e i x a r
nossos concidadãos, vencedores de Tróia graças à sua r e s o l u t a v a l e n t i a ,
serem e s c r a v i z a d o s p o r duas mulheres, (de f a t o , o coração de E g i s t o é de mulher;
se e l e não sabe, l o g o ficará sabendo!)" ( 6 , p . l 0 3 )
P o r t a - v o z dos v a l o r e s cívicos de então e do peso r e l i g i o s o nas decisões de seus heróis,
E s q u i l o , através de O r e s t e s , a s s o c i a a redenção p e s s o a l de seu herói à redenção dos d i r e i t o s do cidadão, ou s e j a , da libertação do poder e s c r a -v a g i s t a das mulheres. Mesmo que se t r a t e de mais um argumento retórico do herói p a r a j u s t i
possuem." (3,p.252) e, enquanto não se d e s t r u i r o m i t o de que um d i a e l a s r e a l m e n t e e s t i v e r a m no poder, sua libertação não ocorrerá: "O m i t o do m a t r i a r c a d o é apenas a f e r r a m e n t a usada p a r a c o n s e r v a r a mulher l i g a d a à sua situação. Para libertá-la necessitamos d e s t r u i r o m i t o . " (3,p.252)
Voltemos os o l h o s agora ao t e x t o de Sófo-c l e s , devidamente Sófo-chamado Electra, p o i s n e l e a personagem f e m i n i n a tem um espaço mais g a r a n -t i d o que no -t e x -t o a n -t e r i o r , não p o r acaso cha-mado Coé foras ou "Portadoras de Oferendas", já que a i é o Coro que conduz r e l i g i o s a m e n t e os d o i s irmãos à conduta que d e l e s se espera e que a f i n a l r e s u l t a da n a t u r e z a do caráter dos d o i s , plenamente i d e n t i f i c a d o s p e l a mesma t e x t u r a dos c a b e l o s e do tamanho das pegadas (indícios s i m -bólicos dessa identificação de o b j e t i v o s ) : a reparação da injúria à morte do p a i . E a voz do Coro, não r a r a s vezes é a voz do consenso, e sendo a voz do consenso, freqüentemente intér-p r e t e do conservadorismo, do enquadramento das a t i t u d e s humanas d e n t r o do possível e do prová-v e l c u l t u r a l e ideológico da época.
lamentos e apelos aos deuses p a r a que vinguem a morte de seu p a i , clama p e l a v o l t a de O r e s t e s :
"Mandai de v o l t a o meu irmão!
Já não c o n s i g o s u p o r t a r s o z i n h a o peso das mágoas que me a f l i g e m ! " ( 1 5 , p .4 ) .
Devido ao seu temperamento i n q u i e t o e pug-naz, e n t r e t a n t o , chega um momento em que pensa que e l e j a m a i s voltará, colocando em dúvida os seus s e n t i m e n t o s em relação à morte do p a i e a situação em que e l a e Crisôtemis se encontram, ou s e j a , humilhadas como escravas d e n t r o da própria casa p a t e r n a ("como q u a l q u e r e s t r a n h a sem d i r e i t o s / sou serva no palácio de meu p a i , / v e s t i d a n e s t a roupa degradante, / de pé, em f r e n t e à mesa sem c o n v i v a s . " (15,p.7) Impa-c i e n t e m e n t e e d e s Impa-c o n f i a d a , e l a desabafa d i a n t e das p e r g u n t a s do C o r i f e u acerca de sua v o l t a :
"Ele promete v i r , mas f i c a nas promessas." ( 1 5 , p . l 0 ) A continuação desse diálogo é i n t e -r e s s a n t e e se-rvi-r-nos-á mais t a -r d e p a -r a o u t -r a s afirmações, p o r t a n t o a q u i o t r a n s c r e v e m o s :
C o r i f e u
"É m u i t o n a t u r a l haver hesitação
a n t e s de graves e grandes resoluções. E l e c t r a
— — C o r i f e u Sê c o r a j o s a ! Orestes é nobre demais p a r a d e i x a r de v i r v a l e r aos nossos amigos. E l e c t r a
C o n f i o ; se não f o s s e assim não v i v e r i a . " ( 6 , p . l l )
Será essa mesma argumentação a que usará em sua tertúlia v e r b a l com a irmã Crisôtemis que, d i f e r e n t e m e n t e d e l a , a c e i t a com resignação as o r -dens da mãe e as benesses do palácio, c o n t a n t o que não se comporte como E l e c t r a . . . É através d e l a que sabemos o grau de descontentamento que E l e c t r a provoca em E g i s t o e C l i t e m n e s t r a e os c a s t i g o s que a esperam caso não i n t e r r o m p a os seus "impropérios r e p e t i d o s " :
"Mandar-te-ão, se não mudares de a t i t u d e ,
p a r a c o n f i n s onde jamais verás o s o l ; lançada v i v a em escuríssima caverna longe d a q u i , irás c a n t a r t e u s males n e l a . " ( 1 5 , p . l 3 )
Crisôtemis sabe que a sua a t i t u d e não é a c o r r e t a , mas r e f r e a d a p e l o medo e em nome da prudência, não acompanha a irmã em suas a t i t u -des:
"Não a p r e n d e s t e , d e c o r r i d o t a n t o tempo.
que o ódio apenas n u t r e inúteis esperanças?
Sabes que também s o f r o com nossa d e s d i t a ;
m o s t r a r - l h e s - i a , se pudesse, meu
i n t e n t o , mas na desgraça é preferível s e r p r u d e n t e
e não p r e m e d i t a r quiméricas vinganças. Ah! Se pensasses de maneira
semelhante!
A n a Lúcia Hernandez D i Giorgi
írmãl
está c o n t i g o ; mas se quero v i v e r bem devo curvar-me aos d e t e n t o r e s do poder." (15,p.11-12)
Esse d i s c u r s o de Crisôtemis, tão lamentá-v e l do ponto de lamentá-v i s t a da ética f e m i n i n a , é no e n t a n t o l i t e r a r i a m e n t e magnífico p e l o que r e p r e s e n t a em nosso estudo: um autêntico p a r a -digma do comportamento normal, comum da mulher na Grécia A n t i g a e a i n d a , se assim t i v e r m o s co-ragem de a d m i t i r , no mundo trágico da grande m a i o r i a das mulheres de h o j e .
Esse descomedimento que a t r i b u e m a E l e c -t r a , não só o Coro ("Ela r e s p i r a ódio e nem se-quer l h e i m p o r t a / saber se está ou não do l a d o da justiça." (15,p.22) d i a n t e de suas p a l a v r a s à mãe que t e n t a argumentar com e l a sobre as r a -zões do a s s a s s i n a t o de Agamêmnon, como Crisôte-mis ("Peço-te p e l o s deuses! Ouve! Não t e p e r c a
/ a i n s e n s a t e z irmã; se agora me r e p e l e s , / de-p o i s me buscarás, no d i a da desgraça!"
( 1 5 , p . l 7 ) , também l h e é c o n f e r i d o p e l a mãe, que se surpreende ao o u v i - l a d i r i g i r - se a e l a com calma e a p a r e n t e sensatez: "... se me dás l i -cença, / e x t e r n a r e i minhas idéias a propósito da morte de meu p a i , do f i m de minha irmã."
Itinerários
me s e r i a tão penoso o u v i r - t e , E l e c t r a . (15,p.20)
Por que, e n t r e t a n t o , levarmos em c o n t a o j u l g a m e n t o do caráter de E l e c t r a p o r Crisóte-mis, p e l a mãe e p e l o Coro, ou s e j a , essa sua
característica do descomedimento, da destemperança, quando e l a p a r t e de alguém que a u t o p r o -clama não t e r coragem e não e s t a r com a justiça
(Crisôtemis), de quem se defende de todos p e l o f a t o de s o c i a l m e n t e não e s t a r com a razão ( C l i t e m n e s t r a , a d e s p e i t o de q u a i s q u e r o u t r o s m o t i v o s que a tenham levado ao c r i m e , a i n d a a s
sim usurpou o t r o n o a quem de d i r e i t o ( ? ) p e r -t e n c i a ) e de quem o r a apoia um personagem, o r a a p o i a o u t r o , mas ao f i n a l , j o g a , como já f o i d i t o a n t e r i o r m e n t e , a função do consenso, do v a s s a l o dos códigos r e l i g i o s o s da época que apregoavam a morte de E g i s t o e C l i t e m n e s t r a p a r a Orestes?
O r e s t e s a todo i n s t a n t e pede-lhe que se c a l e : " E s t o u a q u i , mas p r o c u r a guardar silên-c i o ! " (15,p.54);"Convém silên-c a l a r ; lá d e n t r o podem e s c u t a r - n o s . " (15,p.54);"não f a l e s m u i t o , p o i s s e r i a i n o p o r t u n o " ( 1 5 , p . 5 5 ) ; " E v i t a todas as pa-l a v r a s dispensáveis; Tem cuidado! Se não pude-r e s d o m i n a pude-r - t e , . . . " (15,p.57).
O que nos impede, no e n t a n t o , de e n c a r a r -mos esse seu reconhecido descomedimento como d e f e i t o g r a v e de caráter é que em seu cerne mora o elemento imprescindível p a r a que e l a t r a n s p o n h a a b a r r e i r a da mera t a g a r e l i c e ou da s i m p l e s lamentação: a coragem. Para que e l a r e s s a l t e aos nossos o l h o s , para que a máscara dessa E l e c t r a s e j a e s t i g m a t i z a d a p e l a p a l a v r a
"coragem", E s q u i l o a opõe à máscara da irmã, c u j o s traços são os do medo e da c o v a r d i a . Para i s s o Crisôtemis e x i s t e na tragédia.
Sófocles, no e n t a n t o , quer E l e c t r a assim. E e l a t e r i a tomado o l u g a r ao irmão caso se c o n f i r m a s s e que e l e (como f a z i a p a r t e dos p l a -nos já traçados com a a j u d a de Pílades e do P r e c e p t o r ) realmente t i v e s s e m o r r i d o d u r a n t e uma c o r r i d a de b i g a s em sua t e r r a de exílio. Antes que o irmão se r e v e l e v i v o (o que f a z me-d i a n t e a apresentação me-do s i n e t e que p e r t e n c e r a ao p a i ) , supondo a i n d a que e l e e s t i v e s s e m o r t o , e l a toma a decisão de s u b s t i t u i l o na e m p r e i -t a d a :
"Pois s e j a ! A s s u m i r e i então os r i s c o s t o d o s ,
e só! Minha resolução está tomada!" (15, p.40)
A E l e c t r a de Sófocles então, alcança em p o t e n c i a l i d a d e a e s t a t u r a do homem, só não sendo necessária essa comparação prática, ou s e j a , em termos da energeia, porque Orestes
r e c a i r i a m s o b r e o O r e s t e s de E s q u i l o , caso e l e
não l e v a s s e a cabo a sua missão.
A e s t a t u r a de E l e c t r a em Sófocles, então,
está bem acima da sua congênere em E s q u i l o , se pensarmos em termos da evolução que s i g n i f i c a
p a s s a r do s e n t i r ao f a l a r e do f a l a r à p o t e n -c i a l i d a d e do a g i r . E l e -c t r a a q u i , sem dúvida mantém-se no f a l a r (enquanto Orestes executa o a s s a s s i n a t o de sua mãe, E l e c t r a , do l a d o de f o r a do palácio, em guarda para a e v e n t u a l che-gada de E g i s t o , g r i t a : " F e r e mais, O r e s t e s ! F e r e ! " ( 1 5 ) , mas o seu a u t o r abre uma p o s s i b i l i dade ao a g i r . São as suas razões, as suas p a l a -v r a s , mais do que as de O r e s t e s , que conduzem as ações ao seu f i n a l . É a E l e c t r a que o irmão dá c o n t a de seus a t o s e a quem d e d i c a a morte da mãe:
"Não a r e c e i e s mais;
já não t e humilhará como a n t e s C l i t e m n e s t r a . " (15,p.69)
Quando E g i s t o quer se d e f e n d e r , é a i n d a e l a quem conclama;
"Não l h e p e r m i t a s , meu irmão d i z e r
mais nada,
nem d e f e n d e r - s e ! . . . "
Não! Deves matá-lo já! E a t i r a o cadáver
c o v e i r o s dos malvados dessa q u a l i d a d e ! " (15,p.69)
Orestes a c a t a :
"Anda, e depressa! Para que f a l a r ? É inútil!
Não queremos p a l a v r a s , mas a t u a v i d a ! " (15,p.69)
Assim como em E s q u i l o , também em Sófocles há um s u b t e x t o r e f e r e n t e à f e m i n i l i d a d e ou ao modo de se pensar o f e m i n i n o na Grécia A n t i g a , embora a q u i e s t e s e j a b a s t a n t e b e n e v o l e n t e a
j u l g a r m o s p o r quem o produz. Crisôtemis, p o r exemplo, que e x i s t e como c o n t r a p o n t o a E l e c t r a no pensar e no a g i r , f a z o d i s c u r s o da f r a g i l i -dade da mulher quando a irmã t e n t a convencê-la a ajudá-la em seus p l a n o s :
"Não p e r c e b e s t e que és mulher, que não és homem,
e t u a força é bem menor que a força d e l e s , (15,p.69)
R e p l i c a n d o a Orestes que, d i a n t e do seu júbilo p o r sabê-lo v i v o , pede-lhe que e l a guarde silêncio, temos o s e g u i n t e :
E l e c t r a
"Não! Por A r t e m i s sempre v i r g e m ! Não podemos t e r r e c e i o s
Orestes
Não deves esquecer, porém, que há mulheres
de e s p i r i t o pugnaz; e t u és uma d e l a s ! " (15,p.54)
Como se percebe, p o r t a n t o , coerentemente com a maneira como molda a sua E l e c t r a , Sófoc l e s não r e Sófoc h e i a a sua obra Sófocom alusões à i d e o -l o g i a e à c u -l t u r a deformada quanto ao s e r e ao a g i r f e m i n i n o s . Se quiséssemos i r mais a f u n d o , examinaríamos as razões de C l i t e m n e s t r a para o a s s a s s i n a t o do marido, t a l como e l a a expõe de m a n e i r a , p a r a nós, público, razoavelmente conv i n c e n t e . Mas não iremos a d e n t r a r e s t e t e r -r e n o . . . Ate-r-nos-emos às -razões de E l e c t -r a e na Conclusão d e s t e t r a b a l h o f a r - nos-emos e n t e n d e r melhor.
Quanto ao t e x t o de Eurípedes, como já f o i d i t o a n t e r i o r m e n t e , é o que a p r e s e n t a um passo mais avançado em relação ao caminho p e r c o r r i d o p e l a s mulheres e n t r e o lamento e o g e s t o , e n t r e a inércia e a energeia. Nele, E l e c t r a a j u d a o irmão a empurrar o punhal c o n t r a a g a r g a n t a da mãe, é e l a quem se incumbe de p l a n e j a r esse a s
s a s s i n a t o , enquanto a Orestes cabe o p l a n e j a -mento do a r d i l para E g i s t o .
"Em que c i d a d e e Bt a r a s t u , 6 meu d e s v e n t u r a d o irmão, que d e i x a s t e t u a irmã tão d i g n a de lástima na miséria da casa p a t e r n a l ! Livra-me de t a n t a d e s v e n t u r a , ó Júpiter p o s s a n t e !
Conduze t e u s passos a "Ágis, e v i n g a a morte de meu p a i ! " (7,p.32)
Quanto à sua t a r e f a , despojada que f o i de t o d o s os seus bens, i n c l u s i v e de um l e i t o da casa p a t e r n a , p o i s se e n c o n t r a morando no campo, numa humilde casa, o b r i g a d a a c a s a r - s e com um l a v r a d o r , e l a assim a encara:
"O' N o i t e e s c u r a , n u t r i z dos a s t r o s de o u r o ; sob t e u manto de sombra eu v o u , com e s t e cântaro à cabeça em busca da f o n t e . . . Não que me v e j a r e d u z i d a a tão grande miséria, mais para m o s t r a r aos deuses os crimes de E g i s t o , e e s p a l h a r , p e l o espaço a f o r a , minhas lamentações p o r meu p a i . " (7,p.30)
A p a r d e s t a a t i t u d e de denúncia pública dos c r i m e s de E g i s t o e de lamentação p e l a morte do p a i , E l e c t r a também encara como seu dever r e a l i z a r t o d o o serviço doméstico da "pobre choupana" que l h e coube através do casamento. D i r i g i n d o - s e ao marido, que em r e s p e i t o à sua nobre e x t i r p e , aos seus s e n t i m e n t o s e, segundo O r e s t e s mais t a r d e , t a l v e z p o r medo, não consu-mou no l e i t o o casamento, d i z :
p a r a mim os deuses, porque não me o f e n d e s t e em minha desgraça. Para os m o r t a i s é uma f e l i c i d a d e e n c o n t r a r quem nos c o n f o r t e no infortúnio. Cumpre-me, p o i s , mesmo sem t u a ordem a u x i l i a r - t e no t r a b a l h o enquanto puder, p a r a que possa s u p o r t a r mais f a c i l m e n t e seus penosos encargos: Tens m u i t o que aprender f o r a de casa; devo, p o r t a n t o , z e l a r p e l o s serviços
domésticos. Quando o l a v r a d o r v o l t a , é g r a t o e n c o n t r a r tudo em boa ordem em sua casa." ( 7 , p . 3 1 ) .
Aos nossos o l h o s de h o j e , esse d i s c u r s o p o d e r i a d e i x a r - n o s um sabor de conformismo, de aceitação de uma situação e de isenção de r e s p o n s a b i l i d a d e quanto à morte do p a i , se l e v a r mos também em consideração o seu d i s c u r s o a n t e -r i o -r . No e n t a n t o , como em nenhum o u t -r o t e x t o já a q u i a n a l i s a d o , um a u t o r t r a b a l h a tão bem a existência de um d i s c u r s o paradoxalmente r e a cionário (em nossos termos) e uma ação r e v o l u -cionária. Daí d i z e r - s e de Eurípedes que, dos três, t a l v e z s e j a e l e o mais humanista, ou s e j a , que tenha t r a b a l h a d o a sua obra em t o r n o das contradições do s e r humano.
l i v r e dessas injunções e x t e r i o r e s , embora tam-bém contenha elementos conservadores. Vejamos a l g u n s t r e c h o s de ambos.
Chamada p o r E l e c t r a para c u m p r i r os r i -t u a i s da purificação após o décimo d i a do nas-c i m e n t o de um suposto f i l h o seu ( o que f a z p a r t e do p l a n o para matála), C l i t e m n e s t r a e x -p l i c a à f i l h a -porque não a c e i t o u o sacrifício de Ifigênia f e i t o p e l o p a i :
"Se é verdade que e l e a matou para s a l v a r a Grécia, ou sua casa, e seus demais f i l h o s , s a c r i f i c a n d o uma p o r t o d o s , a i n d a s e r i a perdoável, mas p o r t e r s i d o Helena uma mulher impudica, e porque seu marido não soube c a s t i g a r sua traição, - p o r i s s o ! - e l e matou minha f i l h a ! No e n t a n t o , embora c r u e l m e n t e f e r i d a , não me i r r i t a r i a t a n t o , e não m a t a r i a esse homem; mas e l e v o l t o u , t r a z e n d o uma concubina, c h e i o de entusiasmo, e pô-la no seu l e i t o mantendo, assim, duas esposas na mesma cama! não nego que as mulheres sejam l a s c i v a s ; mas se um marido comete o c r i m e de d e s p r e z a r o l e i t o c o n j u g a i , é lícito que a esposa o i m i t e , angariando um amante! Contra nós, mulheres, ergue-se, porém, o opróbrio; e ninguém m a l d i z dos homens que de t u d o são causadores! Pois que! Menelau t i v e s s e s i d o r a p t a d o , s e r i a o caso de s a c r i f i c a r eu o meu f i l h o Orestes para s a l v a r Menelau, o marido de minha irmã? Como receberá t e u
Compare-se e s t a s p a l a v r a s , oportunamente, às de C l i t e m n e s t r a de Sófocles, bem semelhantes e n t r e s i . As p a l a v r a s de E l e c t r a a s e g u i r são d i g n a s de n o t a :
"Defendeste t u a causa, mãe; mas é uma causa vergonhosa, p o i s uma mulher d i g n a deve, em t u d o , ceder a seu marido." ( 7 , p.70)
Incrédula quanto às p a l a v r a s da mãe, a r g u -menta :
'... uma mulher que se r e q u i n t a em e n f e i t a r - s e na ausência do esposo, devemos desprezá-la como desonesta, p o i s não há m o t i v o para que se e x i b a assim tão b e l a , a menos que p r e m e d i t e algum d e s l i z e . " (7,p.71)'
À maneira dos s o f i s t a s , E l e c t r a prossegue com seu argumentos, mas a razão última e p r i -m o r d i a l que a conduz a a j u d a r o ir-mão e-m sua reparação repousa na situação a que f i c a r a m am-bos r e l e g a d o s : e l e , e x i l a d o , e l a , e x p u l s a do palácio, s u j e i t a a morar na pobreza e casada
com um homem i n d i g n o (não quanto à m o r a l , como até Orestes acaba p o r reconhecer, mas quanto ao seu poder econômico e posição s o c i a l ) .
Aga-mêmnon ganha proeminência e da de Sófocles, onde é o palácio o espaço s o c i a l d o m i n a n t e ) , E l e c t r a , a t o d a f e i t a lembra aos c i r c u n s t a n t e s
(o Coro) e ao espectador a sua situação de m i -s e r a b i l i d a d e :
"Vede o estado de meus cabelos e de minhas v e s t e s . Por acaso condizem com a situação de uma p r i n c e s a ? Ou se
assemelham aos de uma t r o i a n a escrava que na g u e r r a tenha caído p r i s i o n e i r a de meu p a i ? " (7,p.330)
Sem saber que o e s t r a n h o que pede hospeda-gem em sua casa é o seu irmão, e n f a t i z a a sua t r i s t e s o r t e :
"Tu bens vês o quanto e s t o u magra e a b a t i d a . "
e
" Meus cabelos foram c o r t a d o s r e n t e , ficando-me a cabeça devastada como a das bárbaras." (7,p.36)
É dessa ênfase ao seu estado de pobreza e de d e s t e r r o , de inconformismo em relação à perda do seu l u g a r s o c i a l que nasce a força de E l e c t r a p a r a a j u d a r o irmão a consumar o assas-s i n a t o . Com t o d a razão, D a i assas-s i Malhadaassas-s era assas-seu t r a b a l h o já mencionado c o n c l u i u que em Eurípe-des, somados o u t r o s f a t o r e s como a c i c a t r i z