• Nenhum resultado encontrado

A responsabilidade civil extracontratual do Estado por acto da função jurisdicional : a alínea c) do nº 1 do artigo 225º do Código Processo Penal e a absolvição, por falta de prova do arguido em prisão preventiva

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A responsabilidade civil extracontratual do Estado por acto da função jurisdicional : a alínea c) do nº 1 do artigo 225º do Código Processo Penal e a absolvição, por falta de prova do arguido em prisão preventiva"

Copied!
62
0
0

Texto

(1)

Tiago Manuel de Lourenço Afonso

A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado por acto da Função Jurisdicional: A alínea c) do n.º1 do artigo 225.º do Código Processo Penal e a absolvição, por falta de prova, do

arguido em prisão preventiva

Sob orientação do Professor Doutor Mário Aroso de Almeida

Porto Maio de 2013

(2)

1 “Se um direito tem de ser sacrificado ao interesse público, torna-se necessário que esse sacrifício não fique iniquamente suportado por uma pessoa só, mas que seja repartido pela colectividade. (…) Convertendo o direito sacrificado no seu equivalente pecuniário (justa indemnização) pago pelo erário público para o qual contribui a generalidade dos cidadãos mediante a satisfação dos impostos1”.

MARCELO CAETANO

1

In Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 10ª edição, 3ª reimpressão, revista e actualizada por Freitas do Amaral, Coimbra, Almedina, 1986, p. 1239.

(3)

2 Deixo o agradecimento ao meu caríssimo orientador Senhor Professor Doutor Mário Aroso de Almeida, por toda a disponibilidade, atenção e sensibilidade.

Devo ainda um agradecimento ao Doutor Rui Medeiros pela discussão informal e esclarecedora que contribuiu para o nortear da presente dissertação.

(4)

3

Modo de citar

As obras citadas são referidas pelo método autor/obra/data, encontrando-se as referências completas na bibliografia final.

A jurisprudência nacional é citada através da identificação do tribunal e da data da decisão e, pontualmente, com o nome do relator, encontrando-se informação mais detalhada na bibliografia final.

A jurisprudência europeia optou-se, como vem sendo prática comum, por identificar apenas as partes em juízo, encontrando-se a informação completa na bibliografia final.

(5)

4 Abreviaturas

Ac. (s) Acórdão (s)

Art. (s) Artigo (s)

CC Código Civil

CEDH Convenção Europeia dos Direitos do Homem

CJ Colectânea de Jurisprudência

CJA Cadernos de Justiça Administrativa

CPA Código de Procedimento Administrativo

CPP Código de Processo Penal

CPTA Código de Processo dos Tribunais Administrativos

CRP Constituição da República Portuguesa

DL Decreto-Lei

DR Diário da República

DUDH Declaração Universal dos Direitos do Homem

ETAF Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais

MP Ministério Público

LOPJ Ley Orgánica del Poder Judicial n.º 6/1985, de 1 de Julho

PGR Procuradoria-Geral da República

PIDCP Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

RC Revisão Constitucional

Rec. Recomendação

RFA República Federal Alemã

RLJ Revista de Legislação e Jurisprudência

RRCEE Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas

STA Supremo Tribunal Administrativo

STJ Supremo Tribunal de Justiça

StrEG Lei alemã sobre indemnização por medidas de perseguição penal

STS Sentencia del Tribunal Supremo

TC Tribunal Constitucional

TCAN Tribunal Central Administrativo Norte

TCAS Tribunal Central Administrativo Sul

TConf. Tribunal de Conflitos

TEDH Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

TJUE Tribunal de Justiça da União Europeia

TRL Tribunal da Relação de Lisboa

TRP Tribunal da Relação do Porto

TRE Tribunal da Relação de Évora

(6)

5

Resumo

A presente dissertação insere-se no âmbito do curso de Mestrado em Direito Administrativo, leccionado na Escola de Direito da Universidade Católica do Porto.

Nas versões de 1987 e 1998, o art. 225.º do CPP (“Da Indemnização por Privação da Liberdade Ilegal ou Injustificada”) fora assaz criticado pela doutrina, na medida em que restringia o seu âmbito de aplicação aos casos de culpa/erro na aplicação das medidas. Argumentava-se que a ofensa a um bem umbilicalmente ligado à dignidade da pessoa humana, como o direito à liberdade, beneficiava de uma tutela bem mais precária, repare-se, que a ofensa a bens materiais (por ex. a indemnização por expropriação pública).

O paradigma transforma-se com a aprovação da Lei n.º 48/2007, de 29 de Setembro, surgindo um novo fundamento de indemnização por privação injustificada da liberdade: a comprovação no processo criminal de que o arguido não foi agente do crime (al. c), n.º1, art. 225.º do CPP).

Desta feita, a detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação formalmente lícitas, que se revelem ex post injustificadas, por juízo absolutório, no qual se comprove a inocência do arguido, constituem o Estado, em Responsabilidade Civil Extracontratual por acto da função jurisdicional, e consequente obrigação de indemnizar os danos causados pela injusta privação da liberdade.

Contudo, cabe-nos questionar se é possível que o arguido, alvo de juízo absolutório, ao abrigo do princípio in dubio pro reo, tenha acesso a esta tutela ressarcitória?

A resposta a essa questão é realizada tendo presente os princípios da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos e, in fine, o princípio da presunção da inocência.

Em suma, os presentes trabalhos realizam uma análise crítica sob uma perspectiva jus-administrativista, do fundamento constitucional da Responsabilidade Civil do Estado e respectivas refracções infra-constitucionais, em ordem a encontrar uma solução que permita responsabilizar o Estado pelo acto jurisdicional lícito que causou danos ao arguido, cuja inocência não ficou positivamente comprovada.

(7)

6

Introdução

I - Nota prévia

Pretendemos realizar uma análise crítica à alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto ao art. 225.º do CPP que veio a prever, de forma inédita, a possibilidade de o arguido, que tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação, requerer indemnização ao Estado, desde que tenha comprovado a sua inocência ou actuado justificadamente.

Sucede que, a solução implementada suscita sérias dúvidas nomeadamente, quando estamos perante uma prisão preventiva legal que vem a revelar-se injustificada, por decisão absolutória ao abrigo do princípio in dubio pro reo.

Desta forma, no presente ensaio, propomo-nos a dar resposta às seguintes questões: Terá o arguido nas circunstâncias supra referidas, direito a indemnização, nos termos da alínea c) do n.º1 do artigo 225.º do CPP? Esta alteração legislativa viola o princípio da presunção de inocência? Qual o caminho normativo a seguir, em ordem a defender a indemnização pela simples privação da liberdade? Qual a jurisdição competente?

II - Ordem de exposição

Com vista a esclarecer as questões supra colocadas, no Ponto 1 da dissertação começar-se-á por enquadrar a temática com o fundamento constitucional da responsabilidade do Estado no exercício da função jurisdicional. De seguida, serão abordados de forma geral, os traços relevantes dos diplomas que introduziram o regime aplicável à responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas.

No Ponto 2, analisaremos o respectivo regime do art. 225.º do CPP, à luz das alterações impostas pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto. A problemática será analisada de acordo com a argumentação do Ac. do TC n.º 108/2010 e respectiva jurisprudência do TEDH, culminando com a proposta de alteração do preceito.

No Ponto 3, debruçar-nos-emos acerca da possibilidade de defesa de uma responsabilidade do Estado por acto lícito, pela simples privação injustificada da liberdade. No Ponto 4 e, num plano adjectivo, pronunciar-nos-emos acerca da jurisdição competente e do prazo de que dispõe o requerente para intentar a acção de indemnização.

(8)

7

§ 1. A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado por actos

da Função Jurisdicional

1.1. O artigo 22º da Constituição da República Portuguesa

Foi apenas no ano de 1976 que a CRP definiu os termos gerais em que se processa a responsabilidade civil do Estado. A redacção do art. 22º permanece inalterada desde a 1ª RC (1982), dispondo que “ O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.

Contudo e, sem prejuízo da convivência inicial deste normativo com o DL n.º 48051 de 21 de Novembro de 19672, a inércia do legislador fundamental quanto à redacção do referido preceito, não é sinónimo que o sentido do mesmo seja consentâneo. Aliás, com 38 anos de vigência, as considerações em torno do preceito jurídico-constitucional estão ainda longe de seguir um caminho uniforme.

1.1.1. A função jurisdicional

Em primeiro lugar, o referido normativo, ao consagrar um princípio geral em matéria de direitos fundamentais3, leva-nos inexoravelmente a considerar que se inserem neste artigo, todas as acções funcionais do Estado, designadamente, as acções no âmbito da função legislativa e função jurisdicional456.

2

Questão que será analisada infra no ponto 1.3. 3

RUI MEDEIROS, em Ensaio sobre a responsabilidade civil do estado por actos legislativos, 1992, p. 86 e Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2010, p. 472;

4

A contrario, Parecer da PGR n.º 54/82. 5

Cfr. MARIA MESQUITA, Irresponsabilidade do Estado-Juiz por incumprimento do direito da União Europeia: um acórdão sem futuro, in CJA, n.º 79, p. 41-42. VIEIRA DE ANDRADE, in Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 1987, p. 337 e nota; CARLOS CADILHA, in Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas anotado, 2011, p. 236; RUI MEDEIROS, Constituição, cit., p. 474; Rec. N.º 3/B/2004 da Provedoria de Justiça; CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, 2007, p. 430; FAUSTO QUADROS, Omissões Legislativas sobre Direitos Fundamentais, Nos dez anos da Constituição, p. 60 e ss; Em sentido contrário, entre outros, MARIA LÚCIA DA CONCEIÇÃO ABRANTES CORREIA, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do Legislador, 1998, p. 443, afirmando que o art. 22º prossegue um “outro telos” que não uma norma atributiva de um direito.

(9)

8

Não vislumbramos qualquer razão para excluir os actos jurisdicionais da responsabilidade do Estado, aliás, não existe solução mais acertada do que a de reconhecer dignidade constitucional ao princípio da responsabilidade civil do Estado por actos praticados no exercício da função jurisdicional e lesivos dos direitos dos cidadãos7.

Com efeito, da letra do mesmo não sobressai que este se refere somente a acções ou omissões praticadas no exercício de “funções administrativas” (solução sugerida por Sá Carneiro8). Mesmo recorrendo a uma interpretação literal do preceito, a expressão “funcionário”, para efeitos de responsabilidade, abrange, inevitavelmente, os “funcionários” titulares de órgãos independentes (como o são os juízes). GOMES CANOTILHO9, chega mesmo a afirmar que, “é sistemicamente contraditório e incoerente aceitar uma responsabilidade directa do estado por actos da administração stricto sensu e rejeitar in limine a mesma responsabilidade quando está em causa a administração da justiça”.

Através da leitura dos trabalhos preparatórios da RC de 198910, compreendemos que a fórmula ampla em que foi redigido o artigo 22º, naturalmente inclui todas as funções do Estado. Como refere LUÍS CATARINO11, a vocação integradora do art. 22º na responsabilidade do Estado por acto jurisdicional, não é caso único, aliás, essa vocação surge com traços idênticos em Itália, ou em Espanha, onde se tentou desde cedo, dogmática e jurisprudencialmente, a aplicação directa de disposições constitucionais.

Denote-se que a questão não foi, inicialmente, pacífica. Aliás, para esta teoria geral da responsabilidade do Estado por acto jurisdicional, contribuiu bastante a interpretação jurisprudencial do art. 22º da CRP. Os pressupostos e condições dessa obrigação de indemnizar baseavam-se na aplicação directa dos princípios da responsabilidade aquiliana.

Assim e, após desusada resistência, é actualmente pacífico na jurisprudência, salvo escassas vozes em contrário12, que o artigo 22º da CRP consagra, em termos gerais, a responsabilidade civil do estado por actos na Juris Dictio 13.

6

Cfr. em França, a Lei de 5 de Junho de 1972, em Espanha, o art. 121º da Constituição de 1978 e, em Itália, a Lei de 13 de Abril de 1988.

7

Cfr. AVEIRO PEREIRA, in Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, 2001, p. 106. 8

Uma Constituição para os anos 80 - Contributo para um projecto de Revisão, 1979; 9

Anotação ao Ac. do STA de 9 de Outubro de 1990, in RLJ, n.º 3804, 124.º, ano 1991-1992, pp. 83. 10

D.A.R., II, n.º7 RC, 21 de Abril de 1988, pp. 153;D.A.R., I, n.º 66, 20 de Abril de 1989, pp. 2301. 11

Contributo para uma reforma do Sistema Geral de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, 2002, p. 281-282.

12

Cfr. Acs. STJ de 8.03.07, de 11.09.08, de 03.12.09 e 11.10.11 e o Ac. STA de 09.10.90. 13

(10)

9

Repare-se que o Ac. STJ de 19.02.04 estendeu, de forma pioneira, a referida responsabilidade às denominadas “fautes de service praticadas no exercício da função jurisdicional”, ou seja, à Administração da Justiça.

Destarte, é clarividente que, a função judicial e o referido normativo constitucional caminham de “mãos dadas”, visto que a primeira, como função estadual, procura servir a justiça, defendendo direitos e interesses legalmente protegidos, ao passo que o segundo tem como finalidade a eliminação cabal de riscos e prejuízos que recaem sobre o contribuinte injustamente lesado que se colocou sob o guarda-chuva da justiça.

1.1.2. O acto lícito

Em segundo lugar, com repercussão directa na presente dissertação, partilhamos do entendimento, segundo a qual o presente artigo consagra um princípio geral de

responsabilidade civil do Estado, quer por acto ilícito-culposo, quer por acto

lícito/sacrifício14.

O próprio TC, nos Acs. n.º 153/90, n.º 12/05, nº 13/05 e nº 185/2010, deixa em aberto a questão, admitindo a hipótese de, em certas circunstâncias, o referido preceito garantir a responsabilidade extracontratual derivada de danos provocados por actos lícitos.

Nada neste normativo constitucional nos impõe que se limite a responsabilidade do Estado ao acto ilícito. Sem prejuízo da sua inserção sistemática e, de acordo com o argumento literal, este normativo, ao referir-se ao “prejuízo”, consagra uma responsabilidade por actos lícitos15. Aliás, repare-se que GOMES CANOTILHO16 acrescentava que “a garantia institucional traduzida na existência de uma responsabilidade directa do Estado não significa que do âmbito normativo do art. 22.º esteja excluída a responsabilidade por actos lícitos”.

14

Cfr. JORGE MIRANDA in Manual de Direito Constitucional, IV cit., p. 269; VIEIRA DE ANDRADE op. cit., p. 337; ANTÓNIO DIAS GARCIA, in Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública, 1995, p. 202; MARIA MESQUITA, in Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública, 2004, p. 113 e seguintes, e O fio da navalha: (ir) responsabilidade da Administração por facto lícito, 2004, pp. 50; BARBOSA DE MELO, Parecer, in CJ, XI, Tema 4, pp. 36; FAUSTO QUADROS, op. cit., pp. 60 e ss; Não excluindo esta responsabilidade, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA in Constituição da República Portuguesa Anotada, 1978, 1ª Edição, p. 87, mantendo uma posição híbrida, na 4ª edição (2007), op. cit., p. 430 e ss,. Em sentido contrário, DIMAS LACERDA, Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, 1985, p. 73 e ss, RUI MEDEIROS, op. cit, pp. 92 e 100-101, concluindo que “os trabalhos preparatórios do art. 22º da CRP são bastante incompletos e não esclarecem totalmente a mens legislatoris. Revelam, contudo, que o legislador constitucional, ao admitir a responsabilidade do Estado por acções ou omissões de que resulte prejuízo para outrem, não pretendeu afirmar um princípio de responsabilidade objectiva” e ainda, as exaustivas alegações do MP, no Ac. do TC n.º 12/2005.

15

Cfr. JORGE MIRANDA, Manual, cit., p. 269. 16

(11)

10

Sem prejuízo desta linha de argumentação, esta modalidade de responsabilidade objectiva poderia ser sustentada no nº 5 do artigo 27º da CRP17.

Contudo, tendo em conta que o princípio do Estado de Direito Democrático (e o princípio de igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos18) se encontra subjacente e ligado intrinsecamente ao princípio da responsabilidade civil do estado, poder-se-ia defender que o âmbito normativo-material do art. 22º da CRP não pode deixar de abranger a responsabilidade por actos lícitos e pelo risco19, pois, caso contrário, lesar-se-ia o princípio geral da reparação de danos causados a outrem20 e, no limite, deparar-nos-íamos com situações claudicantes em que a restrição ao direito de propriedade privada é alvo de maior protecção constitucional que o direito à liberdade21.

A jurisprudência constitucional converge exactamente neste sentido22, de onde se pode retirar que “ constituindo missão do Estado de direito democrático a protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça, não poderá o legislador ordinário deixar de assegurar a reparação de danos injustificados que alguém sofra em consequência de conduta de outrem”23.

Na jurisprudência nacional as opiniões caminham em sentidos divergentes.

De um lado, entre outros24, os Acs. do STJ de 12.10.00, de 10.05.05, de 29.06.05, de 07.03.06 e de 21.03.06, postulando que o art. 22º da CRP “Abrange quer a responsabilidade por actos ilícitos, quer por lícitos, quer pelo risco (…)” e que a “norma matriz que alicerça o direito indemnizatório do lesado é a do art.º 22 da Lei Fundamental, e não a do art.º 27 n.º 5 ”.

E, em sentido inverso, entre outros25, os Acs. do STJ de 11.09.08 e de 22.03.2011 que, no seu conjunto, se estribaram essencialmente nas recentes lições de GOMES

17

Cfr. RUI MEDEIROS, in Ensaio, cit., p. 106. 18

Entre outros, GOMES CANOTILHO, O problema, cit., p. 115, CARLOS CADILHA, Regime, cit., p. 360, MARCELLO CAETANO, Manual, cit., p. 1238-1239 e na doutrina francesa, ANDRÉ DE LAUBADÈRE, JEAN-CLAUDE VENEZIA e YVES GAUDEMET, Traité de droit administratif, T. 1, Droit Administratif Général, 15.ª ed., p. 993 e 1003.

19

Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., 1ª ed., pp. 185-186; embora admitam que a fórmula empregue sugere a restrição da responsabilidade aos danos causados por actos ou omissões ilícitos, Constituição, 4ª ed., cit.,, p. 169.

20

Vide a interessante crítica de RUI MEDEIROS, in Ensaio, cit., p. 109 e ss. 21

Vide infra nos pontos 2.3 e 3. 22 Cfr. Ac. TC n.º 385/05. 23 Cfr. Ac. TC n.º 444/08. 24 Vide Acs. STJ de 01.06.04, de 28.04.98, de 27.03.03. 25 Vide Acs. STJ de 03.12.98, de 09.12.99, de 06.01.2000, de 04.04.00, de 19.09.02, de 13.05.03, de 27.11.03, de 18.03.04, de 19.10.04 e de 22.01.08.

(12)

11

CANOTILHO e VITAL MOREIRA26, assinalando que “ o normativo do art. 22.º parece

não abranger a chamada responsabilidade por acto lícitos”.

In fine, não poderemos deixar de aderir à tese segundo a qual este normativo consagra um direito geral à reparação indemnizatória/compensatória no caso de lesão de direitos, liberdades e garantias, como será o caso da privação injustificada da liberdade.

1.1.1.3. A aplicabilidade directa

Em terceiro lugar, consideramos que o art. 22º da CRP, consagra um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias (art. 17º da CRP), e como tal, de acordo com o art. 18.º da CRP é directamente aplicável2728, “independentemente de mediação normativa infraconstitucional”29

, sendo susceptível de ser invocado pelos particulares para fazer valer uma eventual pretensão indemnizatória contra o Estado-Juiz.

Salvo o devido respeito, rejeitamos a tese, segundo a qual o mesmo depende da concretização de lei ordinária para se tornar líquido e poder ser invocado pelo lesado. Pelo contrário, o direito de indemnização fixado na CRP, tem o seu conteúdo e respectivas linhas essenciais determinadas, não revestindo natureza de norma programática3031.

Seguimos a linha de argumentação crítica de RUI MEDEIROS32, realçando que o artigo 22º possui uma dimensão subjectiva, surgindo não apenas enquanto princípio objectivo e orientador, mas como instrumento fundamental de protecção dos particulares. Refutamos, assim, os entendimentos seguidos pelos Acs. do TC n.º 236/04, 5/95, 12/05, 13/05 e 185/2010 que, no geral, afirmaram peremptoriamente que o art. 22º da CRP acolhia o instituto que a legislação ordinária modelara (o DL n.º 48051), ao qual conferia dignidade constitucional, justificando, por sua vez, a qualificação do referido preceito

26

Constituição, 4ª ed., cit., p. 430-431. 27

Cfr. MARIA MESQUITA, in Responsabilidade, cit., p. 115-122; TIAGO SILVEIRA, A Reforma da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, pp. 79-117 e LUÍS CATARINO, Contencioso da Responsabilidade – uma Hidra de Lerna, 2003, pp. 3-13; CATARINA VEIGA, Prisão Preventiva, Absolvição e Responsabilidade do Estado, II, 2005, pp. 459; GOMES CANOTILHO, Anotação, cit., pp. 86; a Desembargadora MARIA GOMES, na declaração de voto de vencido junta ao Ac. do TRL de 17.06.10. 28

RUI MEDEIROS, restringe a aplicabilidade directa à responsabilidade por factos ilícitos e culposos, Constituição, cit., p. 476.

29

Cfr. Ac. STJ de 19.02.04. 30

A contrario, vide art. 28º da Constituição Italiana. 31

Para a conveniência da intervenção legislativa e exequibilidade do preceito, vide LUÍS CATARINO, A Responsabilidade pela Administração da Justiça. O erro judiciário e anormal funcionamento, 1999, p. 170 e GOMES CANOTILHO, Anotação, cit., p. 84-85.

32

(13)

12

como mera norma de garantia institucional33. Por um lado, compreendemos a ratio do entendimento “reducionista”, seguido pelos acs. supra referidos, cuja intenção é impedir o risco de uma generalização das pretensões indemnizatórias contra os poderes públicos, alicerçadas na própria Constituição, procurando, ao invés, acentuar “um espaço, maior ou menor, de liberdade de conformação legal”34. Contudo e, por outro lado, sem prejuízo de a “pretensa” incompletude da norma não legitimar a sua qualificação como simples garantia institucional, o reconhecimento de um papel reservado ao legislador na densificação do conteúdo do art. 22º da CRP não é incompatível com a natureza subjectiva do mesmo. Aliás, neste sentido, foi o próprio Ac. do TC n.º 683/06, sublinhando não ser incompatível com a subjectivização do princípio da responsabilidade civil, a existência de um regime genérico de delimitação e definição dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.

Ex expositis, consideramos que o art. 22.º da CRP é directamente aplicável3536, “não apenas contra legem, mas também na ausência de lei”37

. Reconhece-se a possibilidade de o Estado ser responsabilizado por actos jurisdicionais ilícitos e lícitos, cabendo, por sua vez, ao julgador, a partir das coordenadas constitucionais e do sistema legal, a criação de normas de decisão no caso concreto.

1.2. O n.º 5 do artigo 27º da Constituição da República Portuguesa

Ao supra referido fundamento constitucional, acresce um outro, decorrente do n.º 5 do artigo 27º da CRP (introduzido na RC de 1982 – LC n.º1/82 de 30 de Setembro), cujo intuito é garantir a responsabilidade directa do Estado “nos termos em que a lei estabelecer”, em caso de privação de liberdade total ou parcial, contra o disposto na Constituição e na Lei.

Nas relações com o genérico art. 22º da CRP, sufragamos a tese segundo a qual não há incompatibilidade mas sim complementaridade entre aquele e a previsão específica do

33

Cfr. MARIA LÚCIA CORREIA, op. cit., pp. 443 e ss. Vide VIEIRA ANDRADE, op. cit., 2ª ed., p. 140. 34

Cfr. Ac. TC n. º 13/05. 35

Cfr. Acs. STJ de 31.03.04, 29.06.05, 21.03.06, 07.03.06, 08.09.09. 36

Em sentido contrário e minoritário, vide Acs. STJ de 08.03.07 e de 19.06.08. 37

RUI MEDEIROS, Constituição, cit., p. 480; LUÍS CATARINO frisa que, o art. 22º da CRP “por regra não carece de mediação ou concretização legislativa, aplicando-se mesmo na ausência de lei, contra a lei e em vez da lei, sendo inválidas as normas que o contrariem”, A Responsabilidade, cit., p. 170;

(14)

13

nº 5 do art. 27º, já que este último inciso constitucional representa um alargamento (um "majus") da responsabilidade civil do Estado já consagrada naquele anterior normativo3839. Acolhemos um entendimento segundo o qual, o referido normativo constitucional não necessita de outros incisos mais precisos para configurar esse direito/dever de indemnizar do Estado40, sendo directamente aplicável (art. 18º da CRP). Sem prejuízo de, este dever de indemnizar decorrer já do art. 22º da CRP, um entendimento contrário41, salvo o devido respeito, não merece acolhimento. Com efeito, o art. 27º n.º 5 possui um conteúdo essencialmente determinável e constitui um sinal inequívoco da garantia (de um mínimo de compressão) do direito de liberdade, quando comparado com outros direitos, liberdades e garantias42. Seria irrazoável, a sua desconsideração como direito fundamental43 e consequente preclusão do respectivo regime que lhe está subjacente (18º CRP).

Caminhando mais longe, e com repercussão para o raciocínio lógico dos presentes trabalhos, RUI MEDEIROS esclareceu que o referido normativo consagra o direito à indemnização independentemente de culpa, afirmando que “nada, nem na mens legis, nem nos trabalhos preparatórios, permite concluir que o preceito constitucional faça depender a responsabilidade do Estado da existência de culpa” 44. Aliás, o próprio Conselheiro VÍTOR GOMES45, interpretou o normativo constitucional como “não restringindo o direito a indemnização pela prisão preventiva feita “contra a Constituição e a lei” às

38

Cfr. Acs. STJ de 12.11.98 e de 11.03.03. 39

A contrario, vide Acs. STJ de 11.11.99, 26.02.04, e do TRL de 17.06.10. 40

Cfr. MOURAZ LOPES, A responsabilidade civil do estado pela privação da liberdade decorrente da prisão preventiva, 2001, p. 76; GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição, cit., p. 485, ao esclarecerem que “o facto de a Constituição remeter para a lei a regulamentação da indemnização não tolhe a aplicabilidade directa e imediata do preceito (cfr. art. 18.º-1), devendo os órgãos aplicadores do direito dar-lhe eficácia, mesmo na falta de lei.” e Anotação, cit.; RUI MEDEIROS, Ensaio, cit., p. 105; PAULA RIBEIRO DE FARIA, Indemnização por prisão preventiva injustificada – anotação ao acórdão do tribunal constitucional n.º 12/2005, Jurisprudência Constitucional, n.º5, Jan/Mar, p. 11-18; MARIA GARCIA, A responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas, 1997, p. 38; GUILHERME PEREIRA FONSECA, Declaração de voto, Ac. STA de 09.10.1990 cit., p. 82; E ainda, os Conselheiros MÁRIO TORRES e MARIA FERNANDA PALMA, nas suas luminosas declarações de voto de vencido aos Acs. do TC n.º 12/05 e n.º 13/05.

41

Sufragado pelos Acs. STA de 09.10.90, do STJ de 09.12.99 e de 04.04.00 e, tendencialmente pela jurisprudência do TC (n.º 80/94, 160/95, 12/05, 13/05, 185/10) que defende, de forma persistente, a insusceptibilidade de aplicação directa do preceito, concluindo que “a Constituição deixa deliberada e intencionalmente dependente do legislador” a efectivação do princípio/direito por aquele reconhecido, não sendo possível extrair-se do mesmo, o dever de indemnizar sempre que o processo não finde com uma condenação.

42

Cfr. LUÍS CATARINO, in Contributo, cit., p. 278, fórmulas responsabilizadoras (art. 8º e 16º da CRP) semelhantes decorriam já da CEDH (n.º 5 do artigo 5º) e, do PIDCP (artigo 9.º § 5.º) quiçá, de forma menos abrangente do que a acolhida pelo artigo 27º da CRP.

43

Cfr. Ac. TC n.º 90/84. 44

Ensaio, cit., p. 105; Neste sentido, LUÍS CATARINO, A Responsabilidade, cit., p. 355 e 380; AVEIRO PEREIRA, op. cit., p. 215; CATARINA VEIGA, op. cit.,p. 448.

45

(15)

14

hipóteses de ilicitude da imposição da medida”, já que a prisão preventiva lícita, materialmente injustificada ex post, não deixa de constituir uma lesão do direito de liberdade individual.

Não está, assim, dentro da livre disponibilidade do legislador ordinário (no art. 225º do CPP) limitar a responsabilidade do Estado aos casos típicos de prisão preventiva ilegal ou injustificada46.

Lamentavelmente, este entendimento, ao qual aderimos e, acolhido nomeadamente, pelos Acs. do STJ de 12.11.98 e de 11.03.0347, tem sido escassamente seguido pela jurisprudência48.

Repare-se que o cumprimento da injunção final do nº 5 do art. 27º da CRP só encontrou estatuição nos arts. 225.º e 226.º do CPP de 1987, sendo o primeiro alvo de sérias dúvidas de constitucionalidade49. E, apesar de a Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto que alterou o CPP, ter modificado os termos do problema, a mesma não se revelou capaz de ultrapassar as dissidências doutrinárias e jurisprudenciais sobre este tema. Aliás, o aditamento da alínea c) do n.º1 do art. 225.º, sem prejuízo de ter reconhecido a vocação do art. 27.º, n.º5 da CRP, para a consagração de uma modalidade de responsabilidade objectiva do Estado por acto da função jurisdicional, não alterou a intenção restritiva50 e condicionadora do legislador, quanto aos requisitos de concessão da respectiva indemnização51.

46

Por não constar da ordem dos presentes trabalhos, aconselhamos a leitura do voto de vencido de MARIA MANUELA GOMES, ao ac. TRL de 17.06.10, no qual realça que “os instrumentos de direito internacional que Portugal acolheu, por ratificação ou adesão, passaram a integrar o seu direito interno (…) e, o que não pode ser feito – por o estado português se ter vinculado internacionalmente e, enquanto se mantiver, - é a criação de normas que lhes sejam contrárias, quer por revogação unilateral, quer por restrições ou ampliações injustificadas e, como tal violadoras do seu espirito.”

47

A contrario, os Acs. STJ de 03.12.98, de 04.04.00, de 06.01.00, de 19.09.02, de 13.05.03, de 27.11.03, de 19.10.04, de 22.01.08 e de 11.10.11. Todos se pronunciaram no sentido de, rejeitar a responsabilidade objectiva geral do Estado por actos lícitos praticados no exercício da função jurisdicional, em termos de abranger a prisão preventiva legal, efectuada e mantida justificadamente, sem erro grosseiro.

48

Cfr. Acs. STJ de 11.11.99, 26.02.04, e TRL de 17.06.10. 49

Cfr. PAULA RIBEIRO DE FARIA, considerando que o art. 225º CPP “viola o núcleo fundamental consagrado no art. 27º, nº5, uma vez que, enquanto norma concretizadora de um conteúdo constitucional, não pode conformar livremente esse direito, tendo que respeitar a própria natureza e significado do direito sob pena de incorrer numa inconstitucionalidade por “descaracterização”, op. cit., p. 17.

50

Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição, 2007, p. 485. 51

(16)

15

1.3. O DL nº 48051 de 21 de Novembro de 1967 e a Lei nº 67/2007 de 31

de Dezembro

Prosseguindo. Na verdade, e caminhando no sentido da objectividade, posteriormente ao CC de 1966, foi publicado o DL nº 48051 de 21 de Novembro de 1967, primeiro diploma (e até recentemente) regulador da responsabilidade extracontratual do Estado pelos actos de gestão pública. Constituído por 10 artigos, consagra pela primeira vez, no seu artigo 9.º, em termos genéricos, a responsabilidade do Estado por actos lícitos (afastando o seu carácter excepcional52), no exercício da actividade administrativa. O seu fundamento radicava no princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos53 “segundo a qual uma actividade que a todos beneficia não pode operar-se à custa dos direitos de alguns, mas igualmente à custa de todos, através da caixa fiscal comum”54. Para tal bastava que estivéssemos perante um acto administrativo legal ou uma operação material lícita e que o dano verificado fosse especial e anormal.

O DL apenas se aplicava à função administrativa, precludindo a responsabilização do Estado por danos ilícita/licitamente provocados no âmbito da função legislativa e jurisdicional55.

Este diploma convocou, durante anos, inúmeras discussões sobre uma eventual inconstitucionalidade por omissão, tendo, inclusive, sido alvo de censura pelos órgãos de justiça europeia56.

Após a implementação da CRP e do seu art. 22.º (e ainda na vigência do DL n.º 48051), a jurisprudência largamente dominante ancorou neste preceito, a responsabilidade civil do Estado por acto ilícito, no exercício da função jurisdicional57. Mais longe, uma parte da jurisprudência, que estendeu a responsabilidade por acto lícito, ao exercício da juris dictio58.

Refira-se que a jurisprudência teve um papel de extrema relevância na concretização do princípio constitucional previsto no art. 22º CRP na vigência deste DL

52

Cfr. FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, vol. III, 1989, p. 516 e MARIA GLÓRIA GARCÍA, A responsabilidade, cit., p. 45.

53

Cfr. LAUBADÈRE, Traité, cit. Tomo I, 12.ª ed., p. 849-859; JEAN RIVERO, Direito Administrativo, p. 308 e 327; RENÉ CHAPUS, Droit Administratif General, Tomo I, 7.ª Ed., p. 1060 e ss; GOMES CANOTILHO, O Problema, p. 131 e ss.

54

AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, Teoria dos Actos do Governo, 1948, p. 218. 55

Cfr. Acs. STA de 9.10.90 e os Acs. STJ de 17.06.03, de 08.03.07 e de 03.12.09. 56

Cfr. Ac. TJCE de 14.10.2004, Proc. N.º C-275/03. 57

Cfr. Ac. STJ de 8.09.09. 58

(17)

16

que, em grande parte, permaneceu obsoleto e, porventura, em parte, mesmo inconstitucional5960.

Em 2008, e 30 dias após a sua publicação, entrou em vigor a Lei n.º 67/2007 de 31 de Dezembro61, aprovando, o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (RRCEE).

De carácter e âmbito global, revogou o DL n.º 48051 e, consequentemente, consagrou, ao nível infra-constitucional, um regime autónomo de responsabilidade do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional (capítulo III, arts. 12.º a 14.º), criando-se, desta forma, uma “norma de decisão” tendente a garantir um direito que a CRP no seu art. 22.º já garantira.

A forma unitária e sistemática como trata da matéria em causa, nomeadamente quanto à função jurisdicional (cuja normação era esparsa), trouxe uma evolução de maior significado à disciplina da responsabilidade civil do Estado62.

Contudo, e sem prejuízo de ser tido como uma opção arrojada, o regime contraria o princípio constitucional consagrado no art. 22º, ao precludir a responsabilidade objectiva na função jurisdicional, reportando-se apenas à responsabilidade por danos ilicitamente causados.

Felizmente, a mudança de rumo operada pelo seu art. 16.º (“Indemnização pelo Sacrifício") permitiu uma crescente objectivação da culpa na responsabilidade civil da Administração. Aliás, do teor do preceito, sem prejuízo de abranger, de certa forma, a responsabilidade por actos lícitos anteriormente regulada no art. 9º do DL n.º 48051, logo se depreende que não se limita, contudo, à actividade administrativa.63

Em suma, e preterindo demais explanações, segue-se o cerne dos presentes trabalhos, cujo regime (arts. 225º e 226º do CPP) foi expressamente salvaguardado pelo n.º1 do artigo 13º da Lei n.º 67/2007, constituindo uma excepção ao regime comum da responsabilidade por erro judiciário aí consagrada.

59

Para a defesa inconstitucionalidade superveniente, por inadequação, vide entre outros, os Acs. STJ de 06.05.86, do STA de 03.05.01 e, MARIA MESQUITA, Âmbito e pressupostos da responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional, 2009.

60

Para a defesa da subsistência do regime do DL, vide Acs. STA de 22.05.90 e 29.04.99. 61

Com a aprovação da Proposta de Lei n.º 56/X. 62

Para maiores desenvolvimentos, vide JOSÉ CARDOSO DA COSTA, Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por actos da função judicial, 2009, p. 156 e ss.

63

(18)

17

§ 2. A alínea c) do n.º1 do artigo 225º do Código de Processo Penal

e a absolvição, por falta de prova

2.1. Enquadramento histórico-sistemático do artigo 225º do CPP

I – A Liberdade

O direito de liberdade, como garante de uma “exigência ôntica” 64

, refere-se a uma liberdade física, de movimentos corpóreos. Corresponde ao direito humano mais básico e, como tal, a sua afectação não poderá ser efectuada segundo qualquer fundamento.

MOURAZ LOPES, esclarece que “se há direito fundamental cuja densificação não permite grandes divergências é absolutamente inequívoco que o direito de liberdade se encontra nessa situação”65.

Com efeito, o limiar mínimo de restrição ao conteúdo do direito de liberdade é estabelecido por alguns diplomas internacionais, como a DUDH (art. 3º), a CEDH (art. 5º) e o PIDCP (art. 9º), cabendo ao legislador penal e civil o respeito pelo regime garantístico de tutela desse direito, constitucionalmente consagrado no art. 27º da CRP.

II – Prisão Preventiva

De acordo com o nº 1 do art. 27.º o direito de liberdade não se trata de um direito absoluto ou ilimitado, podendo ser afastado, dentro de determinados limites.

Concebida como a ultima ratio das medidas de coacção previstas no CPP (art. 202.º), e aplicada em respeito aos princípios da subsidiariedade (28.º nº 2 da CRP) e da proporcionalidade (204.º do CPP), a prisão preventiva (191º a 228º do CPP) é sem margem de dúvida, aquela que possui maior potencial de eficácia de política criminal. Contudo, enquanto “mal necessário”66 terá de se rodear das maiores cautelas na sua aplicação, tendo em conta que contende com o direito humano mais linear.

Reparamos que, contrariamente ao argumentado pelo TC nos seus Acs. (nomeadamente no Ac. n.º 185/2010) e à intenção do legislador, que tende em densificar os seus pressupostos (de forma a dificultar a aplicação desta medida de coacção), os relatórios

64

Expressão retirada do Ac. TC n.º 607/03. 65

A Responsabilidade, cit., p. 71. 66

(19)

18

efectuados pela Direcção Geral dos Serviços Prisionais permitem concluir que nos últimos três anos temos assistido a uma ligeira e crescente utilização deste instituto processual penal. No final do ano de 2010 e 2011, permaneciam em prisão preventiva, respectivamente, 2307 e 2470 reclusos, e em 2012, dos cerca de 13614 reclusos, 2661 permaneciam em prisão preventiva67. Perante estes números, surge reforçada a convicção de que este instituto tem sido aplicado como mero auxiliar investigatório, e não como ultima ratio, sendo usado para suprir deficiências da investigação criminal.

Deste modo, torna-se necessário estabelecer balizas, de forma a garantir uma compensação pelos danos pessoais e sociais sofridos, especialmente nos casos em que a referida medida de coacção (licitamente aplicada) se venha a revelar injustificada (por juízo absolutório).

Neste âmbito, rege o já analisado art. 27.º nº 5 CRP, que em consonância com o art. 5.º da CEDH, estabelece que “A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesados nos termos que a lei estabelecer”.

III – O artigo 225º do CPP

Sob a epígrafe “Da Indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada”, este artigo consagra direito constitucional e direito internacional. De facto, ele concretiza e desenvolve o n.º 5 do art. 27º da CRP e o nº 5§ do art.5º da CEDH (incorporado pela nossa lei interna)6869, sendo consentâneo com o nº 5 do art. 9.º do PIDCP de 1966, segundo o qual “ Todo o individuo vítima de prisão ou de detenção ilegal terá direito a compensação”.

Situado inequivocamente no âmbito da responsabilidade do Estado por actos da função jurisdicional (art.13º da Lei n.º 67/07), o regime teve a sua previsão originária

67

Cfr. Relatórios anuais de 2010, 2011 e 2012 publicados pela Direcção-Geral dos Serviços Prisionais em

http://www.dgsp.mj.pt/; Correndo o risco de voltar a atingir os números altíssimos verificados em 1998 e 1999, respectivamente, de 4250 e 4052 reclusos em prisão preventiva, cfr. Estatísticas da Justiça, Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça, 2000, p. 252.

68

Cfr. PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário ao Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2011, p. 640; CARLOS CADILHA, Regime, cit., p. 251; MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, 2009, p. 558. Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Código de Processo Penal, Comentários e Notas Práticas, 2009, p. 582.

69

(20)

19

apenas no DL n.º 78/87 de 17 de Fevereiro7071, cuja redacção condicionava a concessão da indemnização à existência de “manifesta ilegalidade” no decretamento da medida de coacção ou de “erro grosseiro” na apreciação dos pressupostos de facto, cumulativamente com a verificação de “prejuízos anómalos e de especial gravidade”72

. Cerca de uma década depois, o DL n.º 59/98, de 25 de Agosto, e com grande aplauso doutrinário73, eliminou este último requisito74, ainda que, os arguidos alvo de privação injustificada da liberdade (por absolvição), permanecessem sem o direito a qualquer compensação.

A situação flagrante nascia exactamente neste momento. A doutrina e as suas críticas propendiam no sentido de que o legislador, ao impor tantas restrições no regime de indemnização por privação ilegítima da liberdade, discriminava negativamente o arguido, ao qual foi licitamente aplicada a prisão preventiva, mas que posteriormente veio a ser absolvido75.

A (in) constitucionalidade do preceito foi várias vezes suscitada, devido ao seu carácter excessivamente restritivo76 em relação à norma habilitante do nº 5 do art.27º da CRP, criando uma dúvida sobre a legitimidade dos limites impostos pela lei ordinária ao direito de indemnização constitucionalmente reconhecido. Contudo, nos vários acs.,

70

LUÍS CATARINO, in A Responsabilidade, cit., p. 407, falava a propósito, numa “verdadeira história de omissão legislativa, perante a inexistência de uma actividade do Estado passível de, como qualquer outra, causar prejuízos aos seus utentes”.

71

Vide as estatísticas supra descritas. MOURAZ LOPES, em 2001, adiantara que o legislador de 1987 criou a norma do 225.º do CPP, como forma de evitar situações abusivas de recorrente utilização da prisão preventiva pelos tribunais, in A Responsabilidade, cit., p. 79. Tal desiderato decorria da exposição de motivos da proposta de lei n.º 21/VI que deu origem à lei n.º 43/86, de 26 de Setembro, autorização legislativa em matéria de processo penal.

72

Curiosamente, reparámos, como LUÍSA NETO in A (Ir) responsabilidade dos Juízes, 2006., p. 586, que a qualificação dos prejuízos sofridos, constitui solução análoga à contida no art. 9.º do DL n.º 48051 relativamente à responsabilidade do Estado por actos lícitos. Aliás, LUÍS CATARINO, chega a afirmar que o legislador parecia querer abranger uma responsabilidade objectiva, acrescentando contudo, que “(…) a injusta privação da liberdade, só por si, constitui um dano especialmente grave e anormal por natureza.” in Contributo, cit., p. 279.

73

Cfr. esclarece TAIPA CARVALHO: “Inadmissivelmente, este normativo, no momento de chamar à responsabilidade do Estado, parece que esqueceu que houve sempre um bem inestimável – mas compensável – que foi violado: o bem liberdade que é sempre de particular importância (…)” em Sucessão de leis penais, 2008, p. 427.

74

Vide MÁRIO TORRES e a sua declaração (particularmente interessante) no Ac. do TC n.º 13/05, justificando que “nem sequer se vislumbram bem que penosidades acrescidas teriam que se verificar para que os prejuízos causados pela privação de um bem tão relevante como a liberdade física houvesse de ser qualificados como “anómalos e de especial gravidade”.

75

Cfr. Recs. N.º R (2006) 2 do Conselho de Ministros e n.º R (2006) 13 do Conselho de Ministros, cuja intenção era evitar que a prisão preventiva servisse como auxiliar recorrente para suprir falhas do processo de inquérito, chamando à colação o ponto 34, sob a epígrafe “Compensation” que prevê a compensação para todos os detidos que não são posteriormente condenados pelos crimes que eram acusados. Vide Recs. N.º R (80) 11 e N.º R (84) 15 do Comité de Ministros do Conselho da Europa.

76

Cfr. defende RUI MEDEIROS, in Ensaio, cit., p. 104 e ss. JOSÉ MOUTINHO in Constituição, cit., p. 653-655; CATARINA VEIGA, op. cit., p. 455, evidenciando que o sistema legal à altura vigente, “parece pretender que o cidadão pague de modo definitivo com a liberdade “a eficácia” do sistema penal sem que ao Estado caiba parte do pagamento dessa factura quando o erro não seja grosseiro (…)”.

(21)

20

nomeadamente, os n.ºs 160/95, 116/02, 12/05, 13/05, 185/10, o TC pronunciou-se no sentido da constitucionalidade da solução ordinária77, ainda que com as habituais e

luminosas vozes contra, de PAULA RIBEIRO DE FARIA78, FERNANDA PALMA,

MÁRIO TORRES79 e, mais recentemente, de VÍTOR GOMES80.

Aliás, repare-se que propugnando por um regime indemnizatório mais amplo, tal como CANOTILHO81 e CATARINA VEIGA82, a Provedoria de Justiça, em 200483, propôs que fosse expressamente consagrada, na legislação penal (como forma de evitar o descrédito da justiça penal), a imperatividade de o arguido ser ressarcido dos prejuízos sofridos em virtude de lhe ter sido aplicada (de forma legal) tal medida de coacção, no âmbito do processo penal e, pelo crime relativamente ao qual viria mais tarde a ser absolvido84.

Adivinhavam-se alterações e a consequente mudança do paradigma no âmbito da indemnização por privação injustificada da liberdade.

2.2. Análise do regime actual da alínea c) do nº1 do artigo 225º

A 29 de Agosto foi publicada a Lei n.º 48/2007, revisora do CPP e que introduziu um novo fundamento de indemnização contra o Estado: a comprovação no processo criminal de que o arguido não foi agente do crime ou que o mesmo actuou justificadamente.

Do elenco da privação de liberdade, relevante para efeitos indemnizatórios, passa a constar a obrigação de permanência na habitação85, equiparando-se às restantes medidas privativas da liberdade (prisão preventiva e detenção)86.

77 Cfr. acs. STJ de 03.12.99, de 11.11.99, de 06.01.00, de 20.10.05, de 15.02.07, 22.01.08, 19.06.08, 11.09.08, 22.06.10, 22.03.11. 78 Cfr. Op. Cit., p. 11-18. 79 Cfr. Ac. TC n.º 12/05 e n.º 13/05 80 Cfr. Ac. TC n.º 185/10. 81 In O Problema, cit., p. 220 e ss. 82 Op. cit., p. 456. 83 Cfr. Rec. n.º 3/B/2004, Proc. P-19/94. 84

Neste sentido, vide LUÍS CATARINO, A Responsabilidade, cit., p. 341 e MIGUEL PEDROSA MACHADO, Revogação da prisão preventiva, in Direito e Justiça, vol. V, 1991, p. 281 e ss.

85

Como já haviam sugerido JOÃO CAUPERS, in Responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional, 2003, p. 49, PAULA RIBEIRO DE FARIA, Indemnização, cit., p. 18 e a Provedoria de Justiça na Rec. N.º3/B/2004.

86

Tal como qualquer outra forma de “detenção” ordenada para fim processual, como por exemplo, a detenção para comparência em audiência, independentemente da natureza criminal ou não criminal do processo. Neste sentido, PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, cit., p. 641 e LUÍS CATARINO, A Responsabilidade, cit., p. 361-362. Vide, os Acs. do TEDH, Harkman v. Estónia de 11/07/06 e Fedotov v. Rússia, de 25/10/05.

(22)

21

Repare-se que até 2007, o requisito activador do regime indemnizatório, focava-se num juízo efectuado ex ante, isto é, efectuado no momento em que a medida de coacção era decretada. A partir de 15 de Setembro de 2007, o mesmo regime permite que seja indemnizado o arguido cuja medida de coacção era regular ex ante, mas que se vem a revelar injustificada ex post, por sentença absolutória, em que se comprove que não foi o agente do crime ou que actuou ao abrigo de uma causa de exclusão de ilicitude87.

Destarte, amplia-se, de forma inevitável, o leque de titulares do direito de indemnização88.

Sem prejuízo de a questão ter sido posta em causa pela primeira vez no Ac. do TC n.º 116/02, esta mudança de paradigma, ao nível dos pressupostos, realizou-se com grande aplauso da doutrina que há muito criticava o facto de o arguido (injustamente privado da liberdade) suportar de forma total e solitária, o ónus de realização da justiça89.

De qualquer forma, salienta-se o “salto” efectuado pelo legislador ao aditar a alínea c) ao nº 1 do referido preceito e a consequente consagração de uma responsabilidade do Estado por acto lícito, no âmbito da função jurisdicional9091. Esta opção passa por onerar o Estado quanto aos danos oriundos de uma inutilidade da prisão preventiva, preterindo a oneração exclusiva do arguido, que não deu causa à suspeita que sobre si recaiu e que antes surgiu como “vítima de uma inexorável lógica investigatória”92

.

Respeita-se, in fine, o princípio da igualdade na repartição de encargos públicos, equilibrando-se, de um lado, necessidades de índole processual (eficácia do sistema penal) e, por outro lado, o direito de liberdade do arguido, acautelado pela justa compensação93.

87

Cfr. Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 109/X :“(…) apesar da medida de privação da liberdade ter sido correctamente aplicada, é justo que o Estado de Direito assuma a responsabilidade pelos danos sofridos por arguidos inocentes”.

88

Neste sentido, vide a Proposta de Lei n.º 109/X e MAIA GONÇALVES, Código, cit., p. 558. 89

Vide as declarações de voto da Conselheira MARIA FERNANDA PALMA e do Conselheiro MÁRIO TORRES, aos Acs. TC n.º 12/05 e n.º 13/05, esclarecendo aquela, que “Num outro modo de abordagem, a pergunta fundamental será a de saber se é legítimo exigir-se, em absoluto e sem condições, a cada cidadão o sacrifício da sua liberdade em nome da necessidade de realizar a justiça penal, e quando tal cidadão venha a ser absolvido.”; CATARINA VEIGA, op. cit., p. 456.

90

Neste sentido, vide LUÍS CATARINO, Contributo para uma reforma do sistema geral de responsabilidade civil extracontratual do Estado: Propostas acerca da imputação por facto jurisdicional, 2001.

91

Na nossa humilde opinião, pôs termo à discussão em torno do n.º 5 do art. 27º da CRP, quanto à inclusão de uma responsabilidade objectiva do Estado. Cfr. defendia RUI MEDEIROS, Ensaio, cit., p. 105-106. 92

Qualificação de FERNANDA PALMA, op. cit. 93

Ultrapassando a questão colocada por GOMES CANOTILHO: “(…) o cerne do problema consiste em saber quando é que o sacrifício da detenção ultrapassou a álea geral originando uma desigualdade perante os encargos públicos merecedora de reparação”, in O Problema, cit., p. 220.

(23)

22

i) A jurisprudência nacional: analepse e prolepse

Antes sequer de se imaginar este aditamento legal (previsto pela Lei n.º 48/2007), era defendido maioritariamente pelo STJ que “a circunstância de alguém ser sujeito a prisão preventiva, legal e judicialmente estabelecida, e vir depois a ser absolvido em julgamento, e nessa altura libertado, por não se considerarem provados os factos que lhe eram imputados e que basearam aquela prisão, só por si, não possibilita, automaticamente, o direito à indemnização”94. Defendia-se que seria, em princípio, irrelevante (para a apreciação ou qualificação do erro grosseiro) o facto de, ex post, o detido ser absolvido ou não ser submetido a julgamento por, entretanto, haverem surgido novas provas que afastaram a sua anterior indiciação95.

Contudo, e do outro lado da barricada, de forma absolutamente pioneira, ainda que minoritária, o STJ entendera, em três cruciais arestos, que o Estado seria responsável pelos eventuais prejuízos causados ao lesado (e provados por este), originados pela aplicação de forma legal, de prisão preventiva, a que sobreveio absolvição, ainda que não tendo sido detectado erro grosseiro nos pressupostos de facto de aplicação96. Sem qualquer antecedente, alargavam, ineditamente, o regime legal estabelecido no CPP vigente à data, com base na existência de uma responsabilidade do estado por acto lícito da função jurisdicional.

Após a vigência da Lei n.º 48/2007, vários foram os arestos que se furtaram à aplicação da nova redacção (alínea c) do nº1 do art. 225º do CPP), os quais sustentaram que o referido preceito “apesar de inserido num diploma de carácter adjectivo, assume natureza eminentemente substantiva”97, constituindo uma regra de direito privado comum. Destarte, sendo a acção de indemnização sobre o Estado um processo de natureza cível, a nova formulação do art. 225.º do CPP, nos termos do art. 12.º do CC, só logra aplicação aos casos de detenção ou prisão preventiva após o início de vigência daquela Lei (afastando assim a aplicação do art. 5º do CPP)98.

94

Cfr. MOURAZ LOPES, in A Responsabilidade, cit., p. 90 e o Conselheiro HÉLDER ROQUE, na declaração de voto ao Ac. STJ de 11.10.11; E, ainda o Ac. TRL de 04.06.09, os Acs. STJ de 13.05.93, de 17.10.95, de 17.03.98, de 27.11.03, de 01.06.04, de 19.10.04, de 27.09.05, de 29.06.05, de 05.06.07 e, ainda que na vigência da Lei n.º 48/2007, os acs. de 22.01.08, de 29.01.08, de 11.09.08 e de 11.10.11.

95

Cfr. Acs. STJ de 17.10.95, de 03.12.98, de 04.04.00 e de 19.09.02. 96

Cfr. Acs. STJ de 12.11.98, de 12.10.00, de 11.03.03. 97

Cfr. MOURAZ LOPES, A responsabilidade, cit., p. 79, esclarecendo a inequivocidade da natureza substantiva do preceito. Cfr. o Ac. TC n.º 160/95.

98

Cfr. o Ac. TRL de 04.06.09, de 17.06.10 e os Acs. STJ de 22.01.08, de 29.01.08, de 11.09.08, de 19.03.09, de 22.03.11 e de 11.10.11.

(24)

23

ii) A interpretação

Questionamo-nos, atento o teor da alínea c) do nº1 do art. 225º do CPP, acerca da existência de um direito de indemnização do arguido sobre o Estado, quando aquele tenha sido absolvido, ao abrigo do princípio in dubio pro reo99.

Contudo, esta questão não pode deixar de assumir natureza retórica, tendo em conta que as regras da hermenêutica jurídica não nos permitem retirar a solução mais desejável100, ou seja, a indemnização de todas as sentenças absolutórias, com e sem prova da inocência101.Com efeito, atenta a bitola do nº 2 do art. 9º do CC, através da leitura da alínea c) do nº1 do art. 225º CPP e dos seus trabalhos preparatórios, depreendemos que a escolha pelo legislador pelo conceito “comprovar”, quis significar que o direito de indemnização apenas está reservado ao arguido que tenha sido absolvido e cujas dúvidas acerca da inocência tenham sido totalmente dissipadas102.

A contrario, é perceptível, de forma não menos dúbia, que o tribunal103 estará autorizado a recusar a indemnização, sempre que o arguido não tiver comprovado positivamente a sua inocência e que, como tal, não tenha afastado as suspeitas de culpabilidade que sobre si recaem104 (por exemplo, quando absolvido ao abrigo do princípio in dubio pro reo ou até em caso de prescrição do procedimento criminal).

Destarte, não poderemos deixar de expressar a nossa censura a esta medida de política legislativa.105.

99

Para a distinção entre este e o princípio da presunção da inocência vide FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Vol. I, 1974, p. 213.

100

Neste sentido, veja-se em Espanha, a STS de 27.01.89, que entendeu não ser viável a interpretação extensiva do âmbito do art. 294 da LOPJ, de modo a abranger as absolvições por falta de prova da participação no crime, restando ao interessado instar uma declaração de erro judicial, ao abrigo do art. 293.º da LOPJ.

101

Cfr. defende GERMANO MARQUES DA SILVA, in Curso de Processo Penal, vol. II, 4ª Ed., 2008, p. 367. O autor afirma que a lei não exige a prova da inocência, argumentando que a inocência presume-se até ser afastada pela condenação; e LENILMA MEIRELLES, in Sentença Absolutória em Prisão Preventiva: Vinculação do Estado ao Dever de Indemnizar, 2007, p. 77 e 78, considerando que “ambas as situações (absolvição com e sem intermédio do princípio in dubio pro reo) se equivalem, pois fazem da mesma lógica elementar”.

102

Neste sentido, EVA CALVETE TOMÉ, in A Indemnização por Privação Ilegítima da Liberdade, 2010, p. 54 e CARLOS CADILHA, Regime, cit., p. 254.

103

Sobre a jurisdição competente, vide infra, ponto 4.1. 104

Cfr. PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, cit., p. 641. 105

Sobretudo se tivermos em conta a lição de GOMES CANOTILHO, in O Problema, cit., p. 212:“a inocência, posteriormente demonstrada, virá revelar, sim, um sacrifício individual e grave, absolutamente inexigível sem compensação. (…) a sua inocência não perturba a legitimidade do acto jurisdicional, mas torna obrigatória a atribuição ao lesado ou herdeiros de uma justa indemnização”.

(25)

24

2.3. O juízo de (in) constitucionalidade e o princípio in dubio pro reo

2.3.1. Análise ao acórdão do TC n.º 185/2010 de 12 de Maio de 2010

I - A questão não é nova, quer no âmbito da jurisprudência do STJ106, quer da jurisprudência do TC (Acs. n.º 116/02, n.º 12/05, n.º 13/05).

A norma da alínea c) do nº 1 do art. 225º do CPP é colocada em causa, no Ac. do TC n.º 185/2010, por violação do princípio da presunção de inocência107 (nº 2 do art. 32º da CRP). Lamentavelmente, o TC considerou que o referido preceito não sofre de inconstitucionalidade, quando interpretado no sentido de não se considerar injustificada a prisão preventiva a um arguido que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo.

Contudo, o infeliz acórdão ilude a questão principal da violação da presunção da inocência108. Senão vejamos.

Em primeiro lugar, apesar de o TC retirar correctamente a principal questão - por conta de quem deve correr o risco de, verificados os pressupostos legais, o indivíduo ser sujeito a prisão preventiva - 109110 o mesmo Tribunal, escusou-se a esta ponderação de valores, concluindo, pauperrimamente, que não dispunha de condições para a efectuar.

Ora, e sem prejuízo de esta questão ter sido ultrapassada (de forma parcial) pelo legislador ordinário, com a consagração da alínea c) do n.º1 do art. 225.º da CRP,

106

Cfr. Acs. STJ de 11.09.08 e de 11.10.11. 107

Por não constituir o objecto do nosso trabalho, não iremos abordar o instituto jurídico-constitucional e as respectivas refracções jurídico-penais. Atemo-nos à sua relação com o cerne dos nossos trabalhos.

108

Cfr. PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário, cit., p. 643 e o Conselheiro VÍTOR GOMES, na sua declaração de voto ao Ac. TC n.º 185/2010.

109

Questão que se colocava com maior acuidade nas anteriores redacções do art. 225.º, na medida em que, não existia qualquer razão válida para a indemnização por privação injustificada da liberdade ficar condicionada à existência de erro grosseiro. Invocavam-se pertinentes argumentos (aos quais aderimos inteiramente), denominadamente: o facto de tal restrição não se verificar na indemnização por condenação injusta (462.º do CPP) e, de forma mais flagrante, em caso de danos causados na propriedade privada, por acto lícito da Administração Pública, tal como sucede, na indemnização por requisição ou expropriação pública (n.º2 do art. 62.º da CRP), na intervenção e apropriação pública dos meios de produção (83.º da CRP) e, no caso de inexecução lícita de sentenças pelos TAF (arts. 163.º e 166.º do CPTA). Neste sentido, o Conselheiro VÍTOR GOMES, op. cit., MARIA PAULA RIBEIRO DE FARIA, Indemnização, cit., GOMES CANOTILHO, Anotação, cit., p. 83, GLÓRIA GARCIA, op cit., p. 41, os Conselheiros MÁRIO TORRES e MARIA FERNANDA PALMA, op. cit., a Desembargadora MARIA MANUELA op. cit., JOSÉ MOUTINHO, Constituição, cit., p. 654, RUI MEDEIROS, Ensaio, cit., p. 106 e LUÍS CATARINO, Contributo, cit., p. 274.

110

A este propósito, JOÃO CAUPERS, ironizava, de forma lapidar: “Parece claro que o nosso sistema se preocupa mais em compensar a ofensa da propriedade do que em reparar a privação da liberdade. Enfim, princípios…”, in Responsabilidade, cit., p. 48.

(26)

25

consideramos que inexiste uma exigência, sem limites, de um “dever de cidadania”111 que implique ao cidadão suportar, de forma solitária, de qualquer tipo de restrição à liberdade (ainda que, com fundamento legal) em detrimento da segurança pública e das bitolas do processo penal112113.

Em segundo lugar, o TC furta-se à discussão da bondade do regime de responsabilidade civil do estado por privação da liberdade injustificada, sob o argumento de “afectar sensíveis equilíbrios sistémicos estabelecidos a nível legislativo”. Contudo, acaba por pronunciar-se acerca desta hipotética medida de responsabilização solidária, através da atribuição de uma indemnização em casos de absolvição. Argumenta que tal solução, sem prejuízo do “amolecimento ósseo” da acção penal e da possível inflação de acções ressarcitórias sobre o Estado114, poderia redundar quer num deficit, quer num superavit, de prisões preventivas, e na consequente afectação de forma mais intensa, da liberdade individual do arguido115.

Este argumento, sem prejuízo de se desviar do cerne da questão, não merece acolhimento116.

Em terceiro e último lugar, o Ac. não se pronuncia acerca da preterição do princípio da presunção de inocência. Aliás, a seguinte passagem da decisão recorrida é elucidativa da manutenção de um labéu da suspeita sobre o arguido: “(…) no acórdão penal absolutório não ficou provado que a ora recorrente não tenha sido autora dos crimes por que foi acusada (…)”.

111

Questão colocada por GOMES CANOTILHO, in Anotação, cit., p. 85 112

Discordamos, salvo o devido respeito, de MIGUEL MORÓN, in Consecuencias imprevistas de la presunción de inocencia: La revisión de la doctrina del Tribunal Supremo sobre la responsabilidad por error judicial por efecto de la sentencia Tendam del Tribunal Europeo de Derechos Humanos, 2010, p. 49-67. O autor aponta que, tendo sido absolvido por falta de prova, recai sobre o arguido um dever jurídico de suportar o dano causado pela prisão preventiva.

113

Cfr. MOURAZ LOPES, Responsabilidade, cit., p. 94. Adiantando que importa acautelar um modelo de concordância prática, não se enveredando por soluções maniqueístas ou totalitárias. No mesmo sentido, sob diferente argumentação, CATARINA VEIGA, op. cit., p. 468 afirma que “Se a priori, é lícito ao arguido enquanto dever de cidadania (porque sobre ele recaem fortes suspeitas da prática de um crime doloso) e ao Estado decretá-la enquanto garante da legalidade, a posteriori não será legítimo ao Estado não subtrair os danos por ela provocados à esfera do arguido, porque revelada, a final, lesiva de um seu direito fundamental”, a Desembargadora MARIA MANUELA op. cit. e AVEIRO PEREIRA, op. cit., p. 215-219. 114

Cfr. GOMES CANOTILHO, in Anotação, cit., p.85. 115

Neste sentido, em Espanha, MIGUEL MORÓN, op. cit., p. 49-57. Contudo, aderimos, em sentido contrário, às palavras do Conselheiro VÍTOR GOMES, op. cit., esclarecendo que “Proteger, a hipotética liberdade de todos os arguidos mediante a não compensação pública do sacrifício da liberdade do arguido efectiva e concretamente atingido pela prisão preventiva que a posteriori vem a revelar-se injustificada, é solução que me parece desproporcionada e repelida pelo princípio do Estado de Direito”.

116

Cfr. as sábias palavras do Conselheiro SEBASTIÃO PÓVOAS, qualificando este argumento de “ad terrorem”, in declaração de voto de vencido ao Ac. do STJ de 11.10.11.

Referências

Documentos relacionados

Como já foi dito neste trabalho, a Lei de Improbidade Administrativa passa por uma releitura doutrinária e jurisprudencial, visando delimitar de forma precisa os tipos ímprobos,

Adotam-se como compreensão da experiência estética as emoções e sentimentos nos processos de ensinar e aprender Matemática como um saber epistêmico. Nesse viés, Freire assinala

Sua obra mostrou, ainda, que civilização e exploração do trabalho andam juntas e que o avanço histórico do oeste brasileiro se fez com a carne e o sangue dos

A sociedade local, informada dos acontecimentos relacionados à preservação do seu patrimônio e inteiramente mobilizada, atuou de forma organizada, expondo ao poder local e ao

Para além deste componente mais prático, a formação académica do 6º ano do MIM incluiu ainda disciplinas de cariz teórico, nomeadamente, a Unidade Curricular de

A Rhodotorula mucilaginosa também esteve presente durante todo o ensaio, à excepção das águas drenadas do substrato 1 nos meses de novembro, fevereiro e março, mas como

Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo realizar testes de tração mecânica e de trilhamento elétrico nos dois polímeros mais utilizados na impressão

Estudos sobre privação de sono sugerem que neurônios da área pré-óptica lateral e do núcleo pré-óptico lateral se- jam também responsáveis pelos mecanismos que regulam o