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Das minas ao Cariri: trajetória de uma família no Ceará (séc. XVIII)

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Das minas ao Cariri: trajetória de uma família no Ceará (séc. XVIII)

Antonio Otaviano Vieira Junior

Palavras-chave: Ceará, Inquisição, Minas, Família

Resumo

Buscando aprofundar o debate sobre as dinâmicas populacionais do Sertão da pecuária, nosso trabalho tem como objetivo analisar alguns aspectos da ilegitimidade no Ceará do século XVIII a partir do estudo de caso. A trajetória que servirá como fomento da análise é a trajetória da relação entre um tropeiro vindo das Minas e uma escrava oriunda de Sergipe, e que formam uma unidade familiar nos “Cariris-Novos”. A base documental é composta de Registros de Batismos de filhos ilegítimos no Ceará (1750-1822) e os Cadernos do Promotor do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa; essas fontes de pesquisa possibilitam explorar a relação entre dinâmica econômica cearense e os marcadores sociais de gênero e de estamento social.

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Das minas ao Cariri: trajetória de uma família no Ceará (séc. XVIII)

Antonio Otaviano Vieira Junior

A cena arranha nossa imaginação. Numa madrugada do ano de 1754, na freguesia do Bom Retiro da Roça Grande nas Minas Gerais, um jovem comerciante amarra com destreza suas mercadorias no lombo de sua tropa. Era o arranjo final, a carga checada e entremeada por tirantes de couro, os arreios aprumados e o peso bem distribuído entre as mulas. O matolão abastecido e a espingarda municiada arrematavam a partida. A caminhada seria longa, pelas estradas dos Sertões o tropeiro partia com a intenção de vender suas mercadorias, e na volta adquirir gado para comercializar nas minas. Essa cena não era incomum nas Minas, mas em especial pode nos conduzir a um homem, nascido na Ilha da Madeira, que viera para o Brasil com a intenção de fazer fortuna: Manoel Sardinha Jardim.

Partindo das Minas naquele 1754, Manoel Jardim alcançara após dias de viagem o Sertão da capitania do Ceará; mais precisamente a vila dos Cariris Novos. A história de Manoel ganhou registro não por sua vida como tropeiro, ou mesmo pela esposa e dois filhos que deixou esperando-o nas Gerais. Nem tampouco foi seu talento comercial que chamou atenção. Mas, sua trajetória de vida passou a ganhar espaço nos Registros Inquisitoriais do Santo Ofício a partir da intensa relação que Manoel passou a travar com uma escrava que conhecera no Ceará, por ocasião de sua empreitada como tropeiro.

Manoel Sardinha Jardim: o tropeiro

Manoel Jardim foi denunciado ao Tribunal do Santo Ofício em 1765. Teve o nome arrolado e parte da vida registrada no Caderno do Promotor, num auto que se arrastou até

Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.

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1768.1 A história de sua vida é bastante movimentada, envolvendo andanças pela Ilha da Madeira no outro lado do Atlântico e por duas regiões brasileiras de mineração: Roça Grande (na Comarca do Rio das Velhas nas Minas Gerais) e Cariris Novos (na Capitania do Ceará). Apresentar parte da trajetória de Manoel Jardim e do interesse que ela despertou na Inquisição significa conhecer outros caminhos no Sertão, como também arranhar parte da complexa trama que envolvia movimentos migratórios.

Era ele homem nascido na Ilha da Madeira, mais especificamente na freguesia de Nossa Senhora das Graças. Como muito dos seus patrícios buscou fazer vida noutro lado do Atlântico, talvez enfeitiçado pelo clamor do ouro. Em terras do Novo Mundo, Manoel fincou inicialmente residência na região mineradora das Gerais, que em meados do século XVIII ainda era ponto de chegada para muitos que sonhavam enriquecer rapidamente. As Minas atraíam pessoas de vários lugares: inclusive das Ilhas. No final do século XVIII tem-se a estimativa que dos 2.850.000 habitantes no Brasil, 650.000 estavam nas Minas, 530.000 na Bahia, 480.000 em Pernambuco, 380.000 no Rio de Janeiro e o restante distribuído entre as demais capitanias da América lusitana.2

A produção mineradora foi capaz durante todo o setecentos de atrair pessoas não apenas para a exploração do ouro. Mas, também estimulou o comércio e o povoamento de outras regiões: foi o caso do caminho do Sertão, que ia das Minas até a Bahia e Pernambuco, onde o aumento do tráfico comercial repercutiu na criação de novos lugarejos e vilas.

Nessa corrente populacional Manoel navegou. Ao se estabelecer na Roça Grande, termo vila de Sabará e Comarca do Rio das Velhas, na fronteira com a Bahia, ele estava em sintonia com movimentos migratórios que eram atraídos pelo sonho de enriquecimento rápido. Manoel era mais um ilhéu a dedicar-se à exploração de filões de ouro, não de forma direta, mas, comercializando e usufruindo as necessidades de abastecimento e a alta inflação. Estas por sua vez eram instigadas pelas descobertas de pepitas e pelo aumento da chegada de aventureiros.

1

Instituto de Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (IANTT), Caderno do Promotor, Livro 308, fl. 86.

2

JUNIOR LIMA, Augusto. A Capitania das Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1978, p. 41.

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O rápido surto populacional e a intensificação da vida urbana na região criavam um mercado promissor para o comércio de vários produtos, voltados para abastecer internamente a população instalada nas minas: alimentos, gado, vestimentas e miudezas passaram a ser cotados em oitavas de ouro e colaboraram para o fortalecimento de rotas comerciais.3

Manoel Jardim assistindo o aumento das demandas de abastecimento – embora parcela significativa da população continuasse beirando a miséria – apoiou-se no fortalecimento das possibilidades comerciais. Sem muita experiência na mineração, sem recursos, sem escravaria e diante da intensificação das disputas pelos filões de ouro e diamante, Manoel buscou ganhar dinheiro com o comércio. Assim, se estabeleceu como tropeiro; homem que conduzia tropas de gado, e fazendas (alimentos, roupas, ferramentas...) nos lombos das mulas, para abastecer a região da mineração.

Conduzir rebanhos de cavalos, mulas e vacas, para atender as necessidades de carne e força animal das minas, ganhou destaque como meio de vida durante todo o período da mineração. A necessidade de gado intensificou o tráfico de rebanhos em várias rotas, incluindo pela estrada que passava no Sertão baiano e pernambucano. Essa rota era facilitada pelas próprias características do percurso: principalmente por ser mais povoado, além de contar com o amparo da via fluvial do São Francisco e a rede de seus afluentes – no Rio das Velhas, pela ligação com o São Francisco.

Ao longo das rotas comerciais foram criados pontos de fisco, conhecidos como Registros, que estabeleciam limites entre as zonas mineradoras e taxavam os produtos que atravessavam a fronteira – onerando o preço final de venda. Só na Comarca do Rio das Velhas, no século XVIII foram mencionados 09 desses postos fiscais. Não devem ter sido poucas as vezes que Manoel Jardim se via pagando taxas sobre os produtos que conduzia, com uma tributação maior sobre o rebanho. Apesar dos impostos, o tropeiro poderia obter um pequeno lucro, principalmente por ser pago em ouro.4

3

ELLIS, Myriam. Contribuição ao Estudo do Abastecimento das Áreas Mineradoras do Brasil, no

século XVIII. s/l, Cadernos da Cultura, s/d, p. 04-05.

4

(5)

O trabalho do tropeiro era tão importante no quadro de abastecimento das minas, que mesmo diante da preocupação Real com o contrabando do ouro e com o controle da entrada das pessoas nas áreas de mineração (no início do século XVIII), tinha o tropeiro autorização especial da Coroa para conduzir suas tropas até as zonas mineradoras – obviamente pagando as devidas taxas.5

As fazendas espalhadas nas margens do São Francisco, que correram Sertão à dentro expulsando índios e criando gado, passaram a ser visitadas regularmente por tropeiros empenhados em comprar gado e levá-lo até as Gerais. Essa atividade criava uma ponte regular entre as Minas e o Sertões. O criador vendia na porta do seu curral o gado para o tropeiro, que tinha como objetivo transportá-lo até as minas.6

O caminho mais comum ligando as Gerais a Pernambuco era feito por via terrestre: através de rotas que partiam de povoações da Bahia, Pernambuco e Maranhão, e que se encontravam num trecho que margeava o São Francisco e era conhecido como Arraial Matias Cardoso, para depois seguir via fluvial até o Rio das Velhas.7

Nosso tropeiro vivia de comprar gado nas fazendas pernambucanas e cearenses, além de outros gêneros transportados no lombo do comboio, e vendê-los nas Minas. O que reafirma na sua trajetória de vida um importante componente: o deslocamento. Saído das Ilhas, passou para as Minas Gerais e de lá percorrendo, comercializando, pela imensidão do Sertão da região – que hoje conhecemos como Nordeste. Num universo onde deslocar significava estratégia de sobrevivência, possibilidade de negócios mais lucrativos, fuga do passado e adaptação às tensões sociais das Minas, Manoel Jardim não perdera a oportunidade.

Nas Gerais, apesar da riqueza produzida pela exploração mineradora, a sociedade que Manoel Jardim conhecera era marcada pelo afluxo populacional, pela mão-de-obra escrava, pelo deslocamento, pela precariedade de alimentos que assolava os mais pobres, pelo acúmulo de riqueza nas mãos de poucos, pela insistente taxação Real e pela violência.

5

ZEMELLA, Mafalda. O Abastecimento da Capitania das Minas Gerais no Século XVIII. São Paulo: HUCITEC, 1990.

6

Idem, p. 73.

7

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Nesse universo, o nosso viajante da Ilha da Madeira buscou se inserir e se adaptar a um mundo onde o brilho do ouro reluzia para poucos.

Nas minas

Manoel Jardim estava nas Gerais entre os anos de 1750-1, época em que as testemunhas de sua denúncia alegaram o ter conhecido.8 Lá residiu na freguesia do Bom Retiro da Roça Grande, na casa dos pais de sua esposa. A condição social de Manoel era bastante tensa dentro da dinâmica econômica e social das minas. Ilhéu e branco, Manoel se enquadrava num segmento populacional criado pelo sistema minerador articulado com a mão-de-obra escrava: estava próximo da massa de desocupados com poucas possibilidades em atividades regulares. A exploração mineradora era caracterizada pela inconstância e pelo provisório, tanto na residência como no desenvolvimento de atividades produtivas.

Manoel, poderia ter sido algumas vezes taxado de vadio, ou de “desclassificado”, pois via no deslocamento uma maneira competente de sobreviver às tensões produtivas e sociais que lhe cercavam. Por um lado não possuía escravos e capital suficiente para lhe assegurar a exploração de algum filão ou a posse da terra: após o casamento fora morar na propriedade sob a responsabilidade do sogro. Por outro lado, não era escravo o que lhe inseria num estrato social tencionado entre a riqueza e a escravidão, engendrado num contexto que dificultava a possibilidade de ofertas de atividades constantes para os homens pobres e livres.9

Mesmo diante dessa aparente impossibilidade, Manoel Jardim antes de se casar já exercia a função de tropeiro, e continuou a fazê-lo pelo mesmo quinze anos, transportando e vendendo montarias e fazendas. A falta de regularidade nessa atividade estava associada ao número de viagens que fazia, e o capital disponível para iniciá-las. Assim, passou a compensar essa falta através da agricultura: foi morar na casa do sogro após o casamento, e passou a viver num domicílio voltado ao roçado. O Matrimônio de Manoel foi um divisor

8

IANTT, Caderno do Promotor, Livro 308, fl. 103.

9

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de águas na sua trajetória de vida, não apenas pela possibilidade de outras formas de sobrevivência material, como também pelo próprio significado social do sacramento.

O casamento

Manoel Jardim casou no dia 10 de junho de 1752, às nove horas de um sábado na capela de Santana do Fidalgo em Sabará pertencente ao Bispado de Mariana. Sua esposa era Inocência Alves Vieira filha de um conterrâneo, seu sogro também viera da Ilha da Madeira tentar a vida nas Gerais. A cerimônia do Matrimônio foi seguida por festa, para comemorar a união nas portas da Igreja do novo casal. Aliás, o Matrimônio nas portas da

igreja não era tão comum na região.

O casamento de Manoel nos serve como pretexto para pensarmos alguns aspectos relacionados ao casamento na sociedade mineradora. Em geral era alta a quantidade de crianças que nasciam de pais não casados: entre 1759 e 1763, 06 de cada 10 eram frutos de paixões “ilegítimas”. O que fortalece a idéia da pouca aceitação e difusão, principalmente entre os mais pobres, das uniões legitimadas pela Igreja.10 Observa-se boa parte desses “ilegítimos” associada ao percentual de escravos, pardos e forros: número que no ano de 1776 chegou a ser 77,9% da população total.11

O casamento do nosso tropeiro pode ser compreendido dentro da tentativa da Igreja em difundir o Matrimônio, muitas vezes facilitando o burlo de demandas burocráticas e diminuindo o custo da cerimônia. A Igreja apostava, com apoio da Coroa Portuguesa, no Matrimônio e na união formal de casais como uma maneira de disciplinar, e principalmente de fixar os moradores das Gerais.

Mas, um cotidiano marcado pelo deslocamento e pela fragilidade da estrutura administrativa da Igreja (incluindo a formação e o número de sacerdotes), dificultava a aceitação do Matrimônio como prática corrente. O que em última instância, principalmente

10

LONDOÑO, Fernando Torres. El Concubinato Y La Iglesia em El Brasil Colonial. São Paulo: CEDHAL, 1988.

11

(8)

para as camadas empobrecidas, significou normas de uniões flexíveis e a sempre constante possibilidade de separação dos casais.12

A população das Minas estava distante do Matrimônio, e de parte do empenho da Igreja de utilizá-lo como instrumento de normatização; principalmente quando se pensa nos grupos dos “desclassificados” – moradores que não vivenciavam o fausto do ouro e sim miséria e pobreza.13 Essa distância não significava necessariamente um caráter inócuo do Matrimônio, como instrumento de status social: pois os poucos casados estavam mais próximos de ideais católicos e teoricamente distantes dos “desvios” – o que ganha força quando se pensa numa sociedade de bipartida, apesar de grupos intermediários, onde o topo da pirâmide casava com maior regularidade.

A configuração da riqueza de uma família não se resumia, numa sociedade estamentária, a posse de bens pecuniários. Dizia respeito também a uma combinação de fatores (local de nascimento, bens, patente, cargos, ofício...), que articulados entre si fortaleciam o capital simbólico de grupos familiares: assim, o casamento nas portas da

Igreja poderia ganhar importância ao legitimar a união dos pais e o nascimento dos filhos.

Não foi sem razão que uma das medidas pombalinas privilegiava na distribuição de cargos e patentes homens que fossem casados na Igreja.

O fato do Matrimônio de Manoel Jardim ganhar uma festa comemorativa (co-memorar é lembrar junto), leva-nos a ponderar sobre o significado social da cerimônia. Diante da vizinhança a nova família de Manoel fazia questão de marcar a união matrimonial do casal, expondo a legitimidade da relação. E mesmo após 15 anos do festejo, um dos depoentes da denúncia contra Manoel Jardim, ainda lembrava não só do evento nas

portas da Igreja, mas, também do regalo: a testemunha e outras muitas mais pessoas que

então se achavam [assistindo ao casamento] foram convidadas para o banquete...14

Mas, embora a relação de Manoel com Inocência tenha sido marcada, na sua origem, pelo legítimo e ideal; o cotidiano da relação se afastou desse norte. As

12

FIGUEIREDO, Luciano. Famílias Barrocas. São Paulo: HUCITEC, 1997, p. 98.

13

FIGUEIREDO, Luciano. O Avesso da Memória. Brasília: Edunb, Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p. 140.

14

(9)

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), código eclesiástico de leis que também regulava o Matrimônio, apontava para a coabitação como instrumento fundamental na legitimação da vida conjugal: numa sociedade que tinha como base o movimento populacional, e mais especificamente num casal onde o marido era tropeiro, a coabitação entre os nubentes era muito mais ideal do que propriamente palpável.

Entre os números de ilegítimos e os casos específicos de Matrimônio podemos vislumbrar um universo de sentidos e de desdobramentos, o que nos impede de atribuirmos apenas um vetor explicativo e nos abre muitas outras possibilidades. Entre os 60% de ilegitimidade e a popularidade de Santo Antonio nas Minas – ouvinte atento dos pedidos das moças solteiras15 – podemos encontrar a festa do casamento de Manoel Jardim e o desdobramento dessa relação que alcançou, por um “desvio” os autos inquisitoriais.

Vida matrimonial

O sogro de Manoel Jardim chamava-se também Manoel, só que Vieira. Era homem nascido na Ilha da Madeira e morava nas Minas há mais tempo que o genro, tendo quase 70 anos de idade quando a filha casou. A origem comum pode ter facilitado a aproximação entre eles, principalmente quando o casamento também significava a aliança entre o nubente e a família da noiva.

Essa aliança seria vantajosa para Manoel Jardim, pois a família da esposa estava mais tempo estabelecida na Roça Grande e poderia possibilitar uma residência fixa e novos contatos comerciais para nosso tropeiro. Para Manoel Vieira também era vantajoso o casamento, pois numa sociedade marcada por uma maioria de negros e pardos, o casamento de sua filha Inocência – na ocasião com 14 anos – com um Ilhéu significava afastar do sangue da família a “mácula” da origem (escrava) e ao mesmo tempo inserir a filha no restrito rol das mulheres casadas sob os ditames tridentinos.16

15

JUNIOR LIMA, op. cit., p. 88.

16

O Concilio de Trento se adequava, no início do século XVI, a empreitada da Contra-Reforma para padronizar as ações da Igreja Católica.

(10)

Manoel Vieira, o sogro, não viera direto da Ilha da Madeira para se estabelecer na Roça Grande. Ele e sua esposa andaram pela comarca do Serro do Frio (criada por ordem Real em 1720) zona de exploração de ouro. Não conseguiram, como tantos outros, enriquecer na esteira da exploração mineradora. Mas, como resultado do tempo permanecido no Serro Frio ganharam uma filha, chamada Inocência, a futura mulher de Manoel Jardim.

Ao se transferirem para a Roça Grande o casal e a filha passaram a residir em vários locais dentro da freguesia. Nesses deslocamentos foram travando amizades, até que pouco antes do casamento entre Inocência e Manoel Jardim, o sogro ganhara terras para cultivo. A concessão das terras fora feito por um amigo da família, um português chamado Manoel Rodrigues Velho, dono de engenho.

Parece-me que o ganho da terra e a possibilidade de estabelecer uma propriedade definitiva para a família, fizeram com que Manoel Vieira vislumbrasse o casamento de sua filha como nova etapa estratégica para se estabelecer na região de Ribeira da Mata (na Roça Grande). A família passou a ser elemento fundamental na empreitada de Manoel Vieira para sua consolidação econômica na região. Primeiro casou a filha com outro ilhéu, homem que já exercia atividade comercial e por isso poderia dispor de recursos mínimos não dependentes da lavoura. A viabilidade e a valorização da terra era proporcional ao número de braços que nela trabalhasse, Manoel Vieira não tinha escravaria, mas, usufruiu a mão-de-obra familiar: tanto o foi, que quando a Inquisição colheu o depoimento de Inocência, esta declarou viver de suas lavouras.17 Como o genro de todo não havia largado a função

de tropeiro, a família ganhava uma alternativa para a sobrevivência, não se resumindo ao manejo da terra.

Por ter já idade avançada, Manoel Vieira, buscou organizar internamente seu grupo familiar. Casara a filha e trouxera mais um braço para o cultivo e administração da terra. Ao mesmo tempo, buscava fortalecer a relação com o benfeitor da família, Manoel Rodrigues Velho, através de laços de compadrio: fora Manoel Velho padrinho do casamento entre Manoel Jardim e Inocência, e também padrinho da primeira filha do casal.

17

(11)

O que reforçava a ligação da família com Rodrigues Velho e fortalecia a rede de apoio mútuo, baseada no compadrio.

A vida corria de maneira simples para a família de Manoel. Manoel Jardim fincara provisoriamente raízes na Roça Grande. Casado fora morar na casa do sogro, numa coabitação que durou, segundo o depoimento da esposa: dois para três anos.18 A pobreza da família e casa simples submeteu o grupo familiar aos rigores das privações materiais. A família não se destacava pela suntuosidade da propriedade, aproximando materialmente seu domicílio de tantos outras casas comuns na região.

A disposição dessas casas rurais era: da varanda ia-se a sala de visitas que ocupava

toda a frente; um corredor conduzia a sala de jantar, para qual davam os quartos de dormir, deitando para esse corredor, a porta do quarto dos santos, colocado entre as duas salas. Ao longo da construção, nos fundos, outra varanda, para a qual deitavam as portas da cozinha e dependências já situadas no puxado. Uma escada no fundo desse alpendre, dava caminho para o pátio murado de onde se ganhava a horta da casa.19 A mobília da

casa era escassa, passando a ganhar maior destaque a partir da segunda metade do século XVIII. A madeira era a matéria-prima mais utilizada, formatando baús, mesas, cadeiras e arcas, além é claro das capelas. Não é possível afirmar com precisão que a casa onde morava Manoel Jardim atendia a esse modelo comum, mas essa descrição serve para imaginarmos o cotidiano da moradia de sua família.

A residência de Manoel Jardim estava numa localidade, Bom Retiro da Roça Grande, importante ponto de parada para tropeiros e viajantes em geral que buscavam atingir o Sertão. Por isso mesmo, não seria de estranhar que Manoel entrasse em contato direto com outros tropeiros, e ouvisse notícias de distantes paragens e de boas possibilidades para aquisição de rebanhos no Sertão pernambucano.

Em 1754, dois anos após seu casamento, como outras vezes fizera, Manoel Jardim deixara a freguesia do Bom Retiro da Roça Grande. Para Inocência, sua esposa, dissera ir ao Sertão de Pernambuco. Seduzido pelas possibilidades de vantagens comerciais na

18

IANTT, Caderno do Promotor, Livro 308, fl.99.

19

(12)

compra e venda de rebanhos, com notícias de distantes e promissoras áreas de mineração como os Cariris Novos, Manoel Jardim após poucos anos de vida matrimonial deixava a mulher com uma filha no colo e outra no ventre, em busca do meio de vida.

Na ocasião da partida jurara a Inocência voltar num prazo de um ano e meio com uma tropa de cavalos que seria vendida nas Minas, e ao compadre e benfeitor da família Manoel Rodrigues Velho prometera uma boa montaria. Apesar das promessas, Manoel Jardim só retornara às Minas Gerais dez anos depois, e não por vontade própria.

Nos Cariris-Novos

Os Cariris atraíam muitos migrantes não apenas pelo ouro. Era uma região situada aos pés da Chapada do Araripe, sul do Ceará. Com muitas áreas alagadas e com cacimbas naturais, a região tornava-se menos árida em anos de seca. O que fazia comum a chegada de pessoas que vinham de diferentes capitanias, principalmente nos anos de escassez de água no Sertão.20 Mas, a região não vivia apenas da mineração, a base de sua produção estava associada principalmente a engenhos de açúcar e de rapadura, além de uma agricultura de subsistência que se beneficiava de uma rara oferta no Sertão; a água. A população da região, em 1788, era de aproximadamente 3.000 habitantes. Na mesma listagem populacional, a capital do Ceará, Fortaleza, fora arrolada com 3.613 habitantes, sendo Sobral a vila mais populosa com 8.636 moradores. O que colocava os Cariris Novos como uma vila de ocupação mediana para os padrões cearenses. Só para efetivarmos mais uma comparação, Recife tinha 11.456 (juntando as duas freguesias da cidade).21

O contato direto com Pernambuco e Bahia ocorria através de uma estrada, que atravessava a Chapada do Arararipe, alcançava o Rio São Francisco: talvez essa rota tenha sido utilizada por Manoel Jardim para conduzir seu gado e chegar aos Cariris Novos.22

20

BRASIL, Thomaz Pompeu. Ensaio Estatístico da Província do Ceará: tomo II. Fortaleza: Fund. Waldemar Alcântara, edição fac-símile, 1997, p. 108. PAULET, Antonio José S. Descrição geográfica da

capitania do Ceará. In: Revista do Instituto do Ceará. Tomo XII, pp. 5-33, 1898. 21

Arquivo Histórico Ultramarino, Projeto Resgate – Pernambuco, doc. 12472. Mapa de População da Capitania de Pernambuco e suas Anexas: 1788.

22

(13)

O interessante na rota percorrida por Manoel é que seu ponto de chegada no Ceará era os Cariris Novos (Crato), uma região que tentava consolidar a exploração aurífera. Assim, o tropeiro buscava estabelecer vantajoso comércio a partir da exploração de riquezas da mineração; seja nas Minas Gerais ou no Ceará.

Achegada de Manoel Jardim foi próxima ao ano de 1754, data expressiva para o desenvolvimento das atividades mineradoras locais que foram facilitadas pelas águas do inverno.23 Viera margeando as fazendas do Sertão, da Bahia a Pernambuco, num esforço de ampliar seu leque de fornecedores de gado. A escassez cada vez maior do rebanho e as notícias sobre uma região cearense de mineração devem ter estimulado Manoel a avançar pelo solo da capitania do Ceará. Coincidência ou não, sua chegada ao território cearense foi sintonizada com a exploração das minas dos Cariris Novos – exploração essa iniciada em 1750 e finalizada oficialmente por ordem da Coroa em 1759.

As minas dos Cariris foram descobertas em 1719, num período de franca decadência dos Engenhos pernambucanos. A Coroa portuguesa não se entusiasmou com a descoberta, e evitou uma maior divulgação do achado, pois temia prejudicar mais ainda as já combalidas lavouras de açúcar.24 Foram necessários mais de 30 anos para que a exploração mineradora voltasse aos Cariris Novos, e ainda encontrou resistência na divulgação da notícia. Mas, a palavra ornada de ouro venceu o silêncio e essa redescoberta passou a atrair um número significativo de exploradores, vindo de diferentes lugares incluindo as Minas Gerais. 25 A presença desses experientes mineradores, que já haviam se arriscado nas Gerais, muitas vezes eram utilizadas por autoridades cearenses na tentativa de explorar sistematicamente os filões do Cariri.26

A possibilidade de enriquecimento rápido logo virava notícia nas diversas capitanias, o que tornava a região um pólo de atração de ávidos mineradores e de

23

SOLLA, Luiz de Castro e. O Ouro do Brasil das Minas dos Cariris Novos. Coimbra: Univ. Coimbra, 1974, p. 16.

24

PALACIOS, Guillermo. Campesinato e Escravidão no Brasil: agricultores livres e pobres na

Capitania Geral de Pernambuco (1700-1817). Brasília: UNB, 2004, p. 54.

25

STUDART, Guilherme. Notas para a História do Ceará. Lisboa: Typographia Recreio, 1892.

26

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negociantes que vislumbravam no comércio uma forma de se apossar de parte do lucro do ouro. E Manoel Jardim não deixou passar despercebida essa notícia, embora não fosse o único “mineiro” presente na região.

A Escrava

Chegara Manoel Jardim acompanhado de um outro compadre de casamento chamado José Texeira, que também vivia da atividade tropeira. José e Manoel juntos percorreram as estradas do Sertão, comprando e vendendo gado e outros produtos. Ao chegarem nos Cariris Novos traziam nos lombos das mulas fazendas diversas: secas e molhadas. Para José a estada naquela paragem cearense foi rápida e provisória, o mesmo não aconteceu com Manoel. Pois, de maneira fulminante uma escrava entrara em sua vida: Vicência, a mulher que o fez esquecer o casamento e lhe deu quatro filhos. Vicência, mulher que instigou a exposição do nosso tropeiro aos olhos da Inquisição. Vicência mulher que criou em Manoel o desejo de morar nos Cariris.

Vicência era negra e escrava. Nascida no Arcebispado da Bahia nas proximidades de Sergipe (então integrante da Capitania da Bahia), era filha de uma crioula solteira chamada Teresa, também cativa. Pouco foi registrado de sua vida em território baiano; além da ilegitimidade da origem e das raízes na senzala. O senhor, o Alferes Gonçalo Coelho Sampaio, chegara aos Cariris Novos no Ceará em 1740 – mais precisamente numa região conhecida como Missão Nova. Sua presença na região seguia a tendência de chegada de proprietários baianos empobrecidos pela decadência do açúcar. Acompanhando o Alferes e sua família, vieramduas escravas: Vicência e Teresa.

Em território cearense, Vicência e sua mãe Teresa iam levando a vida como escravas que eram: trabalhos domésticos e na lavoura. Até que o Alferes casou uma filha. E obedecendo ao costume da época resolveu compor o dote da filha com Vicência, que passou a ser escrava no engenho do genro Francisco Pereira Lima. Assim, a escrava acabara morando no Riacho dos Porcos em Missão Nova. Mudar de senhor não significava mudar de condição, mas apenas a localização do cativeiro.

No entanto as relações entre escravos e livres talvez fossem mais intensas do que suspeitamos. O caso de Vicência ajuda a pensar essas relações. Mesmo cativa, a escrava

(15)

passou a ter encontros íntimos com um tropeiro, Manoel Jardim. A relação se arrastou por algum tempo, onde Vicência se dividia entre o cativeiro e os braços do tropeiro. Assim, nas veredas cearenses, entre andanças de uma escrava sergipana e de um tropeiro vindo do outro lado do Atlântico, entrevemos a consolidação de uma relação afetiva. De lugares sociais e geográficos diferentes, o tropeiro e a escrava passaram a ser encontrar com regularidade.

A duração e a intensidade da relação fizeram com que Manoel quisesse uma proximidade cada vez maior com sua amante. Era preciso tirá-la do cativeiro. Manoel então, com recursos próprios, comprou a alforria de sua estimada Vicência. Não apenas tirou-a do cativeiro, mas também passou a viver com ela numa pequena casa nas proximidades dos Cariris Novos.

Vicência saíra escrava do Sergipe, alcançara as terras cearenses. Mudou de proprietário e através de laços de afeto conseguiu a liberdade através de seu empenhado tropeiro. E mais, juntos tiveram quatro crianças: João, Antonia, Manoel e, homenageando a avó materna, Teresa. A trajetória de Vicência a levou do cativeiro para o concubinato com um tropeiro, que poderia em última instância significar liberdade, ou seja, socialmente sua mudança da condição de escrava para forra.

Mas, embora forra, Vicência ainda trazia sob sua prole a pecha da ilegitimidade; ou seja, o fato de ter quatro filhos de um homem que não era seu legítimo marido. Manoel evitara casar-se, por vários motivos, entre eles o fato de já ter casado nas portas da Igreja nas Minas Gerais. Um segundo Matrimônio, ainda estando a primeira esposa viva, significaria para o Tribunal do Santo Ofício crime de bigamia, que na prática poderia resultar na imputação da pena de morte: quatro anos de galés. Logo, Vicência entrava para o rol das mães ilegítimas do Ceará, compondo um intrigante quadro na segunda metade do século XVIII.

Inocentes e suas Mães Ilegítimas

Ser mãe de filhos nascidos em relações que não foram sacralizadas pela Igreja não era nenhuma novidade na América lusitana, e nem no “Antigo Continente”; e ganhava a pecha da ilegitimidade. Para o Brasil essa incidência chegava a proporções

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impressionantes, como no caso das Minas Gerais. Manoel deve ter convivido, nas Minas, com muitos casais que mantinham uniões estáveis ou esporádicas sem a permissão sacramental da Igreja. Para as Minas Gerais, como mencionamos anteriormente, o índice de ilegitimidade no período em que Manoel Jardim lá morava, chegou a 60%. Ou seja, 06 de cada 10 que nasciam eram fruto de relações extra-matrimoniais.

Embora, fosse significativo nas Minas a ilegitimidade, no Ceará entre os anos de 1750-1822 os números revelam uma incidência bem menor que a mineira: cerca de 20%. Ou seja, de cada 10 crianças batizadas, 02 eram filhos ilegítimos. O índice pequeno surpreende principalmente quando se pensa da dinâmica produtiva da pecuária, associada aos intensos e aos longos períodos de escassez de chuvas, que construíam no Ceará o cenário onde arribar era verbo que rimava com “sobreviver”. A arribação foi, em geral, um fator decisivo para o alto índice de ilegitimidade: o que não se confirmou no Ceará.

Mas, se por um lado Vicência e sua prole se inserem num relativamente reduzido contingente de ilegítimos (ou “naturais”) no Ceará; por outro estão em sintonia com a tendência que relaciona ilegitimidade e escravidão. De 954 Registros de filhos ilegítimos batizados pela Igreja no Ceará, entre 1750-1822, 229 eram filhos de escravos. Ou seja, dos ilegítimos, 24% tinham mães escravas. Outros 54% tinham mães ilegítimas livres/forras (517) e 9,5% (90) tinham mães ilegítimas índias. Assim, Vicência se inseria num perfil que oscila na máxima pelas mães ilegítimas livres e na mínima nas mães índias. Não era nenhuma raridade se encontrar mães “naturais” (ilegítimas) que fossem escravas, esse número poderia aumentar quando consideradas as forras.

A condição de escravo infligia a Vicência uma maior suscetibilidade para ser mãe ilegítima? Aqui, quando pesquisados os Registros de Batismo no Ceará, emergem mais alguns instigantes números. No geral, 54% (ou seja, a metade) dos filhos ilegítimos tinham suas mães livres/forras. Esse número abrange ex-escravas e brancas, compondo um grupo social que não se destacava pela posição estamentária. Mulheres abastadas, viúvas, esposas abandonadas por seus maridos, esposas seduzidas por outros homens que não os maridos, escravas libertas por seus senhores, escravas compradas e libertas por seus amantes como Vicência... poderiam compor esse grupo bastante diversificado.

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Os filhos de escravas apareciam com um percentual razoável, ou seja, cerca de 24% de todas os filhos ilegítimos. O número ganha maior expressividade quando se considera a população diminuta de escravos no Ceará – comparado com as Minas, por exemplo – e também quando comparado com os índices de ilegitimidades que envolviam mães índias: 9, 5%.

Essa sucessão de dados numéricos não está restrita a uma lógica impessoal da estatística e da matemática. Ela ajuda a compreender alguns dos sentimentos e amores mais secretos, aos desejos e relações que cercavam homens e mulheres. Ajudam a compreender o “desvio”, aquilo que fugia ao controle dos ditames institucionais e explodia em vida. Percentuais e tendências ajudam a entender o constante e o singular no universo das relações amorosas, destacando o movimento: livres, escravas, forras, índias... têm suas vidas muitas vezes associadas à tais tendências de uma “demografia da ilegitimidade”. Estamos falando através de números de Manoel Jardim, Vicência e seus quatro filhos.

O próprio nome das crianças também pode servir como ponto de análise. Vicência e as demais escravas que batizaram filhos ilegítimos no Ceará (1750-1822) não apresentavam sobrenome, como seu nome fosse apenas vocativo sem situá-la dentro de um grupo familiar específico. Seu próprio nome trazia, pela ausência, referência a sua condição de Escrava e de propriedade. Ao mesmo tempo Manoel, vindo da Ilha da Madeira e na condição de Livre, tinha nome e sobrenome: Sardinha Jardim. Sobrenome que não fazia referência nenhuma a sua herança materna, mas se circunscrevia ao nome da família do pai. Tais características não podem ser compreendidas como uma regra geral de nomenclatura. No Brasil, mesmo entre os livres e abastados, era incomum uma padronização na transmissão dos nomes.

Em relação aos quatro filhos de Vicência com Manoel, João, Antonia, Manoel e Teresa, observamos alguns outros elementos. Os nomes dos filhos de Manoel com Vicência apontam para uma constância. Em geral, dos 954 batismo de “naturais” no Ceará, 115 utilizaram um dos quatro nomes citados: ou seja, 12 %. Não eram nomes incomuns, embora não fossem tão usuais como Ana, Maria e José que significavam mais de 22% dos nomes utilizados no batismo de filhos ilegítimos. Assim, os números revelam nada de especial da formação do casal até a escolha do nome dos filhos a união entre Manoel e Vicência.

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Entretanto, ao associarmos os nomes das crianças aos nomes do pai e da avó materna, podemos destacar outras leituras. A primeiro delas é o fato de mencionarem algum membro da família, destacando a paternidade de Manoel. Não era sem razão que um dos filhos tinha o mesmo nome do pai. Embora a paternidade possivelmente não fosse reconhecida nos ditames eclesiásticos, batizar uma criança com o nome do pai – mesmo sendo ilegítimo – era uma forma de marcar socialmente a paternidade. Isso ganhava maior importância numa sociedade estamentária, onde o sangue se efetivava como uma herança delimitadora de lugares sociais.27 A outra filha batizada chamava-se Teresa, uma referência direta a avó materna, que acompanhou a Vicência desde Sergipe d’El Rei. Uma avó que também trazia sobre sua história de vida a pecha da escravidão, que lhe impunha um lugar social na base da pirâmide. Em última instância, Manoel Jardim não só assumiu a escrava Vicência, como através do nome dos filhos também assumiu o encontro de trajetórias familiares: a sua e a de Vicência.

E foi justamente a publicidade da relação, o encontro de trajetórias de vida e suas repercussões locais, que atraiu a especial a atenção do Tribunal do Santo Ofício. Aquela relação, que gerara nomes e números, que efetivava a constância do co-habitar de um homem livre casado e uma escrava solteira mãe de quatro filhos atraiu o sopro inquisitorial.

A Inquisição

Manoel Jardim atravessou o Atlântico e ancorou pela primeira vez nas Minas Gerais. Lá se casou com Inocência, filha de um ilhéu como ele. Dessa relação tiveram dois filhos, tendo vivido juntos pouco mais de três anos. Como trabalho Manoel se enquadrava no rol dos tropeiros, espécie de comerciante que andava entre as capitanias brasileiras vendendo e comprando gado e outras espécies de fazendas.

Numa dessas andanças Manoel encontrou, juntamente com um compadre, a capitania do Ceará, mais especificamente a vila dos Cariris Novos. Partira das minas Gerais em 1754, prometendo a esposa voltar no ano seguinte, e no mesmo ano atingira os Sertões cearenses. Chegara com tropa de mulas, que carregavam em seus lombos variadas

27

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mercadorias. A promessa feita a esposa fora descumprida, passando o tropeiro mais de 10 anos em território cearense.

O tempo extra que passara nos Cariris Novos foi fruto de uma enlace sentimental. Manoel se amasiara com uma escrava, chamada Vicência. Dessa relação nasceram quatro crianças, e o empenho bem sucedido de Manoel de comprar a liberdade da mãe de seus filhos. O casal passou a residir, após a alforria de Vicência, em Morada Nova até atrair o olhar da Inquisição.

Embora Manoel não fosse casado “nas portas da Igreja” com Vicência, vivia com a ex-escrava como casados. Tinham uma casa e moravam juntos, além de criarem em uma prole de 04 filhos e de Manoel Jardim exercer a função de provedor da concubina e dos filhos. O “viver como casados” tinha peso significativo para a Igreja e para o Estado no período colonial, e se efetivava como uma espécie de casamento de efeito – incluindo a garantia de alguns direitos aos casais em concubinato não escandaloso.28

Por um lado Manoel tratava Vicência como se casados fossem, e por outro lado a vizinhança sabia que o mesmo Manoel havia se casado nas “portas da Igreja” nas Minas Gerais, onde inclusive tinha filhos. Embora o segundo casamento fosse de efeito, mesmo assim se efetivava através da vida marital. Casar-se uma segunda vez estando a primeira esposa viva era crime de bigamia, um delito passivo dos cárceres da Inquisição. E assim, o casal Vicência e Manoel atraiu o olhar inquisitorial.

Diante da publicidade que ganhou a relação entre Vicência e Manoel, o Visitador Eclesiástico, que corria por terras cearenses fiscalizando ações da Igreja, ouviu denúncias contra o casal. Em agosto de 1762, o Visitador Veríssimo Rodrigues Rangel, que embora fosse pároco não era membro do Tribunal do Santo Ofício, obrigou Manoel e Vicência à assinatura de um termo de “apartamento”. O termo era o comprometimento do casal de viver separado, e principalmente de que Manoel voltaria para sua primeira esposa e família. O Visitador buscava uma solução rápida e menos burocrática, que não envolvesse a

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Cf: VIEIRA Jr., Antonio Otaviano. O Cotidiano do Desvio: defloramentos e adultérios no Ceará

Colonial (1750-1822). Dissertação de Mestrado em História Social, São Paulo, Pontifícia Universidade

Católica, 1997. Nesse trabalho discuto a importância do “viver como casados” na América lusitana, tendo como referencia a legislação eclesiástica e leiga.

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Inquisição: embora a sombra do Tribunal pairasse sobre uma possível acusação de bigamia. O casal assinou o termo, mas não cumpriu o contrato.

Com a partida do Visitador continuaram, Manoel e Vicência, a morarem juntos e criarem seus filhos. A insistência do casal ganhou, em 1763, outra admoestação: agora feita pelo pároco local. Diante da nova pressão da Igreja, Manoel partiu para o Sertão do Apodi no Rio Grande do Norte, numa viagem que durou cerca de oito dias entre serra e caatinga. Do Apodi, Manoel montou uma tropa de cavalos e rumou para as Minas Gerais. Antes de alcançar as Minas, Manoel passou novamente pelos Cariris Novos, se despedindo de conhecidos e provavelmente de Vicência e dos filhos. Para os amigos cearenses Manoel dissera que voltaria para as Minas e para a companhia de sua “legitima” esposa. Seria o fim do casal Manoel e Vicência?

Passaram-se quatro anos, e Manoel não pisava em solo cearense. Até que em dezembro de 1767 Manoel aparecera novamente nos Cariris Novos. Trouxera uma nova tropa e mais fazendas para venda. Falara com conhecidos e se hospedara na casa de Vicência. Ela agora, além dos 04 filhos de Manoel tinha mais 02 outros de diferentes pais – o que lhe trazia, por parte das autoridades locais, o estigma de “meretriz”. Mesmo assim, Manoel novamente passou a morar com a mulata, e para os ouvidos mais bisbilhoteiros alegava não ter conseguido trazer a esposa para o Ceará por ter tido grandes prejuízos na cavalaria que pretendia vender. Mas, que pretendia em abril de 1768 vender novos cavalos e com isso conseguir trazer Inocência.

A vontade e necessidade de Manoel ficar com Vicência era muito forte. Manoel abandonara, por quase 10 anos, sua primeira esposa. O tropeiro, que não era rico, gastou uma quantia significativa para alforriar sua querida mulata. Tivera com ela quatro filhos, além de construir uma casa para sua nova família. Foi advertido pelo Visitador da Comarca dos Cariris Novos, além de assinar um termo onde se comprometia a se separar de Vicência – e não cumpriu. Depois foi alvo de uma nova admoestação, por outro pároco, o que resultou na sua fuga para os Sertões do Apodi. Passou quatro anos nas Minas, e mesmo assim não esquecera Vicência: retornou para os Cariris Novos e se hospedara na casa da amasia. No intervalo entre sua estadia nas Minas e seu retorno ao Ceará Vicência tivera

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mais dois filhos, de pais diferentes, o que não foi suficiente para impedir o desejo de Manoel em continuar co-habitando com a mulata.

A insistência de Manoel em viver com Vicência, estando ainda sua primeira esposa viva, resultou numa ação concreta da Inquisição: Manoel Sardinha Jardim teve seu nome lançado no Caderno do Promotor, Livro 318. O que significava uma primeira investigação sistemática, para averiguar de maneira inicial se o acusado havia cometido algum delito contra a Inquisição. Caso fosse comprovada a consistência da acusação, Manoel seria remetido aos cárceres secreto da Inquisição onde seria alvo de processo e passivo de condenação.

A denúncia para o Promotor Inquisitorial fora feita em 1765, no bispado de Sabará nas Minas Gerais. E foi sua primeira esposa, Inocência, após ter notícias sobre um suposto casamento de Manoel nos Cariris Novos, que o acusou de bigamia. A notícia do suposto casamento do marido lhe chegara através de uma carta. Após os 10 anos de ausência de Manoel, Inocência soubera por um tropeiro que seu marido estava casado no Ceará. Diante da primeira notícia, a própria Inocência não quis acreditar: “que ela testemunha

[Inocência] não deu credito por lhe parecer tal cousa não podia haver no mundo, nem cristão batizado cazar segunda vez co segunda mulher sendo a primeira viva”. Apesar

de afirmar que não havia acreditado, Inocência mandara averiguar o fato.

Pedira auxílio a um vizinho pernambucano de Recife, chamado José Correia Espindola. José escreveu para um parente seu que morava no Sertão do Paracatu em Pernambuco, pedindo que este sondasse nos Cariris notícias sobre Manoel Jardim. A carta resposta trazia informações desencontradas, inclusive de que Manoel estava preso pela Inquisição por bigamia.

Tal resposta deve ter contribuído para que Inocência, se sentido traída e abandonada, resolveu formular a denúncia contra Manoel.

Manoel tinha seu nome lançado no Caderno do Promotor do Santo Ofício, e sua história de vida passava a ser investigada e julgada pela Inquisição.

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O resultado da denúncia parece-me que não foi a condenação de Manoel. Pelo menos seu nome não consta no Rol dos Culpados do Santo Ofício de Lisboa. Mas o arrolamento das testemunhas e a sistematização da investigação inquisitorial podem ter servido como instrumentos para separarem o entranhado casal Manoel e Vicência... Ou talvez, Manoel tenha encontrado uma nova estratégia para continuar desfrutando dos amores e suores de sua estimada mulata. Aqui, mesmo a imaginação do historiador sucumbe diante do esvoaçar do tempo. Mesmo assim, podemos dormir pensando nos Manoeis, Vicências e Inocências que se deparam com aparato inquisitorial.

Referências

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