Recife, 2014
Recife, 2014
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Cemitério da Esperança
Cemitério da Esperança
Tradução TraduçãoEduardo Heck de Sá
Eduardo Heck de Sá
O aspecto mais comovente da arquitetura monumental é a desastrada traição de seus próprios propósitos. Ao procurar exalar permanência, ela já se encontra em decadência. Suas tentativas de alcançar a majestade revelam vaidade: mais elo-quente do que os crânios e relógios e velas sopradas do pintor barroco, é o mausoléu do homem rico, seus vitrais trincados, seus anjos lacrimosos conspurcados por pichações. A arquite-tura monumental é tão involuntária e inevitavelmente irônica (“Contemplai as minhas obras, ó poderosos, e desesperai!1”),
que nos leva a questionar o porquê de alguém ainda se impor-ta em tenimpor-tar executá-la.
Adolf Hitler não tirou o chapéu para ninguém no que se refere à conexão entre monumentos e declínio. Com grande espírito, o Führer enfatizou como um critério essencial da arquitetura nazista sua capacidade de sobreviver como ruínas impressio-nantes. Este insight em geral escapa a ditadores de segunda ca-tegoria. Nicolae Ceausescu, por exemplo, demoliu uma área de Bucareste do tamanho de Veneza para construir um ediício ba-tizado, com uma piscadela, de Palácio do Povo.
As contradições são frequentemente impossíveis de serem resolvidas. Tome-se Washington, D.C., cidadela da democracia erigida no estilo dos imperadores romanos. Aqui não se vê a paixão whitmaniana pela multidão ensandecida. Aquelas li-nhas longas e rígidas das colunas expressam, eloquentemente, a fantasia de ordem do político, sua ilusão de controle, seu so-nho de simetria.
Os arquitetos tentaram amenizar suas odes ao poder ao gra-var textos consoladores nas paredes, que vão do incisivo
tiça Equânime Perante à Lei”, na Corte Suprema) ao hesitante, como na fachada da Union Station (“A fazenda – melhor lar da família – principais/ Fontes de riquezas nacionais – fundação da/ Sociedade Civilizada – a providência natural...”). O ediício balbucia, quase como se os patronos da estação esperassem que os passantes se abstivessem de notar que quando foi inaugura-do, em 1907, o “melhor lar da família”, a pequena propriedade rural familiar havia sido aniquilada por interesses corporativos – tipiicados, naturalmente, pelas ferrovias.
Mas um merengue tão fofo não forneceria um retrato histó-rico completo. Não se trata nem mesmo de uma obra arquite-tônica. Como a maioria das criações monumentais, é menos um ediício que uma igura de linguagem. Nesse sentido, o Memo-rial do Vietnã, de Maya Lin, todo texto e nenhuma arquitetura, é a apoteose do estilo de Washington.
Um cavaleiro fossilizado montado sobre uma rotatória, co-mandando motoristas indiferentes com sua espada de bron-ze, pode parecer, dependendo do humor destes, pomposo ou emocionante. Apesar de sua estátua poder provocar medita-ções involuntárias – mas provavelmente, as pessoas, depois de um tempo, nem a veem – ela é, ao menos, inofensiva. Conina-da ao tráfego, ao parque ou ao cemitério, o monumento é um adorno municipal.
Quanto mais ele cresce, contudo, mais evidente o contraste entre retórica e realidade. E quando o município em si torna-se um monumento, o cidadão não pode passar indiferente pelo orgulhoso general. A rotatória é parte do monumento, a rua é parte do monumento, os ediícios são parte do
monumen-to. Como alguém num estádio em Pyongyang girando cartoli-nas em perfeita sincronia, toda individualidade obliterada por uma gigantesca fotograia pixelada de um trator, até o cidadão é parte do monumento.
*
Nenhum monumento do século XX foi mais espetacular do que Brasília, a capital lançada há cinquenta anos no meio do nada. E nenhum monumento, consequentemente, produziu efei-tos tão paradoxais. Sua escala faraônica, sua ambição artística e seu impacto político imprimiram-lhe uma carga romântica que não é comparável a nenhuma outra estrutura contemporânea. A história de sua criação continua sendo fantástica hoje em dia, como fora na época de sua criação. Brasília estava longe de ser a primeira capital artiicial, e muitas foram construídas desde então. Mas Yamoussoukro e Belmopan e Astana nunca captura-ram a imaginação do mundo. Brasília, sim.
Agora essa cidade revolucionária tem cinquenta anos. Duas gerações lá nasceram e cresceram. Hoje em dia, disseram-me, tem vida própria, sua origem artiicial tendo dado lugar a algo mais orgânico. Brasília orgulhosamente ostenta seu próprio sotaque – apesar de minha incapacidade de percebê-lo – e sua própria música, um tipo de rock clássico adolescente, que sur-giu nos anos oitenta. E, é claro, Brasília era visualmente
dife-rente, não de qualquer lugar do Brasil, mas de qualquer lugar do mundo. Distintamente do resto do Brasil, a capital, diziam--me, era segura, moderna, “cartesiana.” Fui lá para ver como
um lugar sempre descrito como “novo” ou “futurista” estava se adaptando à meia-idade.
Brasília é sempre descrita em termos de tão intenso entusias-mo que só poderia, talvez, ter decepcionado. A personalidade do lugar mal me alcançava à medida que eu deslizava ao longo de uma via que cortava a cidade ao meio conhecida como Eixão. Em ambos os lados erguiam-se blocos de apartamentos que pa-reciam ter vagueado de um subúrbio de Belgrado. O centro, onde o Eixão corta o Eixo Monumental, era só com muito esforço mais eletrizante. Aqui, como em Washington, os grandes prédios es-tatais, o Congresso, a catedral e os ministérios, estão dispostos em ambos os lados de uma alameda. Os prédios de Washington têm um uma presença e um glamour, um nível de detalhe e rei-namento, que fazem com que uma visita pessoal seja imperati-va. Os ediícios de Brasília, quando vistos pela primeira vez, pa-recem muito menores e menos impressionantes ao vivo do que na televisão: eles são pequenos para a paisagem que procuram liderar, brinquedos espalhados por um gramado.
Ainda assim, eles são grandes demais para serem acolhedo-res ou confortáveis. Não se provam mais recompensadoacolhedo-res in-dividualmente. As criações ostensivamente “originais” de Os-car Niemeyer parecem algo que Kim Il Sung teria patrocinado após um namorico com a Cientologia. Cada uma tem um artiício visual extravagante associado à sua fachada – os discos voado-res em cima do Congvoado-resso, as cachoeiras que jorram do Palácio da Justiça, os acres de vitrais coloridos sobre a catedral vazia – projetado para dar a aparência de originalidade. Mas, exceto pelo elegante Ministério das Relações Exteriores, nenhum
ofe-rece nada além de uma surpreendente primeira impressão. Não há nada para ver, nenhuma razão para contemplação. Uma vez que você tenha visto o cartão postal, você viu o ediício.
Tendo completado os pontos turísticos pelo meio da tarde, procurei então o interessante de Brasília em suas peculiarida-des. Fora um punhado de ditaduras particularmente hediondas, Brasília, por exemplo, é a única cidade no mundo cujo mercado imobiliário não é governado pelas três leis cardiais de localiza-ção, localização e localização. Cada área acomoda apenas um tipo de negócio. O Setor Hoteleiro contém todos os hotéis da cidade, que se alinham ao longo do Eixo Monumental e se dis-tinguem apenas pelo que oferecem aos hóspedes: o humilde e atarracado Diplomat acovarda-se diante da glória dos elevado-res em vidro do Hotel Kubitschek Plaza. Ainda assim, em todos os níveis de preços os prédios são extremamente desinteressan-tes. O visitante que chegar esperando um lugar como nenhum outro, encontrará um lugar muito parecido com um centro cor-porativo barato no subúrbio de Dallas.
*
Não era para ser assim. Brasília existira na mente brasileira por muito tempo antes do presidente Juscelino Kubitschek, ou-trora o urologista mais reputado de Belo Horizonte, conjurá--la à existência em cerca de 50 meses febris, de 1956 a 1960. O sonho de uma capital interior era antigo e algumas vezes con-substanciado: em 1883, o padre italiano São João Bosco, famoso por suas visões proféticas extraordinárias, previu uma capital
futurista para uma nova civilização no interior da América do Sul. A sanção divina era bem-vinda, mas para brasileiros proe-minentes, há muito convencidos da necessidade de transferir a capital alhures, supérlua. Desde o im do século XVIII, estes reclamavam que o Rio de Janeiro, com suas cachoeiras e praias e palácios, era muito leve, muito distrativo, para adequar-se à árdua corrida que conduziria o gigante adormecido a seu des-tino. O governo imperial no século XIX endossou a ideia de Bra-sília; a república que derrubou o império endossou a ideia de Brasília. “Nossa capital ainda não mudou”, um notável resmun-gou, “porque todos concordam.”
O Rio de Janeiro era agradável, ainal de contas, não menos
para os políticos sentados na Confeitaria Colombo, deliciando-se com éclairs sob os enormes espelhos belgas. Sim, o sorumbáti-co sorumbáti-colosso precisava de uma injeção de ânimo. Ninguém negava que o país, apesar de sua enorme extensão e aparentes vanta-gens naturais, tinha problemas.
Mas a ideia que uma nova capital, entre todas as coisas, resentava a melhor solução foi uma inspiração particular do pre-sidente Kubitschek. O velho sonho de teóricos e místicos, pen-sava, proveria tudo o que faltava ao Brasil. Num país fortemente dividido por classes, regiões e raças, um gigantesco empreen-dimento nacional uniria as pessoas. Num país que ansiava por colonizar seu vasto interior, uma nova capital energizaria e ex-pandiria a economia. Num país que ansiava por grandeza, uma nova capital encantaria o mundo.
Uma nova capital também daria ao próprio Juscelino tudo que ele precisava. Ele elegera-se com parcos 36 por cento na
aperta-da eleição de 1955, e sua posse só fora garantiaperta-da após um pode-roso general, agindo em nome da “legalidade”, ter desferido um golpe militar preliminar. Um heróico empreendimento poderia fazer com que o país se unisse em torno do seu presidente – e lhe desse uma enorme oportunidade de se tornar o pai da nação. Em janeiro de 1956, poucos acreditavam na promessa de Jus-celino de progredir 50 anos em cinco. É questionável se conse-guiu. O que não é questionável é que JK, como seu contempo-râneo JFK, presidiu sobre uma breve Camelot, uma era de bons sentimentos, na qual os brasileiros achavam que seu país es-tava inalmente se tornando o lugar que sempre acharam que poderia ser. Enquanto a nova capital erguia-se no Planalto Cen-tral; enquanto Hollywood e a Riviera dançavam ao som da bossa nova; enquanto Pelé conduzia a seleção a duas vitórias seguidas na Copa do Mundo, tudo parecia possível para o Brasil, e o uro-logista de Belo Horizonte tornou-se o mais querido presidente da história brasileira.
O gênio de Brasília repousava em sua promessa de reverter essa história. O aparentemente incorrigível atraso do Brasil, sua vergonhosa irrelevância geopolítica: tudo seria varrido por uma metrópole de modernidade estonteante nos campos de Goiás.
No tempo de Juscelino já existia uma literatura inteira dedi-cada ao que exatamente precisava ser varrido da história bra-sileira. O debate público destas preocupações era então um fenômeno relativamente novo. Mas uma nota de ansiedade pode ser detectada até nas mais presunçosas obras do início do século XX. O santo padroeiro dos nacionalistas brasileiros é Afonso Celso, um conde do Império do Brasil, cujo Porque me
ufano do meu país, publicado em 1901, é o arquétipo do
gêne-ro. A obra articulou tão perfeitamente a auto-satisfação das elites que emprestou o seu nome a toda uma escola de orgu-lho patriótico, o ufanismo.
Intelectualmente, o ufanismo consiste quase inteiramente em refutações de alegações comuns acerca da inferioridade brasi-leira. Ao se ler livros como o de Afonso Celso, ao contrário, fa-cilmente localiza-se os principais pontos de inquietação nacio-nal. Há a preocupação de que o Brasil fora colonizado pelo povo errado. (“O brasileiro que ataca ou despreza Portugal é injusto e ingrato”, Celso insiste.) Há a preocupação de que esses inde-sejados por sua vez tenham importado escravos indesejáveis. (“Não foi uma gentalha que povoou o Brasil”, irrita-se o conde.) Há o velho temor de que o clima brasileiro retarda o processo civilizatório. (O calor na Filadélia, airma Celso, é “mais sufo-cante” que o da Amazônia.) Há a indiferença patrícia para com o seu próprio povo, junto à sua sensibilidade para com o colos-so do Norte: escravos africanos “sacriicaram-se para seus se-nhores, os quais não eram sempre benevolentes, mas eram, de qualquer modo, menos bárbaros que aqueles de outros países, especialmente os dos Estados Unidos.” (Harriet Beecher Stowe, autora de A cabana do pai Tomás, era popular no Brasil.)
Tentativas como a de Afonso Celso, de animar a terra do car-naval e da Garota de Ipanema, podem, para um estrangeiro, pa-recer supérluas, mas de fato o Brasil sentia-se abatido. “A cego-nha”, escreveu o historiador Capistrano de Abreu, “é o pássaro que simboliza o nosso país. De estatura avantajada, tem pernas fortes e asas robustas, ainda assim passa seus dias com as
per-nas cruzadas, triste, triste, com aquela tristeza sóbria, sombria e sem graça”. A tristeza brasileira é diferente, mais sutil, do que sua teatral prima espanhola. Escondida detrás dos dançantes ritmos africanos do samba está uma melancolia que não é tão aparente como no tango argentino ou na ranchera mexicana. O estrangei-ro que não entende as letras, quase certamente passará batido por esse pesar. Do contrário, imediatamente entenderá quão di-ferente a tristeza brasileira é da saudade que impregna o fado português. Portugal, Argentina e México nunca parecem felizes. O Brasil sim. E o Brasil é um dos lugares mais tristes de todos.
O Retrato do Brasil: Ensaio sobre a tristeza brasileira,de
Pau-lo Prado, publicado em 1928, rastreia a depressão nacional até suas três raças originais. Seus pais fundadores – os portugue-ses exilados, os africanos escravizados, os índios expropriados – todos tinham razão para se sentirem mal. Suas circunstâncias já desaiadoras eram exacerbadas pelo pecado original do país: a sensualidade tropical. O coito incessante exaurira as energias vitais. “Na terra virgem”, escreveu Prado, “tudo encorajava ao culto do vício sexual... Os fenômenos da exaustão não se limita-ram às funções sensoriais e vegetativas; estes afetalimita-ram também a inteligência e os sentimentos. Eles produzem perturbações somáticas e psicológicas no organismo que, acompanhados por uma fadiga profunda, facilmente adquiriram aspectos patológi-cos.” Isso era um medo antigo – em 1647, o cronista holandês Barlaeus observou que o equador “divide o mundo em dois he-misférios, e também separa o vício da virtude.”
Uma nova explicação para o atraso brasileiro emergiu em Ra-ízes do Brasil , o ensaio de 1936 de Sérgio Buarque de Holanda.
Brasileiros eram muito “costeiros”; e, como um escritor expli-cou anos depois, ser costeiro era ser alienado. Apegando-se à praia, narizes voltados para a Europa, de costas para o interior, o Brasil permaneceu colonial, mais sintonizado com Paris do que com o seu próprio quintal. Uma investida território adentro teria um enorme efeito no sentido de banir tudo de enferrujado e fracassado que tinha o Brasil. Longe do litoral corrompido, o Brasil poderia inalmente atingir sua grandeza.
*
Ninguém nunca duvidou, contudo, que essa grandeza haveria de chegar. De fato, o que distingue os escritos sobre o Brasil não é seu orgulho ou pessimismo, mas sim sua peculiar ideia de his-tória. Se um medo do declínio constantemente nubla a historio-graia americana, sua contraparte brasileira é assombrada pelo espectro do progresso. Os brasileiros tradicionalmente enxer-garam seu país em termos do inevitável momento que os con-duzirá do atraso à modernidade. Conde Afonso Celso não era o único a pensar que essa terra fabulosa era tão rica, tão imensa, tão privilegiada com todas as vantagens, que não poderia falhar em ocasionar a emergência de uma grande nação. Escritores es-trangeiros concordaram: em holandês temosBrasil, uma terra do futuro (1909) de N.R. de Leeuw; em alemão,Brasil, uma terra do futuro (1912) de Heinrich Schüler; em italiano O pais do futuro
(1922) de Francesco Bianco; em iídiche, Brasil, o país do futuro para a imigração judaica (1928); e, também em alemão, o mais
A pergunta era como chegar mais rapidamente a essa futura grandeza, como receber de portas abertas o “destino”. A ideia de que a história conduz a uma conclusão positiva é uma marca da consciência brasileira. Mas a crença no futuro nunca se con-cretizou como um voto de coniança no aqui e agora. Acreditar no ímpeto progressista da história era ter a esperança de que, à medida que deslanchasse, o país deixaria para trás seu passa-do. Isso aconteceria naturalmente, inevitavelmente, e sem arre-pendimento. Em nenhuma outra questão isso icou mais claro do que no pensamento brasileiro sobre o “embranquecimento.” O mais visível legado da terrível história brasileira – este lem-brete da irreparável tristeza de cinco milhões de escravos afri-canos – desvaneceria. Miscigenação e imigração apagariam a mancha do pecado original.
Acreditar no progresso não era, portanto, acreditar no Brasil. Não consistia em acreditar que algo de bom poderia sair da his-tória brasileira. Era o contrário: consistia em ter a esperança de que a história do país podia ser negada. Consistia em acreditar que o Brasil poderia escapar de si mesmo.
“O brasileiro,” escreveu Joseph Arthur de Gobineau no sécu-lo XIX, “é um homem que deseja ardentemente morar em Pa-ris.” No desejo de morar em Paris, os brasileiros não eram dife-rentes de tantos outros povos coloniais: quem vive nas bordas do mundo naturalmente sonhará com o seu centro. Para bra-sileiros, assim como para as classes aspirantes do leste euro-peu, da América espanhola e do Oriente Médio, Paris signiica-va cultura, ambição, perfume. Reza a lenda que o tango pegou em Buenos Aires apenas depois de ter sido acolhido em Paris.
A história poderia ser contada, mutatis mutandis, de um sem
número de lugares.
Felizmente para estes lugares, Paris, ou pelo menos a im-pressão evocada por sua suntuosa arquitetura, era importável. Como o subsequente arranha-céu, o bulevar parisiense pode-ria ser reproduzido em qualquer lugar, num arrozal ou numa plantation de açúcar ou numa favela tropical, e apesar das cons-truções serem dispendiosas, a ideia em si era fácil e barata: civilização, pronta para usar. No alvorecer do século XX, mui-tas dessas cidades ergueram-se. Havia Bucareste, a “Paris dos Bálcãs”; Beirute, a “Paris do Levante”; Baku, a “Paris do Cás-pio”; Saigon, a “Paris da Ásia”; Buenos Aires, a “Paris do Sul”. Os passados desses lugares não poderiam ser mais diferentes. Mas suas visões de futuro eram idênticas. O futuro da cidade moderna incluiria uma grande avenida, geralmente planejada por um arquiteto francês expatriado, e uma grande praça, las-treada por uma grande ópera, cujo desenho seria baseado na Ópera de Paris. Outros prédios públicos – museus, bibliotecas, palácios, ministérios, prefeituras – seriam espalhadas ao longo da avenida e da praça.
O Rio de Janeiro não era uma exceção. Sua elite francóila com-prazia-se em sugerir que o Brasil–a mesma coisa aconteceu em países latinos da Romênia ao Peru–, naturalmente entendia a cultura francesa em virtude de compartilharem uma língua an-cestral (em oposição, geralmente, àquela fria e materialista dos Anglo-Saxões.) O namorico do Rio com a França teve início no século XVI, quando uma colônia conhecida como La France An-tarctique vicejou brevemente por lá. Os francóilos brasileiros
lograram sua principal vitória em 1889, quando os seguidores positivistas de Auguste Comte conseguiram despejar o benigno e idoso imperador e substituí-lo por uma desastrosa República Positivista. (Comte até forneceu o lema nacional, Ordem e Pro-gresso.) A nave central da Igreja Positivista do Brasil aponta di-retamente para a “cidade sagrada de Paris.”
Alguns anos mais tarde, em nome da Ordem e Progresso, mui-to do Rio de Janeiro antigo – presumivelmente menos sagrado – foi demolido. Sob um prefeito admirador de Haussmann e que havia estudado em Paris, o Rio ganhou a sua avenida pa-risiense, a Avenida Central (hoje conhecida como Rio Branco), construída entre 1902 e 1906. Os prédios ao longo dela eram ainda mais impressionantes quando seu custo humano era le-vado em conta. No frenesi de atualização da cidade, 1600 pré-dios residenciais antigos, abrigando a parcela mais pobre da população, foram demolidos. Em um caso, um homem que se recusara a abandonar seu lar foi destruído junto com o prédio. Uma comissão apontada em 1905 para examinar a catástrofe observou que a população expulsa foi forçada a “levar a vida errática dos mendigos e, pior, a serem tratados como tais”. Os “mendigos” viram-se morando numa “vila de casebres e chou-panas, bem no centro da capital da República, a passos de dis-tância da Avenida Central.”
A localização dessa vila era o Morro da Favela, que legou seu nome a uma instituição que – muito mais do que o Theatro Mu-nicipal, o Museu de Belas Artes, ou a Biblioteca Nacional – de-iniria o Brasil moderno. A favela atrás do Theatro Municipal, a favela criada pelo Theatro Municipal – é quase “simbólico”
demais para ser verdade, e embora o Theatro Municipal e os bulevares parisienses não sejam as causas da pobreza brasi-leira, o homem demolido dentro de sua casa é um lembrete de que a miséria do país nunca fora inteiramente acidental.
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“Iremos à Europa num aterro de café.” Noel Rosa cantava em 1931. O samba comemorava a decisão do governo de despejar milhões de sacas de café no mar. Por duas gerações, a elite bra-sileira teve a esperança de que o café traria ao Brasil o tão de-sejado desenvolvimento. Como muitos outros, esses sonhos fo-ram destroçados no crash de 1929, quando o café de São Paulo integrou-se a uma longa lista de commodities que prometeram modernidade européia e deixaram ruínas em seu rasto.
Todos concordavam que o país precisava parar de pular de um boom extrativista para o outro. Carecia voltar seu olhar para dentro, para si mesmo. A chance veio em 1954, quando seu du-radouro líder, Getúlio Vargas – ele mesmo um caso clássico da tristeza brasileira – suicidou-se com um tiro no coração, ainda de pijama, no palácio presidencial. Dois anos de governos ins-táveis e interinos seguiram-se antes que o governador de Mi-nas Gerais, Juscelino Kubitschek, fosse eleito por pouco, e em-possado por menos ainda. O novo presidente deparou-se com Brasília quase acidentalmente. Durante um comício, um cida-dão inquiriu se a promessa do candidato de implementar es-crupulosamente a constituição incluía um compromisso com o encargo de transferir a capital para o interior, um compromis-so por muito tempo negligenciado.
A nova cidade fora projetada, disse Juscelino, como “um rom-pimento completo com o passado, uma possibilidade de recriar o destino do país.” Para simbolizar essa nova fundação, famosas relíquias patrióticas foram espanadas. Da Catedral de Braga, em Portugal, veio a cruz sob a qual foi rezada a primeira missa no Brasil, em 1500; de Minas Gerais, o sino que, em 1792, anunciou a morte de Tiradentes. Um país morria, e um novo estava nas-cendo, escreveu um jornalista quando da inauguração da nova capital: “Um, com 460 anos, costeiro, baço, pessimista, subde-senvolvido; e outro, nascido há poucos minutos, corajoso, con-iante, otimista, arrojado.” Todos os 460 anos de Brasil seriam varridos. Brasília faria feliz um país triste.
“Uma coniança entusiasmada e otimista toma conta do país”, o ensaísta e político Osvaldo Orico escreveu, sem exagero. “Ago-ra, tudo fala a língua da atividade e da energia, e a contempla-ção das largas avenidas e ediícios altaneiros faz pensar mais no que será do que naquilo que já foi”, escreveu uma visitante americana, Marie Robinson Wright. “A mesma inluência fez-se sentir até mesmo nas pessoas. O entusiasmo, coniança e ex-pressão de propósito e empreendedorismo nas atitudes e mo-vimentos... indicam que (o habitante) esta olhando adiante, e que ele vê mais glória e prestígio para a sua amada capital no futuro do que havia se sonhado antigamente.”
O que chama a atenção na leitura desses comentários é a per-sistente crença na habilidade da arquitetura monumental de criar felicidade, nacional e pessoal. Persistente, porque enquanto Os-valdo Orico escrevia sobre Brasília, Marie Robinson Wright regis-trava seus sentimentos meio século antes, após a inauguração da
Avenida Central em 1907. Como Brasília, o novo Rio fora erguido com a velocidade de um furacão. (“Que tal esplêndido exemplo de empreitada nacional pudesse ser resultado de dezoito meses de trabalho é absolutamente incrível”, entusiasmou-se a Sra. Wri-ght.). Isso poderia ter sugerido a um observador menos deslum-brado que esses projetos foram menos do que meticulosamente planejados. Mas em 1907 como em 1961, poucos estavam inte-ressados no custo das fachadas Potemkim.
Era verdade que a incrível velocidade da construção de Bra-sília, o número de extraordinários obstáculos técnicos supe-rados, a participação de pessoas de todo o país e de todas as classes, perfaziam uma conquista milagrosa. É impossível não sentir o entusiasmo pulsando nas páginas das edições come-morativas dos semanários. O futuro, um jornalista anunciava, havia inalmente chegado: “Sua inauguração marca o início de uma nova mentalidade. Euforicamente, o Brasil já deixou de ser o país do amanhã.”
A redenção oferecida por Brasília afetaria todos os setores da sociedade. O Rio – bordéis, éclairs – inibia a concentração, assim como “o trabalho contínuo, a dedicação exclusiva dos homens do Governo aos deveres dos negócios públicos.” Este sentimen-to, que parece ter sido expresso por alguém com pouca experi-ência de políticos brasileiros, era extraordinariamente comum na época. É evidência do otimismo desencadeado por Brasília o fato de que lá, muitos brasileiros acreditavam, até os políticos poderiam nascer de novo. Hoje, a palavra “Brasília” signiica o contrario: o distanciamento e a indiferença, para com um país que a cidade sempre sonhou em abandonar.
2 Seita protestante originada em 1955 a partir de um cisma entre os Adventistas do Sétimo Dia Davidianos, por sua vez um movimento reformista iniciado dentro da Igreja Adventistas do Sétimo dia em 1930.
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“No Rio, em São Paulo, você não é forçada a encarar sua pró-pria solidão”, diz-me uma mulher. Depois de viver por todo o mundo, ela se satisfaz de estar de volta a Brasília. “Em outros lugares há tantas coisas para fazer, há tantas distrações, que você nem mesmo é forçado a confrontar a si mesmo. As pessoas aqui são extremamente criativas, porque têm que ser. Aqui, ou você faz alguma coisa ou enlouquece.”
Nada para fazer: Brasília parece-se ou com um ashram ou com um asilo gigante. “Não precisamos, você sabe, de exposi-ções de arte”, uma embaixatriz, Dorothy de Meira Penna, conta--me num almoço em seu adorável jardim. “Já vimos tudo isso!
O que queremos é um clima bom, paz e tranquilidade.” Como muitas pessoas em Brasília, com sua soisticada população de diplomatas e oiciais de alto escalão, ela e seu marido játinham
de fato visto tudo aquilo. E agora, aposentados, viviam numa sociedade fechada, como uma estação de esqui, onde todos se conhecem e as recomendações certas representam tudo. Eu tive algumas recomendações, que alguns almoços e jantares rapida-mente exauriram; e o projeto da cidade, tão estranho ao Brasil, assegurava que eu não me encontraria com mais ninguém. Eu poderia jogar golfe, ou meditar, ou começar uma companhia de teatro experimental, tarefas para as quais eu não tinha nem o tempo nem a inclinação. Em vez disso, sentei-me no Hotel Ku-bitschek Plaza e itei a paisagem árida, tentando desesperada-mente inventar alguma coisa para fazer.
Foi nesse ponto, quando fracassei, que Brasília revelou a sua verdadeira característica. Sua arquitetura insigniicante, suas
inovações urbanas banais e contraproducentes, desapareciam sob a paisagem. Tudo desaparecia sob a paisagem. Brasília é, na verdade, paisagem. “Se tirassem meu retrato em pé em Bra-sília, quando revelassem a fotograia, só sairia a paisagem”, es-creveu Clarice Lispector num famoso ensaio sobre a capital; e de fato a paisagem é tão opressora que encontrar-se preso em todo esse espaço é tão aterrorizante como icar trancado den-tro de uma sala pequena sem janelas. O guia de viagem diz que um carro é necessário, e o guia está correto. Mas precisar de um carro em Brasília é diferente de precisar de um carro em Los Angeles, onde talvez não seja possível caminhar para o bairro vizinho, mas onde pode-se ao menos andar para o prédio vizi-nho. Em muitos lugares em Brasília, é necessário um táxi para atravessar a rua.
Alguns dias antes de minha chegada, um amigo inglês tentava atravessar para o outro lado do Eixo Monumental. Trata-se de uma distância curta, mas havia acabado de escurecer e ele não conhecia a cidade. Os bandidos que o atacaram quase arranca-ram seu dedão, e se ele não tivesse sido visto por um raro pas-sante, poderia ter sangrado até morrer. “Quando morri”, Clarice escreveu, “um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer.”
Não é a frustração de não ser capaz de achar um táxi em Nova York ao im de uma peça. Perder-se em Brasília parece um pe-sadelo, como se perder num deserto ou no mar: “Uma prisão ao ar livre,” escreveu Clarice. “De qualquer modo não haveria para onde fugir. Pois quem foge iria provavelmente para Brasília.” Tão isolada, tão distante: mesmo com o aeroporto a uma curta
distância de carro, mesmo com as mordomias do Setor Hote-leiro Norte, sente-se um elo distante com os primeiros explo-radores do país, abandonados num virginal mundo novo, com pouca esperança – no caso dos africanos, nenhuma – de voltar a ver suas terras.
Mas a isolação de Brasília é diferente. As cidades construídas por gerações mais antigas de brasileiros, lugares como Olinda, Parati, e Ouro Preto, foram antídotos a esse desespero. Elas são íntimas, confortáveis, nunca pretendendo rivalizar com as lo-restas e montanhas e desertos do Brasil, mas fazendo entre eles um modesto lar para o homem.
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Quando digo que moro na Holanda, o homem do outro do telefone surpreende-me respondendo em perfeito holandês. “Eu era jornalista”, continua, quando expresso minha surpre-sa, “e fui enviado às profundezas da Amazônia para resgatar um cativo holandês. Um homem alto, loiro no meio da lores-ta! Os índios decidiram me capturar também, já que havia sido criado por Tupis, e por mais de ano nos sentamos na aldeia e o Holandês me ensinou a sua língua.”
A história do homem – uma história de avô - atiça meu in-teresse, e o prospecto de agitação oferecido por uma casa, um jantar e amigos de amigos me anima. Naquela noite, sentados na varanda de sua elegante casa com vista para o lago artiicial de Brasília, as entonações do homem, Raymond Frajmund, pa-recem-me mais iídiche que tupi, e quando ele fala com sua
mu-lher em francês, suponho que tenha morado na Bélgica, o que ele conirma sem entusiasmo. Mais tarde, quando ele dobra as mangas de sua camisa, vejo um número tatuado em seu braço. Ele estava lá desde o começo.
“A Europa me enojava profundamente”, ele diz. A tatuagem, que ele não menciona, sugere uma razão. Ele foi para o Brasil após a guerra, como jornalista, e icou, trabalhando principal-mente como fotógrafo. Pensei nele no dia seguinte quando, se-guindo a sugestão de outro amigo de amigos, cheguei ao que provavelmente era o lugar menos belga em que já estive, uma cidade a uma hora e meia de Brasília chamada Vale do Amanhe-cer. Como a maioria das cidades-satélites, o Vale do Amanhecer é extremamente distante da cidade em que a maioria dos seus habitantes trabalha. Diferente das outras cidades-satélites, o Vale do Amanhecer abriga um culto exuberante.
“Boa sorte!”, diz-me um homem estranhamente vestido, de modo um tanto agourento, penso, ao sair do carro. Ele e todos lá se vestem com o que pode ser descrito apenas como fantasias de Halloween. Homens ostentam túnicas de Darth Vader com cruzes de ferro. Mulheres trajam lantejoulas e tiaras e chapéus pontudos e véus brilhosos e varinhas mágicas. Grupos passeiam de modo ordenado, depois param, reorganizam-se num círculo e cantam. A paisagem é pontuada por enormes esculturas de uma mulher sagrada, grandes estrelas de concreto brilhantes, escul-turas de Jesus, uma pirâmide, um castelo, e um lago em forma de estrela, ao redor do qual algum tipo de ritual acontece.
“É assim que dizemos bom dia aqui”, explica o homem, que se oferece como guia. O culto, diz-me, foi fundado no im dos anos
cinquenta por Tia Neiva, caminhoneira de Sergipe que ouviu o chamado de Brasília. Pouco depois de sua chegada, ouviu outro chamado e entrou num transe que durou sete dias e sete noi-tes. Carregada de novas revelações, de volta ao plano material, decidiu dividi-las, produzindo um cozido de ocultismo brasi-leiro, Catolicismo Romano, espiritualidade indígena, crenças Iorubás – e, aparentemente, a pia da cozinha – que resultaram no espetáculo que agora se desenrolava. Tia Neiva morrera, mas meio milhão de seguidores uniram-se no Vale do Amanhe-cer e fervorosamente avançaram o empreendimento iniciado por ela, “construído,” disse meu guia, “segundo a orientação de mundos espirituais.”
Cadernos às mãos, falando suavemente umas com as outras, várias pessoas vestidas de azul labutavam sob uma tenda. “Eles são prisioneiros”, o guia explicou. “Pri-si-o-nei-ros”, ele enfatiza, “dos espíritos inferiores. Eles têm sete dias para se libertarem.” Fariam isso, disse-me, coletando assinaturas: duas mil assina-turas em seus cadernos. Esperei por um desfecho. Não houve. Duas mil irmas – quaisquer irmas – e aí estariam livres. A as-sinatura porta uma energia especial, e esse poder, concentrado numa página, exorcizaria seus demônios.
“As pessoas vêm pelo amor ou pela dor”, disse meu guia. Es-sas eram as pessoas, batendo papo em suas fantasias extrava-gantes, sussurrando seus cânticos e coletando assinaturas nes-sa Disneylândia dos pobres. Sentia-me envergonhado de estar conversando com esse homem e com frequência sentia diicul-dade de manter uma cara séria. Sentia-me como um intruso, um bisbilhoteiro, hesitando até em tirar uma foto de um dos
lugares mais extraordinários em que já estive. Não havia nada lá que eu pudesse observar seriamente, nada que eu pudesse levar a sério do que escutava dele. Era tudo, francamente, ridí-culo. Sentia-me podre, gozando interiormente de algo tão im-portante para aquelas pessoas.
Porém, dei-me conta de quão normal o Vale do Amanhecer
me parecia, quão autêntico, quão aconchegante. Não conseguia imaginar um culto como esse no Texas, onde cresci, com nossos Branch Davidianos2 e repugnantes pedóilos à espera de um
ar-rebatamento alienígena. As pessoas aqui eram amigáveis, aber-tas e disposaber-tas a compartilhar as experiências que os trouxeram aqui. Dor nas costas, disse-me uma mulher; a morte de uma i-lha, disse um homem.
Isso, pensei, era o Brasil real, um lugar tão despojadamen-te esquisito, tão abertamendespojadamen-te amigável, e tão inesperadamendespojadamen-te fascinante que qualquer um que, como eu, chegue lá uma vez, sempre retorna. O Vale do Amanhecer, talvez, era o que o senhor belga procurava ao sonhar em escapar da Europa.
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Em vez disso, acabou em Brasília. A cidade parecia escapar completamente o Brasil, um país estranho e original que nunca precisou recorrer a pretensiosas tendências estrangeiras para provar sua singularidade. A beleza do Brasil podia ser encontra-da em qualquer lugar – exceto em sua arquitetura totalitarista. “Eu achava que somente na União Soviética uma coisa dessas seria possível!”, vibrou André Malraux quando da inauguração
da cidade. Reproduzida acriticamente na imprensa brasileira, a expressão representava um selo de aprovação dos escalões mais altos da cultura parisiense. Apesar de toda a retórica de união nacional, essa aprovação, ainal, era o que os arquitetos cortejavam, de modo que presentearam o país com uma ca-pital que, embora alegassem corporiicar uma nova coniança nacional, era completamente colonial, importada de Paris na sua totalidade.
Quando Brasília foi construída, um escritor declarou, Versa-lhes era o “padrão a ser seguido”. Sua escala delirante, sua folie de grandeur , de fato lembram Luís XIV, mas o espírito gaulês
pairando mais imediatamente sobre a nova capital é o espectro republicano de Le Corbusier, o arquiteto que defendeu a demo-lição generalizada do Rio de Janeiro e subsequente construção de um conjunto de prédios. Talvez tenha sido precisamente essa proposta que tenha atraído Oscar Niemeyer, uma vez descri-to, num clássico involuntário de “avacalhamento pelo pequeno elogio” (N.E.: no original “damn by faint praise”), como “talvez o mais brilhante dos discípulos latino-americanos de Le Cor-busier.” Niemeyer via Le Corbusier como o líder máximo da
ar-quitetura contemporânea – empregando uma frase com claras conotações na América Latina – e de fato Niemeyer nunca con-seguiu dizer não a um tirano. “Sempre tive o mais elevado res-peito pelo grande herói de Stalingrado,” ele escreveu em 2003. “Aqueles que atacam o velho Stalin um dia entenderão como foram tapeados e ludibriados pela campanha de ódio empre-endida contra ele pelas forças mais reacionárias.” Um dos seus últimos projetos foi para Fidel Castro.
A escala esmagadora é, portanto, deliberada. Essa paisagem é planejada para dominar completamente o indivíduo. Como em Versalhes, como na Cuba admirada por Niemeyer, tudo aqui está submetido à vontade do Grande Homem. A mensagem está na arquitetura: por exemplo, nas linhas perfeitamente organizadas dos ministérios de estado. Essas caixas de vidro torrando ao sol, como carros estacionados com os vidros fechados num calor tro-pical, não são lugares confortáveis para se trabalhar. Esses edií-cios são, ainal, retórica em vez de função, e as pessoas, sentadas em escritórios, imateriais. O que importa é a fantasia totalitária de ordem e progresso, de linhas retas, de panoramas impecáveis. É diícil não perceber o desdém da cidade para com o povo. Os ministérios podem ser abafados, mas pelo menos há empregos nos ministérios. A inovação mais perversa de Brasília pode ser o “cinturão verde” ao redor da cidade, hectares e mais hectares de pasto vazio e inútil. Em nome de espaços abertos, o cinturão forma um cordon sanitaire em torno da cidade endinheirada,
forçando os pobres, centenas de milhares deles, a viverem nas cidades-satélites, incluindo o Vale do Amanhacer, que às vezes icam a dezenas de quilômetros do centro. Viagens diárias de quatro horas – duas horas na ida e duas na volta, por campos vazios em vez de bairros entupidos – não são incomuns.
Arrogando criar uma nova sociedade, Brasília, como a Ave-nida Central de meio século atrás, simplesmente criou mais fa-velas. A solução óbvia – preencher parte desses espaços vazios, mudar algumas pessoas mais para perto da cidade – inviabili-zou-se em 1987, quando a UNESCO (sediada em Paris) declarou a cidade inteira um monumento mundial.
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Como em 1907, o lustro na nova capital não tardou a esmo-recer. Quatro anos depois da inauguração de Brasília, o Brasil passou por uma ditadura militar. O presidente Bossa Nova em si, Juscelino Kubitschek, símbolo do novo otimismo brasileiro, foi preso, exilado em Portugal, e depois, quando inalmente au-torizado a retornar, proibido de botar os pés em sua nova ca-pital. A hiperinlação devorou a classe média, e a cidade que deveria reconciliar um país dividido começou a se despedaçar antes mesmo de estar completa.
Em 2006, o ex presidente do Paraguai, Alfredo Stroessner, outrora o ditador mais duradouro do mundo, foi enterrado no Cemitério da Esperança de Brasília. Era um lugar apropriado para seu im. Stroessner estivera lá quando a capital fora inau-gurada, e morava em Brasília desde 1989, quando o Paraguai inalmente se livrou dele. Stroessner (“Paz, Trabalho e Bem--Estar”) era o último representante vivo – com a perene exce-ção de Fidel Castro – de uma geraexce-ção lendária. As paredes dos hotéis estão cobertas de visitantes célebres, pessoas cujos no-mes – Fidel, Golda, Sukarno, Ike, Salazar, Haile Selassie entre eles – descrevem um momento. Muitos dos seus países acaba-vam de conquistar a independência; muitos mais o fariam nos anos seguintes.
Quando vieram admirá-la, Brasília era o símbolo de um ter-ceiro mundo em ascensão, um farol para todos aqueles países que estavam expurgando os elos do colonialismo e tentando subir no palco das nações. Se parte da história dos Estados Unidos foi sua busca por um passado proveitoso, a história da
era pós-colonial consistiu na busca por um futuro útil. Brasília hoje é uma enorme e terrível censura às aspirações daqueles povos humilhados que queriam tão desesperadamente acredi-tar no futuro. Mais do que em qualquer lugar, sente-se em Bra-sília uma traição de todas as esperanças da era pós-colonial. A cidade é em si mesmo um gigante Cemitério da Esperança.
Pois a debochada lei da arquitetura monumental não será refutada. Os Estados Unidos, uma democracia industrial moder-na, escolheu para sua capital a iconograia de um antigo império agrícola. Brasília, num estilo que evoca com otimismo um futuro brilhante, simplesmente empurrou a nação ainda mais em dire-ção ao passado. Nunca antes a triste piada soou mais verdadei-ra: o Brasil foi, é, e será para sempre o país do futuro.