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A PROTEÇÃO JURÍDICA DA FAUNA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

DAIANE FERNANDES BARATELA

A PROTEÇÃO JURÍDICA DA FAUNA À LUZ DA

CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

DAIANE FERNANDES BARATELA

A PROTEÇÃO JURÍDICA DA FAUNA À LUZ DA

CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito Constitucional, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Figueiredo.

SÃO PAULO

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AGRADECIMENTOS

À Deus por me amparar nos momentos difíceis, me dar força interior para superar as dificuldades, mostrar os caminho nas horas incertas e principalmente por ter me dado saúde para que lutasse por todos os meus sonhos.

Ao meu querido marido, Renato Stucki Junior, por ter me apoiado e acreditado no meu potencial, pela paciência nas noites em que estive ausente estudando e pelo companheirismo inabalável em todas as fases importantes da minha carreira. Sempre tive um ombro amigo e um amor sincero, por tudo isso, obrigado.

Aos amados Elren e Layra, os quais me acompanham por mais de um década, sempre trazendo muitas alegrias, muitas brincadeiras, e paz de espírito. Nos olhos desses animais sempre encontrei um motivo para sorrir.

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BARATELA, Daiane Fernandes. A proteção jurídica da fauna à luz da Constituição brasileira. 206 f. Dissertação (Mestrado em Direito) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015.

RESUMO

Esta dissertação pretende oferecer um novo significado jurídico para a fauna através do estudo profundo da Teoria Constitucional Ambiental. Assim, investigou-se a tendência contemporânea de atribuição de personalidade e direitos aos animais, abordando o conceito jurídico de pessoa, a posição da doutrina tradicional sobre o tema e os principais argumentos elaborados por filósofos como Peter Singer, Tom Regan e Gray Francione. Ficou estabelecido que a dificuldade sobre a questão dos direitos dos animais deriva de três fatores: o especismo, a abordagem antropocêntrica do direito e a cultura dominante de que os animais são coisas, destituídos de quaisquer direitos.

Tal estudo teve como alicerce a mudança trazida pela atual Constituição brasileira que assegurou vários direitos a fauna, entre eles o de não serem submetidos a qualquer forma de crueldade, disposto no artigo 225, §3º, inciso VII, o que possibilitou o reconhecimento do despertar do constitucionalismo ecológico, uma concepção que traz consigo a valoração de novos seres e o pensamento holístico como fundamento moral, deixando para trás a crença absoluta da superioridade da espécie humana frente aos demais seres vivos. Demonstrou-se a necessidade de transcender o pensamento antropocêntrico.Frise-se aqui, que como o direito é pensado em função dos sujeitos de direito, é hora de incluirmos outros sujeitos, a fim de construir uma nova dimensão destes direitos fundamentais, ampliando a proteção deste princípio para alcançar os animais.

Para enriquecer a discussão e ilustrá-la, foi realizada uma análise jurisprudencial sobre o tema no direito nacional e internacional, pois onde há uma sólida teoria constitucional respaldando a interpretação e a aplicação das normas constitucionais, geralmente tem como resultado o surgimento de uma jurisdição constitucional atuante.

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ABSTRACT

This paper intends to offer a new legal significance for fauna though the study of Environmental constitutional Theory. Thus, it was investigating the contemporary tendency of personality attribution and rights for the animals, addressing the legal concept of person, the position of the traditional doctrine on the theme and the main arguments developed by philosophers like Peter Singer, Tom Regan and Gray Francione. It was established that the difficulty on the issue of animal rights derives from three factors: speciesism, the anthropocentric approach to the right and the dominant culture that animals are things, devoid of any rights.

This study had the foundation the change implemented by current Brazilian Constitution that ensured the basic right of the animals are not subjected to any form of cruelty, Article 225, Paragraph 3, Item VII, allowing the recognition of the awakening of constitutionalism environmentally-friendly design that brings a new valuation beings and holistic thinking as moral foundation, leaving behind the absolute belief in the superiority of the human species forward to other living beings. We must go beyond the anthropocentric model.

The sustentation of a minimum right the subsistence of all animals make to emergence new fundamental rights such as the inherent rights in all animals, which must be incorporated into the dimension of the concept of dignity.

It should be stressed here that as the right is thought in terms of the persons, it's time it was including other subjects in order to build a new dimension of these fundamental rights, expanding the protection of this principle to reach the animals.

To enrich the discussion and illustrate it, a judicial review of the issue at the national and international law was carried out, because where there is a solid constitutional theory endorsing the interpretation and application of constitutional norms, usually results in the emergence of a constitutional jurisdiction active.

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SUMÁRIO

Introdução

10

CAPÍTULO I: CONSIDERAÇÃO MORAL DA FAUNA: EVOLUÇÃO

HISTÓRICA E FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS

1.1. O domínio sobre os animais 13

1.2. Aristóteles x Pitágoras 17

1.3. De Roma ao Período Medieval: A força da Igreja Católica 20

1.4. Do animal máquina ao pior dos vícios: a crueldade 29

1.5. O pensamento filosófico em defesa dos animais 36

1.5.1. Humphry Primatt e Jeremy Bentham 36

1.5.2. Peter Singer: Libertação Animal 43

1.5.3. Tom Regan: Animais como sujeitos de uma vida 54

1.5.4. Gray Francione: A abolição dos animais como propriedade 61

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CAPÍTULO 2: POR UMA NOVA CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA

2.1. A crise ambiental 82

2.2. Teorias éticas: qual o seu significado? 87

2.2.1. Era uma vez um mito antropocêntrico... 93

2.2.2. Antropocentrismo mitigado 96

2.2.3. Biocentrismo 99

2.3. Estado Constitucional Ecológico 104

CAPÍTULO 3: A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E OS ANIMAIS

3.1. A inovação trazida pela Constituição Federal de 1988 109

3.2. A superação do paradigma antropocêntrico do Direito Constitucional Ecológico e o princípio responsabilidade de Hans Jonas 117

3. 3. A fauna na Constituição 122

3.4. A função ecológica da fauna 123

3.5. A extinção das espécies 125

3.6. A crueldade contra animais 132

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CAPÍTULO 4: ANIMAIS COMO SUJEITO DE DIREITOS

4.1. A teoria do direito animal 153

4.2. Dignidade para além da vida humana 174

4.3. A proteção da fauna no direito comparado 182

4.4. O modelo econômico atual: uma barreira a ser rompida em defesa dos animais 187

5. CONCLUSÃO 195

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10

INTRODUÇÃO

A crescente preocupação com a proteção ambiental levou ao reconhecimento mundial do meio ambiente ecologicamente equilibrado como Direito Fundamental do homem e o Brasil, seguindo essa corrente internacional, trouxe de forma inovadora o tratamento da questão ambiental na Constituição Federal de 1988. Além de um capítulo específico sobre o tema, consubstanciado no artigo 225, ao longo do texto constitucional são feitas diversas referências ao meio ambiente, como por exemplo, a instituição da proteção do meio ambiente como princípio da ordem econômica, no art. 170, o que evidencia a intenção do legislador constituinte de conferir ao mencionado bem jurídico efetiva proteção através mais diversas formas.

A Constituição também reconheceu expressamente que os animais têm o direito de não serem submetidos à crueldade e passou a garantir os processos ecológicos essenciais, a vedar as práticas que possam pôr em risco a função ecológica da fauna, ou levar a sua extinção, o que torna possível reconhecer que o Estado Constitucional de Direito também é um Estado Socioambiental.

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11 da proteção da fauna, buscando demonstrar quais são os alicerces para que os animais possam ser incluídos na comunidade moral1.

Este debate, como se verá, ganhou destaque no âmbito mundial a partir da década de 70, com a publicação do livro de Peter Singer, e até hoje é objeto de grande controvérsia. A resposta a essa discussão não é uníssona entre os autores, no entanto, todos tem em comum o anseio pela proteção dos animais.

Este trabalho dialoga com essas vertentes filosóficas, sublinhando a complexa relação histórica entre homens e animais, com o objetivo de afastar o paradigma antropocêntrico. No segundo capítulo, outros modelos éticos foram abordados em relação ao meio ambiente, já que o antropocentrismo do Código Civil brasileiro deixou de ser a doutrina dominante, dando lugar à bioética2 e ao antiespecismo de Singer3. Um exemplo é a resolução N° 37/7 de 1982, da Organização das Nações Unidades (ONU), que diz: “Toda forma de vida é única e merece ser respeitada, qualquer que seja sua utilidade para o homem, e com a finalidade de reconhecer aos outros organismos vivos este direito, o homem deve se guiar por um código moral de ação”. Tal fato ocorreu devido ao amadurecimento do Estado Constitucional Ecológico, entre eles o brasileiro.

1Regan define comunidade moral como sendo “composta por todos aqueles indivíduos que são diretamente

importantes moralmente ou, alternativamente, como consistindo em todos aqueles indivíduos perante os quais os

agentes morais têm deveres diretos.” REGAN, Tom. The case for animal rights. 2 ed. Berkeley and Los Angeles: University California Press, 2004, p. 152. [tradução livre]

2Uma das perguntas que a bioética visa responder é: “Somos diferentes dos animais?” (LAW, Stephen. Guia ilustrado Zahar de filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 110).

3 A doutrina antiespecista de Peter Singer tem como pressuposto que todos os animais, humanos e não-humanos,

têm o mesmo direito de não serem tratados como seres inferiores na escala evolutiva. É a luta contra a exploração dos animais pelo ser humano, com fundamento no fato de que todos os seres animais não-humanos têm interesses próprios e capacidade de sofrer, além de certa consciência de si mesmos. Essa discussão filosófica é tema do livro:

(13)

12 Devido à preocupação constitucional com o meio ambiente, muitos doutrinadores visualizam um esverdear do direito constitucional. Medeiros4 entende que estamos diante de um Estado Socioambiental e Democrático de Direito, pois é um Estado Ambiental, calcado em princípios ambientais. Ingo Sarlet5 afirma que a Constituição trouxe um Estado Socioambiental de Direito, não um Estado Mínimo, mas um Estado regulador da atividade econômica, capaz de ajustá-la aos valores e princípios constitucionais, de forma ambientalmente sustentável. Por tudo isso, o terceiro capítulo dessa obra tratou do coroamento constitucional da proteção da fauna e como isso refletiu nos tribunais brasileiros.

Assim, o tema fundamental que ecoa da leitura desse trabalho é a discussão da proteção da fauna. Pesquisadores do mundo inteiro têm elaborado uma teoria jurídica que reconhece o valor intrínseco de cada não-humano, demonstrando a necessidade de mudança do

status jurídico dos animais. Nessa ótica, no quarto capítulo foi tratada a teoria do direito animal e como ela é aplicada no direito brasileiro e internacional.

Não se buscou defender, cegamente, direitos para os não-humanos, mas sim revelar todas as razões que buscam reconhecer determinados direitos básicos e essenciais a maioria dos seres vivos, ou no mínimo, aos seres sencientes, ou seja, sensíveis a dor e ao sofrimento, capazes de ter consciência sobre si e sobre a realidade que o cerca. Para por fim, discutir a possibilidade de incluir, em alguma medida, na categoria de sujeitos de direito, e não de objeto, os animais. A questão que se procurou responder foi: por que só o homem têm direitos, se outros tão semelhantes, tão iguais, e até mais indefesos, precisam também de proteção?

4 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 27.

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13

CAPÍTULO I

CONSIDERAÇÃO MORAL DA FAUNA

6

: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E

FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS

Mas, ainda que tudo seja discutível, cumpre-nos ter certo respeito não somente pelos animais, mas também por tudo que encerra vida e sentimento, inclusive árvores e plantas. Aos homens devemos justiça; às demais criaturas capazes de lhes sentir os efeitos, solicitude e benevolência. Entre elas e nós existem relações que nos obrigam reciprocamente. Não me envergonho de confessar que sou tão inclinado à ternura e tão infantil a esse respeito que não sei recusar a meu cão as festas intempestivas que me faz, nem as que me pede.

Michel de Montaigne7

1.1. O DOMÍNIO SOBRE OS ANIMAIS8

Segundo o professor Cláudio de Cicco9 a história pode ser definida como a ciência da reconstrução do passado para a melhor compreensão do presente. Lembrar o passado torna possível entender e modificar a sociedade atual, pois os fatos de hoje são a resultante final do complexo de fatos anteriores.

Conhecer os erros que ocorreram no decorrer da história possibilita uma transformação no pensamento hodierno: para que a sociedade possa se inovar e não retroceder

6 Entende-se por fauna o conjunto de animais que vive em uma determinada região ou ambiente.

7 MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 1 ed. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial,

1972, p. 208.

8 Os humanos também são animais, mas sigo a prática comum e uso muitas vezes a palavra animal ou fauna para

me referir aos animais não-humanos.

9 DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2013,

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14 por caminhos já desbravados é interessante analisar as respostas já encontradas para se procurar novas perguntas. Neste contexto, o estudo filosófico sobre o direito dos animais também se torna essencial, pois foram os filósofos que primeiramente começaram a questionar se os animais teriam direitos.

Keith Thomas10, professor de história da Universidade de Oxford, esclarece que o predomínio do homem sobre o mundo animal foi e é uma pré-condição básica da história humana, sendo impossível separar o que as pessoas pensavam sobre os animais daquilo que elas pensavam sobre si mesmas.

O status jurídico dos animais evoluiu conforme as crenças religiosas, culturais e econômicas da sociedade, “cultivamos a ideia de que os seres humanos têm um status diferenciado, mais elevado, e prerrogativas morais, econômicas e políticas inquestionáveis frente aos demais seres vivos.11 As pessoas estão convencidas de que podem fazer uso indiscriminadamente de todas as formas de vida, sem necessidade de apresentar uma justificativa ética para tais ações.

Quando uma atitude se encontra tão profundamente enraizada na sociedade, esta se transforma em uma verdade inquestionável. E a contestação séria e coerente dessa atitude corre o risco de ser tomada como ridícula. Uma estratégia alternativa consiste em tentar minar a plausibilidade da atitude dominante através da revelação das suas origens históricas12.

A tradição se mostrou um obstáculo a ser superado para a libertação dos animais e sua consideração moral. Sem refletir sobre o direito dos animais não é possível tomar uma decisão sobre o assunto. E a decisão é difícil, pois trará mudanças drásticas na sociedade atual. Porém a apatia em que se encontra a sociedade atual precisa ser combatida constantemente para que seja possível viver em um ambiente sadio, onde todas as formas de vida sejam valorizadas. A vida ganha importância nesse novo cenário onde os seres humanos não são onipotentes e hierarquicamente superiores ao restante da vida existente em nosso Planeta Terra.

10 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800). Trad. João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 20.

11 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 19.

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15 Mas como surgiu esta tradição de dominação absoluta do homem sobre a natureza? A partir de agora faremos um breve retrospecto sobre os principais pontos históricos que culminaram na atual crise ambiental.

Formado há cerca de 4,5 bilhões de anos, o lar da humanidade é indivisível e composto principalmente por rocha e metal, o chamamos de Planeta Terra. Somente aos 3,5 bilhões de anos surgiu a vida com os primeiros organismos vivos13.

Segundo Fritjof Capra “o registro fóssil nos mostra claramente que a história da evolução caracteriza-se por longos períodos de estabilidade, sem muita variação genética, marcados e pontuados por transições rápidas e drásticas”14. O autor explica que:

Outro padrão recorrente é a ocorrência de catástrofes seguidas por períodos de intenso crescimento e renovação. Assim, há 245 milhões de anos, aos mais devastadores processos de extinção em massa já ocorridos neste planeta seguiu-se rapidamente a evolução dos mamíferos; e, há 66 milhões de anos, a catástrofe que eliminou os dinossauros da face da Terra abriu caminho para a evolução dos primeiros primatas e, ao fim e ao cabo, da espécie humana15.

Restou cientificamente comprovado que o homem moderno, Homo sapiens, surgiu há 100 ou 120 mil anos. Por sua vez, o Homo sapiens sapiens que caracteriza o homem atual surgiu há 35 mil anos. Sob uma compreensão radical, isso significa que, no prazo de 100 a 120 mil anos, o homem vem destruindo o que a natureza levou 4,5 bilhões de anos para construir16.

Na antiguidade, a fauna possuía uma força simbólica grandiosa e era considerada divina, como ainda acontece em alguns países, a exemplo da Índia, onde a vaca é considerada um animal sagrado.

Por aproximadamente 2 milhões de anos os seres humanos viveram da caça e da coleta, sendo que esse estilo de vida era mantido com a constante mobilidade do grupo para

13RODRIGUES, Danielle Tetu. O Direito & os Animais: Uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2 ed.

atual. Curitiba: Juruá Editora, 2008, p. 29.

14 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Editora Cultrix, 2002,

p. 47.

15 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 47.

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16 buscar novas fontes de recursos, mas há, aproximadamente, 10.000 anos iniciou-se o processo de domesticação das plantas e animais17.

O registro de domesticação mais antigo que se tem é o do cão, através dos lobos. O primeiro animal a ser domesticado e explorado economicamente foi a ovelha, provavelmente pelo fato de não competir com o homem pela comida18.

De fato, a domesticação e a posse dos animais estão intimamente relacionadas com as ideias de propriedade e dinheiro, tanto é que a palavra catle (gado), tem a mesma raiz que a palavra capital, sendo sinônimas em muitas línguas europeias19. Dinheiro, por exemplo, deriva do latim pecúnia, que deriva de pecus (gado).20 E assim, os animais se tornaram símbolo de poder, e o reino do homem sobre a Terra se firmou.

No entanto, ao longo da história, um coro de vozes ergueu-se para reivindicar um respeito mais pleno e ativo pelos animais.Não se trata de um punhado de sentimentalistas excêntricos, desligados da realidade humana. A lista de personalidades é longa e a sua influência provou-se determinante para a construção de um Estado de Direito Ambiental.

Isaías, o primeiro dos profetas maiores do Velho Testamento; Pitágoras, o matemático e filósofo da Grécia Antiga; Buda, o fundador de uma das grandes religiões do Oriente; da Pérsia, o pensador religioso Mani; da Roma Clássica, os filósofos Plotino, Porfírio e Plutarco, e o estadista Séneca; mais tarde, o profeta Maomé; depois, no mundo medieval cristão, o patriarca S. João Crisóstomo e S. Francisco de Assis; no período renascentista, o pintor e inventor Leonardo da Vinci, o Papa Pio V, o político S. Thomas More, o poeta e dramaturgo William Shakespeare, e o teólogo Michel de Montaigne; os filósofos do século XVII Henry More e John Locke, e o físico e matemático Isaac Newton; no Século das Luzes, os filósofos Jean-Jacques Rousseau e Jeremy Bentham, o poeta Alexander Pope e o filósofo escritor Voltaire; no século XIX, os filósofos Arthur Schopenhauer e John Stuart Mill, e o influente naturalista Charles Darwin; no século passado, o nobel da ciência Albert

17 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Segio

Antônio Fabris Ed, 2008, p. 43.

18 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, p. 43. 19 Palavra espanhola para propriedade é ganadería; a palavra para gado é ganado.

20 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?. Trad. Regina Rheda.

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17 Einstein, o nobel da paz Albert Schweitzer e o activista político Mahatma Gandhi21.

Nota-se que existiam, no mínimo, duas correntes de pensamento: de um lado pensadores que declaravam a valor fundamental da bondade para com os animais; de outro, os que pregavam a supremacia humana sobre as demais criaturas. Neste momento traremos os principais argumentos de cada um.

1.2. ARISTÓTELES X PITÁGORAS

Existiam, na Grécia antiga, tendências contraditórias em relação ao tratamento dado aos animais. Duas escolas rivais se sobressaíram, sendo que cada uma apresentou doutrinas básicas de um grande fundador. Uma destas era a escola de Pitágoras, o qual era vegetariano e incentivava que seus discípulos tratassem com respeito os animais. Mas a escola que se difundiu no pensamento ocidental foi a de Platão e de seu discípulo Aristóteles.

Pitágoras de Samos22 (570 a.C) fundou sua escola em Crotona, colônia grega, onde difundiu seus ensinamentos matemáticos e filosóficos. Defendia a imortalidade da alma e a possibilidade de sua transmigração, também denominada de metempsicose23. Assim uma alma humana poderia voltar como alma de um animal ou planta24. Pitágoras foi o mais antigo filósofo defensor dos animais25. Conta Schopenhauer que certa vez Pitágoras comprou a rede de alguns

21 SILVA, Manuel Barradas Teles da. Deontologia e Egoísmo Uma Perspectiva Sobre a Ética Animal de Tom Regan. 344 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Departamento de Filosofia, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2009, p. 1.

22Não deixou obra escrita de que se tenha notícia, mas provocou grande expansão do pitagorismo pelo mundo. “A

contribuição pitagórica foi aproveitada por Aristóteles, na classificação da justiça, em distributiva, corretiva, e comutativa, por Dante Alighieri, ao formular a clássica e famosa definição do direito, baseada na noção de proportio e, certamente, inspirou Beccaria, no remate de sua obra Dos delitos e das penas, quando se refere a

proporcionalidade que existe, necessariamente, entre delito e pena”. CRETELA JÚNIOR, José. Curso de filosofia do direito. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 94.

23 Dogma que criou sob grande influência dos egípcios.

24 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, p. 52.

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18 pescadores enquanto ela ainda estava na água, só para dar aos peixes ali aprisionados sua liberdade26.

Como se baseava na ideia de que a alma de todos os seres vivos poderia encarnar em novas vidas, humanas ou não, causar mal a um animal era o mesmo que causar mal a um ser humano. Inova ao tratar igualmente todos os seres vivos, e pregar a justiça entre eles, “o homem e todo o ser vivo estão enraizados num mundoque, longe de ser o apanágio de alguns é dado a todos”27.

Tal passagem elucida sua visão, ao entender que o mundo foi dado a todos nós igualmente, e deve ser compartilhado. O autor também pregava aos jovens o amor à família, comparava a mãe à natureza generosa e saudável. Via a Terra como uma grande mãe. E para ele essa natureza viva, eterna, não é somente a natureza terrestre, mas também a natureza invisível aos nossos olhos da carne — a Alma do Mundo, a Luz primordial28.

No entanto, seu pensamento encontrou opositores. Alcmeon, natural de Crotona, contemporâneo de Pitágoras, fazia uma distinção entre pensamento e percepção, acreditava que somente o homem possui a verdadeira compreensão, enquanto as outras criaturas somente são capazes de perceber, elas não são capazes de pensar29. A capacidade de pensar é considerada até hoje um argumento para justificar a superioridade do ser humano.

Outro antagonista de Pitágoras na defesa dos animais foi Aristóteles. O filósofo grego nasceu em Estagira, 384 a.C. e faleceu em Atenas, foi aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande. O autor era favorável à escravatura30, afirmava que alguns homens eram escravos por natureza e a escravatura, por conseguinte, era correta e lhes convinha. Este fato não foi mencionado com a finalidade de desacreditar Aristóteles, mas porque é essencial para compreender sua atitude em relação aos animais. Aristóteles defende que os animais existem

26 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Tradução Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola.

2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 179.

27 MATTÉI, Jean-François. Pitágoras e os Pitagóricos. São Paulo: Paulus, 2000, p. 46.

28 DIAS, Edna Cardozo. Tutela jurídica dos animais. 150 f. Tese (Doutorado em Direito) Faculdade de Direito

da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000, p. 8.

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19 para servir os interesses dos seres humanos. Escravos e animais estariam em uma categoria semelhante, ambos servindo a um senhor como propriedade:

Há também, por natureza, visando à conservação das espécies, um ser que comanda e outro que obedece: aquele que é capaz de previdência, por sua inteligência, é por natureza o senhor; e aquele que é capaz, pelo vigor de seu corpo, de pôr em ação aquilo que o senhor prevê, é um súdito e, por natureza, um escravo; por conseguinte, senhor e escravo tem o mesmo interesse31.

Mesmo abordando a escravidão com naturalidade, não tratava seus servos com brutalidade, tendo requerido em seu testamento que seus escravos não fossem vendidos a outros senhores. Também reconheceu32 que a amizade não é um sentimento exclusivamente humano, podendo ser encontrada nos pássaros e na maioria dos animais, mas ele traçou uma linha hierárquica entre o homem e as demais criaturas, organizada segundo a capacidade de raciocínio dos seres viventes. Os seres viventes encontravam-se, assim, em uma cadeia hierárquica, na qual basicamente três níveis principais se sucedem: o vegetal, o animal e o ser inteligível ou humano33.

O filósofo define o homem como sendo um animal racional. No entanto, compartilhar uma natureza animal comum não é suficiente para justificar uma igual consideração de interesses. Para ele, por exemplo, o homem que nasceu escravo é indiscutivelmente um ser humano, sendo capaz de sentir prazer e dor como qualquer outro homem; todavia, é julgado inferior ao homem livre no que diz respeito ao poder de raciocínio. Aristóteles o considera como um “instrumento vivo”, entende que o escravo é alguém que “apesar de ser homem, se converte numa propriedade”34.

A vida parece ser comum até as próprias plantas, mas estamos, agora, buscando saber o que é peculiar ao homem. Excluamos, pois, as atividade de nutrição e crescimento. A seguir, há a atividade de percepção, mas dessa também parecem participar o cavalo, o boi, e todos os animais. Resta, portanto, a atividade do elemento racional do homem; desta uma parte tem

31 ARISTÓTELES. Política. Tradução de Pedro Constantin Tolens, 5.ed. São Paulo: Martins Claret, 2009, p.54. 32 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Torrieri Guimarães, 4.ed. São Paulo: Martins Claret, 2010, p.

172.

33 GONÇALVES, Márcia Cristina Ferreira. Filosofia da natureza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

(Passo-a-Passo; 67), p.19.

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20 esse princípio racional no sentido de ser obediente a ele, e a outra, no sentido de possuí-lo e de se pensar35.

Aristóteles pregava a hierarquia das almas, sendo que o homem grego que era racional era um dos que estavam no topo da pirâmide social. As mulheres gregas e as crianças estavam logo abaixo. Depois vinham os escravos, classificados como sem capacidade plena de raciocínio36.

Se a diferença de poder de raciocínio existente entre os seres humanos foi suficiente para tornar alguns deles senhores e outros sua propriedade, Aristóteles deve ter considerado que o direito dos seres humanos dominarem os animais era demasiado óbvio para lhe dispensar grande argumentação. A natureza, defendia ele, é essencialmente uma hierarquia na qual os que têm menor capacidade de raciocínio existem para servir aqueles que a possuem em maior grau: as plantas estão feitas para os animais e estes para o homem37.

Ele via no fato do homem ter o dom da palavra uma forma de elevação, ao ser comparado com os outros animais, que só tem a voz para expressar prazer e dor. Os animais se comunicam, mas só os humanos podem discutir o que é justo ou injusto38.

Foi o primeiro filósofo antigo a diferenciar a ciência empírica da natureza e o saber propriamente filosófico. Desenvolveu a prática da dissecação de animais com a finalidade de compreender o funcionamento de seus organismos39.

Foram as convicções de Aristóteles, e não as de Pitágoras, que passaram para a tradição ocidental posterior. Sua visão antropocêntrica, baseada na negação da razão aos animais influenciou fortemente todo o mundo ocidental.

1.3. DE ROMA AO PERÍODO MEDIEVAL: A FORÇA DA IGREJA CATÓLICA

O Império Romano foi formado através de guerras e conquistas, tendo sido necessário dedicar muita de sua energia e do seu rendimento às forças militares que defendiam e

35 Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret Ltda., 2007, p. 27. 36 Aristóteles. Política. Tradução Pedro Constantin Tolens. São Paulo: Martins Claret Ltda., 2012, p. 61. 37 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 275.

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21 ampliavam o seu vasto território. Essas condições não permitiam a existência de grande simpatia com os mais fracos. As virtudes marciais deram o tom à sociedade40.

Em uma cultura voltada para o expansionismo bélico, sustentada com o lucro obtido através da conquista e saque de outros povos, incluindo-se a reprodução de mulheres escravas para garantir mais mão-de-obra, não houve movimento de libertação capaz de fazer frente ao poder devastador do abate de seres humanos e animais41.

O sentimento de superioridade dos cidadãos romanos era alimentado nos jogos que ocorriam nas arenas romanas, onde seres humanos conquistados e animais capturados eram forçados a lutar até a morte, momento em que a plateia aplaudia o massacre e a crueldade ocorrida diante de seus olhos. W. E. Lecky, historiador, descreve o que acontecia nos jogos romanos:

O combate simples acabou por se tomar insípido, tendo sido o interesse decrescente. Numa ocasião, um urso e um touro, acorrentados um ao outro, rolaram sobre a areia, num combate feroz; noutra vez, lançaram-se criminosos envoltos em peles de animais selvagens a touros enlouquecidos pela aplicação de ferros em brasa ou pelo arremesso de dardos com pontas embebidas em resina ardente. No tempo de Calígula, chegou-se a matar quatrocentos ursos num único dia [...]. No tempo de Nero, quatrocentos tigres lutaram com touros e elefantes. Num único dia, o da dedicação do Coliseu a Tito, foram abatidos cinco mil animais. Sob o domínio de Trajano, os jogos chegaram a durar cento e vinte e três dias consecutivos. Por forma a incutir um caráter de novidade ao espetáculo, foram utilizados leões, tigres, elefantes, rinocerontes, hipopótamos, girafas, touros, veados, e até crocodilos e serpentes. E também não faltou nenhuma forma de sofrimento humano [...] Durante os jogos de Trajano lutaram dez mil homens. Nero iluminava os seus jardins, à noite, com cristãos a arder, envoltos nas suas túnicas embebidas em resina. No tempo de Domiciano, obrigou-se um exército de anões fracos a defrontar-se [...] O desejo de sangue era tão intenso que um príncipe tornar-se-ia menos impopular se negligenciasse a distribuição de milho do que se negligenciasse a organização dos jogos42.

Apesar da grande importância dada aos jogos pela sociedade da época, “os romanos não eram desprovidos de sentimentos morais. Demonstraram grande respeito pela justiça, pelo

40 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 276.

41 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 38.

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22 dever público e mesmo alguma simpatia pelos outros”43. O que os jogos revelam claramente é que existia um limite preciso para esses sentimentos morais. Se um ser se situasse dentro desse limite, as atividades como aquelas que ocorriam nos jogos seriam consideradas intoleráveis, no entanto, quando um ser se encontrava no exterior da esfera das preocupações morais, a inflição de sofrimento passava a ser mera diversão. Não eram abrangidos por este limite alguns seres humanos – escravos, criminosos, prisioneiros de guerra, cristãos e todos os animais44.

Para o Direito Romano os animais eram tidos como meros objetos dotados de valor econômico. Rotulavam os animais de acordo com os seus interesses econômicos, sendo classificados como res mancipi e res nec mancipi, ou seja, coisas que exigiam ou não o emprego da mancipatio, espécie de processo mais solene. Os animais domésticos e de tração e carga, que eram passíveis de apropriação para fins econômicos se enquadravam na primeira classificação, na segunda entravam os animais de pequeno porte que eram transferidos sem maiores formalidades45.

Somente muito depois, na fase do dominato (285-565 d.C), época em que coube ao Império Bizantino preservar a tradição jurídica romana, percebe-se uma mudança na classificação dos animais, passando eles a serem considerados como bens móveis (res mobiles) e semoventes, conforme previa uma Constitutio de Justiniano do ano 531 d.C46.

Salientando-se que o animal poderia ainda ser considerado uma res nullius como é o caso dos animais silvestres, que seriam aqueles animais sem um proprietário determinado ou,ainda, res derelictae, que seriam os animais abandonados por seus proprietários que, renunciando a seu direito de propriedade, possibilitariam que outros viessem a adquirir a propriedade originária47. E essas foram as definições jurídicas aplicadas aos animais no transcorrer dos séculos.

Vemos nas Institutas de Gaio, Livro Segundo, 66 a 68: ‘E adquirimos por

direito natural não apenas as coisas tornadas nossas por tradição, mas, também, as adquiridas por ocupação, porque a ninguém pertenciam antes, com

43 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 276. 44 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 276.

45 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, p. 90. 46 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, p. 90.

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23 todas as coisas apanhadas na terra, no mar e no céu. Por conseguinte, se apresarmos um animal bravio, uma ave ou um peixe, o assim apanhado torna-se logo nosso e entende-torna-se nosso enquanto sujeito à nossa guarda; fugindo-lhe, porém, e voltando à liberdade natural, torna-se novamente do ocupante, pois deixou de ser nosso; e entende-se retornado à natural liberdade, quer escapando à nossa vista, quer, embora à vista, sendo de difícil encalço. Quanto aos animais habituados a ir e voltar como as pombas, as abelhas e os veados, que costumam ir aos bosques e voltar, temos a regra tradicional: perdendo o hábito de voltar, deixam de ser nossos, tornando-se do ocupante, e consideram-se como tendo perdido o hábito de voltar perdendo o dito

costume’.”48

Durante o período romano o cristianismo se intensificou. O humanismo cristão e sua influência sobre os romanos levaram pelo menos três séculos para se fazer sentir, mas foram eficazes. “No século IV, já não eram mais permitidos nas arenas os jogos para abate de humanos, porém o mesmo não aconteceu em relação aos animais” 49. A influência do conceito cristão da sacralidade da vida humana, minou o dogma romano de superioridade da vida dos vencedores. No entanto, a percepção humana sobre o status dos animais nessa mesma época e cultura de superioridade não foi alterada.

Os ensinamentos cristãos opunham-se implacavelmente à realização de combates entre gladiadores. O gladiador que sobrevivia por ter morto o adversário era visto como um assassino. A simples presença nestes combates tornava o cristão passível de excomunhão. Por outro lado, o estatuto moral de matar ou torturar qualquer ser não humano permaneceu inalterado. Os combates com animais selvagens prosseguiram durante a era cristã e, aparentemente, diminuíram gradualmente de número apenas porque a riqueza e a extensão decrescentes do Império tomaram cada vez mais difíceis a obtenção de animais selvagens. Na verdade, é ainda possível assistir a combates deste gênero, sob a forma moderna de tourada na Espanha e na América Latina50. Aí também se encontram as raízes históricas da utilização de animais em circo.

48 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 22 ed. rev. amp. atual. São Paulo: Malheiros,

2014, p. 940.

49 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 40.

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24 É neste contexto que o impacto do cristianismo deve ser avaliado. O cristianismo51 trouxe ao mundo romano a ideia da singularidade da espécie humana, que tinha herdado da tradição judaica, mas na qual insistia com grande ênfase devido à importância que atribuía à alma imortal dos homens. Aos seres humanos - e só a eles, de entre todos os seres vivos existentes na terra - estava destinada uma vida após a morte.

O cristianismo humanizou os jogos romanos da época, ao pregar entre outras coisas a caridade e o amor ao próximo. No entanto, o culto aos animais não era bem visto, pois tais cultos, na maioria das vezes, tinham outros Deuses e seguiam doutrinas diferentes da cristã, ideia combatida fortemente pela Igreja católica.

Mas então, sobreveio a queda do Império Romano, um dos fatos históricos mais relevantes na caracterização do início da Idade Média. O Império centralizado em Roma foi se esfacelando aos poucos para, finalmente, se transformar em reinos bárbaros, cristãos latinizados. Seu sistema de governo passou a ser a vassalagem, território dos feudos. Nele, os nobres recebiam feudos do rei e os administravam a partir de interesses comuns52.

O governo desses novos reinos cristãos estabeleceu uma aliança entre o clero e a nobreza. A Igreja, portanto, governava estes povos e a filosofia cristã passou a expressar o olhar desses governantes acerca do mundo. Concomitantemente, o Império Bizantino sobrevivia. Mas logo os árabes diminuíram seu território, ocupando grande parte do Oriente Médio, norte da África e Península Ibérica, tornando-se o maior e mais importante Império da época53.

Tanto os “cristãos romanos e bizantinos quanto os muçulmanos árabes elaboraram uma filosofia baseada na ideia de que a razão, oriunda do mundo Greco-romano, era Deus e a

51 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 277.

52 NASCIMENTO JÚNIOR, Antônio Fernandes; SOUZA, Daniele Cristina de. Um olhar sobre o estudo dos seres vivos na idade média: temas fundamentais da biologia na filosofia da natureza. Theoria - Revista

Eletrônica de Filosofia, volume 03, número 06, 2011. Disponível em:

http://www.theoria.com.br/edicao0611/um_olhar_%20sobre_idade%20media.pdf. Data de acesso: 13 agosto 2014, p. 21.

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25 natureza sua expressão” 54. A hierarquização religiosa passou a justificar a organização feudal. Esta situação perdurou na Europa por mil anos.

A comunidade europeia utilizava os animais de maneira intensa. O emprego de animais para a tração forneceu ao europeu do século XV uma força motriz cinco vezes maior à de seus contemporâneos chineses, que contavam com menos animais. Foram os espanhóis que introduziram os cavalos, porcos e ovelhas no América. Além disso, os europeus eram essencialmente carnívoros em comparação com os povos vegetarianos do Oriente55.

Durante a Era Medieval, com as “invasões bárbaras” e o desmoronamento do Império Romano, entrou em declínio a própria conceituação romana de animal para o direito. Naquele período os animais passaram a ser “sujeitos de direito na relação processual”, conforme se infere dos diversos processos em que aos animais foi atribuída a condição de parte, detentores, portanto, de capacidade processual.

Luc Ferry56 relata alguns casos em que os animais eram levados a juízo, como em 1587 em que os cidadãos de Saint-Juliem propuseram uma ação ao juiz episcopal de Saint-Jean-de-Maurienne contra uma colônia de gorgulhos. Segundo relatos, os “carunchos” invadiram vinhedos causando diversos estragos aos camponeses do local. Estes solicitaram ao senhor vigário-geral e ao oficial do bispado de Maurienne, que fossem tomadas as medidas adequadas para diminuir a ira divina, com a excomunhão ou outra censura apropriada e se necessário à expulsão dos insetos.

Marco Antônio Azkoul também acentua a nova visão estabelecida sobre os animais nessa época:

Durante a época dos bárbaros os animais foram incluídos na relação de direitos comuns, a qual sempre regulou as relações de pessoas na atualidade. Sendo certo que o animal na atualidade é irresponsável pelos próprios atos, respondendo por eles aqueles titulares que têm sob sua guarda o referido animal. A contra senso, antigamente, caso o animal cometesse uma falta devia

54 NASCIMENTO JÚNIOR; SOUZA. Um olhar sobre o estudo dos seres vivos na idade média: temas fundamentais da biologia na filosofia da natureza, p. 22.

55 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800), p. 33.

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26 ser punido; no entanto, eram-lhes reconhecidos direitos legais de serem assistidos por advogados e todos os meios de provas admitidas57.

Porém, a atribuição de capacidade jurídica processual aos animais que foi narrada no livro de Azkoul deriva de uma série de fatores típicos da Idade Média, como a forte carga de superstição que orientava o dia-a-dia do homem medieval, ou, ainda, como forma de justificativa para as “pragas”, cujas tragédias socioeconômicas exigiam uma resposta perante a população, desesperada pela fome e miséria.

A ação judicial envolvendo os animais como partes no processo obedecia às seguintes etapas: petição dos queixosos junto ao juiz episcopal, exame atento da realidade dos fatos, citação dos animais para seu comparecimento e nomeação de um procurador (assistido por um advogado) para defender os animais. O processo respeitava o contraditório, uma vez que a sentença podia variar. Os animais poderiam ser considerados criaturas de Deus que se limitavam a obedecer a lei natural ou um flagelo enviado aos homens como punição por seus pecados, ou ainda um instrumento do demônio. Apenas no último caso os animais eram excomungados ou amaldiçoados58.

Houve o caso, por exemplo, de golfinhos que foram excomungados em Marselha, pois atrapalhavam e impediam o trânsito de embarcações no porto59. Inclusive era costume enviar um oficial para ler em voz alta e inteligível a intimação para que os animais comparecessem à audiência. E como só Deus saberá por que eles não compareciam, cabia ao procurador encontrar uma desculpa plausível.

Durante a primeira fase da Idade Média (do século V ao XII) a Igreja construiu uma visão contemplativa da natureza, oriunda principalmente de Agostinho, bispo de Hipona. Neste período, coube a Santo Agostinho (354-430 d.C), renomado teólogo do século IV, consolidar as ideias de Platão e de Aristóteles no cristianismo. Em seu livro “Cidade de Deus” o autor deixa claro sua posição antropocêntrica60.

57 AZKOUL, Marco Antônio. Crueldade contra animais. São Paulo: Plêiade, 1995, p. 27. 58FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal, o homem, p11.

59FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal, o homem, p12.

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27 Agostinho baseava na racionalidade a superioridade humana. Entendia que os animais não possuíam inteligência, logo não tinham conexão conosco. Também afirmava que o mandamento religioso “não matarás” não deveria ser aplicado aos animais, nem as plantas por serem desprovidas de sensibilidade61.

Dentro da concepção medieval, os animais e as plantas, estão no mundo para servirem os homens, é a ideia bíblica que prevalece nesse período. Bem mais que os vegetais, os animais estavam sujeitos às lendas, mitos e fábulas de conteúdo moral cristão.

Na segunda fase da Idade Média (do século XIII ao XV), o que se produzia eram os conhecimentos filosóficos inscritos numa visão de mundo teológica, principalmente aristotélica. Na Inglaterra, a visão tradicional era que o mundo fora criado para o bem do homem e as outras espécies deviam se subordinar a seus desejos e necessidades62. Acreditava-se que Deus criou o boi e o cavalo para labutar a nosso serviço, o cão para demonstrar lealdade afetuosa e as galinhas para exibir perfeita satisfação quando parcialmente confinadas63.

Nesta época o homem era visto como imagem de Deus, assim não havia dúvidas que era mais valioso que o resto da criação divina. Dentre os trabalhos escritos durante este período acerca dos animais e plantas, aqueles produzidos por Alberto Magno se destacam pela meticulosidade e rigor das informações obtidas.

Santo Alberto desenvolveu uma obra sobre os seres vivos intitulada “De Vegetabilis et Plantis e De animalibus” (por volta de 1260), cujos trabalhos de botânica são respeitáveis. Neles, o autor reforça a importância da experimentação no conhecimento. Sendo um pensador aristotélico, Alberto Magno tinha como objetivo entender o mundo natural construído por Deus para compreender o plano divino.64 Santo Alberto foi beatificado em 1622 pela Igreja Católica.

Influenciado por Aristóteles, São Tomas de Aquino reafirmou a exclusão de qualquer consideração moral aos animais por estes não terem a faculdade da razão que os tornaria

61 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, p. 132.

62 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800), p. 21.

63 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800), p. 33.

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28 próximos do homem. Os animais eram considerados, então, apenas como coisas vivas que não tinham nenhum bem próprio que devesse ser respeitado por qualquer agente moral65.

Não há, na visão tomista, uma categoria de pecados cometidos contra seres não-humanos tanto que ele legitima moralmente a utilização e morte de animais para quaisquer propósitos humanos, alegando que se há alguma proibição de crueldade com animais na bíblia esta só se deve pelo fato de que isso poderia levar os humanos a realizar atos cruéis contra outros humanos.

Assim o que Aquino passa para a filosofia moderna é a superioridade da racionalidade e da inteligência, habilidades que concedem a um ser plenos direitos sobre todos os demais que não as possuem. Tanto é que os maus tratos aos animais não foram incluídos na lista de pecados, eram vistos apenas como um prejuízo à moralidade66.

A influência de São Tomás levou o papa Pio IX, em meados do século XIX, a recusar o estabelecimento de uma organização contra a crueldade com os animais em Roma, argumentando que a sua existência sugeriria que os seres humanos têm deveres para com os animais67.

É importante frisar que nem todas as grandes personalidades que faziam parte da Igreja Católica compartilhavam essa visão. São Francisco de Assis foi uma destas pessoas. São Basílio, no séc. IV d.C é citado juntamente com São Boa Ventura e São Cristóvão como dissidentes da doutrina cristã de origem tomista, pois pregavam o amor em relação aos animais68.

Francisco é a grande exceção à regra do catolicismo ao se preocupar com o bem-estar dos seres não humanos. “Se eu pudesse ser levado à presença do imperador,” disse São Francisco, “suplicar-lhe-ia, pelo amor de Deus, e por mim, que emitisse um edito proibindo a

65 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 46.

66 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 49.

67 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 284.

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29 captura e prisão das minhas irmãs cotovias e ordenando que todos os donos de bois e burros os alimentassem particularmente bem no Natal”69.

Não eram apenas aos seres conscientes que Francisco tratava como irmãos: o sol, a lua, o vento, o fogo, todos eram seus irmãos e irmãs. Extraia “prazer interior e exterior de quase todas as criaturas e, quando lhes pegava ou as olhava, o seu espírito parecia mais estar no céu do que na terra.” Este prazer estendia-se à água, às rochas, às flores e às árvores. Esta é uma descrição de uma pessoa em estado de êxtase religioso, profundamente tocada por um sentimento de unidade com toda a natureza, tendo expressado sentimentos de amor universal70.

No entanto, não foi o amor de Francisco de Assis que prevaleceu na filosofia cristã. A Igreja colocou-se contra o culto das nascentes e dos rios, as divindades pagãs dos bosques e da montanha foram expulsas, deixando assim desencantado o mundo, pronto para ser dominado. Em 1897 o historiador americano Lynn White Jr, considerou o cristianismo a religião mais antropocêntrica do mundo71.

Mas o cristianismo não foi responsável pelos problemas ecológicos, tanto é que a erosão do solo, a extinção das espécies e o desmatamento ocorrem em todas as partes do mundo. Não é necessário determinar aqui se o cristianismo é ou não intrinsicamente antropocentrista. A questão é que no início do período medieval seus principais pregadores sem dúvida foram72.

1.4. DO ANIMAL MÁQUINA AO PIOR DOS VÍCIOS: A CRUELDADE

Mas foi, sem dúvidas, com René Descartes (1596-1650), filósofo racionalista francês, que a crueldade com os animais chegou ao seu ponto mais alto.

O autor defendeu a tese mecanicista da natureza animal, influenciando, até hoje, o mundo da ciência experimental. Para ele, os animais são destituídos de qualquer dimensão

69 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 286. 70 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 287.

71 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800), p. 29.

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30 espiritual, e embora dotados de visão, audição e tato são insensíveis à dor, incapazes de pensamento e consciência de si73.

Em sua obra clássica Discurso sobre o Método, afirma que o método é o caminho para garantir o sucesso do conhecimento. O conhecimento que o autor buscava era baseado na razão, fazia parte da corrente filosófica dos racionalistas. A razão para ele era uma característica que apenas os seres humanos possuíam, formulando o argumento “penso, logo existo”. Pensava que os animais não possuíam nenhuma razão, pois não eram capazes de pensar, de raciocinar. E uma prova de que não possuem nenhuma razão era a sua incapacidade de falar74.

Segundo Naconecy75, Descartes entendia que os animais não eram sujeitos morais porque eram desprovidos de consciência:

Associou a moralidade à consciência, e esta às capacidades intelectuais superiores, como a racionalidade e a linguagem. Para Descartes, já que os animais não possuem uma mente (ou alma racional), eles não podem pensar, ter consciência e linguagem; portanto, eles não podem ter a experiência do sofrimento. Em outras palavras, os animais não podem sofrer porque eles não têm condições mentais para tanto. Eles são organismos não-pensantes, que operam apenas por instinto. A perspectiva cartesiana sustenta que, dado que os animais são irracionais ou desprovidos de consciência, e a dignidade depende inteiramente da razão, os animais não têm qualquer importância moral76.

Sob influência da mecânica, Descartes sustentou que tudo que consiste em matéria é governado por princípios mecanicistas. Desta forma, para Descartes os animais são meras máquinas, autômatos77. Não sentem prazer, nem dor, nem nada. Com esta teoria, os estudos científicos em animais se tornaram amplamente difundidos.

Era um pensador claramente moderno. Mas era também cristão, o que influenciou suas convicções em relação aos animais. Afirmou que tudo o que era composto por matéria era regido por princípios mecanicistas, como aqueles que regiam o funcionamento de um relógio. Um problema óbvio que esta perspectiva colocava prendia-se com a nossa própria natureza. O corpo humano é composto por matéria e faz parte do universo físico. Portanto, podia pensar-se

73 DESCARTES, René. Discurso do Método: Regras para a direção do espírito. Tradução Pietro Nassetti. São

Paulo, Martin Claret, 2006, p. 57.

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31 que os seres humanos também deveriam ser máquinas cujo comportamento era determinado pelas leis da ciência78.

Mas conseguiu evitar a conclusão herética e desagradável de que os humanos são máquinas introduzindo a ideia de alma. Descartes afirmou haver não um, mas dois tipos de coisas no universo: as coisas do espírito ou alma e as coisas de natureza física ou material. Os seres humanos têm consciência, e a consciência não pode ter a sua origem na matéria. Descartes identificou a consciência com a alma imortal, que sobrevive à decomposição do corpo físico, e declarou que esta fora criada especialmente por Deus. De todos os seres materiais, disse Descartes, apenas os seres humanos possuem alma79.

Assim, na filosofia de Descartes, a teoria cristã de que os animais não têm almas imortais conhece a consequência extraordinária de eles também não terem consciência. Eles são, afirma Descartes, meras máquinas, autômatos. Embora possam guinchar quando são cortados por uma faca ou contorcer-se na tentativa de escapar ao contato com um ferro quente, isto não significa que eles sintam dor nestas situações, afirmou Descartes. São regidos pelos mesmos princípios que regem o funcionamento de um relógio e, se as suas ações são mais complexas do que as de um relógio, é porque o relógio é uma máquina feita pelos humanos, ao passo que os animais são máquinas infinitamente mais complexas, tendo sido criadas por Deus80.

Foi nesta época que a prática de experimentação em animais vivos se disseminou na Europa, uma vez que não existiam anestesias, estas experiências provocaram comportamentos nos animais que indicariam, à maior parte das pessoas, um sofrimento de dor atroz. A teoria de Descartes permitia que os experimentadores ignorassem quaisquer escrúpulos que pudessem sentir nestas circunstâncias. O próprio Descartes81 dissecou animais vivos como forma de aumentar o seu conhecimento sobre anatomia, e muitos dos fisiólogos mais destacados do seu tempo declararam-se cartesianos e mecanicistas.

O mais forte argumento a favor da posição cartesiana era que ela constituía a melhor racionalização possível para o modo como o homem realmente tratava os animais. A visão alternativa deixava espaço para a culpa do homem, ao reconhecer que os animais podiam sofrer e suscitava dúvidas sobre os motivos de um Deus permitir que os bichos sofressem tais misérias.

78 DESCARTES, René. Discurso do Método: Regras para a direção do espírito, p. 58. 79 DESCARTES, René. Discurso do Método: Regras para a direção do espírito, p. 58. 80 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 291.

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32 Mesmo porque admitir que os animais tivessem sensações era fazer do comportamento humano algo intoleravelmente cruel82.

Mas Descarte encontrou opositores de peso. É de Montaigne (1533- 1592) que partem as primeiras críticas dentre os filósofos modernos contra a prática de atos cruéis contra animais. Em seu livro Ensaios, disse que a virtude é coisa diferente e mais nobre que as inclinações para a bondade que nascem em nós e que entre os vícios havia um que detestava particularmente: a crueldade. Montaigne dizia que aos homens devemos justiça, mas aos animais devemos solicitude e benevolência:

Mas, ainda que tudo seja discutível, cumpre-nos ter certo respeito não somente pelos animais, mas também por tudo que encerra vida e sentimento, inclusive árvores e plantas. Aos homens devemos justiça; às demais criaturas capazes de lhes sentir os efeitos, solicitude e benevolência. Entre elas e nós existem relações que nos obrigam reciprocamente. Não me envergonho de confessar que sou tão inclinado à ternura e tão infantil a esse respeito que não sei recusar a meu cão as festas intempestivas que me faz, nem as que me pede83.

Para ele a falha que temos em nos comunicar com os animais tanto pode ser atribuída a nós, humanos, como aos animais. Reconhecia que os animais podem nos achar tão irracionais como nós os achamos. Os animais entendem-se perfeitamente, e não só os da mesma espécie, mas também os de espécie diferente. Quanto aos animais que não têm voz, valem-se de movimentos com significações específicas. Em seu entendimento a maior parte do trabalho realizado pelos animais é superior à dos humanos, que não conseguem imitá-los com êxito84.

O autor afirmou que entre os vícios, o que mais detestava era a crueldade85. Esclarece o filósofo que os sanguinários com os animais revelem uma natureza propensa à crueldade, “quando se acostumaram em Roma com os espetáculos de matanças de animais, passaram aos homens e aos gladiadores”86. Também se declarou abertamente contra a caça de animais, achando tal atitude muito desagradável e os caçadores sanguinários:

82 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800), p. 45.

83MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 1 ed. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial,

1972, p. 208.

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33 Quanto a mim, nunca pude sequer ver perseguirem e matarem um inocente animal, sem defesa, e do qual nada temos a recear, como é o caso da caça ao veado, o qual, quando sem fôlego e sem forças, e sem mais possibilidade de fuga, se rende e como que implora nosso perdão com lágrimas nos olhos:

‘gemendo ensanguentado pede mercê’. Um tal espetáculo sempre me pareceu

muito desagradável. Se pego algum animal vivo dou-lhe a liberdade87.

O filósofo deixou claro que se nossa suposta superioridade poderia permitir que aprisionássemos os animais, também permitiu que escravizássemos outros seres humanos, o que demonstra a generosidade superior dos animais, que nunca escravizaram outros de sua espécie88.

Salientou que os franceses se julgavam superior aos estrangeiros por não compreenderem sua língua, seus trajes e seu comportamento, e concluiu que “condenamos tudo o que nos parece estranho e também o que não compreendemos. E por esse prisma julgamos os animais”89. Por fim, ponderou o autor que a guerra, a mais pomposa das ações humanas, que tantos se vangloriavam, ao invés de provar sua superioridade só demonstrou sua imperfeição. “Em verdade, a ciência de nos entrematarmos, concorrendo para a destruição da espécie, não me parece uma prerrogativa que os bichos nos possam invejar”90. E deixou evidente que “não é por virtude de um raciocínio judicioso, mas unicamente por orgulho e obstinação que nos sobrepomos aos animais e nos afastamos de sua companhia”91.

Outro autor que criticou duramente Descartes foi Voltaire (1694-1778), em seu Dicionário Filosófico.Argumenta que a alma é aquilo que anima. Não sabemos mais que isso, pois nossa inteligência é limitada92. Critica o fato de alguns filósofos atribuírem alma vegetativa às plantas e alma instintiva aos animais, pois se neles existe um ser, deve haver uma forma, que é a vida. “Pobre filósofo! Vês uma planta que vegeta, e dizes vegetação, ou alma vegetativa.

87 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 207. 88 MONTAIGNE, Michel. Ensaiosp. 219. 8989 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 207. 89 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 221. 90 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 207. 90 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 224. 91 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 229.

92 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico, 1764. Versão para eBook. Disponível em: <

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34 Notas que os corpos têm e comunicam movimento, e dizes força. Vês teu cão de caça aprender contigo teu ofício, e crias instinto, alma sensitiva. Tens ideias combinadas, e dizes espírito”93.

Ninguém sabe o que é o ser chamado espírito. Para ele, Deus nos deu a inteligência não para penetrar na essência das coisas, mas para nos conduzirmos pela senda do bem. “Homem! Deus outorgou-te o entendimento para bem procederes e não para penetrares a essência das coisas por ele criadas.94

A discussão sobre a existência ou não da alma do animal não faz sentido, uma vez que o homem não tem base para definir o que é alma. Para Voltaire, Deus é a alma que anima toda vida. Assim, contesta o pensamento de Descartes sobre os animais com os argumentos que passo a transcrever pela sua importância:

IRRACIONAIS

Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os irracionais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam!

Então aquela ave que faz seu ninho em semicírculo quando o encaixa numa parede, em quarto de círculo quando o engasta num ângulo e em círculo quando o pendura numa árvore, procede aquela ave sempre da mesma maneira? Esse cão de caça que disciplinaste não sabe mais agora do que antes de tuas lições? O canário a que ensinas uma ária, repete-a ele no mesmo instante? Não levas um tempo considerável em ensiná-lo? Não vês como ele erra e se corrige?

[...]

Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce e sobe e vai de aposento em aposento e enfim encontra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias.

Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrar-te suas veias mesaraicas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimento de que te gabas. Responde-me, maquinista, teria a natureza entrosado nesse animal todos os elatérios do sentimento sem objetivo algum?

93 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico, 1764. Versão para eBook. Disponível em: <

http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/filosofico.html>. Data de acesso: 6 fev 2015.

94 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico, 1764. Versão para eBook. Disponível em: <

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35 Terá nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão impertinente contradição.

Perguntam os mestres da escola o que é então a alma dos irracionais. Não entendo a pergunta. A árvore tem a faculdade de receber em suas fibras a seiva que circula, de desenvolver os botões das folhas e dos frutos: perguntar-me-eis o que é a alma da árvore? Ela recebeu estes dons. O animal foi contemplado com os dons do sentimento, da memória, de certo número de idéias. Quem criou esses dons? Quem lhes outorgou essas faculdades? Aquele que faz crescer a erva dos campos e gravitar a Terra em torno do Sol.

As almas dos brutos são formas substanciosas, disse Aristóteles e depois de Aristóteles a escola árabe, depois da escola árabe a escola angélica, depois da escola angélica a Sorbonne e depois da Sorbonne ninguém.

As almas dos brutos são materiais, proclamam outros filósofos, nem mais nem menos felizes que os primeiros. Em vão perguntou-se-lhes o que é alma material: precisam convir em que é a matéria que sente. Mas quem deu sensibilidade à matéria? Alma material... Quer dizer que é a matéria que dá sensibilidade à matéria. E não saem desse círculo.

[...] Não podemos entender por espírito senão algo desconhecido e incorporal: a isto pois reduz-se o sistema desses senhores a alma dos seres brutos é uma substância nem corporal nem incorporal.

A que atribuir tantos e tão contraditórios erros? Ao vezo que sempre tiveram os homens de querer saber o que seja uma coisa antes de saber se existe. Dizemos a lingüeta, o batoque do fole, a alma do fole. Que é essa alma? Um nome que dei à válvula que, quando toco o fole, baixa e sobe para dar entrada e saída ao ar.

[...] Tinha razão o filósofo que disse: Deus est anima brutorum. Mas devia ter ido mais longe95.

Estes e outros pensadores, líderes e figuras religiosas defenderam a bondade para com os animais. Mas a sistematização e o aprofundamento dos argumentos produzidos em torno do estatuto moral dos animais só ocorreu nas últimas décadas do século XX. Formou-se uma nova área da filosofia, a chamada Ética Animal, cuja literatura partilha uma ideia orientadora: os animais possuem direitos. Pugna-se, desse modo, pela implementação de um respeito igualitário dirigido a eles.

Referências

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