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Dos crimes contra a ordem tributária e a do art. 2º, inciso II, da lei nº 8.13790

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO

DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO

JULIANA SOUTO VIDAL GOMES DA SILVA

DOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, INCISO II, DA LEI Nº 8.137/90

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JULIANA SOUTO VIDAL GOMES DA SILVA

DOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, INCISO II, DA LEI Nº 8.137/90

Monografia submetida ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Tributário, Penal e Constitucional.

Orientador: Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca Setorial da Faculdade de Direito

S586d Silva, Juliana Souto Vidal Gomes da.

Dos crimes contra a ordem tributária e a inconstitucionalidade do art. 2º, inciso II, da lei nº 8.137/90 / Juliana Souto Vidal Gomes da Silva. – 2013.

57 f. : enc. ; 30 cm.

Monografia (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de

Direito, Fortaleza, 2013.

Área de Concentração: Direito Tributário, Penal e Constitucional. Orientação: Prof.Dr. Hugo de Brito Machado Segundo.

1. Crime fiscal. 2. Prisão por dívida - Brasil. 3. Inconstitucionalidade das leis. I. Machado Segundo, Hugo de Brito (orient.). II. Universidade Federal do Ceará – Graduação em Direito. III. Título.

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JULIANA SOUTO VIDAL GOMES DA SILVA

DOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, INCISO II, DA LEI Nº 8.137/90

Monografia submetida ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Tributário, Penal e Constitucional.

Aprovada em: ____/____/________.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo (Orientador)

Universidade Federal do Ceará – UFC

_________________________________________________ Prof. Dr. Hugo de Brito Machado

Universidade Federal do Ceará – UFC

_________________________________________________ Prof. Me. Raul Carneiro Nepomuceno

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AGRADECIMENTOS

Esse trabalho é fruto de uma jornada de crescimento pessoal e acadêmico, a qual não seria possível sem todas as pessoas que estiveram ao meu redor durante esses cinco anos, contribuindo de alguma forma para que eu me tornar-se a pessoa que sou hoje.

Agradeço especialmente:

Ao Prof. Hugo Segundo - excelente mestre que sempre incentiva o debate e a reflexão em seus alunos - pela gentileza e amabilidade prestadas na orientação do presente trabalho.

Ao Prof. Raul Nepomuceno - docente sempre atencioso e profundamente dedicado ao ofício do magistério - pelos conselhos, ensinamentos e auxílio bibliográfico.

Ao Prof. Hugo de Brito Machado - ilustre doutrinador, cujas lições foram a maior fonte de inspiração para a produção dessa dissertação – pela pronta disponibilidade em participar de minha banca examinadora.

Aos demais professores da Universidade Federal do Ceará que contribuíram enormemente a minha formação acadêmica.

Aos meus colegas de sala, GAF, pelo estímulo e companheirismo durante esses cinco anos de graduação.

Aos meus avós Ruy e Arlette que, mesmo morando longe, sempre se fazem presentes na minha vida.

À minha irmã Paula, minha amiga e cúmplice, pelo apoio e incentivo dados em todos os momentos da minha vida.

À minha mãe, meu porto seguro, pelos valores a mim passados e pela disciplina que me ensinou a ter.

Ao meu pai Ruy, por ter cultivado em mim o amor pelos livros, pela cultura e pelo conhecimento, e que, mesmo não estando mais fisicamente aqui, foi o meu maior exemplo nessa caminhada jurídica.

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RESUMO

A criminalização do ilícito tributário surge como uma das formas de tutelar a ordem jurídica tributária, penalizando os indivíduos que transgridam os princípios e regras dessa. Entretanto, por ser o Direito Penal a ultima ratio, só se deve dele utilizar quando os demais ramos do direito não forem eficientes para tutelar o bem jurídico que se deseja proteger. Assim, somente devem ser criminalizados os ilícios tributários mais graves, nos quais o contribuinte age dolosamente no intuito de fraudar o Fisco, a fim de não pagar o que é devido. Todavia, o art. 2º, inciso II, Lei nº 8.137/90, tipifica como crime o mero não pagamento do tributo no prazo legal, não exigindo qualquer ato fraudulento do indivíduo para a configuração o delito. Ora, se o sujeito apenas deixou de adimplir a obrigação de dar à Fazenda, ele possui nada mais que uma dívida com a Administração Pública. Questiona-se então a constitucionalidade desse dispositivo frente à proibição da prisão civil por dívida imposta pela Carta Magna em seu art. art. 5º, inciso LXVII. O Supremo Tribunal possui precedente sobre o tema, no qual o Ministro José Celso de Mello Filho declarou ser constitucional o inciso mencionado sob o argumento de que a Constituição proíbe a prisão civil por dívida, mas não a penal. Tal alegação, no entanto, não pode prosperar como será demonstrando ao longo do presente trabalho.

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ABSTRACT

The criminalization of tax illicit arises as a way of protecting the legal tax order, penalizing the individuals who infringe its principles and rules. Nevertheless, as the Criminal Law is the ultima ratio, it should only be used when the other branches of law are not efficient enough to secure the value that is the aim of protection. Therefore, only the most severe tax illicits, in which the taxpayer acts intentionally in order to defraud the Treasury, in order to not pay what is due, should only be criminalized,. However, the article 2nd., incise II, of the Law Nº. 8.137/90, defines as a crime the mere non-payment of the tax within the statutory period. It does not require

any fraudulent act of the individual to setup the offense. If a person just didn’t fulfill

his/hers tax obligations, he/she has nothing more than a debt with Treasury. We then proceed to question the constitutionality of such provision, in the light of the prohibition of the civil arrest for debt imposed by the Constitution in its article 5th.,

incise LXVII.. The Supreme Court has a precedent on the subject, in which the Minister José Celso de Mello declared the constitutionality of clause mentioned under the argument that the Constitution prohibits imprisonment for civil debt, but not criminal one. This claim, however, cannot thrive as will be demonstrated throughout this work.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..... 10

2 A CRIMINALIZAÇÃO DO ILÍCITO TRIBUTÁRIO ... 12

2.1 O poder de tributar ... 12

2.2 Obrigação tributária e o ilícito tributário ... 14

2.3 Crimes contra a ordem tributária ... 19

2.4 Princípio da intervenção mínima ou ultima ratio... 20

2.5 Princípio da proporcionalidade ... 20

2.6 A legitimidade da intervenção penal ... 22

3 PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA E A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, INCISO II, DA LEI Nº 8.137/90 ... 23

3.1 Direitos fundamentais ... 23

3.2 Prisão civil por dívida ... 25

3.3 A inconstitucionalidade do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90 ... 32

3.4 Prisão civil por dívida versus Apropriação indébita ... 34

4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A MANIFESTAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUANTO A CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, INCISO II, DA LEI 8.137/90 ... 40

4.1 Decisão proferida no julgamento do HC nº 77.631/SC ... 40

4.2 Prisão civil versus Prisão penal ... 44

4.3 A hierarquia dos tratados internacionais no ordenamento jurídico interno ... 47

4.4 Reflexões finais a propósito da decisão ... 49

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 50

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1 INTRODUÇÃO

A fim de exercer suas funções, o Estado necessita captar recursos financeiros, o que é feito principalmente por meio dos tributos. Esses são, segundo o

Código Tributário Nacional (CTN), “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”

Todo indivíduo que praticar uma ação, descrita em lei como geradora do dever de pagar um tributo, terá uma obrigação tributária (principal) para com o Estado, que, após o lançamento, tornar-se-á um crédito tributário.

O inadimplemento dessa obrigação de pagar o tributo gera um ilícito tributário, que pode acarretar uma ação de execução, a imposição de uma multa ou uma penalidade pessoal.

As penalidades pessoais, por atingirem a liberdade, bem tão caro ao indivíduo, devem ser reservadas apenas aos ilícitos tributários mais graves, nos quais o contribuinte deixa de pagar os valores devidos, em razão de ter fraudado o Fisco, ocultando ou falseando os fatos geradores do dever de pagar o tributo.

Com o escopo de tutelar a ordem jurídica tributária contra essas condutas de contribuintes desonestos, que buscam ludibriar a Fazenda, a fim de se escusar do dever de pagar tributos imposto a todos, a Lei nº 8.137/90 definiu os crimes contra a ordem tributária, tipificando condutas como prestar informações falsas, fraudar a fiscalização tributária, falsificar ou alterar nota fiscal, fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, entre outras.

No entanto, salta aos olhos, no referido diploma, a criminalização do ato

de “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;”, no inciso II, art. 2º da lei, posto que não há, no dispositivo, qualquer menção à necessidade de uma conduta fraudulenta ao Fisco do sujeito passivo, para que se configure o tipo penal.

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Logo, seria constitucional o legislador ordinário criminalizar a dívida tributária, uma vez que a Constituição proíbe em seu art. 5º, inciso LXVII, a prisão civil por dívida?

Busca-se, no presente trabalho, analisar a questão nos seus mais diversos aspectos.

No primeiro capítulo, tratar-se-á da criminalização do ilícito tributário à luz dos princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade do direito penal.

O segundo capítulo abordará os direitos fundamentais e a razão da proibição da prisão civil por dívida nos Estados Democráticos de Direito atuais, analisando-se a constitucionalidade do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90.

Por fim, traçam-se considerações sobre o posicionamento do Supremo Tribunal a respeito da questão, no terceiro capítulo, dando-se um enfoque especial ao argumento da possibilidade da prisão penal por dívida utilizado pelo Ministro Celso de Mello no precedente.

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2 A CRIMINALIZAÇÃO DO ILÍCITO TRIBUTÁRIO

O Direito Penal é a ultima ratio, só devendo ser utilizado quando os demais ramos do direito não são suficientes para tutelar o bem jurídico que se deseja proteger. Assim, faz-se necessário uma análise da legitimidade da criminalização dos ilícitos tributários, sob a luz dos princípios da proporcionalidade e da intervenção mínima.

2.1 O poder de tributar

Segundo Aristóteles1, o homem é um ser político que necessita viver junto com seus pares em busca de um bem comum. Destarte os indivíduos se reuniram inicialmente em famílias ou lares, os quais evoluíram para vilas, para então chegar-se finalmente à reunião em cidades. Formou-chegar-se, dessa forma, o Estado, o qual, consoante Dalmo de Abreu Dallari, pode ser conceituado como “ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território” 2.

Para atingir os fins sociais a que se destina, o Estado precisa de recursos financeiros, os quais são obtidos por meio dos tributos, como esclarece Hugo de

Brito Machado: “No exercício de sua soberania o Estado exige que os indivíduos lhe forneçam os recursos de que necessita. Institui o tributo. O poder de tributar nada mais é que um aspecto da soberania estatal, ou uma parcela desta.”3 (grifo original).

O doutrinador destaca, entretanto, que, embora o fundamento do poder de tributar do Estado seja a sua soberania, a relação de tributação não é simples

relação de poder, mas relação jurídica, a qual “desenvolve-se e se extingue segundo

regras preestabelecidas”4, não tendo mais espaço na ordem jurídica atual para

práticas despóticas e abusivas do Estado.

1 ARISTÓTELES. A Política. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

2 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria do Estado. 25ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 119.

3 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 33ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 27.

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O Direito Tributário surge então como meio de regulamentar essas relações jurídicas entre o Estado e os contribuintes.5 Busca-se assegurar o

percebimento dos tributos aos quais o Estado faz jus, mas, ao mesmo tempo, salvaguardar os direitos e garantias individuais dos contribuintes.

Para tanto, a Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 (CFRB/88)6 estabeleceu princípios que devem ser seguidos pelo Estado no exercício do seu poder de tributar. São eles: a) Princípio da legalidade (art. 150, I, CFRB/88), segundo o qual só se pode instituir ou aumentar tributo por meio de lei; b) Princípio da isonomia tributária (art. 150, II, CFRB/88), o qual preceitua que se deve tratar de forma igualitária os contribuintes que se encontrem na mesma situação; c) Princípio da irretroatividade (art. 150, III, “a”, CFRB/88), o qual estabelece que não se pode cobrar tributos em relação a fatos geradores que tenham ocorrido antes da vigência da lei que os instituiu ou aumentou; d) Princípio da anterioridade ou da anualidade (art. 150, III, “b”, CFRB/88), conforme o qual o tributo só poderá ser cobrado no exercício financeiro seguinte ao qual foi instituído ou aumentado; e) Princípio da anterioridade nonagesimal ou mitigada (art. 150, III, “c”, CFRB/88), o qual,complementando o princípio da anualidade, estabelece que os tributos também não poderão ser cobrados antes de 90 (noventa) dias da publicação da lei que os instituiu ou aumentou; f) Princípio da vedação ao confisco (art. 150, IV, CFRB/88), de acordo com o qual o tributo não pode ser de tal forma oneroso que acarrete a perda da propriedade do indivíduo; g) Princípio da liberdade de tráfego (art. 150, V, CFRB/88), o qual dispõe que não se pode limitar a liberdade de locomoção de pessoas e bens por meio de tributos; e h) Princípio da capacidade contributiva (art. 145, §1º, CFRB/88), corolário do princípio da isonomia, concepção aristotélica segundo a qual se devetratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade, no direito tributário também se deve graduar os impostos de acordo com a possibilidade de cada um, cobrando mais que possui maior disponibilidade financeira e vice-versa.

O Estado possui então o poder de tributar, como meio de obter recursos para alcançar os fins sociais aos quais se destina. No entanto ele deve se submeter

5 COÊLHO. Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 12ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 31

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às limitações constitucionais e legais ao exercício dessa competência, uma vez que, no atual Estado Democrático de Direito em que se vive, não se pode admitir autoritarismos e arbitrariedades característicos de Estados Totalitários.

2.2 Obrigação tributária e o ilícito tributário

Se, por um lado, o Estado deve respeitar os direitos e garantidas dos contribuintes no exercício da sua função de cobrar os tributos, esses devem adimplir sua obrigação tributária sob pena de sofrerem as sanções impostas pela lei.

Segundo o Código Tributário Nacional (CTN)7, art. 113, há dois tipos de obrigação tributária: a principal e a acessória.

A obrigação principal surge quando ocorre um fato, chamado no direito

tributário de “fato gerador”, que se subsome a uma hipótese prevista na lei tributária como causadora do dever de pagar o tributo, gerando assim ao contribuinte uma obrigação de dar. Já a obrigação acessória é uma obrigação de fazer ou não fazer imposta ao sujeito passivo pela lei a fim de ajudar o fisco na arrecadação ou na fiscalização dos tributos.

Nas palavras de Hugo de Brito Machado, obrigação tributária é:

[...] relação jurídica em virtude da qual o particular (sujeito passivo) tem o dever de prestar dinheiro ao Estado (sujeito ativo), ou de fazer, não fazer ou tolerar algo no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos, e o Estado tem o direito de constituir contra o particular um crédito.8 (grifo original)

Assim, os indivíduos têmo dever de cumprir suas obrigações tributárias, e a não satisfação dessas faz surgir um ilícito tributário, o qual, conforme os ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho, é “todo e qualquer comportamento

(omissivo ou comissivo) que represente desatendimento de deveres jurídicos previstos em normas que cuidem da tributação, a ela aplicando-se a correspondente sanção.”9

7 BRASIL. LEI Nº 5.172, DE 25 DE OUTUBRO DE 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Brasília, 25 de outubro de 1966. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 19/10/2013.

8 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 33ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 125.

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Para um melhor entendimento do assunto, faz-se necessário perquirir o que é sanção. Veja-se os ensinamentos de Hans Kelsen sobre o tema :

Conforme o modo pelo qual as ações humanas são prescritas ou proibidas, podem distinguir-se diferentes tipos – tipos ideais, não tipos médios. A ordem social pode prescrever uma determinada conduta humana sem ligar à observância ou não observância deste imperativo quaisquer conseqüências. Também pode, porém, estatuir uma determinada conduta humana e, simultaneamente, ligar a esta conduta a concessão de uma vantagem, de um prêmio, ou ligar à conduta oposta uma desvantagem, uma pena (no sentido mais amplo da palavra). O princípio que conduz a reagir a uma determinada conduta com um prêmio ou uma pena é o princípio retributivo (Vergeltung). O prêmio e o castigo podem compreender-se no conceito de sanção. No entanto, usualmente, designa-se por sanção somente a pena, isto é, um mal - a privação de certos bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, valores econômicos - a aplicar como conseqüência de uma determinada conduta, mas já não o prêmio ou a recompensa.10

Desta feita, sanção em seu sentido amplo pode ser um prêmio (sanção premiada) ou uma punição pela realização de uma conduta desejada ou proibida pelo direito respectivamente. No entanto, normalmente, utiliza-se o sentido estrito do conceito de sanção, qual seja o castigo imposto pelo direito àqueles que descumpriram uma norma jurídica. Empregar-se-á, no presente trabalho, essa segunda acepção, a sanção stricto sensu.

Na esfera tributária, as sanções podem ser administrativas, as quais afetam apenas a seara patrimonial do indivíduo, podendo ser, portanto, aplicadas pela própria Administração Pública, ou penais, as quais podem restringir a liberdade do infrator, logo só podem ser impostas pela autoridade Judiciária após o devido processo legal.11

Sobre o assunto, Fernando Capez leciona:

O descumprimento da obrigação tributária, isto é, a ação ou omissão contrária ao direito, caracteriza a chamada infração tributária. A Administração Fazendária pode lançar mão de diversos instrumentos jurídicos, dentre os quais a execução forçada da obrigação inadimplida, a fim de lograr o seu cumprimento. Não só esse remédio jurídico pode ser utilizado para recompor a situação jurídica violada. A Lei também dispõe sobre os chamados remédios sancionadores, os quais poderão servir de meio punitivo do descumprimento da obrigação.12

10 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito / Hans Kelsen; [tradução João Baptista Machado]. 6ª ed. - São Paulo : Martins Fontes, 1998. p. 17

11 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Sanções Penais Tributárias. In: MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Sanções Penais Tributárias. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 2005. p. 414 e 415.

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O descumprimento da obrigação tributária pode acarretar, então, basicamente três consequências:a propositura de uma ação de execução pelo fisco, a imposição de uma pena pecuniária ou de uma pena pessoal.

A ação de execução fiscal, nos dizeres de Hugo de Brito Machado

Segundo, nada mais é que “o processo e o Direito Processual Civil aplicados à solução de conflitos verificados nas relações jurídicas tributárias”13 (grifo original).

Outrossim, como nas demais ações executivas, busca-se o adimplemento forçado do direito.14 A Fazenda visa, com essa medida, o recebimento do valor do tributo, da multa ou de ambos, que lhe é devido.

As penalidades pecuniárias são as multas, ou seja uma punição financeira imposta ao indivíduo em razão da prática de um ilícito, seja ele o descumprimento da obrigação principal de pagar o tributo ou de uma obrigação acessória imposta ao contribuinte por lei, como emitir notas fiscais ou apresentar declarações ao Fisco. Importante ressaltar que como as multas não são tributos, mas sanções de atos ilícitos, elas não se submetem aos princípios impostos à cobrança daqueles.

Já as penalidades pessoais consistem em sanções que atingem diretamente a pessoa do indivíduo responsável pela prática do ilícito, diferentemente das pecuniárias que alcançam apenas a seara patrimonial do sujeito. Por restringir a liberdade, bem tão caro a todos os seres humanos, esse tipo de penalidade só deve ser aplicado aos ilícitos tributários mais graves, uma vez que o Direito Penal é a

ultima ratio. A propósito desse assunto, Fernando Capez assevera:

Tendo em vista o caráter fragmentário do direito penal, temos que ele somente deve selecionar os comportamentos mais reprováveis para erigi-los à condição de crime; e, quanto ao seu caráter subsidiário, somente deverá atuar quando os demais ramos do direito não se mostrarem suficientemente aptos à defesa do bem jurídico.15

Percebe-se, dessa forma, que esse tipo de pena deve ser empregada com bastante cautela, posto que só deve haver intervenção penal quando mais nenhum outro ramo do direito for suficiente para tutelar o bem jurídico ameaçado.

13 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Processo Tributário. 6ª edição. São Paulo: Atlas, 2012. p. 216 e 217

14 Ibid. p. 219

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2.3 Crimes contra a ordem tributária

Desde os primórdios, o Estado brasileiro busca coibir a evasão tributária. O Código Criminal do Império de 1830 já tipificava os crimes de contrabando e descaminho. O Código Penal Republicano de 1890 e o atual Código Penal de 1940 conservaram a criminalização de tais condutas. Em 1964, a Lei nº 4.357 tipificou o não recolhimento de determinados impostos após 90 dias do término do prazo legal, como apropriação indébita.16

No entanto, o primeiro diploma legal a tratar especificamente sobre crimes tributários foi a Lei nº 4.729/65, que definiu os crimes de sonegação fiscal. Pretendia-se com ela coibir a evasão fiscal. A norma tipificou, porém, fatos já previstos como crimes de estelionato, falsidade ideológica, falsidade de documento público e falsidade de documento particular no Código Penal, cominando pena mais branda para tais condutas. Em razão do princípio da especialidade, deixou-se de aplicar o Código Penal para aplicar-se a nova lei, a qual, além de prescrever penas mais leves aos infratores, previa a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo. Assim, em vez de coibir a prática de tais condutas, o referido diploma concedeu tratamento mais benéfico aos transgressores17.

Essa norma foi revogada em 1990 pela Lei nº 8.137, que definiu os chamados crimes contra a ordem tributária. O novo instrumento legal dividiu em dois artigos os crimes praticados por particulares contra a ordem tributária.

O art. 1º dispõe que:

Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000)

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

16 PRADO. Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 4ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2011. p. 271-272

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V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.18

Observa-se que para que se configure o crime é necessário que efetivamente tenha havido a redução ou a supressão do tributo por meio de uma das ações previstas nos incisos do artigo. O crime é, portanto, material, vez que não basta a simples realização da conduta típica, sendo essencial que ocorra o resultado, supressão ou redução do tributo, para que o crime reste materializado19.

É fundamental se destacar que as condutas tipificadas não são meros casos de descumprimento da obrigação de pagar o tributo, que podem ser tuteladas por meio de uma ação de execução fiscal ou de uma pena pecuniária, mas hipóteses de fraude.

A propósito da fraude fiscal, Ernst Blumenstein, citado por Aurélio Pitanga Seixas Filho dispõe:

consiste em um comportamento intencional direto dirigido a induzir a erro às autoridades de acertamento ou jurisdição através de balanços, inventários, livros de contabilidade ou outros documentos falsos, falsificados ou de conteúdo não verídico, mediante ocultação de documentos autênticos ou meios fraudulentos análogos.20

Constata-se que, na fraude, existe o dolo de enganar e lesionar o Fisco. Há, portanto, um atentado contra a moralidade e a boa-fé que devem sempre reger as relações jurídicas, tanto entre particulares quanto entre esses e o Estado, ferindo-se assim a ordem jurídica tributária, bem o qual ferindo-se objetiva tutelar com a Lei nº 8.137/9021. Dessa forma, como há ofensa a valores caros à sociedade, faz-se jus a intervenção do Direito Penal.

18 BRASIL. LEI Nº 8.137, DE 27 DE DEZEMBRO DE 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Brasília, 27 de dezembro de 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8137.htm> Acesso em: 20/10/2013 19 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: legislação penal especial, volume 4. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 694.

20 BLUMENSTEIN, Ernst. Sistema di Diritto delle Imposte, Milano, Giuffrè, 1954, p. 295 apud SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Sanções Penais Tributárias. In: MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Sanções Penais Tributárias. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 2005. p. 115

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Já o art. 2º preconiza que:

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000) I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;

II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;

IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;

V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Os delitos previstos nesse artigo são crimes formais, pois não se exige nenhum resultado para a sua consumação, bastando apenas a realização de um dos comportamentos previstos em suas alíneas22.

Nos incisos I, III, IV e V, assim como no art.1º, percebe-se, nas condutas descritas, a intenção de enganar o Fisco e fraudar o sistema tributário. Lesiona-se a ordem jurídica tributária, sendo razoável, portanto, a criminalização de tais comportamentos. Todavia, atenção especial deve ser dispensada ao inciso II do artigo em comento.

Tal inciso tipifica como crime o mero ato de não recolhimento aos cofres públicos de valor de tributo ou contribuição social. Segundo o tipo, não é necessário que haja fraude ou falsidade. Mesmo que o contribuinte declare o valor devido, nada ocultando do fisco, mas não o recolha, já se configura o crime previsto no inciso II do art. 2º da Lei 8.137/90. A norma tornou assim um mero ilícito administrativo - não pagamento do tributo - que pode ser tutelado pelo próprio direito tributário e processual, em um ilícito penal, o que não deve ocorrer em razão do princípio da

ultima ratio.

Prado (PRADO. Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 4ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2011. p. 273 e 290), segundo o qual o bem jurídico tutelado nos crimes contra a ordem tributária é o Erário, perfilha-se a doutrina de Hugo de Brito Machado (MACHADO, Hugo de Brito. Crimes Contra a Ordem Tributária. São Paulo: Atlas, 2008. p. 22), a qual preleciona que o bem jurídico protegido é a ordem jurídica tributária.

(21)

2.4 Princípio da intervenção mínima ou ultima ratio

É sabido que o Direito Penal só deve entrar em cena quando os demais ramos do direito não forem suficientes para manter o controle social e a ordem jurídica. A criminalização de uma determinada ação só se justifica quando não houver outro meio para tutelar o bem jurídico ameaçado. É o que preconiza o princípio da ultima ratio ou da intervenção mínima. Esse princípio limita o arbítrio do legislador, impedindo-o de criminalizar toda e qualquer conduta.23

Vejam-se as lições de Cezar Roberto Bitencourt sobre o tema:

E o fato social que contrariar o ordenamento jurídico constitui ilícito jurídico, cuja modalidade mais grave é o ilícito penal, que lesa os bens mais importantes dos membros da sociedade.

Quando as infrações aos direitos e interesses do indivíduo assumem determinadas proporções, e os demais meios de controle social mostram-se insuficientes ou ineficazes para harmonizar o convívio social, surge o Direito Penal [...]24 (grifo original)

No entanto, os legisladores contemporâneos não vêm respeitando esse princípio tão fundamental ao ordenamento jurídico como um todo, tipificando condutas que não deveriam ser objeto de intervenção penal, o que, segundo Bitencourt, leva ao “descrédito não apenas o Direito Penal, mas a sanção criminal, que acaba perdendo sua força intimidante diante da ‘inflação legislativa’ reinante nos

ordenamentos positivos”25.

O inciso II do art. 2º da Lei 8.137/90 é um claro exemplo dessa exacerbada criminalização de condutas que poderiam ser repreendidas por outros ramos do direito, não sendo necessária a intervenção do penal.

2.5 Princípio da proporcionalidade

Consoante o princípio da proporcionalidade, as penas cominadas à determinada conduta devem ser proporcionais à gravidade do ilícito cometido.

Para se verificar se determinada medida é proporcional ou não, deve-se fazer um exame de necessidade e adequação. Ela é necessária se não há outros

23 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, volume 1: parte geral. 14ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 1

24 Ibid. p. 13 e 14

(22)

meios menos gravosos com os quais se possa alcançar o mesmo objetivo, e ela é adequada se tiver aptidão a atingir esses objetivos26.

Dessa forma, a norma deve preencher esses dois requisitos para que seja proporcional, o que claramente não ocorre com o inciso II do art. 2º da Lei 8.137/90, vez que há medidas menos gravosas para se tutelar o recebimento de tributos pela Fazenda,a ação de execução fiscal e a imposição de multa.

Sobre tal princípio, doutrinador penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni leciona:

Con este principio no se legitima la pena como retribución, pues sigue siendo una intervención selectiva del poder que se limita a suspender el conflito sin resolverlo. Simplemente se afirma que, dado el derecho penal debe escoger entre irracionalidades, para impedir el paso de las de mayor calibre, no puede admitir que a esa naturaliza no racional del ejercicio del poder punitivo se agregue una nota de máxima irracionalidade, por la que se afecten bienes de una persona em desproporción grosera con el mal que ha provocado. 27

Logo, a pena não deve ser usada como uma forma de vingança, o que não resolve o problema. Deve-se criminalizar apenas as condutas mais danosas aos bens jurídicos essenciais à harmonia social, sendo mister resguardar-se a proporcionalidade entre a pena e a infração cometida.

Ora, figura-se claramente desproporcional cominar pena restritiva de liberdade a um mero descumprimento do dever de pagar ao Estado, posto que o direito à liberdade encontra-se em um patamar acima do direito ao crédito do Fisco.

O direito a uma pena proporcional foi positivado já em 1789, após a Revolução Francesa, na Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen, a qual

estabeleceu em seu art. 8º que “La Loi ne doit établir que des peines strictement et évidemment nécessaires, et nul ne peut être puni qu’en vertu d’une Loi établie et

promulguée antérieurement au délit, et légalement appliquée.”28 (grifei) Logo, tal

26 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, volume 1: parte geral. 14ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 26

27 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho Penal: Parte Geral. 2ª ed. 1ª reimp. Buenos Aires: Ediar 2011. p. 130

Tradução nossa: Segundo esse princípio não é legítima a pena como compensação, uma vez que continua sendo uma intervenção seletiva do poder que se limita a suspender o conflito sem o resolver. Simplesmente se afirma que, já que o direito penal deve escolher entre irracionalidades, para impedir o andamento das de maior calibre, não se pode admitir que esse estabelecimento irracional do exercício do poder punitivo agregue uma nota de máxima irracionalidade, pela qual se afetem bens de uma pessoa em desproporção grosseira com o mal que tenha provocado.

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direito é tanto um direito humano, uma vez que se encontra previsto em dos principais diplomas internacionais de direitos humanos, como também é um direito fundamental, pois o princípio da proporcionalidade encontra-se implícito na nossa Carta Magna.

2.6 A legitimidade da intervenção penal

O Direito Penal tem a função de tutelar bens jurídicos fundamentais29, ou seja, proteger valores essenciais à harmonia do corpo social. A norma penal é então um meio para se atingir um fim, a convivência pacífica em sociedade. Logo, as leis penais que não tutelem bens jurídicos vitais não possuem fundamento de validade, devendo ser extirpadas do ordenamento jurídico.

As normas devem ser vistas sempre como um meio para se alcançar um determinado objetivo e não como um fim em si mesmas, sob pena de se justificar condutas arbitrárias alegando-se que se está agindo de acordo com a lei, como foi argumentado pelos nazistas para justificar seus abomináveis atos no Tribunal de Nuremberg.

Cezar Roberto Bitencourt pondera muito bem sobre o tema que:

A onipotência jurídico-penal do Estado deve contar, necessariamente, com freios ou limites que resguardem os invioláveis direitos fundamentais do cidadão. Este seria o sinal que caracterizaria o Direito Penal de um Estado pluralista e democrático. A pena, sob este sistema estatal, teria reconhecida, como finalidade, prevenção geral e especial, devendo respeitar aqueles limites, além dos quais há negação de um Estado de Direito social e democrático.30

No Estado Democrático de Direito em que se vivenão há mais lugar para arbítrios do legislador, que é limitado pelos princípios constitucionais, devendo respeitar os direitos e garantidas fundamentais dos cidadãos. Destarte, o Direito Penal não pode ser usado como uma forma de ameaça e coação aos contribuintes para o pagamento de tributos, devendo ser empregado apenas nos casos em que há dolo de fraudar o fisco, a fim de escusar-se do dever de pagar tributos imposto a todos.

estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada. Disponível em: <http://www.assemblee-nationale.fr/histoire/dudh/1789.asp> Acesso em: 21/10/2013

29 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, volume 1: parte geral. 14ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 6

(24)

3 PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA E A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, INCISO II, DA LEI Nº 8.137/90

O instituto da prisão civil por dívida remonta à antiguidade romana31, quando o homem respondia por suas dívidas com seu próprio corpo e não apenas com seu patrimônio, o que é impensável nos atuais Estados Democráticos de Direito, nos quais os direitos fundamentais ocupam o topo do ordenamento jurídico. Nesse contexto, questiona-se a constitucionalidade do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90, que criminaliza, cominando pena prisional, o não pagamento do tributo devido ao Fisco no prazo legal, posto que a Constituição, em seu art. 5º, inciso LXVII, veda a prisão por dívida.

3.1 Direitos fundamentais

Inicialmente, faz-se necessário diferenciar direitos fundamentais de direitos humanos, expressões frequentemente tratadas como sinônimas, mas que possuem significados um pouco diferentes.

Os direitos fundamentais são a positivação na Constituição dos direitos humanos, que são ligados a uma concepção jusnaturalista, segundo a qual os indivíduos possuem determinados direitos apenas pelo fato de existirem. Esses direitos são originários e inalienáveis, cabendo ao Estado apenas declará-los.32

Vejam-se as lições do doutrinador português J. J. Gomes Canotilho sobre o assunto:

Os direitos fundamentais serão estudados enquanto direitos jurídico-positivamente vigentes numa ordem constitucional. Como iremos ver, o local exacto desta positivação é a constituição. A positivação de direitos fundamentais significa a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos

considerados “naturais” e “inalienáveis” do indivíduo. Não basta uma

qualquer positivação. É necessário assinar-lhes a dimensão de Fundamental Rights colocados no lugar cimeiro das fontes de direito: as normas constitucionais. Sem esta positivação jurídica, os <<direitos do homem são esperanças, aspirações, ideias, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica política>>, mas não direitos protegidos sob a forma de normas

31 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 466.343. DJ de 05 de julho de 2009. Relator(a): Min.

Cezar Peluso – Tribunal Pleno. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444>. Acesso em: 27/10/2013. p. 1160 e 1161

(25)

(regras e princípios) de direito constitucional (Grundrechtnormen). 33 (grifos originais)

Em que pese a brilhante explanação do mestre, não se concorda com a parte na qual diz que “Sem a positivação jurídica, os direitos do homem são esperanças, aspirações, ideias, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica política”.

Na conjuntura atual, não pode se admitir que seja necessária a positivação constitucional dos direitos humanos, para que esses tenham eficácia. Mesmo que não haja, na Constituição, previsão quanto ao direito à vida ou à liberdade, por exemplo, não significa eles sejam meras esperanças. Como já assinalado, os direitos humanos são inerentes a todos os indivíduos, devendo, portanto, o Estado respeitá-los e garanti-los independentemente de previsão expressa na Lei Maior.

Sobre o assunto, Paulo Bonavides ensina:

Erra todo aquele que vislumbra no valor das Declarações dos Direitos Humanos uma noção abstrata, metafísica, puramente ideal, produto da ilusão ou do otimismo ideológico. A verdade é que sem esse valor não se explicaria a essência das Constituições e dos tratados, que objetivamente compõem as duas faces do direito público – a interna e a externa.

A história dos direitos humanos – direitos fundamentais de três gerações sucessivas e cumulativas, a saber, direitos individuais, direitos sociais e direitos difusos – é a história mesma da liberdade moderna, da separação e limitação de poderes, da criação de mecanismos que auxiliam o homem a concretizar valores cuja identidade jaz primeiro na Sociedade e não nas esferas do poder estatal. 34

Logo, os direitos humanos não são apenas ideais dependentes de positivação constitucional para serem aplicados. Eles são direitos originários e inalienáveis de todos os indivíduos, não podendo ser negados pelo Estado. O

próprio Canotilho afirma que “A primeira função dos direitos fundamentais –

sobretudo dos direitos, liberdades e garantias - é a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado”35. Assim, se os direitos fundamentais

tem a função de proteger os cidadãos dos arbítrios do Estado, obviamente não podem ter a sua eficácia dependente da positivação feita por aquele.

Essa consolidação da supremacia dos direitos humanos percorreu uma longa trajetória histórica, tendo sido primeiro positivada na Virginia Declaration of Rights, precedendo a independência Estados Unidos da América em 1776, seguida

33 CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª edição. 4ª reimp. Coimbra: Edições Almedina, 2003. p. 377

34 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 574

(26)

pela Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen, na França pós-revolucionária de 1789, e finalmente a Declaração Universal dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas (ONU)36, em 1948, após o fim da segunda Guerra Mundial, principal documento de proteção desses direitos no Mundo atualmente, do qual o Brasil é signatário.

Observa-se que os referidos diplomas todos usam a palavra “declaração”,

a fim de se demonstrar que tais direitos não estavam sendo criados, mas apenas declarados, vez que são inerentes à natureza humana, portanto anteriores a qualquer texto legal.37

Após a edição da Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU, ocorreu uma onda mundial de proteção dos direitos humanos, com o surgimento de várias convenções e tratados internacionais a fim de assegurar a proteção daqueles. As Constituições dos Estados também passaram a dedicar maior importância aos direitos fundamentais, promovendo-os ao centro do constitucionalismo moderno, como muito bem leciona Paulo Bonavides:

Com a queda do positivismo e o advento da teoria material da Constituição, o centro de gravidade os estudos constitucionais, que dantes ficava na parte organizacional da Lei Magna – separação dos poderes e distribuição de competências, enquanto forma jurídica de neutralidade aparente, típica do Constitucionalismo do Estado liberal – se transportou para a parte substantiva, de fundo e conteúdo, que entende que os direitos fundamentais e as garantias processuais da liberdade, sob a égide do Estado social.38

Desta feita, observa-se a tremenda importância que os direitos fundamentais possuem no constitucionalismo atual. Eles compõem, como assevera Bonavides com fulcro nas lições de Ernst-Wolfgang Böckenförde, a “abóboda de todo o ordenamento jurídico enquanto direito constitucional de cúpula”.39

3.2 Prisão civil por dívida

36 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 404 e 405

37 RICCITELLI, Antonio. Direito Constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 4ª edição. Baurueri, SP: Manole, 2007. p. 102

38 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 599

39 BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. “Grundrecht als Grundsatznormen”, in

Staat, Verfassung, Democratie Studien zur Verfassungstheorie und zum Verfassungsrecht, 2ª ed. Pp. 182, 183,

(27)

A Constituição brasileira de 1988, conhecida como a Constituição Cidadã, acompanhando essa tendência mundial de proteção dos direitos humanos, estabeleceu, em seu art. 1º, III, como um dos fundamentos da República Federativa

do Brasil a “dignidade da pessoa humana”, positivando os direitos e garantias

fundamentais no título II do texto constitucional.

Um desses direitos é o direito à liberdade de locomoção, assegurado no

art. 5º, XV, da CFRB/88, o qual estabelece que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

A liberdade de locomoção é um dos bens mais caros aos seres humanos, tendo a Carta Magna inclusive previsto um remédio específico apenas para tutelá-lo, o writ constitucional do habeas corpus.

Por ser um direito fundamental tão importante, ele só deve ser limitado em situações excepcionalíssimas, quando for necessário à proteção de outros bens jurídicos mais relevantes. Por esse motivo, a Constituição proibiu a prisão por dívida, já que bens materiais são menos relevantes que a liberdade do indivíduo, excepcionando-a apenas duas hipóteses. Veja-se:

“Art. 5º, LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável

pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e

a do depositário infiel;”

Observa-se que a Lei Maior possibilitou que o legislador ordinário previsse a prisão civil em duas situações, no caso da inadimplência voluntária e inescusável do dever de prestar alimentos e no caso do depositário infiel em alienação fiduciária.

É importante ressaltar, entretanto, que o texto constitucional não estabeleceu uma obrigatoriedade da prisão civil nos casos supramencionados, mas apenas facultou ao legislador ordinário essa possibilidade.40

Todavia, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, em seu art. 7º, §7º proibiu a prisão por dívida, estabelecendo que “Ninguém deve ser detido por

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dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”41

No mesmo viés, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 16 de Dezembro de 1966, estabelece em seu art. 11 que “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual.”42

Os referidos instrumentos foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro pelo decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, e pelo decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, respectivamente, passando assim a produzir seus efeitos internamente, uma vez que concluíram todas as fases que os tratados internacionais precisam passar para entrar em vigor no Brasil, quais sejam, a assinatura, a aprovação pelo Congresso Nacional, a ratificação, a promulgação e a publicação.43

Na realidade, como as convenções em comento tratam de direitos humanos, não é necessária nem mesmo a sua promulgação e publicação para que elas passem a produzir efeitos. Em consonância com o art. 5º, §1º da CF/88, que

estabelece que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm

aplicação imediata”, esses pactos passam a ter eficácia desde a sua ratificação, como assevera Mazzuoli:

Ora, se as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, uma vez ratificados, por também conterem normas que dispõem sobre direitos e garantias fundamentais, terão, dentro do contexto constitucional brasileiro, idêntica aplicação imediata. Da mesma forma que são imediatamente aplicáveis aquelas normas expressas nos arts. 5º a 17 da Constituição da República, o são, de igual maneira, as normas contidas nos tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil seja parte.44

Destarte, após a ratificação pelo Brasil do Pacto de San José da Costa Rica e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, suas normas passaram a ter aplicabilidade no território nacional, não sendo, portanto, mais possível nenhum

41 BRASIL. DECRETO Nº 678, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Anexo ao decreto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and678-92.pdf>. Acesso em: 20/10/2013

42 BRASIL. DECRETO Nº 592, DE 6 DE JULHO DE 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm>. Acesso em: 20/10/2013. 43 MAZZUOLI. Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA., 2009. p. 320 - 329

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tipo de prisão por dívida, a não ser na situação excepcionalíssima de descumprimento voluntário e inescusável de obrigação alimentar.

Alega-se que as Convenções não poderiam ser aplicadas por serem incompatíveis com o texto constitucional, porém a Carta Magna não determina a prisão do depositário infiel, apenas faculta ao legislador ordinário que o faça, e, como os pactos apenas aumentam as garantias individuais, em nada colidem com a nossa Lei Maior, visto que essa prevê, em seu art. 5º, §2º, que “Os direitos e

garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

Ademais, um dos princípios que rege a República Federativa do Brasil em suas relações internacionais é a prevalência dos direitos humanos, prevista no inciso II do art. 4º da CF/88, logo as normas sobre direitos humanos de tratados ratificados pelo Brasil mais benéficas devem ser aplicadas no ordenamento interno45, de modo a o compatibilizar com os compromissos assumidos internacionalmente. Se há normas divergentes, deve-se aplicar a que garante maior proteção aos direitos fundamentais, fim último da Constituição.

Razões não faltam para que a prisão civil por dívida seja definitivamente abolida. Álvaro Villaça Azevedo muito bem sintetiza os principais argumentos para tal:

Por este ponto de vista, o arresto pessoal: a) é incivilizado e desumano, pois representa uma tortura moral; b) é um mal injusto, equiparando o devedor de má-fé, que agiu dolosamente para tornar-se insolvente, ao de boa-fé, que se tornou insolvente, por desventura; c) é iníquo, porque um resulta golpeado na sua honra, família e futuro; ou outro, indiferente a tudo, insulta a quem o alimenta do cárcere; d) é inútil e ineficaz, conforme tem sido demonstrado pela estatística de todos os países; pois, se é certo que, antigamente, o credor se aproveitava do trabalho do devedor e de sua família, hoje o devedor fica preso, inútil, improdutivo, sem que, com isso, exista qualquer vantagem ao credor, e) é injustificado, pois a privação temporária da liberdade de uma pessoa não existe para tutelar interesse social e público, mas um simples interesse privado e pecuniário, qual seja o relativo ao cumprimento de uma obrigação; a liberdade de um cidadão, seja pelo seu resguardo, seja para proteger suas relações morais e jurídicas, com sua família, vale bem mais que o interesse privado de outrem.46

45 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Prisão civil por dívida e o Pacto de San José da Costa Rica (Especial enfoque para os contratos de alienação fiduciária em garantia). Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 146 e 147.

(30)

Em consonância com os princípios de direitos humanos que predominam na ordem internacional, a grande maioria dos Estados Democráticos de Direito da atualidade, como França, Itália, Alemanha, Inglaterra, Portugal, Bélgica, Áustria, Argentina e Estados Unidos, extirparam o odioso instituto da prisão civil de seus ordenamentos jurídicos.47

O Supremo Tribunal Federal (STF) já pacificou de maneira acertada entendimento no sentido de não ser mais cabível no ordenamento jurídico brasileiro a prisão civil do depositário infiel, decretando a inadmissibilidade absoluta de tal instituto nas decisões proferidas em sede dos recursos extraordinários nº 466.343 e nº 349.703 e dos habeas corpus nº 87.585 e nº 92.566, tendo inclusive revogado a

súmula 619/STF, a qual estabelecia que “a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente

da propositura de ação de depósito”48.

No RE nº 466.343, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes defendeu a tese da supralegalidade, segundo a qual os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos e não sejam aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros (processo de emenda constitucional), conforme preceitua o art. 5º, §3º, da CF/88, terão status

supralegal, estando abaixo da Constituição, mas acima das demais normas infraconstitucionais49.

Pela importância dos ensinamentos, transcreve-se um trecho do voto do Ministro no acórdão referido:

Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.

Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5o, inciso LXVII)

47 AZEVEDO, Álvaro Villaça. PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 179

48 BRASIL. Supremo Tribunal Federal - STF. Súmulas. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_601_7 00>. Acesso em: 27/10/2013.

49 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 466.343. DJ de 05 de julho de 2009. Relator(a): Min.

Cezar Peluso – Tribunal Pleno. Disponível em:

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não foi revogada pelo ato de adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.2 87 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n° 911, de 1o de outubro de 1969.

Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do Código Civil de 1916.

Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5o, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel. 50 (grifos originais)

Assim, segundo o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, o Pacto de San José da Costa Rica e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos não têm o condão de revogar a disposição constitucional que lhes é superior, mas estando acima da legislação infraconstitucional, impedem o legislador ordinário de editar normas que prevejam a prisão civil do depositário infiel, não sendo, portanto, esse tipo de prisão mais cabível no ordenamento jurídico pátrio.51

Ademais, no atual Estado Democrático de Direito, onde os direitos fundamentais se encontram no topo do sistema normativo, não é razoável que o sujeito responda com o próprio corpo por uma dívida contraída, o que constituiria uma grave ofensa a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, como bem salientou o Ministro Cezar Peluso, também no RE nº 466.343:

o corpo humano, em qualquer dessas hipóteses, é sempre o mesmo. E o valor jurídico e a tutela que merece do ordenamento são também os

50 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 466.343. DJ de 05 de julho de 2009. Relator(a): Min.

Cezar Peluso – Tribunal Pleno. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444>. Acesso em: 27/10/2013. p. 1160 e 1161

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mesmos, quer se trate de caso de depositário contratual, de depositário legal ou de depositário judicial. Ou seja, a modalidade do depósito é absolutamente irrelevante para efeito do reconhecimento de que o uso de estratégia jurídica que, como técnica coercitiva de pagamento, recaia sobre o corpo humano, é uma das mais graves ofensas à dignidade humana.52

A prisão civil por dívida é um retrocesso à concepção jurídico romano do homem como um corpus vilis53, na qual a pessoa podia responder por suas dívidas com a sua liberdade ou, até mesmo, com a sua vida, o que é inaceitável no ordenamento jurídico hodierno que tem como pilares a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, sendo a vida seguida pela liberdade os mais importantes desses direitos, não podendo, assim, serem eles preteridos em razão de pretensões patrimoniais.

Além do que, quando se há conflito entre normas, deve-se dar preferência à que melhor resguarde os direitos fundamentais, sustentáculos de nossa Constituição, como bem destacou o Ministro Joaquim Barbosa no multicitado RE nº 466.343:

Para mim, porém, o essencial é que a primazia conferida em nosso sistema constitucional à proteção à dignidade da pessoa humana faz com que, na hipótese de eventual conflito entre regras domésticas e normas emergentes de tratados internacionais, a prevalência, sem sombra de dúvidas, há de ser outorgada à norma mais favorável ao indivíduo.54

No mesmo sentido se posicionou o Ministro Ricador Lewandowski:

Portanto, muito mais que uma interpretação restritiva com relação às restrições que se colocam aos direitos e liberdades fundamentais. Penso que se deve dar uma interpretação proativa, no sentido de se fazer com que os direitos e garantias expressos na Constituição possam se concretizar efetivamente.55

Nesse diapasão, resta cristalina a impossibilidade de prisão civil por dívida – a não ser a do devedor voluntário e inescusável de pensão alimentícia –

hoje no Brasil, por ser totalmente incompatível com os valores apregoados por nosso Estado e com os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

52 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 466.343. DJ de 05 de julho de 2009. Relator(a): Min.

Cezar Peluso – Tribunal Pleno. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444>. Acesso em: 27/10/2013. p. 1160 e 1161

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3.3 A inconstitucionalidade do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90

A lei nº 8.137/90 que trata dos crimes contra a ordem tributária, estabelece em seu art. 2º, II, que:

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000)56

[...]

II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

O diploma legal tipifica como crime o fato do contribuinte não recolher aos cofres públicos o tributo ou contribuição social devidas no prazo legal. Como se pode ver, não é necessário que haja fraude para que se configure o crime, bastando o mero descumprimento da obrigação tributária de pagar o tributo que o contribuinte tem com o Fisco.

Ora, se o sujeito passivo apenas não pagou o tributo devido, ele possui meramente uma dívida com a Fazenda Pública, ilícito administrativo que deve ser apenado com multa e cobrado por meio de uma ação de execução, instrumentos adequados para a repressão e cobrança de dívidas.

Ocorre que o legislador ordinário tipificou o fato de dever ao Estado como crime, afrontando diretamente a Constituição Federal, que proíbe em seu art. 5º, inciso LXVII, expressamente a prisão civil por dívida, a não ser nos casos do devedor voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel, sendo que essa última exceção não mais subsiste no ordenamento jurídico pátrio, como demonstrado no tópico anterior.

Há assim apenas um caso excepcionalíssimo da prisão civil no Brasil, o do inadimplente voluntário e inescusável do dever de alimentar, em razão do direito à vida do alimentado que prevalece sobre o direito à liberdade do alimentante, sendo qualquer outro tipo de prisão civil intolerável no atual Estado Democrático de Direito brasileiro.

Dessa forma, não pode o legislador infraconstitucional tipificar como crime fato que a Constituição veda como tal. Há, portanto, na lei supramencionada clara

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Mesma natureza do artigo anterior que possui a seguinte redação “Art. 1° Constitui crime contra a

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inconstitucionalidade material, vez que o seu conteúdo não se compatibiliza com o da nossa Lei Maior.

Sobre o assunto, Hugo de Brito Machado primorosamente assevera que:

Não é razoável admitir-se que o legislador pode definir como crime o que bem entender, mesmo que assim fazendo subverta os dispositivos da Constituição. Se essa afirma que não haverá prisão civil por dívida, certamente o legislador ordinário não pode, para contornar essa limitação, simplesmente definir a dívida como crime. Se pudesse, a Constituição certamente não seria suprema. A rigor, seria absolutamente inútil.57

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil se encontra no ápice do sistema normativo brasileiro. É ela que dá fundamento de validade às demais normas, logo essas devem com ela se compatibilizar, pois, caso contrário, como bem assinalou o ilustre doutrinador, a Constituição não seria suprema, mas inútil.

Desta feita, em função da hierarquia das normas, os diplomas infraconstitucionais não podem contrariar os princípios, regras e valores constitucionais, sob pena de incorrerem em vício de inconstitucionalidade e serem extirpados do ordenamento jurídico, vez que esse precisa ser uno e coerente, não podendo ter normas que conflitam entre si.

Sabe-se que nenhum direito é absoluto e ilimitado. O legislador ordinário deve, contudo, constantemente observar o princípio da proporcionalidade no exercício de sua atividade, não podendo estabelecer limitações descabidas aos direitos fundamentais.

Deve-se sempre analisar se o ato legislativo é necessário e adequado ao fim pretendido. O ato é adequado, se é apto a atingir o objetivo almejado, e é necessário, se não há outro meio menos gravoso para atingir tal escopo. Caso, a norma não seja apta não tem sentido de ser, caso não seja necessária, estará restringindo desarrazoadamente os direitos fundamentais, sendo, portanto, incompatível com os fins da Carta Magna de dar máxima efetividade aos direitos humanos.58

Destarte, é inconstitucional a tipificação, pelo legislador ordinário, da dívida tributária como crime sancionado com pena de detenção, posto que existem meios menos gravosos para a tutela do direito creditório do Fisco, quais sejam, a

57 MACHADO, Hugo de Brito. Estudos de Direito Penal Tributário. São Paulo: Atlas, 2002. p. 26. 58 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional/ Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio

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