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É MAIS FORÇA, EXPLOSÃO E LIBIDO : A MASCULINIDADE HEGEMÔNICA SOB O USO DA TESTOSTERONA

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Academic year: 2021

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“É MAIS FORÇA, EXPLOSÃO E LIBIDO”: A MASCULINIDADE HEGEMÔNICA SOB O USO DA TESTOSTERONA

Lucas Tramontano1 Resumo: este trabalho reflete sobre as permanências e ambiguidades nos atributos que formam a imagem hegemônica do homem a partir da experiência de uso da testosterona. A discussão parte de dados empíricos coletados em minha pesquisa de doutorado, que refletiu sobre a biografia do hormônio sexual testosterona a partir de relatos de história de vida de homens usuários. A testosterona, apesar das controvérsias históricas nessa classificação, permanece sendo descrita como o hormônio masculino por excelência, e cumpre o papel de mensageiro químico de uma masculinidade naturalizada, essencialista e corporificada. A partir dos principais efeitos percebidos do hormônio, discute-se como a testosterona parece capaz de exacerbar um ideal hegemônico de masculinidade. O fato dessa descrição permanecer consensual independente da interseccionalidade de diferentes marcadores sociais da diferença abre margem para o questionamento que embasa esse trabalho: seria a testosterona responsável pela manutenção de atributos tradicionalmente associados à masculinidade numa perspectiva binária de sexo/gênero? Ou a reivindicação desses mesmos atributos por homens com corporalidades bastante distintas, e por vezes periféricas, apontam para um alargamento dos atributos de masculinidade? A conclusão sugere um movimento de “looping effect”, no qual atributos tradicionais de masculinidade são reivindicados e exibidos por homens que escapam aos valores tradicionais da masculinidade hegemônica.

Palavras-chave: Masculinidades. Testosterona. Gênero. Hormônios Sexuais.

Introdução

Este trabalho busca discutir o modelo tradicional e hegemônico de masculinidade a partir de alguns de seus principais atributos, descritos como os principais efeitos da testosterona percebidos por homens usuários. O objetivo é refletir sobre permanências e rupturas da masculinidade hegemônica na contemporaneidade sob a ótica de homens usuários do hormônio.

Os dados empíricos decorrem da tese de doutorado do autor (TRAMONTANO, 2017b), na qual foram conduzidas entrevistas com homens que utilizam testosterona com diferentes finalidades2. A ferramenta metodológica utilizada foi o relato de história de vida, seguindo os pressupostos teórico- metodológicos da pesquisa, que se baseou no conceito de vida social das coisas, conforme proposto por Arjun Appadurai (2008), e biografia do medicamento, de Geest, Whyte e Hardon (1996). Ao todo, foram 21 homens entrevistados, entre cisgêneros (14) e transexuais (7). Em relação à idade, a amostra variou entre 26 e 66 anos, com significativa concentração na faixa de 30 a 40 anos (9). Já no

1 Doutor em Saúde Coletiva (IMS-UERJ), professor no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ (Iesc-UFRJ). E- mail: lucas.tramontano@gmail.com. A pesquisa foi conduzida com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

2 A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa do IMS-Uerj, e registrada na Plataforma Brasil sob o número CAAE 48725515.8.0000.5260.

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que tange à raça/cor, houve forte concentração de homens brancos (15) em oposição a negros (6 pardos e 2 pretos), segundo critérios de autotidentificação. A orientação sexual foi um marcador mais paritário, somando 10 homens heterossexuais e 9 homossexuais, além de 1 pansexual e 1 bissexual.

Houve ampla concentração no eixo Rio-São Paulo. A busca se deu a partir do esquema bola-de-neve, o que levou a certa homogeneidade dos entrevistados: brancos, de classe média e nível universitário.

Os únicos critérios de inclusão na pesquisa foram a autoidentificação como homem e o uso da testosterona. A testosterona é um hormônio esteroide, produzido prioritariamente pelas gônadas, em homens e mulheres, e associada a uma ampla gama de efeitos, de anatômicos a comportamentais.

É mais diretamente ligada ao desenvolvimento de caracteres sexuais secundários em homens, sendo descrita, mesmo no discurso científico, como o hormônio sexual masculino por excelência, ainda que esta classificação seja questionada desde os primórdios da pesquisa científica sobre a molécula (ROHDEN, 2011; AUTOR, 2017b).

No recorte desse trabalho, focamos os trechos das entrevistas nos quais os homens relatam os efeitos considerados positivos ou desejáveis no uso, a saber, força física, desejo sexual e agressividade, considerados efeitos tradicionais da testosterona na literatura biomédica (TRAMONTANO, 2017a). Ancorado na literatura de estudos da masculinidade, notadamente na obra de George Mosse (1996) e Raewyn Connel (2005), destaco que tais efeitos estão de acordo com os principais atributos que formam a imagem ideal do homem Ocidental moderno, naquilo que se convencionou nomear de masculinidade hegemônica.

Outros efeitos são mencionados nas entrevistas, porém, pouco úteis para esse trabalho, como alterações no hematócrito ou na sudorese. Alguns, como o aumento da pilosidade, principalmente barba, e uma voz mais grossa, são muito bem vindos entre os homens trans, mas indiferentes para os cis. Excluí também os efeitos adversos ou indesejáveis, que fogem aos objetivos deste trabalho. O que é mais central para esta discussão é a ideia de que a testosterona não confere esses atributos de masculinidade, mas exacerba ou expõe características que estavam latentes.

Considerando que há relativa heterogeneidade de marcadores sociais entre os entrevistados, busco refletir sobre as possibilidades de adaptação desses atributos, que se pretendem universais, a experiências vividas de diferentes homens. O que, em um primeiro momento, pode ser visto como uma repetição acrítica de valores, sugiro ser olhado a partir da noção de “looping effect” de Ian Hacking (1995), que termina por expandir os limites da masculinidade hegemônica, ao ter seus atributos mais centrais apropriados (e inevitavelmente transformados) por homens que estariam em localizações subordinadas ou cúmplices de masculinidade.

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A força física

Nas entrevistas, o aumento de força física é consensual, responsável pela modificação corporal mais visível e estereotipada, principalmente entre os usuários de anabolizantes. Contudo, os usuários destacam que não basta apenas tomar a testosterona, é preciso uma intensa disciplina, de atividade física e controle da dieta, para o desejado anabolismo muscular, caso contrário, não há crescimento de massa magra. Nessa descrição, a testosterona ganha um caráter indomável, como uma força da natureza, poderosa, mas descontrolada, caso não haja disciplina. A força da testosterona seria, pois, uma força bruta, que exige um controle intenso. “Ganho de força, recuperação de pós treino [...]

sensacionais. Agora eu sei por que os caras tomam isso aqui como se não fizesse mal nenhum! [...]

Com a testosterona, eu acho que o primeiro efeito que eu senti foi [...] o ganho de força, conseguia aumentar a carga (Mateus)3.

A força física é um atributo considerado inerente à masculinidade. Inclusive, a tradução da palavra “virilidade” em latim é, justamente, força. Explicitada pela massa muscular, é frequentemente acionada para descrever o homem ideal: “a mais tradicional e primitiva forma de ver a masculinidade ancora-se na exibição da virilidade e da força física” (CECCHETTO, 2002, p.54). George Mosse (1996) destaca como o ideal moderno de masculinidade retomou a forma física e as proporções musculares do jovem atleta helênico como um padrão de beleza que deveria ser perseguido por todos os homens. Essa musculatura avantajada, contudo, não pode reduzir o homem a um bárbaro, que se aproxime mais de um animal selvagem, devendo ser domesticada por um autocontrole, o grande atributo do modelo burguês de masculinidade. “O corpo ideal projetava tanto a força quanto a restrição” (MOSSE, 1996, p.29, tradução livre). Esse autocontrole será frequentemente acionado pelos interlocutores.

Por vezes, outras características serão somadas à força, mas ainda num sentido de favorecer a construção desse corpo belo e musculoso, de boas proporções. Assim, a testosterona também irá conferir resistência, ânimo, agilidade e disposição, mas é a capacidade de levantar pesos maiores que servirá de comprovação da ação da testosterona, permitindo até dobrar a carga na musculação.

Considerando que esses homens já tendem a levantar uma carga no limite de sua força, dobrar os pesos é realmente uma proeza, relatada com muito orgulho, já que “[v]irilidade, proezas e outros atributos másculos demarcam um dos maiores eixos através do qual os homens situam-se e classificam outros homens” (CECCHETTO, 2002, p.54).

3 Em todas as citações de trechos de entrevista, utilizo a fonte em itálico para diferenciar de citações de referências bibliográficas. Os nomes são fictícios para garantir o anonimato.

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Não à toa, um dos maiores constrangimentos para o iniciante na prática da musculação é ser identificado como aquele que levanta menos peso, que fica “lá só brincando com os pesinhos coloridos.” (Mateus). Esse julgamento moral costuma ser uma grande queixa de quem se aventura na musculação, e foi um dos motivos apresentados por Fernando para recorrer à testosterona: “todo mundo pega[va] um peso maior que eu! Mas as vezes, nem era uma questão de peso [...] eu tenho força física, mas não necessariamente uma...musculatura exuberante”. Ou seja, numa tentativa de diminuir o estigma do “pesinho”, Fernando tenta descolar a “musculatura exuberante” da força física, o que não tem muito eco entre aqueles que já abandonaram há muito tempo os pesinhos coloridos.

Mesmo em falas nas quais a restrição e autocontrole ficam mais evidentes, destacados como uma atitude responsável, fica nas entrelinhas esse orgulho das cargas muito altas. Assim como nas estátuas gregas que serviram de modelo à masculinidade moderna, a possibilidade de exibir uma força superior aos outros é reforçada implicitamente, mesmo que o “correto” seja a contenção. “Nada de cargas excessivas também [...] você vê lá eu botando 60 kg de cada lado, aquilo não é o meu limite.

Aquilo ali é 70, 80% da minha força.” (Jorge). Mateus concorda, afirmando: “segurei um pouco até na carga [...] pra usar não numa carga tão acima, mas conseguir forçar [...] pra tirar o máximo de proveito”. Contudo, no fim, o que importa mesmo é o que Antônio afirma: “Efeito bom é força!”.

Percebemos ainda uma característica do recurso às chamadas drogas de estilo de vida, que seria a elevação das capacidades do organismo a um nível sobre-humano, como no caso do uso de Viagra e a produção de uma “masculinidade mítica”, garantida por uma ereção que nunca falha, inatingível sem intervenções farmacológicas, como argumentado por Meika Loe (2001). No caso, a testosterona irá diminuir o cansaço inerente a uma atividade física exaustiva, garantindo resistência e disposição renovadas. Assim, a testosterona eleva o homem a uma condição superior, permitindo-lhe proezas heroicas. “[O anabolizante] triplica tua força! Eu começo a usar hoje, e amanhã eu tô me sentindo o Hulk, e tô com a coxa do Hulk!” (Paulo). Samuel traz um relato parecido: “Força, resistência, [...] disposição. [...] questão de estímulo, vontade...já no segundo dia eu me sentia [...]

sou o Jesus Cristo agora! Foda! Sou o Arnold!

Em ambos os relatos, temos a menção a figuras sobre-humanas, seja o Hulk dos quadrinhos;

o Arnold Schwarzenegger, considerado por esses homens uma lenda; ou Jesus Cristo, o messias. Um homem deificado, inspirado em heróis, é uma imagem comum à masculinidade, presente desde discursos médicos falando sobre o “mito do super-homem” que afastaria os homens do serviço de saúde a peças publicitárias para incentivar o consumo no dia dos pais que colocam a figura paterna no lugar de um deus ou um herói para seu filho.

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Assim, a força física é evidenciada pela musculatura, e a testosterona é a ferramenta mais indicada para expor essa virilidade. Foi quase unânime a menção à força como primeiro ou principal efeito da testosterona, trazida espontaneamente. A questão do aumento da carga também merece o lugar de destaque conferido: o levantamento de peso é uma das poucas modalidades olímpicas presente desde a Era Clássica. Se o objetivo das primeiras Olimpíadas era enaltecer a beleza da perfeição física do homem-guerreiro, e o halterofilismo manteve sua importância para o homem- soldado da Era Moderna, faz sentido que eles se orgulhem de sua capacidade de dobrar a carga.

O desejo sexual

Além da força, outro atributo marcante do homem seria a “predação sexual”, nos termos de Miguel Vale de Almeida (2000, p. 139), especialmente do homem mediterrâneo/latino. A disponibilidade irrestrita para o sexo, a busca constante por uma multiplicidade virtualmente infinita de experiências e parcerias sexuais, e um desejo de fazer sexo irrefreável, quase animalesco, são características consideradas inerentes e instintivas do homem.

Alguns homens, bem “falantes” em outros momentos, como Jorge, respondiam de forma rápida e sucinta quando abordava essa questão: “O primeiro efeito é sempre a libido que sobe um pouco. Libido sobe.”. Houve casos em que eles apresentaram o aumento do desejo sexual como um efeito colateral: “O único efeito colateral que eu tive é vontade de fazer sexo. Aumentou muito assim, tipo de subir pelas paredes, de querer ir na sauna toda semana, sabe, de querer dar, dar, dar, dar”

(Otávio). É irônico que, ao usar o “hormônio masculino por excelência”, Otávio sinta um desejo de ser penetrado.

Aqui, é útil refletir sobre a polissemia da categoria “libido”. Ainda que o termo possua um significado consagrado na psicanálise, em campo, libido e desejo sexual eram intercambiáveis; seria óbvio que, aumentando a testosterona, aumentaria também o desejo sexual. “Libido, eu não preciso nem falar né, nas alturas!” (Rubens).

O uso da testosterona parece afetar diversos elementos sexuais, como o aumento da vontade de fazer sexo; a ereção e diferenças no genital; e a própria performance sexual. Começando pelo desejo, o mesmo é compreendido simultaneamente como vontade e disponibilidade para o sexo, percebidas a partir da ereção. O melhor exemplo é dado por Mateus, numa fala muito explícita de uma percepção unânime: “Não, aí parecia o maníaco do parque! [risos] Marreta de aço, assim, coisa linda, tipo, parecia que tinha doze, treze anos de novo! Uma coisa bem intensa assim, tipo, ‘nossa, meu deus, a mina tá ali! Puta que pariu, tô de pau duro!’ e tal”.

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Segundo Peter Conrad (2007, p.87), um dos usos de terapias de aprimoramento seria numa noção de “reparo”, ou seja, o uso na proposta de restaurar o corpo a condições prévias. Assim, Mateus compara sua ereção com testosterona àquela do início da adolescência. E esse “reparo” traz ainda uma vantagem: agora, Mateus sabe “o que fazer” com aquela ereção, acrescentando o autocontrole do homem adulto impossível aos “doze, treze anos”. Leandro também compara a ereção com testosterona a algo característico da adolescência: “O que eu sentia num primeiro momento era uma coisa meio que falam dos adolescentes, você acorda de pau duro [risos], acordar com vontade de transar, né, o que eu não tinha antes. É meio, é...o clitóris, ele fica com ereções espontâneas assim, e aí aumenta o desejo”.

Novamente comparando com o Viagra e a ereção mítica, Sérgio explica: “sem a testosterona, você não consegue... quando eu tô usando, consigo muito mais!”, o que deixa claro o poder da testosterona de possibilitar proezas sexuais inalcançáveis na sua ausência. Essa descrição do genital com testosterona, clara na “marreta de aço” de Mateus, é constante também entre os homens trans.

Eu mal sabia o que era clitóris [...] o clitóris lá escondidinho e tal, “que porra é essa de clitóris, tem essa coisa escondida!”, aí, tomando hormônio, [...] eu vi que foi inchando, inchando, aí teve um determinado dia...PUF! Saiu, o equivalente a uma glande, a cabecinha, eu falei “caralho, eu tenho!” (Frederico).

Os relatos deslizam entre o que seria uma maior vontade ou “tesão” (“era necessidade quase que diária de fazer sexo”, Rubens), a sensação de “pau duro” o tempo todo, e a curiosidade de explorar as capacidades do “brinquedo”, como tanto cis como trans se referem ao genital.

Hoje a gente fica excitado e, literalmente, fica de pau duro, então, a gente não sabia o que era ficar de pau duro [risos] Quando a gente aprende o quê que é ficar de pau duro, aí a gente acha que é outra coisa [...] mas depois de um tempo você aprende a usar o brinquedo melhor (Flávio).

A hipertrofia do membro, que a princípio seria uma questão apenas para trans, pode se dar também num corpo cis: “Meu pênis engrossou [...] Isso não fui eu que reparei, foi um garoto que eu saía com ele e, quando a gente saiu de novo, ele falou, ‘o quê que você tomou? [...] é, seu pênis ficou mais grosso’” (Rubens). Assim, uma das maiores inseguranças da masculinidade, o tamanho do pênis, pode também ser modificada com a fantástica testosterona. Foi nesse sentido de “mágica” que Leandro me respondeu sobre a hipertrofia genital: “Para mim, mudou, e o que eu sinto conversando com outras pessoas também é isso, [a testosterona] tem um poder quase mágico! [...] Não acho que é um produto exclusivo dela, mas ela potencializa demais. Eu sinto várias coisas assim de diferente”.

Em relação ao sexo, tudo é muito potencializado. O apetite sexual se torna insaciável, de forma que “você acaba tendo que se masturbar às vezes várias vezes por dia” (Ivan). A masturbação é uma

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questão que se repete nos relatos dos homens trans: “você quer bater punheta três vezes por dia, até [...] fazer sexo todo dia se for possível” (Mauro); por constraste, não é mencionada pelos cis.

Se a anatomia do corpo muda, a “mágica” da testosterona é capaz de influenciar até mesmo a orientação sexual, e novas possibilidades sexuais se tornam disponíveis. Leandro relata como um aumento exponencial do desejo abre caminho para a erotização de corpos que até então não o atraiam, ou, inversamente, coloca o seu próprio corpo como mais disponível a ser erotizado: “Eu acho que aquilo que a testosterona também cumpre no plano do erótico é que ela estabiliza [...] um tipo de corpo que vai produzindo outros desejos. Então, você se torna atraente para pessoas que, a princípio, você não era”. Para Ivan,

De uma maneira geral, os trans pouco transam, né, antes da cirurgia ou antes de transacionar. Não é regra, mas pela dificuldade do corpo, de ficar nu, a maioria transa de cueca, então, quando vem a testosterona, [...] começam os efeitos, nascer pelo, nascer barba, a autoestima sobe, você fica mais seguro, e aí você tem mais coragem de transar nu, de…enfim, de transar mesmo.

A partir desses relatos, é possível falar num certo empoderamento que a testosterona confere, seja no sentido de apresentar-se (e sentir-se) como alguém desejável, seja na segurança e autoestima, no orgulho do corpo, ou mesmo em questões ainda mais profundas, como as que descreve Fernando:

Tendo um corpo mais forte, isso transformou o meu subjetivo também [...] inclusive questões de gênero. [...] o meu subjetivo acabou sendo moldado muito mais para o feminino, e inclusive para uma passividade maior, [...] eu tinha até [...] mais trejeitos femininos, etc e tal [...] mas depois [de usar testosterona] eu senti o que a gente chama de empowerment, empoderamento, e essa, pra mim, foi uma transição. Eu larguei o feminino que não fazia parte de mim, e me tornei uma pessoa muito mais...pró-ativa, mais ativa, e muito mais...dona de mim...é...muito mais pauzuda. Em todos os sentidos, [...] mais fálico [...] eu era uma pessoa engaiolada, e, depois desse processo, eu me redescobri totalmente!

Ou seja, a testosterona altera não apenas o desejo, como a prática sexual, produzindo um

“antes-e-depois”, de maneira que outra forma de avaliar esse poder seria pela sua ausência ao interromper o uso. Compreendendo que um dos mecanismos de controle mais comuns da fisiologia é o feedback negativo, um excesso de testosterona irá inibir a produção endógena. O processo de síntese orgânica de testosterona é lento para os padrões bioquímicos, de forma que, na interrupção súbita, leva algum tempo para o restabelecimento da produção normal. Nesse meio tempo, os índices de testosterona caem a níveis baixíssimos. O resultado fica evidente na fala de Mateus: “Parou de funcionar o brinquedo, assim, foi tipo, total! [...] vontade, desejo sexual, caiu bastante, assim, não tinha, depois que eu parei! [...] sofri, me senti mal, [...] foi bem desesperador”. Samuel é mais explícito: “Tinha vontade, mas, às vezes, a ereção vinha e, tipo...não mantinha! Como diz um amigo meu, ‘pau macio’. É, ficava com o pau macio!”

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Assim, parece que, em relação à “libido”, a mesma testosterona que dá, tira. Se o encontro com o hormônio faz desses homens máquinas de sexo, eleva autoestima e a segurança, ao interromper o uso, a situação se inverte completamente. Diferente da força, que, após o uso, retorna à condição anterior, mas mantém-se algum ganho muscular, o desejo sexual não apenas reverte, mas desaparece.

Com isso, podemos afirmar um duplo papel da testosterona em relação À questão sexual, aumentando o desejo na mesma proporção que o diminui; a “marreta de aço” se converte num “pau macio”.

A agressividade

Se a força física e o desejo sexual são valorizados, a agressividade é negada ou minimizada.

Considerada inerente ao homem (ou à testosterona?), a agressividade vinha fortemente associada à violência física. Contudo, a maioria afirma repudiar essa resposta, inventando outras maneiras de lidar com isso, como relata Fernando:

Eu ainda era muito, digamos, carinhoso, delicado na cama, até porque pra mim não tinha aberto essa porta da agressividade enquanto parte do erotismo. [Aí] atraí outras pessoas, e eu tenho tido experiências bem...enriquecedoras, coisas que jamais eu pensasse que eu curtisse. [...] Eu acabei me tornando talvez mais sádico [...] dentro de uma conjuntura sexual.

Na vida, a agressividade se pontua também, mas não é uma coisa assim, é eventual, é pontual, e eu acho que não tá nada fora dos padrões. [...] nunca fui uma pessoa violenta.

Pedro Paulo de Oliveira (2004) pontua como a contenção da violência representa uma transição entre um modelo aristocrático/medieval de masculinidade para o modelo burguês/moderno.

“A ênfase na bravura, na ousadia e no destemor desloca-se paulatinamente para a questão da firmeza, do autocontrole e da contenção” (OLIVEIRA, 2004, p.25). É o autocontrole que limita os excessos masculinos. Mas a agressividade não será totalmente extinta do ideal de masculinidade; ela passa a funcionar como último recurso, possível, mas acionado apenas em casos extremos. Um homem violento é um homem descontrolado, mas um “homem de verdade” deve “mostrar que há o potencial da violência” (VALE DE ALMEIDA, 2000, p.189, grifos no original). O corpo musculoso cumpre esse papel, mas a agressividade precisa ser domesticada, contida. Uma das estratégias de “escoar”

essa agressividade exacerbada, como vimos, será pela via sexual; outra bastante presente é se dedicar ainda mais à atividade física.

Além de encontrar lugares para “canalizar” a agressividade, as falas sobre esse assunto trazem uma estratégia discursiva de atenuação desse excesso. Foram raros os usos de “agressividade” ou

“violência” para falar de si; essas palavras apareciam quando se referiam a outros usuários, ou como um efeito esperado da testosterona, mas dificilmente como um atributo de si. As falas deslizavam para diversos eufemismos: “impaciente” era o mais comum, mas também “intolerante”, “nervoso”,

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“impulsivo”, “irritado”, “estressado”, “agitado”, “irritadiço”, “com pouca concentração”,

“assertivo”, “estourado”, “de pavio curto”, ou uma genérica “alteração” ou “mudança” de humor.

Isso me levou a pensar que inclusive a “explosão” a que Jorge se refere quando diz que “força, explosão e libido” são os principais efeitos da testosterona seria, na verdade, uma outra forma de explicar uma difusa agressividade, como aparece na etnografia de Fátima Cecchetto (2002) com lutadores de jiu-jitsu.

Para Ivan (TH), a agressividade é necessariamente sinônimo de violência, que ele afirma jamais ter sentido anos de uso, mas comenta que outros de fato percebem esse efeito.

Alguns reclamam que se tornaram mais agressivos com a testosterona. Eu não sei, eu acho que isso aí é uma interferência muito social. [...] Agressão eu acho que é muito cultural. Você vive numa sociedade agressiva, você se torna agressivo. Se ser homem é ser agressivo, então você vai ser agressivo porque você é homem. Então é...eu acho que é uma performance!

Essa fala de Ivan traz dois pontos interessantes. Primeiro, a ideia de que a agressividade seja algo cultural, efeito de uma sociedade agressiva, o que nos leva a concluir que a agressividade não seria, então, efeito da testosterona. Por outro lado, se Ivan sente a necessidade de afirmar a origem cultural da violência, é porque não é consensual. Isso fica claro no segundo ponto: Ivan apresenta uma tautologia entre homens e agressividade. Ser homem é ser agressivo, e ser agressivo faz de alguém um homem. Enfatizar a circularidade do raciocínio é interessante porque essa associação será apresentada de forma muita naturalizada em outras entrevistas. Porém, o questionamento da ancoragem biológica da agressividade não vem apenas de Ivan; outros irão pôr esse pressuposto em xeque substituindo o “cultural” por “psicológico”: “você vê que o cara fica mais nervoso, mais alterado, mas muita gente é muito psicológico”, afirma Jorge. Entretanto, a associação é tão pressuposta que até surpreende quando não é percebida: “Eu tinha muita preocupação com relação à agressividade, que eu tanto lia, que falava, ‘ah, que testosterona torna os meninos agressivos’. Eu não senti isso.” (Frederico).

Talvez algo que mantenha essa associação tão enraizada no imaginário das pessoas seja o fato de que ela é legitimada em discursos oficiais; logo antes de tomar a primeira dose de testosterona, o médico que acompanhava Leandro achou necessário ter uma conversa com ele e sua companheira, pois poderia haver “rompantes de agressividade”; porém, o que ele percebeu foi “um pouco mais de assertividade”, “um pavio curto”, que foi útil para superar os sintomas de uma crônica depressão.

Assim, ao passo que o médico preveniu sobre uma violência física, Leandro associou a agressividade a uma assertividade na vida, que foi bem-vinda. Além disso, a partir do discurso médico, uma outra saída se delineia: admitir que essa seja uma característica inerente ao homem ou à testosterona pode de alguma maneira desculpar; deixa de ser uma falha moral, e se torna uma questão química. Segundo

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Claudio, você fica “mais intolerante [...] porque a testo, hormônio masculino, se você não está acostumado e joga a testo lá em cima você vai ter uma potencialização nos seus efeitos masculinos, né? Agressividade é uma”. Se Claudio apresentou a agressividade como um “efeito masculino”, Mateus foi no sentido inverso: “Ah, cara, efeitos de humor, assim, parecia que eu vivi meses de TPM!

Qualquer coisa, o pavio era muito curto! [...] Muito impaciente, irritadiço, qualquer coisa me tirava do sério. A sensação...o comparativo que eu consigo fazer é assim, vivi de TPM nesse período[...]

bem mais à flor da pele!”.

O que chama atenção nessa fala é a inusitada aproximação de uma noção de agressividade, masculina, com uma característica muito estigmatizada da feminilidade, a TPM, símbolo do suposto desequilíbrio emocional das mulheres. Essa aparente contradição lança luz às contradições do modelo binário de sexo/gênero, e, nesse sentido, destaco que algumas características da masculinidade hegemônica são mutuamente excludentes. Como pode um homem ser agressivo, e responder violentamente, se ele precisa demonstrar autocontrole e não expor sentimentos? Em outra conotação, não seria o recurso à violência física uma “explosão” de sentimentos interdita ao homem?

Por outro lado, uma certa agressividade é imprescindível para a masculinidade. O self-made man, representado contemporaneamente pelo CEO de uma multinacional, é um dos maiores estereótipos da masculinidade moderna, conforme Michael Kimmel (1998, p.111). A competitividade, outra marca de masculinidade, é constante na vida desse homem, e, por isso, é necessária uma postura mais agressiva. Um homem precisa saber se impor, e aquele que não o faz, será taxado de passivo, “frouxo”, e perderá a disputa para outros homens, mais proativos. No esporte, a agressividade também será enaltecida; ninguém ganha uma competição com uma postura apática, e é mesmo esperada certa violência em esportes “de contato”. Não à toa, o trabalho e o esporte são arenas idealmente masculinas. Novamente, o que irá diferenciar a boa agressividade, que enaltece o homem, da má, motivo de vergonha e humilhação, será o autocontrole.

Considerações Finais

A partir dos relatos, podemos perceber como três atributos constituintes da imagem do homem moderno são vistos como efeitos diretos da testosterona, e descritos em corpos muito diferentes entre si, o que poderia nos levar a supor uma homogeneidade da masculinidade que apagaria a interseccionalidade de marcadores que forma o corpo e o lugar social desses homens. Porém, o que me parece mais adequado é argumentar no sentido de um efeito de looping effect: ao exibir características do padrão mais hegemônico e tradicional da masculinidade, esses homens acabam por

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expandir, forçosamente, o conceito de masculinidade, exigindo um alargamento da categoria.

Determinados atributos, como a força de um corpo musculoso, a predação sexual e a violência pressuposta deixam de ser marcas do homem branco cis heterossexual, e estarão disponíveis também em corpos desviantes em diferentes eixos.

Exemplos como a intercambialidade entre o pênis e o clitóris e a vontade de ser penetrado ao usar testosterona confundem o que seriam efeitos anatômicos/comportamentais do hormônio que a ciência, num modelo binário de sexo/gênero, historicamente construiu. Inversamente, homens que seriam descritos como desviantes ou subordinados exibem efeitos típicos do que seria o homem

“macho”. Encerro essa reflexão com um último exemplo: Rubens, um homem gay considerado

“afeminado”, descreve que sofria violência homofóbica ao passear com sua cachorrinha. Porém, após a testosterona, ele, agora bastante musculoso, passou a intimidar: “Há um certo respeito que o corpo impõe. [...] Não sou mais a bichinha que andava com uma poodle”, afirma, apesar de continuar andando com a poodle. A diferença é que agora ninguém irá desafiá-lo; seu corpo expõe o potencial da violência de que falava Vale de Almeida (2000). Assim, certos pressupostos do binarismo de gênero tornam-se insustentáveis; a imagem do “macho”, da “bicha”, do cis ou do trans não é mais evidente, escapando aos estereótipos. O que pude perceber em campo, e busquei apresentar aqui, é que o binarismo de gênero não dá conta de explicar a multiplicidade de possibilidades de construção de masculinidades, permitindo a homens “subordinados” a exibição de atributos “hegemônicos”.

Referências

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A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, 2008. p. 15- 88.

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CONNEL, Raewyn. Masculinities: Second Edition. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2005.

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“It's more strength, explosion and libido”: the hegemonic masculinity under testosterone use

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Keywords: Masculinities. Testosterone. Gender. Sexual Hormones.

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