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PELOS CAMINHOS DA GESTÃO PÚBLICA DA SAÚDE EM FORTALEZA

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Academic year: 2021

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Cadernos do Cuidado ISSN 2595-0886

PELOS CAMINHOS DA GESTÃO PÚBLICA DA SAÚDE EM FORTALEZA

Lucia Maria Bertini1

RESUMO

Este artigo apresenta um problema de gestão detectado na vivência da autora como tutora no Projeto Cami- nhos do Cuidado, o qual foi realizado junto a turmas de diversas regionais da Cidade de Fortaleza, à luz do Método de Análise de Políticas – MAP, instrumento metodológico e operacional estudado durante curso de especialização em Gestão Estratégica de Políticas Públicas. No contexto atual, a ocorrência de um forte desmonte na rede de saúde mental municipal, denunciado pelos participantes e observado, principalmente, em visitas domiciliares canceladas, carros desativados, demissões, rotinas burocráticas e redução de equi- pamentos e insumos para o atendimento, explicita as dificuldades referentes à atenção em saúde, ao cuidado em saúde mental e aos problemas relacionados ao uso de crack, álcool e outras drogas. Esse cenário enseja o estudo sobre o desenvolvimento da gestão pública à luz da realidade daqueles trabalhadores e suas estra- tégias para superação dos problemas. Este artigo é uma referência a esta vivência e percorre os principais elementos dessa reflexão.

Palavras-chave: Administração de Serviços de Saúde. Assistência à Saúde. Saúde Mental. Crack, Álcool e Outras Drogas.

1 Psicóloga (PUC/RS), especialista em gestão estratégica de políticas públicas (FPA/UNICAMP) e mestra em planejamento e políticas públicas (UECE/CE). Contato: lubertini.ce@gmail.com

ARTIGO ORIGINAL

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INTRODUÇÃO

Entre 2014 e 2015, por ocasião da especialização em Gestão Pública Estratégica, em curso oferecido pela parceria entre a Fundação Perseu Abramo (FPA) e a Universidade Estadual de Campinas (Uni- camp), analisei um recorte da situação da atenção básica na saúde no município de Fortaleza/Ceará, a partir da vivência como tutora em sala de aula junto a seis turmas de formação no Projeto Cami- nhos do Cuidado2. Esta atividade com as turmas aconteceu simultaneamente ao curso de especiali- zação, e as reflexões feitas se constituíram em um trabalho de conclusão de curso (TCC).

Quanto à minha rotina, ao mesmo tempo em que era aluna da pós-graduação, estudando problemas de gestão, era tutora em sala de aula no projeto Caminhos do Cuidado, refletindo sobre o papel da atenção básica e da atenção em saúde mental junto a trabalhadores dos postos de saúde – Programa de Saúde da Família (PSF). A experiência, que trouxe à tona muitos problemas na gestão municipal da saúde, suscitou o aprofundamento das temáticas de saúde mental, reforma psiquiátrica e gestão pública, possibilitando analisar a gestão da Prefeitura Muni- cipal e o momento atual vivenciado por boa parte dos agentes comunitários de saúde de Fortaleza, quanto às mudanças no andamento de seu processo de trabalho e nas formas de cuidado em saúde.

O TCC se constituiu em um trabalho prático, a partir de um problema central escolhido como relevante, de modo a analisar as questões rela- cionadas a este problema, suas cadeias causais, estratégias, proposições e possibilidades. Assim, trabalhei, como situação problema, a afirmação de que “o modelo de reforma psiquiátrica e de atenção

à saúde mental não está sendo implementado em Fortaleza”, ressaltando que o ator social que declara o problema é o conjunto de agentes comunitários de saúde, técnicos e auxiliares de enfermagem que atuavam na atenção básica em Fortaleza naquelas áreas regionais, participantes da formação3, os quais foram ouvidos no curso ministrado em For- taleza com financiamento do Ministério da Saúde4. Esta aproximação rendeu aprofundamento nos temas em debate e possibilitou a reflexão sobre o modelo de gestão pública que podemos almejar, relembrando o longo caminho percorrido por movi- mentos sociais em prol de uma saúde de qualidade e para todos, bem como em prol da reforma sani- tária e da reforma psiquiátrica. Esta, desde os anos 70 até hoje, ainda está em andamento, visto que sofre retrocessos e ainda tem muito caminho para poder superar as tendências das antigas violências asilares, do modelo hospitalocêntrico e das suces- sivas violações de direito. Assim, nos vemos diante de um desafio por mais caminhos de cuidado, com menos violações.

SITUANDO TEORICAMENTE O PROBLEMA E INDICANDO A RELAÇÃO COM A TEMÁTICA DO CURSO

A conquista de direitos, no Brasil como em outras partes do mundo, é resultado de longos processos de construção em que diferentes atores sociais colocam na arena política seus interesses e suas necessida- des, diferentes e frequentemente confli- tantes, em busca do reconhecimento social dos mesmos, expresso em constituições ou leis (BRASIL, 2009, p. 9)

2 Formação de agentes comunitários de saúde e auxiliares/técnicos de enfermagem em curso com a temática Saúde Mental: Crack, Álcool e outras Drogas, de 60 horas. Turmas realizadas em Fortaleza, de agosto a novembro de 2014.

3 Seis turmas nas Regionais I, IV e VI, duas turmas em cada Regional.

4 O Curso visava melhorar a atenção ao usuário e seus familiares, por meio da formação e qualificação dos profissionais da Rede de Atenção Básica à Saúde, dentro do Plano Crack é Possível Vencer do Governo Federal/ Ministério da Saúde.

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A política pública de saúde é uma das garantias da Constituição Federal e um dos primeiros direitos conquistados depois de sua promulgação, mediante a mobilização da sociedade civil e sua participação em conselhos e conferências que debateram e organizaram a atenção em saúde até os dias atuais.

Talvez por esse histórico – 14 Conferências Nacio- nais de Saúde até 2014 e 4 Conferências Nacionais de Saúde Mental –, seus principais gestores já tenham conseguido perceber a necessidade de gerar

“vínculos ativos da vontade coletiva”, nas palavras de Nogueira (2011), obtidos por meio do aprofunda- mento do processo de democratização, com vistas a um Estado Necessário. Essa correlação de forças políticas introduz, necessariamente, novos arranjos institucionais e induz, junto ao Estado, novos instru- mentos metodológico-operacionais.

Identifica-se, nas pesquisas bibliográficas, que a área da saúde faz uso frequente de referências e diretrizes sobre planejamento estratégico situ- acional, ainda pouco conhecidas e aproveitadas na academia e na gestão pública. São referidos marcos analítico-conceituais que reposicionam a correlação de forças, reconhecendo o contexto, a influência do capitalismo e das suas manifesta- ções e as implicações de alterações nos rumos dos processos, na medida da utilização de instrumentos forjados à luz de análises, conceitos e referências, de forma não conservadora.

As políticas neoliberais propõem a redução do Estado e a supremacia do mercado como baluar- tes da eficiência. Vimos, muitas vezes, as políticas sociais sendo reduzidas e se tornando terceirizadas, particularmente na saúde, em nome de uma efici- ência e de uma redução dos custos das políticas sociais. Com isso, reduzem-se as garantias e os avanços obtidos junto à população com a reforma psiquiátrica e com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e de seus modelos de intervenção predominantemente baseados na democratização da saúde. De fato, a participação e a relação comu- nitária fazem parte da transformação revolucionária

que se pode operar no desenvolvimento das políti- cas sociais, para muito além do assistencialismo.

A política de saúde mental é uma conquista que ocorre a partir da humanização dos serviços e do acolhimento, o qual se dá tanto pela escuta, como pelo vínculo e pela construção de políticas de matriciamento e de resgate da função das redes comunitárias, bem como da própria organização da comunidade, conteúdos ministrados e trabalhados no Projeto Caminhos do Cuidado.

Nesse contexto, frente à mudança de modelo de gestão da atenção básica implementada na gestão municipal de Fortaleza/CE, no mandato 2013-2016, atualmente renovado (2017-2020), o qual acolheu a proposta de formação do Minis- tério da Saúde, foram identificadas, durante a realização do Projeto Caminhos do Cuidado, difi- culdades para executar e qualificar a proposição de atendimento em saúde mental na atenção básica em Fortaleza. As mazelas registradas pelos par- ticipantes em sala de aula apontaram a adoção de um modelo que estava priorizando o atendimento de demandas espontâneas nos postos de saúde e minimizando as ações programáticas.

Foram reduzidas (demitidas sem reposição) as equipes de profissionais dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), que deveriam qualificar a atenção básica, bem como foi suspensa a possibili- dade de realização de visitas domiciliares, justificada pela súbita falta de veículo, recurso não mais prio- rizado. Além disso, a direção das unidades básicas de saúde desestimulou reuniões entre as equipes e mesmo as saídas a pé dos agentes comunitários de saúde, em prol do atendimento contínuo e tabu- lação de dados para informe sistemático. Conforme depoimento de participante, que se repete nos gru- pos: “a ordem é fornecer números, não há tempo para reunir com a equipe e muito menos com profis- sionais de outros equipamentos da rede”.

Essa nova (velha) forma veio contrariando os princípios e a legislação complementar do Sistema Único de Saúde, que prevê que a atenção básica

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deve atuar com a perspectiva da atenção integral de forma a impactar na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes da saúde das coletividades, tendo na saúde da família sua principal estratégia. A integralidade também diz respeito a conciliar ações programáti- cas e demanda espontânea e preconiza o trabalho de forma multiprofissional, interdisciplinar e em equipe. A atenção domiciliar faz parte desse menu de ações da atenção básica e deve ser estrutu- rada de acordo com os princípios de ampliação do acesso, acolhimento, equidade, humanização e integralidade da assistência. Essas estratégias são oriundas do processo de negociação e pactuação tripartite entre Ministério da Saúde, gestores muni- cipais e estaduais e usuários dos serviços, levando em consideração o acúmulo das experiências con- cretas realizadas no cotidiano do SUS.

Assim, foram adotadas formas de gestão asso- ciadas à “modernização” e à “qualidade”, como é o caso da ampliação de horários em atendimento à demanda espontânea e supressão das ações pro- gramáticas, que aparentemente conferem maior presteza na atenção básica, explicitando o des- monte das políticas sociais em favor da redução do Estado, em detrimento de construções conquista- das em anos de formulação coletiva e participativa.

Efetivamente, o modelo neoliberal atingiu a saúde com seus pressupostos desde a década de 90. Nesse período, não obstante a ampliação do acesso aos serviços de atenção básica, decorrente do fortalecimento do SUS, já ocorria a mercantiliza- ção de parte dos serviços secundários e terciários, com vistas à capitalização das políticas sociais.

Apesar disso, foram afirmadas as políticas inclu- sivas do SUS, frustrando o modelo neoliberal, que nunca desistiu deste filão da saúde. O que se viu na história recente de nossa democracia foi a consoli- dação de um modelo de acesso universal, em que o Estado assumiu a saúde como “direito de cidadania para todo o cidadão brasileiro”:

A conversão do sistema de saúde brasileiro, no decurso da década de 1990, ao priorizar a descentralização das políticas de saúde, e ao optar pela substituição do modelo biomédico, centrado nas especialidades médicas e na tecnologia de ponta, pelo modelo simplificado da atenção básica, vem oportunizando a participação indivi- dual e coletiva no que tange às questões de saúde. (FUHRMANN, 2004, p. 128)

Mesmo assim, se manteve um cenário de dis- puta, em que se renovaram as expectativas do capital por capturar as políticas de saúde para seus interesses, isto é, para o lucro. A ampliação da terceirização do setor da saúde, desde os anos 90, através das Organizações Sociais (OS) é uma prova disto. Mais recentemente, o SUS tem sua história interpelada, desta vez através da limitação dos gastos prevista pelo Governo Federal, sob nova (velha) direção. Mas esse é um outro capítulo.

ALGUNS ELEMENTOS DA ANÁLISE DE POLÍTICAS

As políticas públicas se constituem em objeto específico e qualificado de disputa entre os diferentes agrupamentos políti- cos, com algum grau de interesse pelas questões que têm, no aparelho de Estado, um locus privilegiado de expressão (DAG- NINO, 2009, p. 70).

Examinam-se, a seguir, os principais elemen- tos oferecidos pelo modelo de análise de políticas da gestão pública adotado – Análise de Políticas (COSTA; DAGNINO, 2014) – a fim de compreender a situação-problema estabelecida, a saber: a identi- ficação dos atores sociais; a descrição do processo decisório mediante o qual a situação-problema foi gerada, apontando os atores significativos desse processo; o processo de formação da agenda deci- sória e os conflitos abertos, encobertos e latentes

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associados ao processo; a identificação das pos- sibilidades de aumentar o poder do ator social;

o detalhamento do triângulo de governo, avaliando a potencialidade para enfrentar as dificuldades, a governabilidade do ator social e sua capacidade para influenciar o contexto e resolver o problema; a capacidade de fazer as alterações desejadas frente a normas institucionais existentes e a compromis- sos eventualmente assumidos; e a identificação de quem se beneficia com o problema.

Ator social é quem planeja. Conforme Matus (1993, p.106), na sua teoria da produção social, “é uma personalidade, uma organização ou agrupa- mento humano que, de forma estável ou transitória, tem a capacidade de acumular força, desenvolver interesses e necessidades e atuar produzindo atos na situação”. Ator social é quem tem uma perspec- tiva de ação sobre a realidade na qual vive, podendo ser indivíduos (personalidades), organizações ou agrupamentos de pessoas. No caso em análise, os agentes comunitários de saúde (ACS) da Prefeitura de Fortaleza constituem o ator social que planeja.

Embora estejam subordinados à gestão de prefeito, secretário de saúde e secretário regional, os quais atualmente definem as mudanças que vêm provo- cando alterações no atendimento, avaliadas como negativas, os agentes comunitários de saúde, inco- modados com as mudanças no modelo de gestão, fazem a reflexão sobre os problemas e avaliam as possibilidades de mobilização que possuem e sua capacidade de interferir nesse modelo alterado.

Assim, aproveitam a oferta do Projeto Caminhos do Cuidado para trazer a situação, debatê-la e, dessa forma, qualificar sua avaliação, transformar a rea- lidade e melhorar o clima no ambiente de trabalho.

Os agentes comunitários de saúde são oriundos das comunidades, sendo esta uma estratégia do SUS para que o trabalho parta das especificidades locais e respeite-as. Eles percebem e relatam as dificuldades no ambiente de formação e, a princí- pio, rejeitam a “nova atribuição”, ou seja, o cuidado em saúde mental tratado no curso. Alegam que

as demandas por dados de cadastro e obrigatorie- dade de resultados em grande escala, por um lado, e as más condições de trabalho (falta de protetor solar, fardamento, etc.), por outro, têm prejudicado o trabalho junto à comunidade.

No entanto, ao longo da formação, percebem que, pelo trabalho que fazem e pelo conhecimento da realidade local e das pessoas que ali residem, os cuidados em saúde mental já ocorrem e notam que eles são os melhores para esse cuidado ini- cial, mesmo em grande escala, pois a maioria da população já se tranquiliza e pode ser atendida satisfatoriamente em nível primário, na atenção básica. Esse é de fato o objetivo do curso: identifi- car o trabalho já existente e alcançar ferramentas para sua qualificação. Problemas mais complexos são por eles identificados e encaminhados para a equipe do posto de saúde, para uma atenção mais especializada, etapa em que a orientação da equipe de Saúde da Família, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) e a atenção dos demais serviços da rede – como o Centro de Atenção Psicossocial para usuários de Álcool e Outras Drogas (CAPS-AD) – são fundamentais. Tanto com a visita domiciliar quanto com o matriciamento (orientação técnica especializada fornecida para os agentes da aten- ção básica frente aos diversos casos atendidos) e com os encaminhamentos na rede, os problemas podem ser tratados ainda centrados no posto de saúde, que segue fazendo o acompanhamento.

No entanto, o que os atores sociais percebem é que esse modelo aprovado nas instâncias de participação históricas da saúde, em conselhos e em conferências não está sendo preservado, tampouco estimulado pela gestão, apesar do financiamento federal para as unidades de saúde terem prosseguimento, tendo esta participação no Projeto Caminhos do Cuidado como condição.

É nesse contexto mesmo que acontece a nega- tiva da gestão em garantir os preceitos básicos apresentados, quando os ACS relatam a realidade vivenciada no cotidiano de seu trabalho.

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O Processo Decisório é o momento inicial de elaboração de políticas e de formulação, em que se definem preliminarmente os objetivos e as estraté- gias a serem adotadas. Tendo em vista a explicação e a origem da situação-problema, assim como os possíveis atores sociais envolvidos, além de des- crever a situação, leva em consideração elementos como os próprios atores sociais envolvidos, infor- mações disponíveis e estratégias para entender o processo político e estabelecer processamento técnico-político na formulação, de acordo com o modelo adotado para tal, tornando os problemas chave temas para a agenda política.

São identificados conflitos abertos, encobertos e latentes a serem explicitados, de forma a possibi- litar que a agenda decisória leve em consideração as posições dos diversos atores sociais envolvidos, visto que, via de regra, os mais poderosos defendem suas prioridades e influenciam as proposições de forma definitiva na constituição da agenda decisória.

Nessa análise, vários interesses podem ser observados. Em primeiro lugar, alega-se o interesse da população, que passa a receber o atendimento do posto de saúde de forma ininterrupta das 7:00h às 19:00h, atendendo-se sua demanda espontânea.

A gestão municipal diz estar oferecendo melhores serviços à comunidade. No entanto, essa gestão transforma o posto em atendimento de demanda e não mais concilia ações programáticas – estas não são mais permitidas pela coordenação do posto, que deve atuar como um serviço de emergência.

Aparentando prestar melhores serviços, a gestão reduz os custos ao suprimir a equipe local de saúde da família, que deveria refletir com os ACS sobre as condições de saúde, dispensa a equipe ampliada dos NASFs e suspende os carros das visitas domi- ciliares, descontinuando o cuidado. Dessa forma, altera a agenda política até então executada e coloca à frente outros interesses, desta feita, eco- nômicos. Ao Governo Federal, nesta proposição do Projeto Caminhos do Cuidado, interessa manter o financiamento e ampliar as ações de saúde básica

e as complementares, qualificando o pessoal para melhor atender os casos de saúde mental relacio- nados ao uso de álcool e outras drogas, financiando o projeto. Aparecem, ainda, os interesses de comu- nidades terapêuticas e de seus proprietários. Os governos federal, estadual e municipal passaram a financiar vagas para essas instituições para a inter- nação de usuários de drogas, apesar do conflito que se verifica, principalmente, com os movimentos de saúde mental. Estes criticam a iniciativa, alegando que se encontra em curso uma sabotagem ao ainda em implantação modelo de atenção psicossocial – a atenção básica com equipes da Estratégia de Saúde da Família – ESF, NASFs, Consultórios na Rua, Cen- tros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Residências Terapêuticas, além de vagas de desintoxicação em hospitais gerais, que deveriam estar sendo ampliadas. Ao contrário, o que ocorreu nesse perí- odo, conforme a leitura dos agentes comunitários de saúde, foi a redução dos investimentos nesses serviços e em equipamentos, assim como menor financiamento de vagas de internação – como retomada do modelo asilar. Assim, atualmente, os interesses são focados explicitamente em retomar o modelo asilar, com a proposta de ampliar os lei- tos em hospitais psiquiátricos.

Sobre interesses envolvidos, a bibliografia da gestão estratégica situacional, como é conhecida, nos indica que é preciso identificá-los para que a tomada de decisão seja mais equilibrada. Sempre é preciso levar em consideração interesses diferen- ciados, e mesmo antagônicos, para compreender as agendas decorrentes da problemática analisada, bem como negociar para que as decisões sejam ampliadas para além das agendas particulares e dos interesses econômicos e capitalistas. Sempre que mais organizados e fortalecidos, os interesses da população podem vir a obter maior influência mediante a pressão de sua organização e explici- tação de conflitos, interferindo na agenda política.

Nesse caso, a população precisa ser informada de que os meios mais fáceis nem sempre são os

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mais saudáveis, o que já foi percebido pelos ACS.

Com equipes reduzidas e sem poder interferir nas agendas dos médicos para análises conjuntas e visitas domiciliares, tampouco consultar as equipes dos NASFs recentemente reduzidas, esses profis- sionais acabam se sentindo sem apoio e até sem utilidade mais ampla, já que só precisam cadastrar a população e fazer os registros devidos, apresen- tando números. Além disso, há as campanhas de vacinação em massa que, atualmente, estão pre- cisando fazer em 100% de seu tempo. Em sala de aula, tratando do assunto, os agentes acabaram lembrando e percebendo que isso pode estar rela- cionado ao fato de que, por quase um ano, as salas de vacinação ficaram fechadas nos postos por falta de pessoal para atender, ou seja, a redução de pes- soal tem causado prejuízo há mais tempo, gerando acúmulo na tarefa de vacinação.

Nas avaliações críticas realizadas, parece que os ACS têm amadurecido esse tipo de reflexão para além dos elementos salariais que os fizeram parar no ano de 2014, quando sofreram descontos sala- riais pelas paradas e tiveram grande dificuldade de negociação com essa gestão municipal. Da mesma forma, refletindo sobre os agravos em saúde mental da população, retomaram uma importante reflexão sobre a reforma psiquiátrica e as conquistas obtidas com a mudança de paradigma, o que foi colocado em risco em 2014 e agora novamente, conforme situação analisada quanto ao atual período. Com- preender a reforma psiquiátrica e retomar sua importância para o modelo democrático de gestão foi outro objetivo do Projeto Caminhos do Cuidado.

Com o quadro de confronto latente, percebeu-se que havia risco para os objetivos estratégicos do Governo Federal, pois havia prejuízo na estratégia de saúde da família; a governabilidade era baixa; e se tratava de interesses ainda não muito claros e sob

responsabilidade da gestão, a qual decidiu mudar os procedimentos. Ademais, a capacidade dos atores envolvidos para superar a situação encontrava-se relativizada, pois, se por um lado tinham a influência sobre a população, por outro lado estavam despres- tigiados pela baixa resolutividade de suas ações, uma vez suspensas as visitas domiciliares.

Ainda no que tange à avaliação de elementos contextuais, as vagas oferecidas nas comunidades terapêuticas significam alívio imediato aos familia- res de pacientes com problemas de uso pesado de drogas e, mais uma vez, tiram da atenção primá- ria a resolutividade, pois reduzem a necessidade de ações programáticas sobre a problemática da saúde mental. Essa é uma polêmica que envolve as esferas técnicas e políticas. Tal tema foi tra- tado no Senado Federal e os movimentos de saúde mental se mostram preocupados, visto que esse modelo traz uma ameaça real de que retorne o antigo modus operandi de reclusão, exploração do trabalho e até mesmo de tortura e cárcere privado.

As instituições que têm sido credenciadas, por não se constituírem em serviços de saúde propria- mente ditos, não sofrem as exigências de estrutura e funcionamento como tal.

Mais recentemente, em 2017, a ameaça tem sido real e advinda do próprio Governo Federal: além do corte na perspectiva de 20 anos com relação aos investimentos em saúde, temos o próprio coor- denador nacional de saúde mental defendendo o retorno do modelo psiquiátrico manicomial, acom- panhado por vários representantes de secretarias estaduais e municipais de saúde, pautando o tema da eficácia atual do modelo, conforme retrocesso que a imprensa repercute5.

Examinando as normas institucionais, que são costumes ou normativas institucionais que podem ser facilitadoras ou dificultadoras do projeto e são

5 Conforme se vê na imprensa, disponível em: <http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,sus-discute-retomada-do- papel-de-hospitais-psiquiatricos-medida-e-criticada,70001959717>. Acesso em: 7 set. 2017.

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identificadas no contexto analítico do problema a ser planejado, temos a tendência a “tirar de cir- culação” os pacientes com problemas de saúde mental. O alívio imediato na família e o forte senso comum de medicamentalizar o sofrimento psíquico são circunstâncias que dificultam a transformação da situação. A população espera que os médicos resolvam seus problemas e tem enfraquecida sua capacidade de mobilização social e comunitária.

Por outro lado, a saúde mental constituiu o projeto de reforma psiquiátrica e de alteração da situação de hospitalização e medicamentaliza- ção, pretendendo a superação da violência asilar.

Análise do Ministério da Saúde (BRASIL, 2005) aponta o processo da reforma psiquiátrica brasi- leira como além da normativa legal (lei 10.216) e maior que o conjunto de mudanças nas políticas governamentais e nos serviços de saúde. Fruto da crise do modelo hospitalocêntrico e da eclosão dos esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, esse processo envolveu milhares de pessoas, entre pacientes, familiares, movimentos e trabalhadores da saúde e culminou na pactuação consensual em torno dos princípios, diretrizes e estratégias para a mudança da atenção em saúde mental no Brasil.

Quando se explica a situação-problema exami- nada, é importante que se explicite a serviço de quais interesses atende o estado atual das coisas.

Geralmente, a elite dominante e os interesses econômicos constituem a explicação dessa forma de funcionamento. Como já se disse, a redução de custos interessa ao governo municipal e a tercei- rização da saúde já é conhecida, em nome de uma eficiência e de uma redução dos custos das políti- cas sociais, particularmente reduzindo as garantias e os avanços obtidos junto à população com a reforma psiquiátrica e com a implantação do SUS e de seus modelos de intervenção predominante- mente baseados na democratização da saúde.

O “mau funcionamento” do Estado que origina a situação-problema analisada indica a natureza

de dominação que está subjacente. Se alguém se beneficia, isso se dá por meio da dominação que se manifesta pela coerção, controle dos recursos econômicos e ideológicos ou dos recursos de infor- mação. Cria-se uma relação assimétrica, assumida como justa e natural, que oprime o dominado e não permite que as coisas se transformem. Gera-se, ainda, uma racionalidade limitada, no sentido de que são parcas as explicações e as tentativas de mudança mediante a aceitação simples da forma como está estruturada a dominação, que se man- tém. A racionalidade limitada e a assimetria podem ser explicitadas nessa relação que se consolida no modelo de atenção à saúde, o qual é reduzido.

O atendimento precário aponta a falta de equi- pamentos na rede de atenção, o que poderia ser resolvido com o aumento dessa rede. No entanto, isso não acontece e os postos de saúde passam a atender em período maior, sem grande participa- ção dos ACS. Desse modo, os problemas mentais específicos dos usuários de drogas voltam a ser tratados com a internação, dessa vez nas Comuni- dades Terapêuticas.

No Projeto Caminhos do Cuidado, observa-se que os instrumentos e os métodos gerenciais ainda são utilizados dentro do aparelho do Estado e que é preciso rever tais metodologias herdadas e se fami- liarizar com novos instrumentos metodológicos e conceituais que possam gerar outro modelo de gestão, com instrumentos operacionais de diagnós- tico e de planejamento, de forma a mudar o mapa cognitivo e oportunizar a mudança. Mantendo-se os métodos antigos, assistencialistas, torna-se redu- zida a capacidade de mobilização da população.

De fato, os postos de saúde, que foram reforma- dos, agradam à primeira vista no quesito aparência.

No entanto, não foram feitas as ampliações neces- sárias e tampouco contratados os profissionais necessários. Da mesma forma, a “máquina pública”

está ao serviço dos mesmos velhos interesses den- tro de um modelo gerencial e não oferece avanço quanto ao atendimento, inovação tecnológica ou

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sibilidade de incidir sobre a maioria dos problemas descritos é maior. Nessa forma de visualizar o pro- blema, identificamos cada nó estabelecido nesse processo e apresentamos, a seguir, uma cadeia explicativa dele, analisando os problemas aponta- dos e suas cadeias explicativas:

Primeiro Nó Crítico: as potencialidades dos ACS não são exploradas nas áreas onde atuam.

Cadeia explicativa:

1: gestão prioriza atendimento de demanda espon- tânea nos postos de saúde (das 7:00h às 19:00h);

2: gestão desconsidera o trabalho em equipe;

3: gestão suspende as visitas domiciliares.

Considerações que justificam o nó crítico:

O trabalho em saúde mental na atenção básica é preconizado pelas diretrizes nacionais do SUS e pela Política Nacional de Atenção Básica, tendo presente a atenção integral e, para tal, a relação interpessoal entre paciente e equipe. Os ACS são conhecidos por circularem e serem do território, o que confere à equipe um status diferenciado e atuante, de forma que o fato de estarem na comu- nidade já possibilita que a escuta seja operada, que o vínculo aconteça e que o acolhimento se dê nesta relação. Ora, esses são recursos da atenção básica para o cuidado em saúde mental, os quais são potentes e naturalmente redutores de danos quando o tema é uso de álcool e outras drogas.

O impacto é efetivo, pois se os ACS conseguirem efetivar o trabalho em saúde mental, apesar das restrições elencadas, a situação toda se modificará.

A adoção do modelo que prioriza o atendimento das demandas espontâneas sofrerá impacto e também a organização do trabalho se alterará.

Também se observa a praticidade: realizando a atenção à saúde mental, as condições dos pacientes são alteradas de forma prática. Os ACS podem fazer uso de seus contatos e “aquecer” a rede, buscando na comunidade as alternativas para a atenção novos modos de participação. O que ocorre é que

são utilizados métodos tradicionais e mantém-se a

“máquina” sem se alterar a capacidade da popula- ção para a mobilização e melhoria da saúde mental através da participação e oferta de vagas em insti- tuições alternativas, atendimento ambulatorial e aquecimento da rede de atenção psicossocial, que se mantém desconhecida. Essa é a disputa do modelo.

Os aspectos acima identificados, relaciona- dos à Metodologia de Análise de Políticas (MAP) objetivam a obtenção de maior politização sobre o tema, permitindo uma apropriação crítica do problema em estudo para podermos ir além das explicações de senso comum que tendem a dimi- nuir a efetividade das políticas públicas, de acordo com Costa e Dagnino (2014).

NÓS CRÍTICOS

Para Matus (1993), quando se pretende sanar um problema, algumas das causas que compõem sua explicação são críticas para concentrar e tor- nar prática a ação destinada a mudar os descritores da situação inicial desse problema. Os requisitos a serem cumpridos são relacionados ao impacto que eles podem ter na mudança do problema, ou seja, nas formas como o problema aparece. Em segundo lugar, aparece o quesito “ser um centro prático de ação”, ou seja, o ator pode agir de modo prático, efetivo e direto sobre a causa, sem a necessidade de se ver obrigado a agir sobre as causas remotas.

E, finalmente, é importante avaliar politicamente se é possível agir sobre a causa identificada mediante a mudança da situação-problema. Assim, aprende- mos com o autor que, durante o período do plano, é preciso avaliar e realizar o julgamento preliminar de sua viabilidade política e da relação custo-be- nefício político. Se um nó explicativo cumpre essas três condições – impacto, centro prático de ação e mudança sensível na situação problema–, então ele é declarado nó crítico. Identificando bem o nó crítico, muito mais causas serão alteradas e a pos-

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à saúde mental e aumentando o bem-estar tanto daqueles que sofrem psiquicamente, quanto o de suas famílias. Também a oportunidade política pode ser observada, dado que a ação dos ACS na comu- nidade é sempre oportuna e politicamente razoável.

Não há possibilidade de um agente circular sem se fazer notar e estreitar laços com a comunidade.

Assim, mesmo com as campanhas obrigatórias e as demandas objetivas de um trabalho quantita- tivo, o contato direto dos ACS com as famílias e os usuários de álcool e outras drogas sempre ocorre e, nesse contato, os profissionais recebem solicita- ções constantes de apoio e atenção.

Segundo Nó Crítico: ACS desconhecem a Rede de Atenção Psicossocial no território em que atuam.

Cadeia explicativa:

1: gestão atrasa pagamentos dos convênios de saúde mental.

2: reduz-se a capacidade de atendimento em saúde mental em Fortaleza.

3: os projetos e programas do território atuam de forma isolada.

Considerações que justificam o nó crítico:

A integralidade do cuidado à saúde é princípio do SUS e se materializa pela responsabilização com- partilhada entre profissionais, inclusive incluindo a própria família e a comunidade. No entanto, frequentemente, cada serviço parece uma ilha, dei- xando de construir a lógica de matriciamento e de aproveitar o compartilhamento possível, o que via- bilizaria estratégias de cuidado para a construção de propostas de intervenção.

Os agentes comunitários de saúde possuem uma característica de liberdade e autonomia relativas no trabalho porque atuam dentro do território, cir- culando na sua área de responsabilidade e podendo aproveitar o contato com os diversos serviços e programas ofertados ali. Trata-se de poder mapear a rede local e, integrando saberes e práticas, qua-

lificar a atenção, construindo projetos terapêuticos singulares para os casos que se apresentam ao atendimento dos ACS, a partir da perspectiva de uma clínica ampliada.

Fazem parte da clínica ampliada os especialistas de outros serviços da Saúde, como os de: Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); Consultórios na Rua; hospitais gerais; serviços da assistência social, como os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS); Centros Especializados de Referência (CREAS); escolas; e centros de cultura e esportes.

Além disso, há equipamentos, programas e pro- jetos não-governamentais que oferecem a atenção e o cuidado para usuários problemáticos de álcool e outras drogas, como o Grupo Alcoólicos Anônimos, circos, associações comunitárias, centros de cul- tura, etc. Nessas circunstâncias, essa aproximação e matriciamento podem fornecer a retaguarda da assistência e mesmo o suporte técnico-pedagógico necessários à melhor compreensão dos casos, além de possibilitar a construção conjunta de pro- jetos de atenção à saúde mental.

Terceiro Nó Crítico: práticas de cuidado dos ACS não são reconhecidas na comunidade.

Cadeia explicativa:

1: os cuidados comunitários não são valorizados na gestão;

2: os ACS se sentem desmotivados para realizar cuidados comunitários.

Considerações que justificam o nó crítico:

Atualmente, mais da metade do território nacional está coberto pelo Programa de Saúde da Família, em que se inserem os ACS. Na comu- nidade, no local em que as pessoas moram e nas suas culturas, é onde se encontra a maior comple- xidade da saúde mental, a qual, ao mesmo tempo, se constitui em riqueza de possibilidades. Com as redes “aquecidas”, podem ser obtidas a poten- cialização terapêutica e a produção de direitos,

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conforme apontamento de Antônio Lancetti (2013).

O fato de estarem no território e se conhecerem, assim como à história e ao próprio território, per- mite uma continuidade não existente em outras modalidades de atendimento. Todavia, esses ACS muitas vezes se sentem impotentes e solitários, desconhecendo sua enorme importância e efetiva intervenção no território. Nesse contexto, práticas de capacitação podem rapidamente possibilitar que esses profissionais sejam empoderados e ampliem sua articulação, superando a problemática consta- tada nos ambientes e locais de atenção à saúde e, em particular, à saúde mental.

Ressalta-se que a identificação dos nós críticos possibilita atuar de forma direta sobre o problema em questão, uma vez que estão postos com mais clareza elementos que aprofundam, em detalhes e em complexidade, a compreensão dos assun- tos relacionados à realidade da Saúde Básica, da Atenção à Saúde Mental, e, especificamente, à realidade dos Agentes Comunitários de Saúde.

Esse processo permite que sejam escolhidos os problemas mais sensíveis, que, uma vez atingidos, abarcam vários outros problemas a serem sana- dos. Está posta a estratégia possível. Todos esses elementos possibilitam conhecer de maneira mais ampla a situação-problema, em que se afirma que o modelo de reforma psiquiátrica e de atenção à saúde mental (do Sistema Único de Saúde - SUS) não está sendo implementado pela gestão do município de Fortaleza. É preciso lembrar que as

diretrizes da saúde relacionadas à reforma psiqui- átrica são estabelecidas no SUS pelas normativas oriundas das conferências de saúde e saúde mental ao longo do tempo e que o Governo Federal repassa recursos para que a sua execução ocorra através dos municípios6.

Na primeira cadeia causal, temos um nó crítico que identifica que as potencialidades dos ACS não são exploradas nas áreas onde atuam e que a ges- tão prioriza atendimento de demanda espontânea nos postos de saúde, das 7:00h às 19:00h e descon- sidera o trabalho em equipe, também suspendendo as visitas domiciliares no território7.

Assim, apesar das diretrizes nacionais do SUS e da Política Nacional de Atenção Básica, essas restrições elencadas no problema caracterizam a situação de trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde em Fortaleza/CE. Frente às informa- ções sobre a realidade vivenciada, tais problemas explicitados são vistos como conjunturais, ou seja, relacionados às políticas públicas elaboradas pelo governo que ocupa naquele momento o Poder Executivo. Aqui se repete uma indicação técnico- -política do planejamento estratégico do campo da saúde mental: Mehry (2009) afirma que o tra- balho não deveria ser capturado pela racionalidade gerencial, à mercê da lógica do trabalho morto, no eixo da disciplina e do controle. Pelo contrário, o trabalho deve considerar as tecnologias de rela- ção, em que cada encontro produz subjetividades

6 A Lei No  10.216/2001 dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. No entanto, ocorrem, já na década de 60, as movimentações para a superação de um modelo assistencial psiquiátrico hospitalocêntrico e medicalizador na direção do paradigma psicossocial. Muitos interesses econômicos estão em jogo e é num contexto de ditadura militar e de alta concentração de renda, intervenção em sindicatos e arrocho salarial aos trabalhadores que surgem as primeiras reações populares organizadas, dentre as quais os movimentos pela reformulação da Atenção em Saúde Mental no Brasil. A transição ocorre até hoje, com altos e baixos no modelo.

7 Estas avaliações e declarações de problemas aparecem ao longo das aulas fornecidas aos Agentes Comunitários de Saúde, auxiliares e técnicos de enfermagem de Fortaleza, em contexto de dar elementos e subsídios para a ação em Saúde Mental na Atenção Básica. Isso ocorre através da revisão das atribuições desses profissionais Agentes Comunitários de Saúde (ACS), para fortalecimento dos instrumentos de intervenção (escuta, acolhimento, vínculo, matriciamento e corresponsabilidade) e alcance de ferramentas para seu trabalho diário, a fim de qualificar a intervenção.

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e leva em conta os sujeitos do processo, criando espaços democráticos de atuação.

A atenção permanente ambulatorial nos postos de saúde, proposta pela gestão, coloca os médicos diretamente no atendimento das demandas da população, ampliando essa oferta de serviço, mas ao mesmo tempo impede que esses profissionais acolham a demanda gerada pelas visitas ao territó- rio pelos ACS, que identificam cidadãos acometidos de problemas que muitas vezes os impedem de vir até o posto de saúde. Ponte feita com a realidade, não há o respaldo clínico e relacional que seria pro- duzido no matriciamento – reunião clínica que tem como objetivo ampliar a compreensão da situação e o estabelecimento de plano de ação, orientando os ACS a partir da compreensão técnica e do olhar dos profissionais médicos e enfermeiros. A revisão da literatura aponta que:

[...] o apoio matricial propicia um encontro com o outro e com o campo da saúde men- tal, com muitas possibilidades. Porquanto, questões antes não percebidas pelos pro- fissionais, motivadas por receio e estigma de enxergar a demanda de saúde mental na atenção primária, tornam-se mais uma necessidade de saúde e são encaradas com um ‘novo olhar’ pela equipe, evitando os encaminhamentos desnecessários. Assim, o usuário passa a ter um vínculo maior com o território, com a equipe e com os serviços, criando, na própria comunidade, a eficácia para exercer sua autonomia, seu modo de andar na vida. (VASCONCELOS, 2012, p. 173)

Tampouco se constitui dessa forma o preparo e a realização da necessária visita domiciliar desses clínicos, de modo que a ação dos ACS se torna, com frequência, nula. Dessa forma, a demanda explici- tada no território não tem a acolhida necessária, esvaziando-se ainda a estratégia de busca ativa operada pelos Agentes Comunitários, gerando demanda não atendida e retrocesso no modelo de atenção centrado no paciente implementado pela ação dos ACS e pela realização do matriciamento:

[...] A implicação do apoio matricial em saúde mental é promover um modelo tec- noassistencial que se aproxime de práticas mais consentâneas às noções de cuidado, em que o encontro e a reconstrução de sujeitos sobrepõem-se ao procedimento e pressupõem mudanças não só na gestão, mas também no cotidiano dos serviços.

A lógica de ‘linha de produção’, ou seja, a tecnificação que o cuidado sofre nos processos de trabalho em saúde deve ser alterada com a finalidade de vincular o trabalho em saúde à emancipação pela construção de autonomias de sujeitos (VASCONCELOS, 2012, p. 167).

Na segunda cadeia causal, cujo nó crítico aponta que os ACS desconhecem a Rede de Atenção Psicos- social existente no território em que atuam, temos que a gestão atrasa os pagamentos dos convênios de saúde mental; reduz-se a capacidade de atendi- mento em saúde mental em Fortaleza; e os projetos e programas do território atuam de forma isolada.

Conforme já dito, no matriciamento, a partir do conhecimento técnico de profissionais experientes em saúde mental, a valorização da Rede é patente com base na compreensão da necessidade da atenção integral. Ora, profissionais ausentes não operam a rede e técnicos sem experiência terão maior dificuldade para valorizar a rede de apoio e a intersetorialidade:

É a partir do movimento de reflexão das práticas, por meio da participação inter- disciplinar ou multiprofissional, que a Educação Permanente em Saúde busca corresponder às necessidades de saúde da população e produzir o cuidado integral (PEDUZZI et al., 2009 apud VASCONCE- LOS, 2012, p. 170).

O modelo de cuidar do sujeito foi transformado pelas reformas sanitária e psiquiátrica, com a supe- ração da visão da doença como foco principal para a visão do sujeito integral. Esta perspectiva leva neces- sariamente em conta a presença, apoio recíproco e integração dos profissionais, os quais realizam nesse

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processo a busca permanente de práticas inovado- ras e tem no aprendizado sua referência.

Assim, consoante é possível reconhecer, a dimensão pedagógica do Apoio Matricial viabiliza um espaço onde ocorre a troca de saberes (generalista, superespecializado, profissional e usuário), horizontalização das relações e capacitação da equipe para atuar em saúde mental de modo integral (VASCONCELOS, 2012, p. 170).

Temos, ainda, que as práticas de terceirização e precarização, decorrentes da concepção neolibe- ral do Estado, ainda se fazem notar nas dimensões concretas do trabalho – aqui temos o Estado Herdado. Especificamente na saúde, existem inúmeros serviços estratégicos conveniados em lugar de serviços próprios, que, mesmo alinhados com as diretrizes do SUS na sua execução, tornam vulneráveis os serviços e precária a relação com seus trabalhadores.

A realidade atual mostra Agentes Comunitários de Saúde desorientados frente à necessidade de indicar serviços de atenção à saúde mental. Esses profissionais são conveniados e, por vezes, não são pagos ou recebem com atraso, logo, ou ficam impossibilitados de atender ou atendem de forma precária. Ao mesmo tempo, os ACS não encontram as equipes de apoio à saúde da família, nos NASFs, que os orientem de forma matricial, pois seus con- tratos terceirizados ou de tempo determinado se encerraram e eles não são recontratados no perí- odo de análise, não havendo qualquer explicação sobre tal situação.

Conforme o portal do Ministério da Saúde8, não há uma definição sobre a forma de contrato dos profissionais para o NASF, apesar da recomenda- ção de que o município deva evitar a precarização dos vínculos trabalhistas, criando estratégias que

visem à diminuição da rotatividade de profissionais nas equipes.

A terceira cadeia causal refere que há pou- cos psiquiatras na saúde pública para atender a demanda crescente de saúde mental; há uma forte cultura de medicamentalização da saúde mental;

há agravamento do quadro de saúde em decorrên- cia da automedicação pela população; e, sem um nó crítico identificado, há aumento da demanda por leitos psiquiátricos, tendo em vista o agravamento dos quadros de saúde mental.

São problemas que se explicam e se somam, estabelecendo uma cadeia causal de problemas estruturais. Todos apontam para uma cultura cen- trada na figura do médico, na medicamentalização e mesmo na automedicação. Também conjuntural, a falta de médicos é recorrente e acaba por produ- zir uma sensação de não haver sentido em todo o aparato clínico que se oferece. Aparece a cultura da atenção especializada, que é corrente ainda hoje, tendo como pano de fundo o pagamento de procedimentos a serem autorizados pelos médicos e o interesse subjacente pela gradual substituição dos serviços públicos pelos privados contratados e conveniados.

É um caminho que desvaloriza o trabalho mul- tiprofissional em saúde e o trabalho da atenção básica, ficando evidente uma realidade em que a comunidade só quer médicos e especialistas para resolver seus problemas. Embora necessários, os médicos ocupam, ainda hoje, um lugar diferenciado em que a cura e quase o milagre são esperados seguidamente. Com isso, esvaziam-se as iniciativas de grupos terapêuticos e de outras modalidades de atenção e cuidados, com a supervalorização daquele profissional.

Por outro lado, a falta de médicos e a alta demanda na comunidade induzem uma cultura de medi- camentalização, conhecida como uma contumaz

8 Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/portaldab/nasf_perguntas_frequentes.php>. Acesso em: 9 maio 2018.

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forma de tratar todos os males da sociedade, medi- cando inclusive determinados mal-estares de nível social, que não precisariam disso se a cultura fosse de cuidados e de aproximação e não de apelo à indústria farmacêutica:

A medicamentalização refere-se ao con- trole médico sobre a vida das pessoas.

Para tanto, utiliza a prescrição e o uso de medicamentos como única terapêutica possível de responder às situações da vida cotidiana, entendidas como enfermida- des psíquicas. Por conseguinte, angústia, mal-estar ou dificuldades, outrora com- preendidas como parte da complexidade e singularidade do ser humano, passam a ser consideradas doenças ou transtornos diagnosticáveis e, consequentemente,

“medicamentalizados”, com o intuito de proporcionar cura (BEZERRA, 2014, p.62, grifo do autor).

Nesse quadro, a automedicação entra como mais um elemento agravante de uma cultura de consumo, em que se atribui a um remédio a possibilidade de resolver a vida e seus males, inclusive as dificulda- des frente a problemas sociais e econômicos:

Ao oferecerem produtos que prometem alívio ou melhora de estilo ou condição de vida, diversos meios de comunicação, tais como a literatura e os programas de televisão, estimulam a automedicação e funcionam como verdadeiros manuais de autoajuda, atendendo a uma crescente demanda de cuidado para cada sofri- mento ao qual se pode estar submetido (BEZERRA, 2014, p. 62).

Desse modo, fica claro que o consumo excessivo de medicamentos está relacionado com “a produ- ção social hegemônica e mercadológica da saúde, e que envolve diferentes atores, dentre os quais:

médicos, pacientes, indústria farmacêutica e agên- cias reguladoras da saúde” (BEZERRA, 2014, p. 2).

Mais uma vez, atuam a determinação econômica e a agenda neoliberal.

Na última cadeia causal, temos que as práticas de cuidado dos ACS não são reconhecidas na comu- nidade. Na origem, aparece a informação de que os cuidados comunitários não são valorizados na gestão e que os ACS se sentem desmotivados para realizar cuidados comunitários. Efetivamente, esse quadro de desvalorização do trabalho comunitário por parte da Secretaria para com os ACS acaba por produzir forte desmotivação e consequente desva- lorização pela própria comunidade.

A função do agente comunitário de saúde foi desenvolvida para realizar um elo entre a equipe da Estratégia da Saúde da Família e a comunidade, em 1991. Oriundo da própria comunidade, o agente deve compor o grupo de atenção, junto com médico, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, além dos profissionais dos NASFs, quando contratados, de modo a substituir o modelo hegemônico e biomé- dico, centrado em um só profissional.

Esse papel é complexo, pois o agente é parte da equipe de saúde e parte da comunidade. Assim, frente à alta exigência e extrema carência da comu- nidade que atende, esse profissional se encontra em um lugar estratégico, mas também de fragili- dade. Se houver desatenção à sua rotina, como, por exemplo, quando não se valoriza sua visita domici- liar em decorrência de uma frustrada expectativa da visita de um médico, acaba havendo desvalorização do agente pela comunidade. Nesse cenário, esses profissionais se desmotivam por terem a desvalo- rização da própria comunidade, gerando um ciclo vicioso desfavorável ao projeto original da reforma sanitária e do SUS e à própria ideia de aproximação da comunidade e de qualificação de seu cuidado, motivo mesmo da formação em tela.

Pesquisas recentes apontam a importância do trabalho nas visitas domiciliares, as quais se prejudicam frente ao acúmulo de funções adminis- trativas que, por vezes, se colocam para os agentes e frente à precarização do trabalho. Ainda que haja uma tendência, por parte da comunidade, à des- valorização do profissional, conforme comentado

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anteriormente, é possível perceber que há ainda uma compreensão de seu papel como fundamen- tal, visto ainda haver demanda por sua presença (FRAGA, 2011).

O Programa Nacional de Agentes Comuni- tários de Saúde foi criado pelo Ministério da Saúde a partir da experiência realizada no Estado do Ceará, em 1987, com o objetivo de melhorar a capacidade da população de cuidar da sua saúde, transmitindo-lhe informações e conhecimentos e contribuir para construção e consolidação dos siste- mas locais de saúde, fortalecendo a liga- ção entre serviços de saúde e comunidade e ampliando o acesso à informação sobre a saúde (FRAGA, 2011, p.15).

E O QUE O PROJETO CAMINHOS DO

CUIDADO TEM A VER COM ESSA ANÁLISE DE POLÍTICAS?

Ainda que em um exercício de método, que se apresenta neste artigo, no qual compartilho uma experimentação da análise de políticas realizada e elejo o contexto de formação de Agentes Comu- nitários de Saúde e de Auxiliares e Técnicos de Enfermagem em um recorte de turmas do Cami- nhos do Cuidado realizadas em Fortaleza, entendi a riqueza que foi realizar este trabalho e a impor- tância de compartilhar estes esforços reflexivos envolvendo o que está em jogo atualmente quando se trata de saúde mental. São disputas ideológicas e interesses econômicos e políticos que se explicitam.

Neste recorte já foi possível, para além do exame que aqui se apresenta, construir cenários mais favoráveis junto aos integrantes do projeto, possibilitando a reflexão sobre seus desejos, suas preocupações, mas também sobre suas potências e brechas para a ação, frente ao quadro viven- ciado. Desse modo se organiza sua luta, pois tais compreensões os capacitam no cotidiano de seus enfrentamentos em uma luta que pode ser mili- tante na política.

Da mesma forma, entender o uso de drogas numa perspectiva de cuidado e de redução de danos, olhando para os gostos e excessos do usuário de drogas logo no começo do trabalho, já produziu um novo olhar sobre o cuidado de pessoas que usam drogas. Dar um passo atrás em seus próprios conceitos morais para rever a tendência à criminalização do usuário, no debate sobre drogas lícitas e ilícitas, permitiu entender a história e apro- priar-se de dados epidemiológicos para operar com mais equidade. Logo em seguida, compreender a desinstitucionalização no horizonte da reforma psiquiátrica colaborou para o rompimento de para- digmas e incrementou a revisão do que vem a ser o cuidado integral e as possibilidades de projetos terapêuticos e de cidadania.

Alcançando a partilha sobre casos efetivamente atendidos pelos participantes do projeto, organi- zamos conjuntamente a sua caixa de ferramentas para atuarem na direção de uma clínica ampliada e humanizada, apesar das dificuldades. Isso possibi- litou que a opção de cada um em seu percurso na saúde mental previsse uma atuação pelo caminho ético da inclusão, superando a estigmatização, a criminalização e a abordagem moralista que saem do leque de opções quando problematizam seu próprio processo de trabalho. Este é restabelecido, pois, galgando seu próprio empoderamento, os agentes entendem seu papel, fundamental na res- tituição do poder da comunidade no território.

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AFETAÇÕES PESSOAIS EM RELAÇÃO À PARTICIPAÇÃO NO PROJETO CAMINHOS DO CUIDADO9

Buscando, ao final, pensar na vivência no Pro- jeto Caminhos do Cuidado, de pronto me ocorre uma lembrança de construção. Desde os primeiros momentos, com a equipe de formação de tutores vinda do Rio Grande do Sul, estando em reunião, afinamos os instrumentos: nossos desejos, nossas lutas, nossas compreensões da história e do mundo, bem como nossas concepções em checagem, ampliação e debate; o conhecimento dos profissio- nais de saúde sobre a necessidade de reconhecer suas ferramentas, sobre a importância da escuta, do vínculo, da presença e da constância nas visi- tas e na atenção; a construção de metodologia; a vivência da territorialização; o reconhecimento do protagonismo de cada sujeito; e a noção de que, para tratar sobre drogas, não basta falar só de dro- gas, mas, no mínimo, percorrer a história do sujeito usuário, o lugar da droga na sua economia, o con- texto de uso e as possibilidades de reduzir os danos do uso e construir ou retomar um projeto singular.

São muitas lembranças do período em que estas construções foram delimitadas, transmitidas a nós e assimiladas, de maneira que pudemos percorrer este percurso junto aos agentes, auxiliares e téc- nicos envolvidos para que também aprendessem e fizessem suas construções. Fica a lembrança de um fenômeno em que muitos profissionais, cada um com sua trajetória, reunidos, ansiosos com as novidades da formação e angustiados com a rea- lidade, construíram esse novo percurso. Fazendo leituras, reconhecendo o seu trabalho e sistemati- zando seu conhecimento e seu fazer, tornaram-se, aos poucos, ao longo das aulas, construtores e construtoras de saúde mental, por meio da parti- cipação, troca de ideias e conhecimento de outras

práticas, conhecendo-se, revendo e fortalecendo a rede, de forma a construir a atenção integral que o projeto preconizou.

Até hoje, guardo muitos afetos: uma mãe cujo filho passei a acompanhar no sistema prisional, como assessora de justiça e cidadania; outros, dos quais tive notícias porque foram desligados e pro- curavam emprego, que pude indicar, com a certeza de poder contar com profissionais em posições hierárquicas de prestígio; alguns artistas desta vida que, com convites para rodas de conversa, passaram a ser interlocutores mais diretos, mili- tantes de causas próximas, loucos e loucas pela vida. Foram muitas turmas, muitas pessoas, que me marcaram para sempre.

O trabalho com colegas em ação conjunta também foi marcante. No Projeto Caminhos do Cuidado, mais uma vez, houve uma metodologia inédita nesse âmbito, as duplas em sala de aula.

Foram combinações infinitas, acertos de horários e possibilidades, assim como experiências sem fim. Cada turma já tendo uma história toda própria, território específico e olhares diversos, mas cada turma com uma nova dupla, com um novo jeito.

Mesmo com algumas duplas se repetindo, sempre houve novidades nessas junções. O trabalho difícil e delicado de encontrar a parceria em sala de aula, praticamente on-line, combinado com o olhar a hora de falar e a hora de calar, às vezes “atrope- lando”, às vezes harmonizando, sempre compôs o cuidado de transmissão e ensino para esses estu- dantes especiais. Nós mesmos, como estudantes e profissionais, tínhamos que prestar contas, fazer relatoria, conferir cada presença, relatar e analisar os conteúdos, compondo um verdadeiro dossiê de cada turma, com produções por vezes pitorescas, sempre muito ricas e variadas. Ademais, houve sempre avaliação e melhorias necessárias aponta- das a cada vivência.

9 Estas afetações foram originalmente provocadas pela coordenação estadual do Caminhos do Cuidado no Ceará, que solicitou a reflexão a alguns monitores. As minhas me remeteram ainda a esta escrita.

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Como profissional psicóloga, os conteúdos e o desenvolvimento das aulas me trouxeram de volta, agora sob um olhar mais amadurecido, minha for- mação na psicologia. Esses conteúdos foram de muita consistência teórica, desde antipsiquiatria até reforma sanitária e movimento antimanico- mial, estudados e produzidos em Porto Alegre, em vivências de outros tempos, “priscas eras”. Tam- bém produzidos em outras regiões, a exemplo de um congresso de alternativas à psiquiatria, em 1983, em Belo Horizonte, em que se encontram as lembranças do Clube da Esquina10 e das vivências da esquizoanálise e das teses e estudos de Laing, Cooper, Basaglia e Szasz.

São lembranças de muitas vivências da psicologia comunitária, bem como de acompanha- mentos terapêuticos alternativos às internações e de conteúdos de psicanálise, com Freud e Lacan, passando também pelo pensamento sistêmico, pelo psicodrama de Moreno, entre muitos outros.

São caminhos necessários e estudos da história e das concepções da psicologia, retomando con- ceitos e autores importantes da saúde mental, retomando a própria saúde mental como política, a saúde coletiva como campo interdisciplinar e as políticas públicas como esteio de um debate neces- sário sobre drogas.

Esse debate é necessário desde outros e novos olhares, para além da guerra às drogas - olhar importante para notar as contradições que vemos entre o preconceito e a intolerância contra usuários de drogas e a aceitação social de consumidores compulsivos de gorduras, alimentos processados, sal e açúcar e seus componentes químicos – con- forme as leituras que fizemos e estimulamos. Esse novo olhar me levou a ampliar as aulas que minis- trava pelo Centro de Referência sobre Drogas (CRR) – como professora convidada por meio dos já extin- tos editais da SENAD –,a ter mais clareza e firmeza

sobre a necessidade de colaborar para a redução de danos a cada nova situação de uso abusivo e a ter mais longe o olhar sobre o planejamento das políticas na gestão.

PALAVRAS FINAIS SOBRE A TEMÁTICA SUSCITADA

Trago algumas últimas considerações pertinen- tes aos temas em debate, que são a saúde mental e a garantia da implantação de um modelo não psiquiátrico ou hospitalocêntrico, construído desde a própria comunidade e a partir de seu fortaleci- mento. Refletindo sobre os obstáculos quanto à garantia dos direitos sociais que limitam a atuação do Estado, temos que a Constituição Federal de 1988 teve por objetivo estabelecer garantias funda- mentais a todo cidadão, propiciando aos indivíduos condições mínimas para o pleno gozo de seus direi- tos. A partir de então, incluiu-se no rol dos direitos fundamentais os direitos sociais, consagrando, por conseguinte, o direito à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à infân- cia e à assistência aos mais necessitados.

O direito à saúde, colocado na categoria dos direitos fundamentais, por estar interligado ao direito à vida e a uma existência digna, representa um dos fundamentos de nossa República. É consi- derado pela legislação uma obrigação do Estado e uma garantia de todo o cidadão. A ascensão da saúde como direito fundamental, social e como política pública e de bem-estar social vem sendo implantada aos “trancos e barrancos”, com vistas a, como direito universal, manter o ideário cons- titucional de atendimento a mais de 190 milhões de pessoas. Contudo, para se implementar esse direito, reconhecido com muitos anos de atraso, faz-se necessário ter um Estado que se harmonize

10 Disco do mineiro Milton Nascimento e Lô Borges, de 1972.

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com esse dever, tanto do ponto de vista dos meios e processos de execução, quanto da garantia dos recursos financeiros.

Por isso, o direito à saúde passa obrigatoriamente pela melhoria das condições executivas da Admi- nistração Pública, as quais não ocorrem de maneira satisfatória nos dias de hoje. É necessário que se dê nova conformação à Administração Pública para conter um sistema que não está cabendo nesse formato de gerir o Estado, que se pretende democrático. A crise da gestão da saúde não cons- titui nenhuma novidade. Nos 20 anos do Sistema Único de Saúde, e nos anteriores, mesmo quando saúde era apenas um serviço no âmbito da previ- dência social, ela sempre esteve em pauta. Parece que saúde, gestão pública e crise andam de mãos dadas todo o tempo, sempre nas páginas dos jor- nais. Se a crise nunca deixou de existir, por outro lado é inegável dizer que, de crise em crise, a saúde avançou. De maneira notável, com a Constituição, foi reconhecida como um direito e, depois, passou por ampliações e garantias de direitos, passo a passo conquistados, na permanente mobilização obtida nas conferências nacionais.

Finalmente, desde os traçados Caminhos do Cuidado, ainda é preciso falar sobre os obstáculos colocados pela interferência dos meios de comuni- cação para a efetivação de ações transformadoras propostas por gestões avançadas em nosso país, sublinhando mais uma vez a importância da ini- ciativa de formação dos Agentes de Saúde. Já nos seus marcos conceituais, capítulo I – Da Cidadania, o Relatório da Segunda Conferência Nacional de Saúde Mental, de 1994, prevê a necessidade de produzir informação e divulgação, considerando-as essenciais para a conquista e o exercício do direito

ao tratamento e à cidadania. Por isso, é fundamen- tal a formação no Projeto Caminhos do Cuidado e, do mesmo modo, sempre importante a aplicação dos mecanismos de análises de políticas e plane- jamento situacional, movimentos que se cruzam nesse contexto.

A reforma psiquiátrica se coloca como um movimento que vem desde os anos 60, cuja luta se confunde com os demais movimentos pela liber- dade e direitos, em um contexto de crise geral, particularmente política, econômica e social da ditadura militar, em que aparecem as primeiras reações populares organizadas que deram origem aos movimentos pela reformulação da Atenção da Saúde Mental no Brasil (DEVERA; COSTA-ROSA, 2007). Encarregamo-nos dessa reforma até hoje, entre retrocessos e avanços, com o “auxílio luxuoso”

do Projeto Caminhos do Cuidado, o qual vem home- nagear nosso artista recém-falecido, Luiz Melodia11

11 Homenagem à Luiz Melodia (1951-2017), um dos destacados artistas da música popular brasileira, cantor e compositor, que, na canção “Juventude Transviada”, faz referência ao “auxílio luxuoso” de um pandeiro, destacando a diferença para melhor que o uso deste instrumento traz para o samba. Paralelamente, também o Projeto Caminhos do Cuidado ofereceu os instrumentos para a ação dos agentes alunos de forma diferenciada, produzindo mudanças importantes na gestão dos cuidados em saúde.

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INFORMAÇÕES SOBRE O ARTIGO Recebimento – 07-09-2017

Aceite – 26-04-2018

Referências

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