FACULDADES DOCTUM DE GUARAPARI
GABRIELLE LUDGERO FERREIRA
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO AO ABORTO
GUARAPARI - ES
2019
FACULDADES DOCTUM DE GUARAPARI
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO AO ABORTO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito das Faculdades Doctum de Guarapari, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. M.a Kélvia Faria Ferreira.
GUARAPARI - ES
2019
FOLHA DE APROVAÇÃO
O Trabalho de Conclusão de Curso intitulado:
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO AO ABORTO, elaborado pela aluna GABRIELLE LUDGERO FERREIRA foi aprovado por todos os membros da Banca Examinadora e aceito pelo curso de Direito das Faculdades Doctum de Guarapari, como requisito parcial da obtenção do título de
BACHAREL EM DIREITO.
Guarapari, ___de ____________ 2019.
_____________________________________________
Prof. M.a Kélvia Faria Ferreira Faculdades Doctum de Guarapari
Orientador
_____________________________________________
Prof. Antônio Ricardo Zany Faculdades Doctum de Guarapari
_____________________________________________
Prof. Mariana Mutiz de Sá
Faculdades Doctum de Guarapari
Gabrielle Ludgero Ferreira1
Prof. M.a Kélvia Faria Ferreira2
RESUMO
O presente trabalho de conclusão de curso apresenta uma visão geral a respeito do tipo penal “aborto” no ordenamento jurídico brasileiro, bem como a evolução desse direito ao longo da História. Discute-se, ainda, o direito fundamental à vida, abordando-se as teorias que procuram estabelecer o momento em que o ser humano concebido adquire personalidade jurídica. Ao final, investiga a atuação do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus 124.306/RJ, traçando paralelos com decisões semelhantes emanadas por Tribunais Constitucionais da América do Norte e Europa. Conclui-se que a sentença do referido Habeas Corpus tem por fundamento uma mudança na forma de se pensar a sexualidade feminina e o papel da mulher no mundo moderno. Ademais, coincide com o entendimento de Tribunais Constitucionais de outros Estados Democráticos de Direito assemelhados ao Brasil, em cujas constituições também há silêncio sobre a questão do aborto.
Palavras-chave: Aborto; Direito à vida; HC 124.306/RJ.
1 Graduanda em Direito. E-mail: gabrielle.ludgero@hotmail.com
2 Mestra em Direito. E-mail: kelviafaria@hotmail.com
1 INTRODUÇÃO
O aborto é um dos temas que mais suscita polêmica na sociedade brasileira, visto ser fonte de constantes embates que colocam em lados contrários grupos pró- vida e pró-escolha. Embora formalmente proibido como regra geral, são muitos os argumentos éticos e jurídicos que se usam para defender a legalidade ou não da interrupção de uma gestação.
Decerto as opiniões acerca dessa prática evoluíram com o tempo, ao ponto de a maioria dos brasileiros serem a favor do aborto em situações específicas.
Todavia, ao mesmo tempo em que vários setores da sociedade defendem a flexibilização da lei atual, ou mesmo o seu recrudescimento, Projetos de Lei em qualquer sentido permanecem paralisados no Congresso Nacional, demonstrando escassa motivação de deputados e senadores em debater o tema.
Partindo desse contexto, a presente investigação tem como objetivo destacar a recente atuação do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 124.306/RJ como uma tendência global, iniciada pelos países desenvolvidos, de respeito a diversos direitos fundamentais da mulher. Como objetivos secundários, investiga-se as particularidades do tipo penal e o estado atual da legalidade do aborto no Brasil.
Primeiramente, serão caracterizadas as espécies de aborto, apresentando a evolução desse direito na legislação brasileira. Em um segundo momento, se discorrerá sobre o direito constitucional à vida e as mais importantes correntes doutrinárias que procuram estabelecer o marco inicial da personalidade civil. Por fim, será relacionada a decisão da Primeira Turma do STF no Habeas Corpus 124.306/RJ com o entendimento firmado em Tribunais Constitucionais da América do Norte e Europa.
Para elaborar o presente artigo, utilizou-se como metodologia a pesquisa bibliográfica e a empírica, tendo em vista o uso de fontes doutrinárias e análise jurisprudencial a fim de descrever a situação atual do aborto no ordenamento jurídico brasileiro.
Dada a gravidade do tema, é relevante discutir o conflito de direitos que se
inicia com a gravidez, uma vez que, se por um lado a mulher tem autonomia sobre o
seu próprio corpo, podendo exercer sua sexualidade livremente, sem sofrer coerção
ou discriminação, por outro lado a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, sendo a vida o mais importante dentre eles.
2 DO ABORTO
Todos os homens nascem livres e iguais perante a lei, com capacidade para adquirir direitos e contrair obrigações. Não obstante isso, todos os direitos concedidos ao indivíduo devem ser exercidos conforme e nos limites determinados pela Lei.
Nesse capítulo demonstra-se o que a legislação brasileira estabelece sobre o direito da mulher ao aborto, bem como a evolução desse direito ao longo de nossa história.
2.1 Espécies de aborto
Originalmente aborto quer dizer “privação do nascimento”, do latim abortus, com “ab” tendo o significado de “privação” e ortus significando “nascimento”.
Embora tenha sido previsto como crime no Código Penal, o legislador não definiu claramente o tipo penal, restando à doutrina elucidar mais apropriadamente o tema.
Júlio Fabbrini Mirabete (2011, p. 57) oferece o seguinte conceito:
Aborto é a interrupção da gravidez, com a interrupção do produto da concepção, e a morte do ovo (até 3 semanas de gestação), embrião (de 3 semanas a 3 meses) ou feto (após 3 meses), não implicando necessariamente sua expulsão. O produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido, pelo organismo da mulher, ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes da expulsão não deixará de haver, no caso, o aborto.
Portanto, aborto é a expulsão do ovo, embrião ou feto do útero materno, antes que aqueles estejam viáveis para suportar a vida extrauterina. Ou seja, é a cessação do desenvolvimento do produto da concepção, ocasionando sua destruição.
As formas de abortamento podem ser classificadas como: natural, acidental e
provocada.
Natural ou espontâneo é o aborto involuntário, que ocorre quando o próprio organismo da mulher rejeita o produto da concepção, interrompendo a gestação pela expulsão do ovo, embrião ou feto, sem interferência externa.
Nas palavras de Maria Helena Diniz (2008, p. 30):
[...] o aborto espontâneo ou natural é geralmente causado por doenças no curso da gravidez, por péssimas ou precárias condições de saúde da gestante, preexistentes a fecundação. Alguns exemplos são: sífilis, anemia profunda, cardiopatia, diabetes, nefrite crônica entre outras. Ou por defeitos estruturais no ovo, embrião ou feto.
O aborto acidental dá-se quando não há desejo de pôr termo na gravidez.
Pode ser provocado por elementos involuntários, tais como uma forte emoção sentida pela gestante ou o impacto de um choque violento.
O aborto natural e o acidental são impuníveis.
O aborto provocado, por sua vez, interessa ao Direito Penal, haja vista assumir a forma dolosa. Acontece com a interrupção deliberada da gravidez, por obra de terceiro ou da própria gestante, com ou sem o consentimento desta.
Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt (2007, p. 397), o aborto só é criminoso quando provocado, pois possui a finalidade de interromper a gravidez e eliminar o produto da concepção, contra disposição legal, sendo exercido sobre a gestante ou sobre o próprio feto ou embrião.
Do ponto de vista da lei, o aborto será legal nos casos em que a norma extingue a punibilidade, a saber, o aborto necessário (se não há outro meio de salvar a vida da gestante) e o sentimental (se a gravidez resulta de estupro); e criminoso, quando praticado em desconformidade com a lei.
Cabe salientar, o aborto caracteriza-se unicamente como crime doloso, não havendo previsão de punição no Código Penal em decorrência de negligência, imprudência ou imperícia.
2.2 Aborto na História do Brasil
Foi no Código Criminal do Império do Brasil, de 1830, que se manifestou a
tipicidade do aborto no ordenamento jurídico brasileiro, inserido na parte dos crimes
contra a segurança da pessoa e vida. Elencava os artigos 199 e 200:
Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada.
Penas - de prisão com trabalho por um a cinco annos.
Se este crime fôr commettido sem consentimento da mulher pejada.
Penas - dobradas.
Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique.
Penas - de prisão com trabalho por dous a seis annos.
Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes.
Penas - dobradas (BRASIL, 1830).
Observa-se que o Código Criminal do império não punia a gestante, mas sim terceiros que executassem ou quem fornecia meios para a execução do abortamento.
Nas palavras de Bitencourt (2007, p. 128):
O Código Criminal do Império de 1830 não criminalizava o aborto praticado pela própria gestante. Punia somente o realizado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante. Criminalizava, na verdade, o Aborto Consentido e o Aborto Sofrido, mas não o Aborto Provocado, ou seja, o Auto aborto. A punição era somente imposta a terceiros que interviesse no abortamento, mas não à gestante, em nenhuma hipótese. O fornecimento de meios abortivos também era punido, mesmo que o aborto não fosse praticado, como uma espécie, digamos, de criminalização dos atos preparatórios.
Agravava-se a pena se o sujeito ativo fosse médico, cirurgião ou similar.
Já o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, de 1890, passou a criminalizar o aborto também quando praticado pela própria gestante (autoaborto), embora a tentativa de preservar a própria honra servisse como atenuante.
Dispunha os artigos 300, 301 e 302:
Art. 300. Provocar abôrto, haja ou não a expulsão do fructo da concepção:
No primeiro caso: - pena de prisão cellular por dous a seis annos.
No segundo caso: - pena de prisão cellular por seis mezes a um anno.
§ 1º Si em consequencia do abôrto, ou dos meios empregados para provoca-lo, seguir-se a morte da mulher:
Pena - de prisão cellular de seis a vinte e quatro annos.
§ 2º Si o abôrto for provocado por medico, ou parteira legalmente habilitada para o exercicio da medicina:
Pena - a mesma precedentemente estabelecida, e a de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação.
Art. 301. Provocar abôrto com annuencia e accordo da gestante:
Pena - de prissão cellular por um a cinco annos.
Paragrapho unico. Em igual pena incorrerá a gestante que conseguir abortar voluntariamente, empregado para esse fim os meios; e com
reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a deshonra propria.
Art. 302. Si o medico, ou parteira, praticando o abôrto legal, ou abôrto necessario, para salvar a gestante de morte inevitavel, occasionar-lhe a morte por impericia ou negligencia:
Pena - de prisão cellular por dous mezes a dous annos, e privação do exercicio da profisão por igual tempo ao da condemnação (BRASIL, 1890).
Além da atenuante referente à honra da mulher grávida, o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil também inovou ao prever a figura do aborto terapêutico ou necessário, realizado com a finalidade de salvar a vida da gestante, caso em que punia apenas eventual imperícia do médico ou parteira que culposamente causassem a morte da gestante.
Sendo assim, vê-se que a legislação a respeito do aborto tornou-se mais rígida em fins do século XX, com aumento de pena e punição também para a mulher. Por outro lado, possuía uma causa de redução de pena para esta e autorizava o aborto para salvar a vida da gestante.
2.3 Aborto na legislação brasileira atual
No dia 07 de dezembro de 1940, foi sancionado o Decreto-Lei nº 2.848, sendo este o Código Penal atualmente em vigor no Brasil, que trata do crime de aborto em seu capítulo 124 e seguintes. In verbis:
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de um a três anos.
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência (BRASIL, 1940).
Vê-se que o Código Penal tipifica três figuras de aborto: provocado, sofrido e consentido.
O art. 124 expõe a figura do Aborto Provocado. Em sua primeira parte trata-se de crime especial, pois apenas pode ser praticado pela gestante; já na segunda parte, pune-se a gestante pelo consentimento dado a terceiro para sua realização.
O art. 125 apresenta o Aborto Sofrido, a forma mais gravosa do crime, merecedor de maior pena e reprovação, posto o aborto ser realizado sem o consentimento da gestante.
O art. 126 versa sobre o chamado Aborto Consentido, isto é, o aborto provocado por terceiro com a anuência da gestante, caso em que eventuais lesões leves sofridas por esta não acarretarão consequências jurídicas ao terceiro.
Sobre a validade do consentimento, Damásio de Jesus (2010, p. 157) ressalta que, "neste campo, o direito penal é menos formal e mais realístico, não se aplicando as normas do direito privado. Leva-se em conta a vontade real da gestante, desde que juridicamente relevante".
O art. 127 trata da forma qualificada do delito, quando da prática do aborto realizado por terceiro resulte em lesão corporal de natureza grave ou morte da gestante. O referido artigo assim dispõe:
Art. 127 – As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte (BRASIL, 1940).
No caso em comento, a lesão corporal de natureza grave ou a morte não devem decorrer de dolo.
2.4 Excludentes de ilicitude
Muito embora a vida do nascituro, como um bem jurídico merecedor de salvaguarda legal, possa justificar a criminalização do aborto, a própria lei penal prevê exceções à regra de se punir o aborto.
Nesse sentido leciona Luiz Regis Prado (2006, p. 119):
Sob certas circunstâncias, isto é, quando há um conflito entre a Vida do embrião ou do feto e determinados interesses da mãe, aquela deva ceder em favor destes últimos. Em síntese, parte-se de um esquema de regra- exceção: a regra é a punição do Aborto; e exceção, permitir o Aborto em determinadas hipóteses expressamente previstas (indicações), além das eximentes comuns de responsabilidade disciplinadas pelo Código penal.
São duas as situações em que a lei penal brasileira autoriza o aborto, descritas no art. 128 do Código Penal nos seguintes termos:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (BRASIL, 1940).
De acordo com Bitencourt (2007, p. 168), as supracitadas excludentes de ilicitude são:
[...] uma forma diferente e especial de o legislador excluir a ilicitude de uma infração penal sem dizer que “não há crime”, como faz no art. 23 do mesmo diploma legal. Em outros temos, o Código Penal, quando diz que “não se pune o aborto”, está afirmando que é lícito naquelas duas hipóteses que excepciona no dispositivo em exame.
Cumpre dizer, para além da situação fática adequar-se à quaisquer das hipóteses mencionadas, para que o aborto transcorra conforme a lei, a maior parte da doutrina entende que o procedimento deva ser realizado por médico e com o consentimento da gestante ou de seus responsáveis, quando esta for incapaz.
3 DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA
Por ser tema bastante controverso, que suscita grande atenção pública, o
aborto vem sendo discutido sob várias perspectivas, sejam elas de natureza
ideológica, ética, política ou religiosa. Muitos são os pontos de vista sobre o início da
vida, o direito à vida e à liberdade, individualidade e domínio da mulher sobre seu
próprio corpo.
Nesse capítulo discute-se o direito fundamental à vida, abordando-se as teorias que tentam estabelecer o momento em que o ser humano concebido adquire personalidade jurídica.
3.1 Direito à vida
A dignidade da pessoa humana é base para a formação do Estado brasileiro, haja vista ser considerada um dos princípios constitucionais de maior importância por englobar todos os direitos e garantias fundamentais. Encontra-se prevista no art.
3º, III, da Constituição Federal de 1988, que assim dispõe:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político (BRASIL, 1988).
No entendimento de Meirelles (2011, p. 94), há certa unanimidade em reconhecer que a dignidade da pessoa humana é conceito à priori, ou seja, um dado preexistente a toda experiência especulativa.
O referido autor ainda ensina, citando Ingo Wolfgang Sarlet:
[a dignidade da pessoa humana], portanto, como qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada, já que em cada ser humano como algo que lhe é inerente. Assim, vale lembrar que a dignidade evidentemente não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida em que este a reconhece, já que constitui dado prévio, não esquecendo, todavia, que o Direito poderá exercer papel crucial na sua proteção e promoção, não sendo, portanto completamente sem razão que se sustentou até mesmo a desnecessidade de uma definição jurídica da dignidade da pessoa humana, na medida em que, em última análise, se cuida do valor próprio, da natureza do ser humano como tal (MEIRELLES, 2011, p. 94).
Portanto, a dignidade da pessoa humana é algo inerente a toda e qualquer pessoa, seja qual for sua etnia, sexo, religião, posição política ou social, grau de escolaridade etc.
Sobre o direito à vida, Alexandre de Moraes (2011, p. 80) preleciona que:
[...] é o mais fundamental de todos os direitos, pois o seu asseguramento impõe-se, já que se constitui como pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal assegura, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência.
Já a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, em seu artigo 3º, declara que “toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (GENEBRA, 1948), restando claro que para a comunidade internacional a vida é bem supremo.
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, tutela a vida em seu art. 5º, onde assegura que:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] (BRASIL, 1988).
Vislumbra-se aqui, inequivocamente, a primazia que o legislador constitucional de 1988 imprimiu ao direito à vida. Este se coloca à frente de outros no sentido de que a vida humana seja considerada um ponto central, isto é, um eixo do qual emanam todos os demais direitos.
Contudo, quando se fala sobre direito à vida, logo surge um questionamento:
quando se inicia a vida?
Nos dizeres de José Sebastião de Oliveira e Meire Cristina Queiroz (2013, p.
498):
É importante que se tenha em mente a noção clara de personalidade civil e o momento de seu começo, pois é a partir de sua obtenção que a pessoa adquire direitos e contrai obrigações. Os direitos do nascituro são tutelados pela lei civil, que os põe a salvo desde a concepção, e também pela lei penal, tendo em vista a punição do aborto, do infanticídio durante o parto, da periclitação da vida e da saúde, entre outros.
Ante a falta de consenso científico acerca do início da vida humana, importa para o Direito determinar o momento em que a pessoa natural adquire personalidade jurídica, isto é, a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações na ordem civil.
3.2 Teorias acerca do início da personalidade jurídica
Três são as teorias mais debatidas sobre o momento da aquisição da personalidade jurídica, são elas: teoria natalista, teoria da personalidade condicional e teoria da concepção.
3.2.1 Teoria natalista
Segundo essa teoria, o nascituro não é considerado pessoa, pois adquire personalidade apenas com o nascimento com vida, ou seja, trata-se de um ser em potencial, tão somente com expectativa de direitos.
A respeito dessa teoria, Oliveira e Queiroz (2013, p. 498) declaram:
Adotada pela maioria de nossos doutrinadores e aparentemente agasalhada pelo artigo 2º do Código Civil, [a teoria natalista] estabelece que a personalidade civil do homem começa com o seu nascimento com vida.
Para esta doutrina, o nascituro não é considerado pessoa e somente tem expectativa de direito, desde a sua concepção, para aquilo que lhe é juridicamente proveitoso. O nascituro não tem personalidade jurídica e também lhe falta capacidade de direito, porque a lei apenas protegerá os direitos que possivelmente ele terá, em caso de nascer com vida, os quais são enumerados taxativamente no ordenamento jurídico (posse, direito à herança, direito à adoção, direito à curatela).
Como acima mencionado, a teoria natalista parece ser a adotada pelo Código Civil de 2002, que em seus artigos 1º e 2º assim dispõem:
Art. 1o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.
Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida;
mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (BRASIL, 2002).
Como consequência dessa teoria, nascendo morta a criança, esta não chega a adquirir personalidade, de modo que não se torna capaz de receber ou transmitir quaisquer direitos. Contudo, o nascimento com vida, ainda que de curta duração, lhe garante personalidade, bem como a capacidade de receber e transmitir direitos.
3.2.2 Teoria da personalidade condicional
Segundo essa teoria, o nascituro não é considerado pessoa, pois adquire
personalidade unicamente com o nascimento com vida, entretanto são assegurados
seus direitos desde a concepção. Sendo o nascimento com vida uma condição suspensiva, o nascituro seria possuidor de direitos apenas eventuais.
Crítico dessa teoria, Flávio Tartuce (2014, p. 79) assim disserta a seu respeito:
O grande problema da corrente doutrinária é que ela é apegada a questões patrimoniais, não respondendo ao apelo de direitos pessoais ou da personalidade a favor do nascituro. Ressalte-se, por oportuno, que os direitos da personalidade não podem estar sujeitos a condição, termo ou encargo, como propugna a corrente. Além disso, essa linha de entendimento acaba reconhecendo que o nascituro não tem direitos efetivos, mas apenas direitos eventuais sob condição suspensiva, ou seja, também mera expectativa de direitos.
Em suma, a teoria da personalidade condicional, diferentemente da teoria natalista, reconhece a personalidade jurídica do nascituro a partir do momento em que fora concebido, porém seus direitos existiriam apenas em estado potencial, a espera que se concretize com seu nascimento com vida.
3.2.3 Teoria da concepção
Para a teoria da concepção, a vida inicia-se a partir da fecundação do óvulo.
Assim, o nascituro já seria pessoa e possuidor de todos os direitos inerentes à personalidade, restando apenas alguns direitos específicos que dependeriam do nascimento com vida, a exemplo dos direitos patrimoniais.
Defensora dessa teoria, Diniz (2011, p. 50) argumenta que:
A fetologia e as modernas técnicas de medicina comprovam que a vida inicia-se no ato da concepção, ou seja, da fecundação do óvulo pelo espermatozóide, dentro ou fora do útero. A partir daí tudo é transformação morfológico temporal, que passará pelo nascimento e alcançará a morte, sem que haja qualquer alteração do código genético, que é singular, tornando a vida humana irrepetível e, com isso, cada ser humano único.
Embora para os concepcionistas a vida se inicie com a fecundação, Greco (2014, p. 238) ensina que, em termos jurídicos, o aborto só pode ser considerado na hipótese de nidação (quando há fixação do óvulo no interior do útero materno), caso em que se poderá falar em gravidez intrauterina.
[...] enquanto não houver a nidação não haverá possibilidade de proteção a ser realizada por meio da lei penal. Dessa forma afastamos inúmeras discussões relativas ao uso de dispositivos ou substâncias que seriam
consideradas abortivas, mas que não têm o condão de repercutir judicialmente, pelo fato de não permitirem justamente a implementação do óvulo (GRECO, 2014, p. 238).
Em se tratando de jurisprudência nacional, Carlos Roberto Gonçalves (2016, p. 197) não vê uma posição definida pelo STF em relação a qualquer das teorias de aquisição da personalidade. Já o STJ teria acolhido a teoria Concepcionista.
4 DA CONSTITUCIONALIDADE DO DIREITO AO ABORTO
Devido às pressões sociais que cercam os debates sobre o início da vida e a legalização do aborto, a postura frequentemente adotada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal é esquivar-se ao seu dever de legislar, o que resulta em uma grande inquietação entre o povo brasileiro. Não obstante isso, devido às recentes decisões do Supremo Tribunal Federal sobre tais temas, cresce a expectativa de que o Poder Judiciário venha a decidir sobre a legalização do aborto no Brasil.
4.1 Aborto no direito comparado
As leis sobre a interrupção da gravidez podem variar de país para país, em razão de vários fatores.
De acordo com pesquisa da ONU, dois terços de seus estados-membros autorizam o aborto quando há ameaça à saúde física ou psíquica da gestante, enquanto metade o faz quando a gravidez resultar de estupro ou incesto, ou em caso de malformação que torne inviável a vida extrauterina. Apenas El Salvador, Nicarágua, República Dominicana, Vaticano e Malta proíbem o aborto totalmente.
A lei de Malta, entretanto, não é rigorosamente aplicada em relação a casos em que a gravidez põe em perigo a vida da mulher (MARTINS, 2017).
A maioria dos países da União Europeia admite o aborto durante o primeiro
trimestre de gestação. Após esse período, o aborto geralmente é permitido apenas
sob certas circunstâncias, tais como risco à vida ou à saúde da mulher, defeitos
fetais ou outras situações específicas que possam estar relacionadas às
circunstâncias da concepção ou à idade da mulher (TORRES, 2011, online).
Ademais, a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos já consolidou o entendimento de que os Estados têm discricionariedade para permitir o aborto e, também, de que o feto não goza de direito absoluto à vida.
A Convenção Européia de Direitos Humanos não dispõe expressamente sobre a proteção ao nascituro. Contudo, a Comissão foi provocada na década de 80 por um cidadão inglês, que afirmava que a decisão unilateral de sua mulher de realizar o aborto, realizado com amparo na legislação inglesa – o Abortion Act de 1967 – violava o direito à vida, previsto no art. 2º daquela Convenção, assim como o direito à privacidade familiar, consagrado no seu art. 8º. A Comissão declarou inadmissível o requerimento, argumentando que a palavra “pessoa”, utilizada no art. 2º da Convenção, só seria aplicável a indivíduos já nascidos. E conclui que, em se tratando de interrupção da gestação realizada na fase inicial de gravidez, o direito à vida familiar do genitor potencial deveria ceder, n uma ponderação, ante os direitos à saúde e ao respeito da vida privada da mãe (SARMENTO, 2005, p. 20).
Considerando a profunda divisão de opinião da sociedade acerca do aborto, bem como a hesitação do Poder Legislativo em colocar o tema em pauta, a legalização do aborto por decisão de Cortes Superiores não é um fato sem precedentes. Tendo isso em vista, cita-se a ocorrência de dois casos no próprio continente americano, a saber: Roe v. Wade, de 1973, nos Estados Unidos, e R v.
Morgentaler, de 1988, no Canadá.
De suma importância para movimentos pró-escolha
3por seu pioneirismo, no caso Roe v. Wade a Suprema Corte norte-americana, pela primeira vez, enfrentou a questão do direito ao aborto, decidindo sobre a constitucionalidade ou não das leis locais que o criminalizavam.
Norma L. McCorvey (pseudônimo: Jane Roe), alegando uma gravidez resultante de estupro, ajuizou ação questionando a constitucionalidade das leis penais do Texas acerca do aborto, à época permitido apenas em caso de risco de vida para a gestante. Após sucessivas apelações no Texas, o caso chegou à jurisdição federal.
Naquela ocasião a Suprema Corte enxergou a liberdade reprodutiva da mulher em seu direito à privacidade (protegido pela 14ª Emenda à Constituição), em
3 O movimento pró-escolha (pro-choice) refere-se a todos os movimentos sociais que defendem a ideia política de que a mulher deve ter autonomia reprodutiva, podendo optar livremente por métodos contraceptivos e acessar legalmente o aborto. Nesse contexto, contrastam com os movimentos pró- vida (pro-life), para os quais a liberdade da mulher não pode ser usada como argumento para negar o direito à vida do embrião.
um texto constitucional que silenciava sobre o aborto, para combater a restritiva lei penal texana.
A questão do aborto não está diretamente regulada pela Constituição norte-americana, mas no famoso caso Roe v. Wade, julgado pela Suprema Corte em 1973, entendeu-se que o direito à privacidade, reconhecido por aquele Tribunal no julgamento do caso Griswold v.
Connecticut, de 1965, envolveria o direito da mulher de decidir sobre a continuidade ou não da sua gestação. Com base nesta orientação, a Suprema Corte, por 7 votos a 2, declarou a inconstitucionalidade de uma lei do Estado do Texas, que criminalizava a prática do aborto a não ser nos casos em que este fosse realizado para salvar a vida da gestante (SARMENTO, 2005, p. 5-6).
Em sua decisão, a Suprema Corte determinou o tempo de gestação como critério para o aborto, não podendo os governos estaduais proibi-lo até o fim do primeiro trimestre. Contudo, poderiam estabelecer restrições para a interrupção da gravidez durante o segundo e proibições a partir do terceiro.
Da referida decisão, redigida pelo Juiz Harry Blackmun, Sarmento (2005, p.
6) destaca o seguinte excerto:
O direito de privacidade (...) é amplo o suficiente para compreender a decisão da mulher sobre interromper ou não sua gravidez. A restrição que o Estado imporia sobre a gestante ao negar-lhe esta escolha é manifesta.
Danos específicos e diretos, medicamente diagnosticáveis até no início da gestação, podem estar envolvidos. A maternidade ou a prole adicional podem impor à mulher uma vida ou futuro infeliz. O dano psicológico pode ser iminente. A saúde física e mental podem ser penalizadas pelo cuidado com o filho. Há também a angústia, para todos os envolvidos, associada à criança indesejada e também o problema de trazer uma criança para uma família inapta, psicologicamente ou por qualquer outra razão, para criá-la.
Em outros casos, como no presente, a dificuldade adicional e o estigma permanente da maternidade fora do casamento podem estar envolvidos (...) O Estado pode corretamente defender interesses importantes na salvaguarda da saúde, na manutenção de padrões médicos e na proteção da vida potencial. Em algum ponto da gravidez, estes interesses tornam - se suficientemente fortes para sustentar a regulação dos fatores que governam a decisão sobre o aborto (...) Nós assim concluímos que o direito de privacidade inclui a decisão sobre o aborto, mas que este direito não é incondicionado e deve ser sopesado em face daqueles importantes interesses estatais.
Por essa mesma época, que coincide com a segunda onda do movimento feminista
4, uma nova perspectiva social desencadeou um processo global de liberalização da legislação sobre o aborto.
4 Convencionou-se dividir a história do feminismo em três momentos distintos, denominados ondas. A primeira onda ocorreu nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, com as suffragettes
Em sintonia com os novos valores sociais, e revelando uma crescente sensibilidade diante dos direitos fundamentais das mulheres, legisladores ou Tribunais Constitucionais de incontáveis países como Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra, Itália, Espanha, Canadá, dentre tantos outros, promoveram significativas modificações em suas ordens jurídicas, legalizando a interrupção voluntária da gravidez, desde que realizada dentro de determinados prazos ou sob determinadas indicações. Neste contexto, a legislação brasileira caracteriza-se hoje como uma das mais severas, rigorosas e anacrônicas de todo o mundo (SARMENTO, 2005, p.
3-4).
A experiência europeia diferiu no sentido de que, em muitos casos, a liberação partiu do próprio Poder Legislativo. Não obstante isso, a constitucionalidade dessas leis foram rapidamente desafiadas nas Cortes Superiores de cada país.
A esse respeito, Ruth Rubio-Marín (2017, online) assim preleciona:
No imaginário europeu, Roe tornou-se o paradigma americano, marcado por um enquadramento constitucional do aborto que começa com o reconhecimento da liberdade reprodutiva das mulheres. Este paradigma sempre representou um extremo contra o qual os tribunais europeus buscaram posições mais moderadas. Essa talvez seja uma consequência da forma como as disputas acerca do terma surgiram nos tribunais europeus. Entre 1974 e 1975, quatro países europeus (Áustria, França, Alemanha e Itália) proferiram decisões constitucionais sobre o aborto, mas em todos eles, tendo a Itália como exceção, foram os grupos que resistiam à liberalização e não os que lutavam por ela que foram aos tribunais.
Assim teve início o constitucionalismo europeu a respeito do aborto que até hoje mantém certo caráter reativo em sua essência.
A história do aborto é marcada por graves divergência de interesses, frequentemente prevalecendo o interesse dos homens. Contudo, desde meados do século XX, a despeito de fortes movimentos contrários, predominou na esfera legal, bem como na judicial, a tendência à descriminalização, ou, ao menos, ao alargamento das hipóteses que autorizam a prática do aborto.
4.2 Habeas Corpus 124.306/RJ
(sufragistas), que se mobilizaram pelo direito ao voto da mulher. A segunda, nas décadas de 1960 e 1970, com a luta por liberdade e autonomia da mulher para decidir sobre sua vida e seu corpo. A terceira, na década de 1990 até a atualidade, enfatiza a interseccionalidade, reconhecendo a diversidade de identidades e experiências das mulheres.
Com a profunda divisão da sociedade brasileira a respeito do tema aborto, grupos pró-escolha e pró-vida exercem pressão sobre os parlamentares a fim de ver seus pontos de vista transformados em Lei. Em consequência de tais mobilizações, foram criados e ainda tramitam no Congresso Nacional inúmeros Projetos de Lei, alguns com o objetivo de aumentar o número de causas legais para a autorização do aborto, geralmente tendo por foco as doze primeiras semanas de gestação, ao passo que outros intentam proibir a prática completamente, mesmo quando há risco de morte da gestante.
Com a omissão do Poder Legislativo e o protagonismo do Judiciário na resolução de temas polêmicos, os maiores avanços nesse debate têm ocorrido no âmbito deste Poder, sendo um importante passo nesse sentido a progressista decisão da Primeira Turma do STF no Habeas Corpus 124.306/RJ.
Os pacientes na ação foram presos preventivamente em 2013, pelo suposto cometimento dos crimes descritos dos arts. 126 (aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante) e 288 (associação criminosa) do Código Penal.
Postos em liberdade naquele mesmo ano pelo juízo da 4ª Vara Criminal da Comarca de Duque de Caxias, foram novamente presos em 2014 após recurso em sentido estrito do Ministério Público estadual à 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RJ, com fundamento na garantia da ordem pública e necessidade de assegurar a aplicação da lei penal. Essa nova prisão motivou a defesa a impetrar Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça, que a Corte não conheceu. Ante isso, impetraram novamente Habeas Corpus (em lugar de recurso ordinário constitucional), desta vez à Primeira Turma do STF, alegando ausência dos requisitos necessários para a decretação de prisão preventiva, expressos no art. 312 do Código de Processo Penal.
Conforme a jurisprudência majoritária da Primeira Turma do STF, o processo deveria ter sido extinto sem resolução do mérito, haja vista a inadequação da via processual. Contudo, dada a relevância e delicadeza da matéria, a ordem foi examinada e concedida de ofício em 29 de setembro de 2016.
Na ocasião, em seu voto-vista, o Ministro Luís Roberto Barroso defendeu
que a proibição ao aborto, expressa no Código Penal, deve ser relativizada,
invocando os direitos fundamentais da mulher e o princípio da proporcionalidade para justificar a descriminalização do aborto no primeiro trimestre de gestação.
Veja-se a ementa do acórdão:
DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO
PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA
DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos.
2. Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação.
3. Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre.
A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade.
4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais:
os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais;
a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.
5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem os procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos.
6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro;
(ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios.
7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.
8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus (BRASIL, 2016, online) (grifou-se).
Pelo exposto, a Primeira Turma do STF entende que o Estado viola vários direitos fundamentais da mulher ao obrigá-la a manter uma gestação indesejada, dentre eles, os sexuais e reprodutivos. Ademais, a incapacidade da criminalização proteger a vida do feto ou reduzir a quantidade de abortos praticados no Brasil viola o princípio da proporcionalidade (apêndice A).
O ministro também ressalta a necessidade de enxergar o aborto sob uma ótica não penal, mas de saúde, uma vez que a mulher sofre em seu corpo e mente os efeitos nocivos tanto da gravidez indesejada quanto do aborto. Além disso, é a mulher de condição social mais baixa quem sente os maiores impactos da criminalização. Sem a possibilidade de recorrer a procedimentos médicos regulares, expõe-se a toda sorte de riscos à sua saúde.
Esse posicionamento, comum aos países mais desenvolvidos do mundo, subverte a lógica de que os direitos reprodutivos da mulher devem submeter-se aos ditames do povo, da religião ou do Estado, o que os transformaria em deveres.
Nesse sentido, Piovesan (2002, p. 14) pondera que:
[...] faz-se ainda necessário dar maior visibilidade à construção conceitual de direitos reprodutivos, que, em sua complexidade, envolvem a concepção, o parto, a contracepção e o aborto, como elementos interligados onde a impossibilidade de acesso a qualquer um deles remete a mulher para um lugar de submissão. Há que se enfrentar a cultura que, permeada por elementos de cunho cultural, moral e religioso (vide a forte influência da Igreja católica no país), resiste em aceitar os direitos reprodutivos como direitos, insistindo na idéia de deveres reprodutivos e não de direitos reprodutivos.
Para a referida autora, a negação dos parlamentares em legislar sobre questões fundamentais para a dignidade, o livre arbítrio e a autonomia feminina demonstra uma "forte submissão do Poder Legislativo aos interesses religiosos, o que coloca o Brasil numa posição de atraso no que diz respeito às liberdades e garantias individuais" (PIOVESAN, 2002, p. 14).
Justo por isso, a decisão no julgamento do Habeas Corpus 124.306/RJ
destaca-se como uma postura progressista, alinhada com um movimento global de
descriminalização do aborto, iniciado nos anos sessenta. De fato, Tribunais Constitucionais de vários países descriminalizaram o aborto sob os mesmos fundamentos, bem como atestaram sua constitucionalidade quando a descriminalização se deu por iniciativa do Poder Legislativo.
Segundo considera Sarmento (2005, p. 22), é importante atentar para o fato de que tais países possuem tradições constitucionais semelhantes à brasileira, e também constituições em que os direitos fundamentais ocupam posição de grande privilégio no sistema jurídico. Desse modo, no caso de se descriminalizar o aborto no Brasil, a ordem constitucional deveria impor um caminho parecido ao adotado naqueles países, visto que ela, ao mesmo tempo em que protege os direitos fundamentais da mulher relacionados à sua saúde e autonomia reprodutiva, também protege o direito à vida do nascituro, ainda que em menor grau para este.
Portanto, ainda que muitos setores da sociedade brasileira critiquem e perceba a decisão da primeira Turma do STF no Habeas Corpus 124.306/RJ como ativista, sua fundamentação reflete uma mudança na forma de se pensar a sexualidade feminina, em razão da solidificação de novos valores sociais acerca do papel da mulher no mundo moderno. Não só isso, também coincide com o entendimento de Tribunais Constitucionais de outros Estados Democráticos de Direito assemelhados ao Brasil, em cujas constituições também há silêncio sobre a questão do aborto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um primeiro momento na história da Humanidade, a prática do aborto foi um método generalizado de controle de natalidade. Posteriormente, sofreu restrições ou banimento pela maioria das religiões, considerando-se uma ação ilegal em grande parte do mundo até o século XIX.
Devido ao antagonismo entre grupos pró-vida e pró-escolha, essa questão cresce em importância, principalmente porque, ainda proibido no todo ou em parte em dezenas de países, o aborto aparece como umas das maiores causas de morte entre as mulheres.
No Brasil, o crime de aborto subsiste nos códigos penais desde 1830, quando
foi tipificado no Código Criminal do Império. Desde então, esse direito evoluiu de
maneira lenta, em descompasso com a emancipação da mulher e a legislação progressista dos países desenvolvidos.
Em um cenário em que o Congresso Nacional exime-se de rediscutir as já antigas leis de aborto, que datam de 1940, o Supremo Tribunal Federal ganha protagonismo ao enfrentar questões em que o direito à vida do feto se contrapõe a outros direitos fundamentais da mulher. Prova disso é sua recente atuação na procedência do Habeas Corpus 124.306/RJ, em que demonstrou inclinar-se a uma tendência global de reconhecimento do direito da mulher exercer domínio sobre seu próprio corpo.
A partir da análise da sentença, pode-se concluir que, na ocasião, o STF
julgou em conformidade com posicionamentos adotados por outras Supremas
Cortes da América do Norte e Europa, que legalizaram ou confirmaram a
constitucionalidade do aborto, ante o silêncio de suas Constituições nacionais,
baseando-se no reconhecimento e valorização dos direitos fundamentais da mulher.
CONSTITUTIONALIZATION OF THE RIGHT TO ABORTION
Gabrielle Ludgero Ferreira Prof. M.a Kélvia Faria Ferreira