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A vida das imagens 1 Relações entre fotografia e biopolítica a partir do pensamento de Georges Didi- Huberman. Guilherme Ferraz 2

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VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013.

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A vida das imagens1

Relações entre fotografia e biopolítica a partir do pensamento de Georges Didi-Huberman

Guilherme Ferraz2 Resumo

Este trabalho pretende investigar o pensamento de Georges Didi-Huberman, filósofo e historiador da arte francês, acerca da imagem fotográfica à luz da analítica do biopoder, tal como desenvolvida por Michel Foucault em sua História da Sexualidade

1 – A vontade de Saber (2010). Para isso, parte-se do campo de problematização

biopolítico explicitado pela Iconografia Fotográfica de Salpêtrière, enorme catálogo de retratos de pacientes histéricas produzido pelo maior manicômio da Paris da Belle

Époque e analisado por Didi-Huberman em Invenção da Histeria (2003). Em seguida,

propõe-se um diálogo entre a hipótese de uma vida das imagens, sugerida pelo pensamento do autor (DIDI-HUBERMAN, 2002), e as questões levantadas acerca das estratégias do biopoder no contexto acima especificado.

Palavras-chave

Fotografia; Biopoder; Georges Didi-Huberman; Dispositivo do Contato

Em 1844, o inglês William Henry Fox Talbot, pioneiro no campo da fotografia, lançava uma das primeiras publicações dedicadas à técnica ainda incipiente, sob o título The Pencil of Nature (O Lápis da Natureza). Desde cedo, a qualidade mecânica com a qual a natureza inscrevia a si mesma no contato com a superfície fotossensível, sem a exigência de uma intervenção direta do homem, rendeu à fotografia o status de espelho do real (DUBOIS, 2010). Tamanha

1 Trabalho apresentado no GT1 – Artes, Imagens, Estéticas e Tecnologias da Comunicação do VI Congresso de Estudantes de Pós-Graduação em Comunicação, na categoria pós-graduação. UERJ, Rio de Janeiro, outubro de 2013.

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objetividade a levaria a ser coroada como “a verdadeira retina do cientista” 3 (DIDI-HUBERMAN, 2003, p.32) por Albert Londe, diretor do departamento fotográfico do Hospital de Salpêtrière, o principal manicômio da Paris da Belle Époque, na década de 1880.

Ao longo de séculos, o termo “histeria” designara um verdadeiro mistério para a medicina. O excesso e a intensidade de sintomas apresentados, somados à impossibilidade de encontrar um suporte concreto para a doença no organismo proporcionavam uma grande inquietude ao saber médico. Seguindo os comandos do Dr. Jean-Martin Charcot, instaurou-se, então, nas dependências do manicômio parisiense, um dispositivo de visibilidade que combinava fotografia a técnicas de hipnose. Através da Iconographie Photographique de la Salpêtrière, em seus diversos registros de contorções e poses singulares, o psiquiatra pôde tornar visível a forma regular da patologia. Sob a égide do chamado paradigma indiciário (GINZBURG, 1989), entendido como uma forma de acesso a um referente não apreensível em sua materialidade, a fotografia responderia, então, a uma das maiores demandas da ciência que despontava no século XIX: atingir a “visibilidade total dos corpos, dos indivíduos e das coisas” (FOUCAULT, 2008, p.210).

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Figura 1: Aparição da “força vital” na fotografia do Dr. Hippolite Baraduc, L’Ame Humaine (1896).

À mesma época, no entanto, um psiquiatra próximo ao círculo da Escola de Salpêtrière realizava experimentos fotográficos não tão celebrados pelos seus pares no meio acadêmico. Certa vez, após fotografar o próprio filho tendo um faisão morto sobre o colo, o Dr. Hippolite Baraduc obteve uma espécie de véu na imagem revelada (Figura 1). O detalhe, no entanto, não foi compreendido como um defeito, mas como uma impressão da força vital gerada pelo estado de alma da criança. Desde então, o médico entusiasta da fotografia se tornou um obcecado em registrar tais fenômenos através de experimentos aos quais dotava um caráter científico. O resultado foi L’âme

humaine, ses mouvements, ses lumières et l’iconographie de l’invisible fluidique

(1896), verdadeira iconografia de afetos fotografados (DIDI-HUBERMAN, 2003). A figura do Dr. Baraduc assume um lugar exemplar no projeto conduzido por Didi-Huberman em Invenção da Histeria – Charcot e a Iconografia Fotográfica de

Salpêtrière (2003), no sentido de deslindar a complexa trama de enunciados que

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A análise de Didi-Huberman revela, neste contexto, um olhar próximo àquele apresentado pela analítica do biopoder segundo Michel Foucault (2010) através da noção de “dispositivo”. Giorgio Agamben (2009) resume o conceito nunca formalmente definido por Foucault em três pontos: o dispositivo é “um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas, etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos”; em segundo lugar, “o dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder”; e finalmente, o dispositivo “resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber” (Ibid., p.29). Agamben generalizaria o termo foucaultiano, definindo-o, ainda, como “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (Ibid., p.40).

A noção de dispositivo interessa, aqui, na medida em que vai permitir pensar uma trama de saberes e poderes que, ao mesmo em que engendra uma série de enunciados e práticas, sustenta os próprios discursos que os contrapõem. Se acredito poder falar em um “dispositivo do contato” neste contexto é porque, como observa Didi-Huberman, os mesmos discursos que atribuem um valor de verdade à fotografia, graças à contiguidade física que, em dado momento, manteve com seu referente, sustentariam, por um lado, práticas do campo do saber que a tomam como representação objetiva do real e, por outro, aquelas que a utilizam como ferramenta para a manifestação do oculto, práticas ligadas ao campo do misticismo ou da paranormalidade.

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retrato fotográfico (...) nunca apresentou o ‘modelo’ ‘como tal’. Sempre representou e

complicou o modelo, já o esculpiu em outra coisa, talvez um ideal, talvez um enigma,

talvez ambos” (Ibid., p.65). O paradoxo da fotografia seria, portanto, o paradoxo de uma semelhança que excede a própria evidência e, deste modo, configuraria um risco para qualquer saber que pretendesse utiliza-la como método de observação.

Deparamo-nos, então, com um novo paradoxo: o de um saber para o qual surge a necessidade de continuamente modular, aperfeiçoar e regular as condições de visibilidade da semelhança. Para os psiquiatras de Salpêtrière, assim como para os diversos outros campos do saber que adotaram a fotografia em fins do século XIX, foram constantes preocupações como a normatização da pose, a uniformidade dos procedimentos e scripts a serem seguidos para a otimização do desempenho da técnica, a fim de que sinais legíveis pudessem ser identificados na imagem, com uma margem mínima de erros (DIDI-HUBERMAN, 2003).

A fotografia que emerge neste fim de século pode ser percebida, portanto, como um efeito-instrumento do dispositivo do contato descrito acima. A fim de escapar aos riscos do paradoxo da semelhança, a imagem fotográfica, institucionalizada como tecnologia produtora de verdade, é coagida a obedecer os protocolos de eficácia da boa imagem ou da imagem saudável. Em paralelo, experiências como as do Dr. Baraduc fornecem o campo de estudos das patologias desta técnica de reprodutibilidade, seu excessos e seus déficits. Partilham, desta forma, apesar de desacreditadas, do mesmo compromisso que os experimentos científicos “sérios” na definição dos contornos que a fotografia viria a assumir. Afinal, a “teratologia científica é efetiva no próprio domínio da ciência” (Ibid., p.99).

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padrão da histeria moderna, o saber inventa também a fotografia, ou pelo menos a forma forte da fotografia que vigorará, a partir de então, na era da decadência da aura. De acordo com Didi-Huberman, antes da nomeação de Albert Londe para a chefia do serviço fotográfico do manicômio, as práticas aventureiras de seus predecessores, Désiré-Magloire Bourneville e Paul Régnard, produziam imagens muito mais enigmáticas e desconcertantes (DIDI-HUBERMAN, 2003, p.59). É com a expansão do domínio da fotografia no hospital, operada por Londe à ocasião do lançamento do primeiro volume da Nouvelle Iconographie de la Salpêtrière, em 1988, que a tecnologia se torna mais sofisticada (Ibid., p.54) e, ao mesmo tempo, impõe-se toda uma normatização de procedimentos que tornariam a Iconografia de Salpêtrière uma obra canônica. Assim, a aura viria a ser apenas mais um problema técnico em fotografia, uma espectralidade indesejada, um problema de regulação de um contato à distância.

Palavra grega que significa ar, “aura” nomearia também a fórmula médica que descreve “um sopro que ‘atravessa o corpo’ no momento preciso em que este se encontra mergulhado em dor e crise” (Ibid., p.100). Aura hysterica foi o nome dado por Charcot ao sintoma premonitório de um ataque (Idem). Para além de um defeito do contato, a aura surge neste texto de Didi-Huberman como um problema metodológico enfrentado pelos fotógrafos do manicômio. Pois se a histérica era capaz de se abandonar a um “espetáculo de dores latejantes e choros, estrangulamentos, ou convulsões espontâneas” (Ibid., p.101), os momentos que precediam estes ataques eram marcados por uma “bela indiferença” (belle indiférence). Este “paradoxo da intermitência” (Idem) gerava, inclusive, suspeitas de dissimulação por parte das histéricas. Confrontados com o paradoxo de um sintoma que não manifesta uma diferença visível na imagem, só restava aos fotógrafos esperar, observar. Didi-Huberman se interessa por este fenômeno na medida em que a expectativa que gera coloca “uma questão do tempo transformada em uma questão do visível” (Ibid., p.104).

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noire da psiquiatria. Nela, um corpo oferecia todos os sintomas, um espetáculo de

todas as doenças de uma vez só, mas como que saídos do nada, pois não apresentavam base orgânica (Ibid., p.74). Para além do suposto triunfo iconográfico do método de observação desenvolvido por Charcot sobre a fera histérica, Didi-Huberman nos recorda que muitos discursos médicos também interpretariam a histeria como uma patologia do contato. Paul Briquet, autor do Traité clinique et

thérapeutique de l’Hysterie (1859) sustentava que esta seria uma “doença da

impressão” (“illness of impression”), da “impressionabilidade”: “o produto do sofrimento da porção do encéfalo destinada a receber impressões afetivas e sensações” (DIDI-HUBERMAN, 2003, p.73). “Uma doença da paixão? – Ah, sim, talvez. A paixão [...] proporcionava algo como uma providencial ‘superfície de contato’ entre corpo e alma” (Ibid., p.72). Uma patologia do contato que, portanto, gera um paradoxo do tempo e do visível. A reflexão de Didi-Huberman nos estimula a perceber como, em sua tentativa de dominar e regular a histeria, a fotografia se inventa uma “real proximidade com a loucura” (Ibid., p.65).

Portanto, se Salpêtrière testemunhou um momento em que as estratégias biopolíticas escreveram um “capítulo da história da arte”, como afirma Didi-Huberman (Ibid., p.4) é porque o poder aí se investiu não somente sobre o corpo da histérica, mas também sobre o corpo da imagem. Observamos, no campo da história da arte, uma estratégia análoga à que foi descrita no contexto biopolítico explicitado aqui através das práticas psiquiátricas no manicômio parisiense. Se é possível falar de um paradigma clínico no campo da história da arte, é porque aí, segundo Didi-Huberman, o historiador “assume os traços de um médico especialista que se dirige ao seu paciente com a autoridade de direito de um sujeito que supõe tudo saber em matéria de arte” (DIDI-HUBERMAN, 2008a, p. 10).

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Panofsky – o que se tem observado no campo da história da arte acadêmica é a intenção de construir um saber absoluto sobre a imagem, encarada como um objeto fechado e totalmente determinável. Esta busca pela unidade sintética e por um valor absoluto próximo ao de uma filosofia platônica da Idea assume, no pensamento de Didi-Huberman, o caráter de uma tirania exercida sobre as características materiais e singulares da imagem (Ibid.).

Paradigma crítico

Como a histeria, a fotografia adentra o campo do saber como um “objeto-questão”, um “objeto de inevidência” (DIDI-HUBERMAN, 1992, p. 76). Se, como foi visto, a análise do que chamei de um “dispositivo do contato” havia mostrado que a fotografia sofre um empobrecimento do seu horizonte ontológico a partir do diagnóstico e circunscrição de seus estranhamentos no território do patológico, Didi-Huberman vai propor que é através do próprio elemento material do contato na imagem que se torna possível construir, em oposição ao paradigma clínico, um paradigma crítico para o saber das imagens (DIDI-HUBERMAN, 2008b).

Foi com o olhar voltado para a intensidade excessiva das crises histéricas que Sigmund Freud pôde desenvolver uma nova disciplina voltada para o conhecimento da psique humana, de pressupostos fundamentalmente opostos àqueles da psiquiatria executada em Salpêtrière. “As histéricas sofrem principalmente de reminiscências” (BREUER e FREUD apud DIDI-HUBERMAN, 2003, p.152), propunha, junto a Breuer, em uma fórmula pioneira que inauguraria a psicanálise e abriria um caminho para a compreensão da noção de sintoma totalmente diverso daquele herdado por Charcot do campo da semiótica médica.

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propunha que o acesso ao sintoma exigisse uma modificação da posição do sujeito de conhecimento: “Aceitar a restrição do não-saber e se remover da posição potente do

sujeito que sabe” (Ibid., p.194). Tal modificação consistiria, fundamentalmente, na

formulação da noção de inconsciente.

Segundo Didi-Huberman (2002), um historiador da arte contemporâneo de Freud soube assumir essa posição e propor um método alternativo para o conhecimento das imagens. Embora seu legado tenha passado por um processo de purificação que acabou por reduzir sua potência, um retorno à obra de Aby Warburg nos apresenta a possibilidade de refletir, através das imagens, sobre a memória da cultura como um campo operatório de caráter “sintomal”. Sob a influência da antropologia, o autor expandiu os limites disciplinares da história da arte e elaborou uma investigação da imagem não a partir de preceitos normativos e valores ideais, mas através do próprio elemento do pathos, que coloca no centro do pensamento noções como as de matéria e experiência. Através do olhar de Didi-Huberman, os conceitos warburguianos de Pathosformeln (fórmulas de pathos) e Nachleben (sobrevivência) assumem um caráter crítico próximo da noção freudiana de sintoma e permitem entender melhor uma espécie de vida das imagens que, como veremos, poderia ser submetida aos investimentos do biopoder. Tentarei, adiante, sintetizar algumas considerações do autor acerca da obra de Warburg que caminham nesta direção.

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evolucionista dominante na historia da arte do que para a complexidade temporal através da qual entendia a memória da cultura, com seus anacronismos e suas sobrevivências.

Tal proposta se torna mais clara quando a encaramos a partir da concepção vital que a história assume na obra de Friedrich Nietzsche, pensador caro a Warburg (Ibid.). Vital não apenas no sentido de que precisamos dela para agir e viver (Ibid., p.156), mas principalmente na medida em que Nietzsche nos apresenta um pensamento do devir como um jogo de forças que torna possível seu próprio movimento ou, ainda, sua vida. Esta vida do devir seria, portanto, feita de conflitos: entre forças ativas e forças reativas, elementos históricos e elementos não-históricos, memória e esquecimento e, finalmente, entre o apolíneo e o dionisíaco – polaridade fundamental na obra de Nietzsche e que está na origem da tragédia da cultura ocidental, dividida entre humanidade civilizada e força animal (Ibid.).

Tal concepção “vitalista” interessa a este trabalho já que, a partir dela, é possível pensar o que Didi-Huberman descreve como um “biomorfismo” do

Nachleben (Ibid., p.156). Quando Warburg se propõe a fornecer às imagens sua

própria teoria da evolução, ele o faz não a partir de um modelo linear, mas buscando uma historicidade que incorpore o movimento e as metamorfoses do devir. Se, para Nietzsche, a memória é um material plástico capaz de carregar as impressões dos conflitos, ao mesmo tempo em que as transforma, as Pathosformeln de Warburg seriam a expressão plástica de um resto de vida, de um pathos, que sobrevive no tempo através das imagens.

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Se operamos através do paradigma crítico que desenvolve Didi-Huberman, é possível afirmar que “a questão de saber se a aura foi ‘liquidada’ ou não [na era da reprodutibilidade técnica] revela se constituir uma falsa questão” (DIDI-HUBERMAN, 2000, p.235). A própria ideia de declínio, em Benjamin, não significaria exatamente uma desaparição, afirma o autor. “Antes, uma curva para baixo, uma nova inclinação, um novo desvio, uma nova inflexão” (Ibid., p.234). Para entender a questão da aura, será indispensável renunciar, da mesma forma que Warburg, aos modelos de progresso elaborados pelo positivismo e, com isso, “renunciar aos seculares modelos da continuidade histórica” (Ibid., p.102)

Em sua formulação do conceito de “imagem dialética” – “aquilo em que o Outrora encontra o Agora em um clarão para formar uma constelação” (BENJAMIN

apud DIDI-HUBERMAN, 2000, p.241) –, Benjamin propunha o abandono de uma

concepção do passado como objeto fixo, fechado e absoluto. “Enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, contínua”, afirma, “a relação do Outrora com o Agora presente é dialética”. (Idem) O fato histórico, segundo o autor, não é algo dado, mas somente pode ser apreendido a partir do trabalho de um presente para o qual se torna urgente que o passado possa se fazer legível. Assim, Benjamin transformaria o anacronismo, “parte maldita do pensamento histórico” (DIDI-HUBERMAN, 2000, p.39) em uma ferramenta capaz de, através de seu estranhamento, fazer emergir os objetos de saber de um passado agora pensado em suas múltiplas camadas (Idem, p.20).

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da Ninfa, Pathosformel warburguiana correspondente à figura feminina em movimento (DIDI-HUBERMAN, 2002, p.284-306). E, desta forma, o pathos da imagem se torna patológico.

“Auras vermelhantes”

“Por muito tempo, o sangue constituiu um elemento importante nos mecanismos do poder, em suas manifestações e rituais”, afirmara Foucault (FOUCAULT, 2010, p.160). A passagem da “simbólica do sangue” de uma sociedade sob o poder do Soberano, para uma “analítica da sexualidade” daquela sob o esquema da disciplina traz a saúde, a progenitura, a raça, o futuro da espécie e a vitalidade do corpo social como valores de uma nova organização social que tem a burguesia como classe dominante (Ibid., p.161). É seguindo estas linhas de força que as tecnologias do saber psiquiátrico vão buscar higienizar a imagem, livrar-se das impurezas do pathos, para que na superfície saudável da fotografia se materialize o conceito abstrato da histeria.

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Figura 2: Crucificação com São Bernardo e uma freira, Anônimo alemão, Schnütgen Museum, 1a metade do século XIV.

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O que pretendo salientar aqui é a forma pela qual o motivo do sangue, recorrente nas análises de Didi-Huberman, evidencia a soberania espetacular do sintoma sob os dispositivos de higiene representacional através dos quais as imagens são comumente entendidas pelo campo da história da arte. Operar através de uma estética do sintoma demandará o abandono de uma concepção metafísica da significação – ou seja, como produto de um ideal sempre estável e regular – em função da abordagem de uma eficácia sempre conflituosa, anacrônica, obscura – produto de um turbilhão no curso do tempo, de uma “catástrofe interna ao desenvolvimento do devir” (DIDI-HUBERMAN, 2008b, p.17), como propunha Benjamin, ou do “afloramento acidental e soberano de uma jazida, de uma veia colorida”, que “faz sentido, com violência e equívoco, como o ferimento sobre uma pele branca oferece sentido – oferece surgimento – ao sangue que bate abaixo” (DIDI-HUBERMAN, 2008a, p.313), como coloca Didi-Huberman de forma a renovar a metáfora benjaminiana.

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De acordo com Georges Didi-Huberman, é preciso que nosso olhar se faça livre do encarceramento ontológico ao qual os discursos de saber e poder pretendem submetê-lo para que no lugar da colonização do conceito sobre a imagem, deixemos aflorar o sangue que a elas dá corpo e vida. O caso particular de Augustine demonstra a “dificuldade do positivismo neurofisiológico em escapar ao embaraço quando confrontado com a ostentação histérica do mistério vermelho do feminino” (Idem) – ao qual também poderíamos acrescentar a ostentação histérica e soberana do mistério da vida das imagens.

Referências bibliográficas

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