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Insanidade fantástica

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Academic year: 2018

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Luana Ferreira de Freitas Universidade Federal do Ceará luanafreitas.luana@gmail.com

Insanidade fantástica

Resumo: A relação entre transtorno e literatura não é novidade: o transtorno é tema recorrente na literatura e, na outra direção, a concepção da psicanálise tem uma dívida inegável com a literatura a partir da relação estabelecida por

Freud entre a icção do paciente e aquela criada pelo escritor. O artigo explora

o transtorno na literatura fantástica, abordando a alucinação em E. A. Poe e a compulsão em H. P. Lovecraft e examina como a insanidade é explorada pelos autores.

Palavras-chave: transtorno; literatura fantástica; Poe; Lovecraft

Abstract: The connection between insanity and literature is not recent: insa-nity is a current theme in literature, and in the other direction, the conception of Psychoanalysis is undeniably indebted to literature with the relation

esta-blished by Freud between the patient’s iction and that created by the writer.

This paper examines insanity in Fantasy Literature, dealing with hallucina-tion in E. A. Poe and compulsion in H. P. Lovecraft, and investigates how the authors approach insanity.

Keywords: insanity; Fantasy Literature; Poe; Lovecraft

O que é considerado um comportamento normal, socialmente acei-tável, no Ocidente é previsto em dois conjuntos de textos balizadores: a Bíblia e as leis, que funcionam como códigos de conduta. Os desvios de comportamento estão previstos nesses dois códigos com punição em maior ou menor grau, dependendo do grau de transgressão. Contudo, em casos de insanidade como fator determinante do desvio, o castigo é mitigado ou, até mesmo, eliminado. Basta pensarmos nos casos de crime passional, no âmbito legal, ou de alegada possessão demoníaca, no âmbito religioso.

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iccionista. Bentinho, de Dom Casmurro, por exemplo, com todo o seu delírio possessivo, puniu todas as vítimas do seu ciúme, mas seguiu vivo para contar a sua versão dos fatos, convenientemente com todas as testemunhas mortas. No caso dos contos que abordarei aqui, a lou-cura dos personagens é punida com veemência.

A relação entre transtorno e literatura não é novidade: o transtorno é tema recorrente na literatura e, na outra direção, a psicanálise tem uma dívida inegável com a literatura a partir da relação estabeleci-da por Freud entre a icção do paciente e a do escritor. Exploro aqui o transtorno na literatura fantástica, abordando a loucura em Edgar Allan Poe (1809-1849) e em Howard Philips Lovecraft (1890-1937).

“The Tell-tale Heart”, conto de Poe objeto desse artigo, foi pu-blicado em 1843. Apesar do fascínio que a loucura sempre exerceu no homem, o seu estudo era ainda pouco sistemático quando da escrita do conto. De acordo com Foucault, em História da loucura, um estudo de 1804 tentou estabelecer a gênese da loucura mediante a análise de 476 pacientes e apontou:

151 icaram doentes em consequência de afecções acentuadas da alma, tais

como o ciúme, o amor contrariado, alegria excessiva, ambição, temor, terror, pesares violentos; 52 por disposições hereditárias; 28 por onanismo; três por

vírus da síilis; 12 por abuso dos prazeres de Vênus; 31 por abuso das bebi -das alcoólicas; 12 por abuso -das faculdades intelectuais; 2 pela presença de vermes no intestino; 1 por sequela da sarna; 5 por sequelas do dartro; 29 por metástase leitosa; 2 por insolação (2008, pp. 223-4).

O fragmento destacado mostra como a psiquiatria ainda tateava seu objeto, confundindo causas e consequências. Poe, por outro lado, des-creve a loucura do seu personagem com um entendimento profundo da natureza humana e explorando, de forma matizada, a psicopatia do personagem.

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quarto da vítima, puxa cadeiras para que os policiais descansem e se senta em uma posicionada sobre a localização do corpo recém-enterra-do. Contudo, enquanto conversava animadamente com os policiais, o narrador começa a escutar as batidas do coração do velho sob o assoa-lho. No início, o som escutado pelo narrador era distante e indistinto, mas, aos poucos, foi icando cada vez mais alto e mais reconhecível. À medida que o som se tornava mais distinto, o narrador falava mais rápido e mais alto. Quando o som lhe pareceu insuportável e com a certeza de que os policiais escutavam e suspeitavam dele, o narrador, em meio a um ataque de fúria, acaba por confessar o crime.

O narrador inicia o conto airmando não estar louco e diz que sua única singularidade é a capacidade que tem de ouvir tudo na terra, no céu e no inferno. Como se sabe, a loucura tem método e uma razão própria e o personagem justiica a necessidade de matar o velho com a perturbação que lhe causava o olho da vítima. Foucault cita: “Inúmeras pessoas (...) somente se tornam loucas por terem se ocupado em dema-sia com um objeto” (id., p. 233).

Vale observar que a ixação do narrador no olho da sua vítima é tão profunda, que ele espera até a noite em que o velho está acorda-do e, portanto, com o odioso olho aberto, para que possa inalmente matá-lo. Não se trata de matar simplesmente, mas de vencer o olho. Os argumentos para o ato estão organizados e encadeados de maneira lógica. A organização do discurso do narrador revela que a morte não passa de efeito colateral, um mal necessário; a sua ixação era no olho, a repulsa que lhe causava, o que justiica sua ação.

A alucinação só surge posteriormente e, a exemplo de outros tex-tos literários, ela tem efeito punitivo. No início do conto, o narrador confessa: “E eu gostava do velho. Nunca me izera mal algum. Ele nun -ca me insultara. Eu não desejava nem o seu ouro” (2005, p. 118). O de-lírio auditivo do narrador conigura-se na batida do coração da vítima. Nesse ponto, cabe observar a semelhança da loucura entre o narrador de Poe e Lady Macbeth, ambos assombrados por símbolos da vida: o primeiro o coração da vítima, a segunda o sangue. A loucura dos personagens é instituída quando atribuem valor de verdade à imagem produzida pela culpa: os dois personagens só conseguem estabelecer contato com o mundo mediado pela culpa e pela alucinação.

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o acervo coletado de suas expedições noturnas, que só acontecem sob condições perfeitas: luz lunar, temperatura, estação e humor apropria-dos. Até que um dia, decidem profanar, em um antigo cemitério ho-landês, um túmulo de um famoso profanador de túmulos e encontram um amuleto que decidem usurpar. Ainda no cemitério, eles escutam o uivo que eles imaginam ser de um cão de caça gigantesco. Os persona-gens continuam escutando o uivo, além de outros sons irreconhecíveis em casa, até que St. John é atacado violentamente e morre desigurado por uma criatura desconhecida. O narrador atribui a morte e os estra-nhos sons ao roubo do amuleto e decide devolvê-lo; contudo, o amu-leto é roubado antes que o narrador conseguisse restituí-lo ao antigo dono. Na manhã seguinte ao roubo, ele descobre, ao ler o jornal, que um grupo de ladrões foi encontrado desigurado por uma criatura não identiicada. Em desespero, o narrador volta ao túmulo violado, abre o caixão e descobre que o amuleto está de volta no pescoço do esqueleto, que exibe garras ensanguentadas.

A primeira coisa que chama a atenção na narrativa de Lovecraft é o papel que o tédio desempenha na trama enquanto catalisador da loucura. O tédio é entendido como a ausência de emoção, a negação da alegria, do medo e, em última análise, a negação da vida. A lacuna do medo e, portanto da pedagogia do medo, leva os personagens à rejei-ção dos limites, que os induz ao transtorno. A centralidade do macabro no conto, a essencialidade da morte e a estética do horror originam-se precisamente da negação das balizas da normalidade e da negação da vida. O tédio é apontado como justiicativa dos atos que se seguem, do colecionismo compulsivo dos personagens.

Os personagens, como já dito no resumo do conto, mantinham um museu no porão da casa em que moravam com uma coleção invejá-vel de objetos macabros. Uma das riquezas de Lovecraft é o níinvejá-vel de detalhamento com que o narrador descreve o ambiente, com cheiros, luzes, sons. Em suma, nada escapa à apreciação do narrador nem ao seu senso estético.

Os objetos são cuidadosamente catalogados e expostos em nichos nas paredes do museu. Esses objetos variam de cabeças em decompo-sição, estátuas de demônios alados, lápides a desenhos guardados em uma pasta feita de pele humana.

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As excursões predatórias nas quais coletávamos nossos tesouros proibidos sempre eram eventos artisticamente memoráveis. Não éramos profanadores vulgares de covas, trabalhávamos somente sob certas condições de humor, paisagem, ambiente, tempo, estação e luz lunar. Esses passatempos eram, para nós, a mais deliciosa forma de expressão estética, e dávamos aos seus detalhes uma atenção técnica e meticulosa. Uma hora inapropriada, um efeito de luz perturbador, ou um posicionamento desajeitado da grama úmida des-truiria quase ou totalmente aquela excitação extasiada que sucedia a exuma-ção de algum segredo perverso da terra1. (2007, p. 20)

Os rituais são práticas intrínsecas ao comportamento compulsivo. O ritual descrito no fragmento em destaque é voluntário e deve ser de-sempenhado com rigor para que haja o alívio e a excitação decorrentes da obsessão dos personagens. O ritual estabelecido funciona como um pensamento mágico, a obediência aos passos é fundamental para que o resultado seja alcançado.

O narrador é bastante consciente da impropriedade da sua condu-ta e airma no início do conto: “Que os céus perdoem a insensatez e a morbidez que nos levaram a tão monstruoso destino!” (2007, p. 19). E mais adiante diz:

Não posso revelar os detalhes de nossas expedições ofensivas, ou catalogar, mesmo que em parte, o pior dos troféus que decoravam o inominável museu que preparamos em uma grande casa de pedra onde morávamos, sozinhos e sem empregados. Nosso museu era uma blasfêmia, um lugar inimaginável, onde, com o gosto satânico de neuróticos virtuoses, montamos um universo de terror e decadência para excitar nossas fatigadas sensibilidades. (id., p. 19

A culpa, mais uma vez, será determinante no desfecho trágico do narrador. St. John, seu amigo, é morto desigurado por uma criatura, e o narrador escreve o texto anunciando seu suicídio, como única saída do perigo que acredita estar vivendo. O medo, ausente no início da narrativa, surge incontrolável.

Em “Luto e melancolia”, texto publicado em 1917, Freud deiniu como causas da melancolia, entre outras, a perda de interesse pelo mundo, o surgimento de inibição da produtividade, a auto-acusação e a expectativa delirante de castigo. Freud airma:

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é o próprio ego. O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovi-do de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se envilece, esperando ser expulso e punido. (s/d., p. 1)

Freud fala do prazer que o melancólico sente no desmascaramento de si mesmo e a conissão do narrador parece conirmar os sintomas citados acima. A tirania do superego tem no suicídio seu último ato: a radicalização do ataque ao ego. Freud diz:

Dizem que um autor deveria evitar qualquer contato com a psiquiatria e dei-xar aos médicos a descrição de estados mentais patológicos. A verdade, po-rém, é que o escritor verdadeiramente criativo jamais obedece a essa injunção. A descrição da mente humana é, na verdade, seu campo mais legítimo; desde tempos imemoriais ele tem sido um precursor da ciência e, portanto, também

da psicologia cientíica (1974, p. 50).

Dessa forma, o autor literário, livre dos tecnicismos clínicos, explora o transtorno mental na sua escrita e ajuda a contar a história da loucura, o que, acredito, foi o que Poe e Lovecraft izeram nos contos abordados.

Nota

1. Tradução inédita de Marcelo Goes Moreira.

Referências

FOUCAULT, Michel. História da Loucura. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Pers-pectiva, 2008.

FREUD, Sigmund. “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen”. Trad. Jayme Salomão. Volume IX. Obras Completas de Freud, Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1974. FREUD, Sigmund. “Luto e Melancolia”. Tradução anônima. Acessado em 25/05/2012.

http://carlosbarros666.iles.wordpress.com/2010/10/lutoemelancolia1.pdf

LOVECRAFT, Howard Phillips. “The Hound” em The Whisperer in Darkness. Ware: Wor-dsworth Editions, 2007.

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