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Transexualismo : um estudo sobre a representação de si no método de Rorschach

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA PRO-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

MESTRADO EM PSICOLOGIA

TRANSEXUALISMO:

UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE SI NO MÉTODO DE RORSCHACH

Autor: Frederico Guilherme Ocampo Abreu Orientadora: Profª. Drª. Deise Matos do Amparo Co-Orientador: Prof. Dr. Roberto Menezes de Oliveira

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Frederico Guilherme Ocampo Abreu

TRANSEXUALISMO:

UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE SI NO MÉTODO DE RORSCHACH

Dissertação de Mestrado defendida como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia, aprovada pela Comissão Examinadora da Universidade Católica de Brasília, sob orientação da Profª. Drª. Deise Matos do Amparo e co-orientação do Prof. Dr. Roberto Menezes de Oliveira.

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Frederico Guilherme Ocampo Abreu TRANSEXUALISMO:

UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE SI NO MÉTODO DE RORSCHACH

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília, pela Comissão Examinadora composta pelos seguintes professores:

____________________________________________________________ Profª. Drª. Deise Matos do Amparo

Orientadora

Universidade Católica de Brasília

___________________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Menezes de Oliveira

Co-Orientador

Universidade Católica de Brasília

_________________________________________________________ Prof. Dr. Norberto Abreu de Silva Neto

Examinador Universidade de Brasília

________________________________________________________ Profª. Drª. Marta Helena de Freitas

Examinadora

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Agradecimentos:

À Profª. Drª. Deise Matos do Amparo e ao Prof. Dr. Roberto Menezes de Oliveira pelos conhecimentos passados, pela paciência, pela disponibilidade e pelo cuidado sem os quais seria impossível a realização desse trabalho.

Aos titulares da Banca Examinadora, Prof. Dr. Norberto Abreu de Silva Neto e Profª. Drª. Marta Helena de Freitas pela disposição em participar da Banca Examinadora.

Aos colegas de mestrado pela força e carinho disponibilizados durante esse trajeto.

À minha família pelo incentivo, pela ajuda e pelo carinho dados em todos os momentos.

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ÍNDICE

RESUMO 7 ABSTRACT 8 INTRODUÇÃO 9 CAPÍTULO I- TRANSEXUALISMO: DIAGNÓSTICO E REPRESENTAÇÃO

DE SI

1.1.Um breve histórico

1.2.Caracterização e classificação do transexualismo 1.3.O transexualismo na psicanálise

1.4.O transexualismo no método de Rorschach

1.5.A representação de si como problemática desse estudo

13 13 17 21 30 34 CAPÍTULO II- MÉTODO

2.1. Participantes 2.2. Instrumentos

2.3. Procedimento para coleta de dados 2.4. Procedimento para análise dos dados

37 38 38 40 40 CAPÍTULO III- RESULTADOS: APRESENTAÇÃO DOS CASOS DE

TRANSEXUALISMO 3.1. O caso Carla

3.1.1. História clínica

3.1.2. Análise do psicograma 3.1.3. A representação de si

3.1.3.1. A imagem do corpo e a identificação sexual

3.1.3.2. A identidade e a identificação com as figuras parentais 3.1.4. Considerações sobre o caso Carla

3.2. O caso Joana

3.2.1. História clínica

3.2.2. Análise do psicograma 3.2.3. A representação de si

3.2.3.1. A imagem do corpo e a identificação sexual

3.2.3.2. A identidade e a identificação com as figuras parentais 3.2.4. Considerações sobre o caso Joana

3.3. O caso Márcia 3.3.1. História clínica

3.3.2. Análise do psicograma 3.3.3. A representação de si

3.3.3.1. A imagem do corpo e a identificação sexual

3.3.3.2. A identidade e a identificação com as figuras parentais 3.3.4. Considerações sobre o caso Márcia

3.4. O caso Cláudia 3.4.1. História clínica

3.4.2. Análise do psicograma 3.4.3. A representação de si

3.4.3.1. A imagem do corpo e a identificação sexual

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3.4.4. Considerações sobre o caso Cláudia 82 CAPÍTULO IV- DISCUSSÃO: PERFIL COMPARATIVO DOS

TRANSEXUAIS NO MÉTODO DE RORSCHACH 86

CAPÍTULO V- CONCLUSÃO 104

REFERÊNCIAS 108 ANEXOS

Anexo I- Roteiro de entrevista

Anexo II- Termo de consentimento livre e esclarecido

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RESUMO

Este trabalho teve por objetivo analisar a representação de si em transexuais masculinos por meio do método de Rorschach, caracterizar o perfil psicológico desses participantes e realizar considerações sobre o diagnóstico diferencial do transexualismo com a psicose. O transexualismo se caracteriza por uma identificação de um indivíduo com o sexo oposto, acompanhado por um desejo de pertencimento a esse outro sexo e por um significativo desconforto com seu sexo anatômico. De acordo com psicanalistas estudiosos do fenômeno, meninos que, geralmente desde muito cedo, apresentam sinais de distúrbios ligados à identidade de gênero demonstram uma ligação excessiva e, por vezes, simbiótica com a mãe, ao passo que o pai se apresenta como uma figura ausente, não representando um modelo masculino adequado. Alguns autores (Stoller, 1982; Ceccarelli, 1997; 1998; 2003) defendem que esse modo de relação mãe-criança é responsável pela construção da identidade sexual, enquanto outros (Safouan, 1979; Frignet, 2002) afirmam que a incapacidade do pai em cumprir o papel de interventor dessa relação é a verdadeira causa do transexualismo, havendo, nesse caso, uma aproximação deste fenômeno com a clínica da psicose. O método utilizado neste trabalho foi o de estudo de caso. Quatro transexuais masculinos que aguardam autorização para cirurgia de redesignação sexual participaram do estudo. Os participantes encontravam-se, no momento da realização desta pesquisa, em acompanhamento multidisciplinar, avaliação psicológica e psicoterapia. Os instrumentos utilizados foram três entrevistas clínicas semidirigidas e o método de Rorschach. As entrevistas visaram o levantamento da história de vida dos participantes. Os protocolos do Rorschach permitiram a caracterização do perfil psicológico, a análise da representação de si e a discussão acerca do diagnóstico diferencial com a psicose. Os dados quantitativos dos protocolos de Rorschach foram classificados no método de Klopfer e os dados qualitativos indicativos da representação de si foram analisados por meio da abordagem psicanalítica com base nos estudos de Traubenberg & Sanglade (1984) e Chabert (1999). Os resultados sugerem que: (i) o perfil psicológico dos transexuais masculinos caracteriza-se, principalmente, por uma estrutura de ego muito fragilizada (F+% baixo) e pelo rebaixamento dos controles intelectivo (F%) e afetivo (FC : CF + C) ; (ii) o estudo da representação de si sugere uma imagem do corpo com diferentes níveis de fragilização, uma identificação sexual idealizada com o feminino e negativa com o masculino, uma maior ou menor capacidade de diferenciação eu-objeto e uma conturbada identificação com as figuras parentais; e (iii) uma estrutura de personalidade que pode variar entre neurótica, borderline e psicótica.

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ABSTRACT

This work aimed at analyzing the representation of the self in male transsexuals by means of the Rorschach method, characterizing participants’ psychological profile and undertaking some considerations about the diagnostic differences of transsexualism and psychoses. Transsexualism is characterized by one´s identification with the opposite sex, a strong desire of belonging to the other sex, and for a striking uneasiness of one´s actual anatomic sex. According to psychoanalysts who study this phenomenon, boys who, generally from very early age, present signs of gender identity disorders, show an excessive, and sometimes, symbiotic relationship with their mothers, whereas the father presents himself as an absent figure who does not constitute an adequate model of masculinity. Some authors (Stoller, 1982; Ceccarelli, 1997; 1998; 2003) support that this type of relationship between mother and child is responsible for the building up of one´s sexual identity, whereas others (Safouan, 1979; Frignet, 2002) maintain that fathers’ lack of capacity to intervene in this relationship is the real cause of transexualism, that makes it similar to the clinic of psychosis. The method used in this investigation was case study. Participants were four male transsexuals who were waiting authorization to undertake sexual re-designation medical operation. During the period of data collection participants were in multidisciplinary care, psychological evaluation and undertaking psychotherapy. Case study instruments comprised three semi-directed clinical interviews and the Rorschach method. The interviews explored participants’ life history. The Rorschach protocols allowed for the characterization of participants’ psychological profile, the analysis of their representation of the self and the discussion about differences in diagnostic between transexualism and psychosis. The Klopfer method was used to categorize the quantitative data of the Rorschach’s protocols, whereas the psychoanalytic approach of authors such as Traubenberg & Sanglade (1984) e Chabert (1999) were used to sort out the qualitative data about participants’ representation of the self. Results suggest that: (i) the psychological profile of male transsexuals is mainly characterized by a highly fragile ego structure (F+% low) and by a low intellective (F%) and affective (FC : CF + C) control; (ii) the study of self-representation put forward a body image with different levels of vulnerability, a sexual identity which is idealized with the feminine and negative concerning masculinity, a major or minor capacity of differentiation self-object, and an upsetting identification with the parental figures; e (iii) a personality structure which can vary between neurotic, borderline and psychotic.

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INTRODUÇÃO

O transexualismo caracteriza-se, principalmente, por uma identificação do sujeito com o sexo oposto. Tal identificação é acompanhada por um forte desejo de pertencer a este outro sexo e por um desconforto em relação ao seu sexo anatômico. Não se trata aqui de uma simples vontade de ser diferente do que se é e, para isso, mudar de sexo. O sujeito transexual sente-se realmente como pertencente ao sexo oposto, sua anatomia é vivida como um erro da natureza.

O desencontro entre o corpo biológico e a identificação de gênero acarreta uma série de conflitos psicológicos. A tentativa de solucionar esses conflitos leva o transexual, quase que invariavelmente, a procurar adequar o seu corpo ao gênero com o qual se identifica. Com o intuito de “consertar” seu corpo, o transexual se submete a tratamentos estéticos e hormonais, normalmente sem acompanhamento médico. Veste-se e comporta-se como um indivíduo do sexo oposto. Contudo, ainda falta um último detalhe, a prova inequívoca de seu sexo anatômico: seu genital. A cirurgia de redesignação sexual surge, então, como a única possibilidade para que o transexual se sinta finalmente completo.

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É nesse momento de acompanhamento e elaboração do diagnóstico que surge a maior parte da demanda para a clínica psicológica. Contudo, o psicólogo que se dispõe a acompanhar e avaliar um caso de transexualismo se depara, por um lado, com um fenômeno que carrega consigo diferentes pontos de vista em uma abordagem psicodinâmica e, por outro, com a carência de estudos relacionados a indicadores diagnósticos a partir de técnicas projetivas, em especial o método de Rorschach.

No que se refere à abordagem psicodinâmica, percebe-se um esforço em delinear o modo pelo qual o transexual constrói seu sentimento de identidade e estabelece sua identificação sexual. Nesse sentido, Stoller (1982) concentra-se nos efeitos feminilizantes advindos da intensidade da relação mãe-criança como principal fator explicativo. Já Ceccarelli (2003) procura abordar o transexualismo como uma espécie de mecanismo de resolução de um conflito entre o sexo anatômico de uma criança e o projeto dos pais em relação a essa mesma criança, tendo em vista uma possível impossibilidade de elaboração do luto da criança imaginada. Apesar dessa divergência, esse dois autores concordam que o transexualismo se encontra fora das fronteiras da psicose. Nesse ponto, autores como Safouan (1979) e Frignet (2002) afastam-se de Stoller (1982) e Ceccarelli (2003) ao afirmarem que o processo de subjetivação dessas crianças é prejudicado devido à incapacidade do pai em intervir na relação mãe-criança na época da resolução do complexo de Édipo o que, consequentemente, levaria o transexualismo a ser entendido como uma manifestação psicótica.

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Com relação aos instrumentos de avaliação psicológica, observa-se um reduzido número de estudos relacionando-os ao transexualismo. Dentre as várias técnicas psicológicas, o método de Rorschach apresenta-se como um dos mais ricos instrumentos de investigação da personalidade. Partindo dos temas abordados pelos autores psicanalistas (identidade e identificações) e da necessidade de investigar a imagem do corpo em transexuais, recorreu-se de representação de si que, segundo Traubenberg & Sanglade (1984) e Chabert (1999) envolve exatamente a análise dos referidos eixos. Essas autoras propõem um estudo da imagem do corpo, da identidade e das identificações por meio da análise das respostas dadas em protocolo de Rorschach.

Desse modo, este presente trabalho teve como objetivo o estudo da representação de si em transexuais masculinos, a partir dos eixos: a) imagem do corpo; b) identidade; c) identificação sexual; e d) identificações com as figuras parentais. Procurou-se, ainda, caracterizar o perfil psicológico desses sujeitos, além de realizar considerações acerca do diagnóstico diferencial com a psicose.

Espera-se, dessa forma, que este trabalho possa contribuir para uma maior compreensão de um fenômeno bastante antigo, mas que somente há cerca de meio século vem sendo estudado de modo mais sistemático. Acredita-se, também, na possibilidade deste estudo ampliar o conhecimento acerca de um instrumento com inesgotável capacidade de desenvolvimento, como é o caso do método de Rorschach. Por fim, pretende-se, também, que este trabalho auxilie o clínico no que se refere à indicação para a cirurgia de redesignação sexual.

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fenômeno. Em seguida, discute-se o estudo do transexualismo na abordagem psicanalítica para então relatar alguns estudos referentes ao transexualismo no método de Rorschach. Por fim, delimita-se a representação de si como objeto de estudo.

O Capítulo II diz respeito ao método adotado para levantamento e análise dos dados, onde se abordam os critérios de seleção dos participantes, a utilização da entrevista semidirigida em profundidade e o esquema de análise dos protocolos de Rorschach. No Capítulo III os quatro estudos de caso são apresentados, enfatizando-se a história clínica, os dados do psicograma e a representação de si, onde se realizam discussões parciais referentes a cada caso.

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CAPÍTULO I

TRANSEXUALISMO: DIAGNÓSTICO E REPRESENTAÇÃO DE SI

1.1.Um Breve Histórico

A identidade sexual dos seres humanos é um tema de estudo que se faz presente há muitos séculos. Na obra O Banquete, de Platão (com tradução e notas de J. Cavalcante de Souza, 1999), pode-se encontrar, no discurso de Aristófanes, referências a um tempo em que os seres humanos eram divididos em três gêneros. Cada gênero era composto por um duplo, de modo que havia um gênero duplo masculino, um gênero duplo feminino e um gênero andrógino ou misto. Esses seres primordiais eram bastante poderosos, fortes e presunçosos e resolveram desafiar os deuses, escalando o Olimpo. Como represália a tal insolência, Zeus resolveu punir os rebeldes cortando-os ao meio, ou seja, separando seus duplos, deixando-os, assim, mais fracos e preocupados em passar a vida procurando sua metade perdida. A orientação do desejo dos homens e mulheres atuais é explicada por Aristófanes como resultante dessa separação, de modo que os seres que eram um duplo masculino tornaram-se os homossexuais masculinos, os seres que eram um duplo feminino, homossexuais femininos e os seres mistos são hoje os heterossexuais.

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Hermafrodito se despiu e jogou-se às águas da fonte, nesse momento, Sálmacis o enlaçou e pediu aos deuses que jamais os separassem. Desse modo os corpos de ambos fundiram-se, surgindo um novo ser de dupla natureza. Hermafrodito também teve um pedido seu atendido pelos deuses e, a partir daquele dia, todo ser que se banhasse naquela fonte perderia sua virilidade (Brandão, 2000).

O mito de Hermafrodito é o mais conhecido, mas existem outras histórias que fazem referência ao andrógino primordial. Himeneu, por exemplo, era um jovem que constantemente era confundido com uma adolescente. Cécrops possuía uma natureza dupla, sendo que a parte superior de seu corpo era de homem e a parte inferior, de mulher. O rei Átamas aleitou seu filho Melicertes e educou Dioniso como uma moça.

No entanto, duas são as histórias que fazem referência especificamente a uma mudança de sexo de homem para mulher e de mulher para homem. Há o caso de Ceneu, mulher amada por Posídon que, como recompensa, transformou-a em homem (Brandão, 2001b). A mais interessante das histórias, porém, trata-se de Tirésias, contada por Ovídio, que, segundo Garber (1997), ao encontrar duas cobras copulando na floresta, golpeou-as e separou-as com um cajado. Nesse momento, Tirésias se transformou em uma mulher. Sete anos mais tarde, encontrou o mesmo casal de cobras e, ao golpeá-las novamente com um cajado, voltou à forma masculina. Essas histórias são, talvez, as mais antigas referências ocidentais que se relacionam à questão do transexualismo.

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um escravo e tendo assumido o papel feminino, chegou a oferecer metade do império a quem conseguisse deixá-lo com um genital feminino.

Questões culturais parecem estar sempre ligadas à incidência com que ocorre o transexualismo, bem como com a forma que a sociedade lida com essa condição. De acordo com Verde & Graziottin (1997), dados antropológicos indicam o reconhecimento de um

status social a certos homens que viviam como mulheres em algumas culturas primitivas. Por outro lado, em algumas culturas, como a hebraica, “aparece muito claramente a proibição das confusões entre os sexos” (p. 13).

No passado, ao que tudo indica, mais mulheres viveram como homens do que o contrário. A Idade Média exemplifica bem tal afirmação, uma vez que se encontram diversos exemplos de mulheres que passavam a vida como homens com o intuito de alcançar altos cargos e reconhecimento na Igreja Católica. Para Verde & Graziottin (1997), a maior prevalência de mulheres vivendo como homens estaria ligada a uma “convicção derivada dos gregos, que as mulheres eram inferiores aos machos” (p. 14).

Atualmente, há um número muito maior de transexuais masculinos em comparação aos transexuais femininos. Sem dúvida que as mudanças nos fatores culturais de cada época e sociedade podem ter uma importante influência na prevalência de casos de transexualismo. Todavia, não se pode deixar de questionar se os casos relatados no passado correspondiam a verdadeiros casos de transexualismo ou se seriam, na verdade, casos de transvestismo.

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Essa obra, entretanto, não faz uma distinção entre o transexualismo, o transvestismo e a homossexualidade (Cohen-Kettenis & Gooren, 1999).

Antes mesmo do termo transexualismo alcançar sua significação contemporânea, ocorreram as primeiras cirurgias de redesignação sexual. De acordo com Castel (2001), já em 1921, o cirurgião Félix Abraham operou clandestinamente um indivíduo considerado “o primeiro transexual redefinido” (p. 86). Ainda na primeira metade do século XX ocorre a primeira faloplastia em um transexual, realizada por Harold Gillies, que já havia feito outras cirurgias do gênero em soldados mutilados e em intersexuais.

Apesar da cirurgia de redesignação sexual já ocorrer com uma significativa proporção nas quatro primeiras décadas do século XX, foi somente em 1949 que o termo transexual recebeu sua conotação atual. Cauldwell, segundo Verde & Graziottin (1997), definiu esse termo, em seu livro Psychopathia Transexualis, como “um quadro clínico específico no interior das já conhecidas angústias do gênero, ou seja, dos distúrbios relativos à identidade sexual” (p. 07). No entanto, foi a partir dos trabalhos de Harry Benjamin, iniciados em 1953, e da publicação de seu livro The Transexual Phenomenon em 1966, que o termo transexual ganhou projeção e passou a ser considerado uma condição que necessitava de estudo e tratamento (Verde & Graziottin, 1997; Pinto & Bruns, 1997).

A partir do momento que o transexualismo passa a ser reconhecido como um transtorno e a cirurgia de redesignação sexual surge como principal técnica de tratamento, torna-se necessário um criterioso levantamento de sintomas e características para o estabelecimento de um correto diagnóstico. Com isso, os manuais de classificação dos transtornos mentais passam a apresentar indicadores diagnósticos para o transexualismo.

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psicanálise e da psicologia pelo estudo do transexualismo. Desde então, diversos autores vêm se dedicando à busca de uma compreensão desse fenômeno, bem como dos meios mais adequados de intervenção.

Na investigação de aspectos estruturais e dinâmicos da personalidade, as técnicas projetivas se apresentam como uma das principais ferramentas da psicologia. Dentre esses instrumentos, o método de Rorschach se destaca como, possivelmente, o mais completo. São poucos os trabalhos de investigação do transexualismo através do método de Rorschach, mas tais estudos demonstram a relevância deste instrumento no entendimento do modo de funcionamento do transexual, por um lado, e no estabelecimento do diagnóstico diferencial, por outro.

1.2. Caracterização e Classificação do Transexualismo

A Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID – 10 (1993) é um manual elaborado pela Organização Mundial de Saúde com o intuito de oferecer diretrizes diagnósticas para orientar o trabalho de avaliação dos profissionais de saúde. De acordo com esse manual, o transexualismo pode ser entendido como:

“Um desejo de viver e ser aceito como um membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico e um desejo de se submeter a tratamento hormonal e cirurgia para tornar seu corpo tão congruente quanto possível com seu sexo preferido” (p. 210).

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10 também chama a atenção para a necessidade de desassociar os referidos sintomas de possíveis anormalidades intersexuais.

Outro instrumento amplamente utilizado na obtenção de diretrizes diagnósticas é a quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM – IV, 1995), elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana. Nesse manual, o termo transexualismo não é utilizado, sendo substituído por Transtorno da Identidade de Gênero. Os critérios para o diagnóstico deste transtorno estão fundamentados basicamente na necessidade de uma forte identificação, por parte do sujeito, com o sexo oposto, além de um intenso sentimento de desconforto ou de inadequação em relação ao seu sexo anatômico. O DSM – IV ressalta, assim como a CID – 10, a importância de se diferenciar esses sintomas daqueles encontrados em sujeitos com uma condição intersexual. Diferentemente da CID – 10, o DSM – IV não aponta a necessidade de se observar essas características por um período de dois anos, contudo, refere-se à persistência das mesmas.

Pode-se observar que, à exceção da nomenclatura, não há diferenças fundamentais entre os dois manuais. A forte identificação com o sexo oposto, associado ao desconforto em relação ao sexo anatômico original, parece permear qualquer diagnóstico de transexualismo. É importante salientar que esse desejo não se trata de uma simples vontade, ou, nas palavras de Ceccarelli (2003): “Não se trata de um ‘desejo’ de pertencer ao outro sexo mas, antes, de uma evidência: o sujeito ‘é’ do outro sexo” (p. 40).

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No caso das crianças que manifestam desde cedo o Transtorno de Identidade de Gênero, o DSM – IV salienta que os meninos apresentam grande interesse em atividades tidas como femininas. Além disso, é comum afirmarem que desejam ser meninas ou que se transformarão em mulheres ao chegar na idade adulta. Normalmente, esses meninos procuram comportar-se como meninas, urinando sentados e escondendo o pênis entre as pernas, fingido possuir vagina.

Segundo Lobato, Henriques, Ghisolfi, Kegel, Schestatsky, Correia Filho & Shestatsky (2001), os transexuais costumam, já na adolescência, procurar tratamentos hormonais e estéticos para transformar suas características externas, assemelhando-se, então, a indivíduos do sexo oposto. Tais comportamentos levam esses indivíduos a um isolamento social e evidenciam toda a angústia que o sexo anatômico lhes causa. Essa angústia talvez justifique, de acordo com Athayde (2001), a baixa freqüência com que os transexuais se masturbam e o baixo impulso sexual presente nesses sujeitos. Algumas tentativas de auto-emasculação e de suicídio também podem estar ligadas, segundo Ceccarelli (1997), a esse sentimento de inadequação em relação ao sexo anatômico.

Na idade adulta, os transexuais procuram viver, tanto quanto possível, dentro dos papéis sociais do sexo oposto. Essas tentativas se refletem, de acordo com o DSM – IV, no uso de vestimentas, no cuidado com a aparência e na procura por uma cirurgia de redesignação sexual. Os contatos afetivos e sexuais costumam ser bastante problemáticos, uma vez que os transexuais rejeitam a participação de seus genitais na relação sexual. Lobato & cols. (2001) ressaltam a “estranheza, desprezo e, por vezes, ódio” (p. 382) com que os transexuais masculinos se referem ao seu genital, levando-os a evitar sua utilização nas relações sexuais.

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entre o transexualismo e transvestismo. Lobato & cols. (2001) ressaltam que “nem os pacientes que apresentam transvestismo, nem os homossexuais puros apresentam uma disforia de gênero propriamente dita” (p.383).

Percebe-se, dessa forma, que a problemática ligada à identidade de gênero no transexual se apresenta e se concretiza no corpo. Toda a angústia, frustração e raiva são canalizadas para um corpo que não corresponde a um sentimento de identidade. Somente a correção desse equívoco (o corpo), segundo os próprios transexuais e boa parte dos especialistas, pode amenizar o conflito estabelecido entre identidade e corpo. Nesse sentido, o estudo da imagem do corpo no transexual faz-se um importante objeto de investigação da psicologia e o método de Rorschach se apresenta como um instrumento que possibilita tal análise.

Na psicanálise, podem-se encontrar diversos estudos relativos ao transexualismo. No entanto, esses estudos não discutem a questão da imagem do corpo como um dos temas centrais desse transtorno. A ênfase é dada no modo como o transexual estabelece suas identificações e constrói sua identidade sexual. Contudo, Menezes (1996) chama a atenção para o fato do corpo ser um elemento fundamental na organização e estruturação do sujeito psíquico.

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1.3. O Transexualismo na Psicanálise

O processo pelo qual o transexual constrói sua identidade tem sido um tema abordado por diversos psicanalistas (Stoller, 1982; Ceccarelli, 1997, 1998, 2003; Safouan, 1979; Ribeiro, 2000; Frignet, 2002). Uma primeira questão a esse respeito refere-se à influência de fatores psicológicos e biológicos. Dificilmente haverá um consenso entre os diferentes profissionais da área de saúde, mas para os objetivos deste estudo são os fatores psicológicos que serão destacados. Sobre esse assunto, afirma Ceccarelli (1997):

“Em caso de conflito entre forças biológicas e forças psicológicas, são as últimas que ganham no que diz respeito à construção do sentimento de identidade sexual. Isto significa que as características anátomo-biológicas não oferecem, em si mesmas, nenhuma base sólida para a categoria cultural do gênero” (p. 38).

O que o autor chama a atenção nesta afirmação é que o sexo atribuído a uma criança, por seus pais, é fundamental na construção e continuidade de sua identidade sexual. Todavia pode-se questionar: o sexo atribuído a uma criança não corresponde ao seu sexo anatômico? Excetuando-se os casos intersexuais, não é comum encontrar pais que tratam seus filhos como pertencentes ao sexo oposto ao anatômico, pelo menos não direta e deliberadamente, ou seja, pelo menos conscientemente.

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masculinidade “nunca é definitivamente adquirida, e deve ser constantemente (re)conquistada, sob pena de ver a feminilidade recuperar o terreno” (p. 50).

O motivo pelo qual a identificação com o feminino seria o caminho mais fácil e natural encontra-se no fato de que a pessoa com quem a criança tem seus primeiros e mais intensos contatos é, em geral, a mãe, ou uma figura substituta. Para Stoller (1982), esse contato primário com a mãe fundamenta a identificação com o feminino de um modo mais consistente do que qualquer herança biológica.

Assim, é sabido que praticamente toda criança, em nossa cultura, apresenta um contato intenso com a mãe, nos primeiros anos de vida. Dessa forma, como se poderia diferenciar o curso do desenvolvimento de um futuro menino comum do desenvolvimento de um futuro transexual masculino? Stoller (1982) busca algumas características das figuras parentais e particularidades da relação mãe-criança para responder a essa pergunta.

Em primeiro lugar, Stoller (1982) ressalta que, no caso de transexuais masculinos, a intensidade da relação mãe-criança e a proximidade física destas é muito maior do que o comum. Em relação às características das figuras parentais de um menino que futuramente poderá ser um transexual, Stoller afirma:

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Alguns pontos abordados na afirmação acima merecem destaque. A mãe de um transexual masculino, de acordo com o autor, apresenta, em sua infância e início da adolescência, uma forte identificação com o sexo masculino. A chegada à adolescência, concomitante ao desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, frustra qualquer fantasia dessa menina em se transformar em um menino. Apesar de não demonstrar ou possuir tendências e necessidades heterossexuais, essa futura mãe se casa com o tipo de homem descrito anteriormente.

Associado a essa característica bissexual encontra-se na mãe de um transexual um marcante traço depressivo. Esse fato decorre, por um lado, da relação com sua própria mãe, onde esta se mostrava distante e poderosa. Essa depressão é reforçada por uma identificação com o pai marcada pela frustração e por um sentimento de rejeição (Stoller, 1982). Tanto a bissexualidade, como a característica depressiva da mãe de um transexual masculino, são também destacadas por Safouan (1979).

As características supracitadas levam essa mulher, ao dar a luz a “um belo menino” (Stoller, 1982, p. 43), a construir uma relação com este marcada por uma intensa simbiose. Segundo Stoller, essa simbiose pode ser caracterizada, dentre outras coisas, pela forma como as mães carregam seus filhos junto ao corpo, mesmo depois que estes já estão grandes para isso, e pelo fato de levá-los para dormir juntos a elas, por vezes durante anos.

É importante ressaltar que Stoller (1982) chama a atenção para a beleza física dos meninos “escolhidos” por suas mães para essa incomum relação simbiótica. Essa beleza é percebida e relatada pelas mães de um modo muito intenso. Outra característica comumente encontrada é o fato dessas crianças serem, em geral, os filhos caçulas do casamento.

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desassociar a idéia de que a feminilidade do menino (futuro transexual) esteja vinculada a um desejo da mãe em ter uma menina. Para ele, as mães de transexuais geralmente expressam extrema felicidade quando souberam se tratar de um menino. Com o intuito de clarear esse ponto, Stoller recorre a artigos de Greenacre (1953) e de Parkin (1964) a respeito da “admiração temerosa pelo pênis e o fascínio sexual” (p. 45). Stoller ressalta que as mães de transexuais apresentam tanto uma inveja como uma admiração temerosa pelo pênis de seus filhos. Frente a essa ambivalência, quaisquer sinais de masculinidade demonstrados por essas crianças “serão poderosamente, embora de maneira sutil, desencorajadas por essas mães” (p. 46).

Ceccarelli (2003) aborda essa questão por outro prisma. Enquanto Stoller (1982) associa, em parte, a feminilidade do transexual masculino à admiração temerosa que as mães apresentam em relação ao pênis, Ceccarelli defende que a criança (futuro transexual) não corresponde, em termos de sexo anatômico, ao projeto dos pais. Frente a esse projeto frustrado, o caminho natural seria a elaboração, por parte dos pais, de um luto da “criança imaginada”, contudo, em determinados casos, Ceccarelli afirma:

“Acredito ser justamente a impossibilidade de elaboração do luto da ‘criança imaginada’ que se anuncia no horizonte do futuro transexual: seu lugar e sua sexuação já estão, de cera forma, determinados, fixados, no imaginário de seus pais muito antes de sua vinda ao mundo” (p. 46).

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a uma conclusão definitiva. É possível, inclusive, que as duas hipóteses levantadas por esses autores coexistam.

Até o momento, destacou-se apenas o papel da mãe no desenvolvimento do transexual masculino. Todavia, o pai também possui sua parcela de participação nesse processo. Para Stoller (1982), essa participação é muito mais marcada por uma passividade do que por alguma ação. Segundo ele, esse pai em nenhum momento interrompe a simbiose mãe-criança, podendo, por vezes, encorajar a mesma. Sua função de servir como um modelo de identificação masculina para o filho não é cumprida e a criança acaba por ficar desprotegida dos “efeitos feminilizantes da mãe” (p. 47).

Ao se falar do papel das figuras parentais na formação do transexual, não se pode deixar de abordar a questão do Édipo. Para Stoller (1982), as características maternas e paternas, descritas anteriormente, alteram significativamente a situação edipiana. A ausência do pai impede que haja um conflito e permite que a simbiose estabelecida com a mãe perdure, estimulando, assim, o desenvolvimento de uma identidade feminina por parte da criança. Desse modo, não há no menino um medo da castração, mas, sim, um desejo que seu pênis seja transformado em vagina, permitindo a essa criança crescer como uma menina.

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Uma questão se coloca neste momento: a ausência do conflito edipiano nos transexuais os levaria à psicose? Stoller (1982) afasta essa idéia ao relacionar a percepção que o transexual tem de sua feminilidade com o processo da ilusão e não do delírio.

“Os delírios são convicções errôneas nas quais a pessoa ergue uma nova realidade para corrigir a inaceitável realidade anterior, mas a velha realidade vive, sepultada no inconsciente. Entretanto, existem convicções errôneas que não reconstroem a realidade, mas que simplesmente baseiam-se na má informação sobre a realidade externa; isto é responsável por muitas diferenças entre culturas e religiões. A ilusão situa-se no meio; uma convicção errônea devida à má interpretação e não à reconstrução da realidade externa; a convicção inconsciente não é forte o suficiente para dar um fim aos testes de realidade do ego. Por essa última definição, o transexualismo não é, tampouco, exatamente uma ilusão, mas talvez possamos mantê-lo nessa categoria, porque o transexual, sendo diferente de uma pessoa delirante, nunca nega a realidade externa (o seu sexo anatômico)” (p. 31).

Além de considerar que o desejo de mudança de sexo por parte dos transexuais não é fruto de um delírio, Stoller atesta que as funções de ego desses indivíduos estão preservadas. O único ponto onde o desenvolvimento do ego não se dá de modo normal refere-se ao senso de feminilidade. Stoller baseia suas afirmações em suas casuísticas, onde “nenhum desses meninos mostrou a menor evidência de psicoses ou precursores de psicoses” (p. 55).

Já Safouan (1979) aborda essa questão por outro aspecto. Esse autor se refere à

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intervém na relação mãe-criança, do que dos esforços maternos em manter essa relação, como pretende Stoller.

Dessa forma, a extrema feminilidade apresentada pelos transexuais não estaria ligada a um processo identificatório com a mãe e sim a uma formulação delirante do feminino, uma vez que o processo de subjetivação desses indivíduos foi prejudicado na vivência do Édipo. Com isso, Safouan (1979) traça uma aproximação do transexualismo com a clínica da psicose. Nesse sentido, Frignet (2002) é ainda mais contundente, ao afirmar que todo transexual possui necessariamente uma estrutura psicótica.

Em relação a esse ponto, percebe-se que a maior parte dos estudiosos do transexualismo não observa, em seus casos, sinais de psicose nesses indivíduos. Para Ceccarelli (2003), o transexualismo seria uma espécie de defesa frente à “imposição”, por parte dos pais, de uma “identidade sexuada”. Nesse sentido, o referido autor afirma que “a ‘solução’ transexual representaria uma forma de ‘sobrevivência psíquica’. Uma tentativa

infantil de auto-cura, quem sabe uma maneira de ‘escapar’ à psicose” (p. 47).

Stoller (1982) reforça sua opinião de que o transexualismo não se encontra nas fronteiras da psicose ao verificar que o transexual masculino reconhece o seu sexo anatômico e sabe que possui um corpo de homem. O que ocorre é um desacordo entre a forma de seu corpo masculino e a sensação íntima de ser feminino. Diante desse desacordo, o transexual busca o tratamento hormonal e cirúrgico com vias a obter uma sintonia entre o biológico e o psicológico. Caso se tratasse de um psicótico, haveria, possivelmente, uma idéia de transformação espontânea (mágica) do corpo que estaria para ocorrer ou já realizada.

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pudesse desconfiar que esse desacordo fosse delirante, deve-se observar, como ressalta Stoller (1982), que a psicose não se restringe ao somático, envolvendo também outras áreas, como o pensamento e a linguagem.

Um último ponto tratado por Stoller parece de suma importância ao se estudar o transexualismo. Um indivíduo se desenvolve como um transexual a partir de um processo identificatório com a mãe? Stoller (1982) acredita que o menino (futuro transexual), ao começar a receber as influências femininas da mãe, ainda não tem a estruturação psíquica necessária para realizar uma identificação. Em suas palavras:

“(...) identificação é um processo intramotivado e um exemplo do princípio do prazer em ação. Acredito, porém, que em estágios anteriores, esses meninos não busquem a feminilidade (...) mas antes recebem-na passivamente através de excessiva imposição dos corpos, por demais amados, de suas mães” (p. 55).

Percebe-se que, para o autor, o processo de identificação depende de uma postura ativa por parte da criança, o que, para ele, não parece ocorrer no transexualismo. Dessa forma, Stoller recorre à noção de imprinting para explicar o que ocorre no desenvolvimento do transexual masculino. Nessa noção, a criança não teria, ainda, defesas psíquicas à invasão do feminino imposta pela mãe, sendo, então, vítima do puro condicionamento. O autor ressalta que, uma vez estabelecida a capacidade de fantasiar, a identificação vai gradualmente assumindo um papel relevante no desenvolvimento do transexual masculino. Percebe-se, então, que a identificação, segundo Stoller, só ocorre após o processo de feminilização do menino ter iniciado.

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que a identificação, como um processo de incorporação e introjeção da figura materna, realmente será secundária ao processo de imprinting, contudo, ele recorre ao conceito de “relação de penetração” para ampliar esse entendimento.

Na visão de Ribeiro, toda a relação que a criança estabelece com o outro, em especial o contato com a mãe, é passível de ser representada em termos de penetração. Nas palavras do autor,

“Cada palavra ou ruído escutados, cada odor sentido e cada porção de alimento introduzida na boca serão experiências que acionam as representações de um espaço interior passível de ser atingido pela penetração de uma fronteira epidérmica” (p. 272).

Desse modo, a criança, mesmo antes de ser capaz de introjetar e incorporar, consegue representar os contatos com o meio externo, tanto no sentido de preenchimento como de esvaziamento, como ocorre nas atividades excretórias. Outro aspecto importante da relação de penetração, salientado por Ribeiro (2000), refere-se ao fato da mãe moldar o seu comportamento diante do filho a partir de um processo de imitação do mesmo. Com isso, “a criança e a mãe são as duas faces de uma mesma relação de penetração, na qual não se distinguem o penetrante e o penetrado” (p. 273).

Dessa forma, os comportamentos transmitidos pela mãe seriam moldados a partir da imitação que esta faz do filho. A feminilidade adquirida pelo menino, através da mãe, não é, portanto, uma imposição unilateral, uma vez que é o contato com a criança que induz, naquela, um comportamento “derivado de sua própria sexualidade recalcada” (Ribeiro, 2000, p. 273).

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criança, processo esse designado por Ribeiro (2000) como mimesis. Nesses termos, a relação mãe-criança não pode ser entendida como simbiótica ou indiferenciada e, sim, como “uma verdadeira relação de individuação, em que o indivíduo (...) se constitui ao ser identificado à sua própria produção pelo outro” (p. 274). É dessa forma que Ribeiro entende que o transexual é capaz de se individualizar e levar uma vida independente.

A partir dessa visão, torna-se mais clara a distinção entre o transexualismo e a psicose. Uma vez que o transexual atravessa um processo de individuação, ele torna-se capaz, já enquanto criança, de ser criativo, afetuoso e expansivo, como foi observado por Stoller (1982), demonstrando o estado preservado das funções de ego.

1.4. O Transexualismo no Método de Rorschach

Mesmo que no Brasil ainda não seja uma realidade, a investigação do transexualismo tem o método de Rorschach ocupando um lugar privilegiado nos trabalhos de diversos autores (Michel & Mormont, 2003; Basu, 1983; Burnard & Ross, 1986; Lothstein, 1984; Abreu, Amparo & Oliveira, 2004).

Segundo Michel & Mormont (2003), a maior parte dos estudos realizados a partir do método de Rorschach se concentram sobre certas particularidades do funcionamento do transexual. As características mais freqüentes referem-se a: i) uma particularidade no contato com a realidade; ii) uma particularidade de pensamento; iii) um distúrbio na identidade sexual; iv) um distúrbio na imagem de si; v) um distúrbio combinando esses diferentes aspectos.

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por Michel & Mormont, 2003) se referem a 55% e Mormont, Michel & Wauthy (1995) chegam a encontrar 23% de F+. A qualidade das respostas formais (F+%) é um importante indicador a respeito do nível de contato do sujeito com a realidade. Vaz (1997) afirma que o percentual normal de respostas formais de boa qualidade é maior ou igual a 80%. Ainda segundo esse autor “psicóticos depressivos, esquizofrênicos, neuróticos ansiosos e depressivos, sempre, pelo que temos podido observar, apresentam F+% inferior a 80” (p. 90).

Vermeylen, Bauwens, Lefebvre & Linkowski (2005) realizaram um estudo comparativo de um grupo de vinte e oito transexuais e um grupo controle de igual quantidade de sujeitos. Observou-se, nessa pesquisa, no grupo de transexuais, um menor número de respostas, uma maior quantidade de percepções globais (G), uma diminuição da quantidade de respostas formais puras (F%), um controle afetivo mais baixo (FC < CF + C), um maior número de cinestesias passivas, um aumento na quantidade de respostas de conteúdo mórbido, uma menor quantidade de respostas de conteúdo humano imaginário ((H)) e uma falha na capacidade de simbolização, a partir da escala Índice de Elaboração Simbólica (IES) proposta por Cassiers (1968).

Vermeylen & cols. (2005) analisam que o aumento do número de respostas globais (G), aliado à diminuição da quantidade total de respostas, indica uma dificuldade no investimento das faculdades criativas. O rebaixamento do controle afetivo (FC < CF + C) é interpretado como uma maior facilidade do transexual em se deixar modificar por estímulos externos, modulando-se de maneira passiva à realidade ambiente. Pode-se somar a esse fator uma tendência a remeter ao outro as tomadas de decisões, conclusão alcançada pelos autores a partir do aumento de respostas de cinestesia passiva.

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simbolização encontra-se reduzida em função de uma maior busca de recursos no plano do real. A busca do transexual por uma transformação (real) do seu corpo como solução de sua problemática de identidade de gênero ilustra bem o modo de funcionamento do transexual.

Com relação à identidade sexual, Zucker, Lozinski, Bradley & Doering (1992), em um estudo com crianças sofrendo de distúrbio de identidade de gênero, observaram que aquelas que apresentavam alguma problemática nesse campo forneciam uma quantidade maior de respostas sexuais ambíguas em comparação com sujeitos normais e com transtornos psiquiátricos.

Por outro lado, Kindynis, Frohwirth, Gorceix & Breton (1985) afirmam que o estudo da identificação sexual, a partir das imagens femininas e masculinas, remete às identificações com as figuras parentais. Nesse sentido, esses autores relatam que a imagem paterna ou da autoridade se apresenta marcada por elementos de angústia, desvalorização e hostilidade, enquanto que a imagem materna, comumente, mostra-se forte, fálica e castradora.

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Com o intuito de demarcar os indicadores do transexualismo masculino no método de Rorschach, é necessário diferenciar este transtorno de outros fenômenos que podem levantar dúvidas no psicólogo clínico quanto ao diagnóstico mais preciso. Nesse sentido, a comparação dos protocolos de transexuais com o perfil da psicose é importante para procurar se esclarecer a dúvida originada da discordância de opiniões entre alguns autores (Stoller, 1982; Ceccarelli, 2003; Safouan, 1979; Frignet, 2002) quanto ao pertencimento ou não do transexualismo à clínica da psicose.

Segundo Michel & Mormont (2003), os distúrbios de pensamento são usuais nos transexuais e colocam em evidência a questão da psicopatologia associada ao transexualismo. Mormont & cols. (1995) sugerem que um núcleo psicótico está presente na demanda da mudança de sexo e que uma estrutura de personalidade borderline poderia explicar a coexistência de uma parte psicótica e uma parte não-psicótica. Desse modo, essa parte intacta (não-psicótica) preservaria o sujeito de uma psicose franca. Segundo Lobato & cols. (2001), a personalidade borderline é um dos estados que mais comumente se encontra em co-morbidade com o transexualismo.

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adolescentes transexuais se encontrariam em um meio termo entre aqueles que consultam psiquiatras e a população normal. Esses resultados corroboram a hipótese de uma possível personalidade borderline.

Vermeylen & cols. (2005), em estudo referido anteriormente, não encontraram nos transexuais traços psicopatológicos na apreensão do real, não confirmando, desse modo, a hipótese de uma passagem ao ato psicótico. Esse autores acreditam que o rebaixamento no Índice de Elaboração Simbólica (IES) e o menor número de respostas de conteúdo humano imaginário ((H)) indicam uma falha na capacidade de mentalização e que, assim, a pulsão encontra uma saída na satisfação imediata direta, ao nível da realidade externa. Portanto, haveria, para esses autores, uma catástrofe na capacidade de simbolização, tal como ocorre em pacientes psicossomáticos.

Com relação ao diagnóstico diferencial entre o transexualismo e o transvestismo, Gallarda, Coussinoux, Cordier, Luton, Bourdel & Olié (2001) realizaram um estudo comparativo apenas com a Prancha III do método de Rorschach e com a escala M/F do Inventário Multifásico de Personalidade de Minnesota (MMPI). Os autores encontraram uma significativa identificação dos dois grupos com as representações femininas, mas não foi possível estabelecer uma diferenciação do grupo de transexuais em relação ao transvestismo na Prancha III do método de Rorschach. Desse modo, a avaliação da identificação sexual por meio de uma só prancha do método de Rorschach, em especial a Prancha III, não parece contribuir para discriminar o transexualismo do transvestismo.

1.5. A Representação de Si como Problemática desse Estudo

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identificações contribuem na construção de uma identidade sexual e de gênero. Entretanto, a evidente problemática relacionada ao corpo indica a necessidade de investigar as particularidades do modo como o transexual percebe seu corpo. Dessa forma, a investigação da imagem do corpo vem se juntar aos estudos relativos à identidade e às identificações no sentido de ampliar a compreensão acerca do fenômeno do transexualismo.

Os estudos descritos na seção anterior a respeito do transexualismo no método de Rorschach abrem a possibilidade de explorar outros eixos relacionados ao referido transtorno. Observa-se, por meio do método de Rorschach, que a análise do contato com a realidade, da imagem de si e da representação de si são caminhos que também podem enriquecer a investigação do transexualismo.

A problemática que se levanta refere-se a encontrar um construto cujo conceito abranja os principais eixos de análise do transexualismo, permitindo essa investigação através do método de Rorschach. É justamente a idéia de representação de si que aparece como possível solução para essa demanda.

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Desse modo, pode-se considerar que o conceito de representação de si abrange as questões referentes à imagem do corpo, à identidade e às identificações.

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CAPÍTULO II

MÉTODO

Neste trabalho, uma vez que se pretende analisar a representação de si em transexuais masculinos, bem como tecer considerações a respeito do diagnóstico diferencial, optou-se por realizar essa pesquisa por meio de estudos de caso. A escolha pelo estudo de caso deve-se ao interesse em estudar profundamente a realidade subjetiva de transexuais, buscando compreender os aspectos ligados à identidade, identificações e imagem do corpo desses sujeitos.

Nesse sentido, a pesquisa caracteriza-se como qualitativa, visto que, de acordo com Denzin & Lincoln (2000), ela enfatiza os processos e significados de um fenômeno. Além disso, este estudo é um tema delicado, onde a investigação exige uma maior proximidade na relação pesquisador-pesquisado. A pesquisa qualitativa permite o acesso a dados relacionados a questões de natureza íntima que muitas vezes vêm permeados de angústia e sofrimento (Turato, 2003). Por outro lado, este estudo também enfatiza alguns aspectos quantitativos, pois faz um levantamento de indicadores psicométricos no método de Rorschach acerca do transexualismo masculino.

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Dentre as diversas características do estudo de caso, pode-se destacar: a) o objetivo está na descoberta de novos conteúdos; b) esses conteúdos devem ser contextualizados; e c) a realidade retratada deve se apresentar em sua “multiplicidade de dimensões” (p. 19).

Em síntese, este estudo caracteriza-se pela delimitação de um grupo único que permite analisar as semelhanças e diferenças, bem como as particularidades em um mesmo continum

psicopatológico, tal como define Hussain (1992-1993).

2.1. Participantes

A amostra foi composta por quatro transexuais do sexo masculino, com idade entre 18 e 42 anos, que ainda não realizaram a mudança de sexo. Esses sujeitos estão engajados no Programa de Acompanhamento Multidisciplinar do Hospital Universitário de Brasília (HUB) com vistas a conseguirem realizar a cirurgia de redesignação sexual e encontravam-se em psicoterapia. Não houve um critério a respeito das condições econômicas dos sujeitos, uma vez que se trata de um número bastante restrito de possíveis participantes.

2.2. Instrumentos

Os instrumentos de investigação escolhidos para este estudo são o método de Rorschach e a entrevista semidirigida em profundidade. A utilização da entrevista teve como objetivo a coleta de dados para a construção da história de vida e clínica dos sujeitos. As entrevistas semidirigidas ou semi-estruturadas permitem a investigação das perspectivas e pontos de vista do entrevistado e o entrevistador deve escutá-lo com atenção e interesse.

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espera do tratamento; identificação sexual e de gênero; representação dos órgãos sexuais masculino e feminino; transformação do corpo; relação com os pais e irmãos; relações sociais; relações sexuais e afetivas; infância; adolescência; escolha do nome feminino (vide Anexo I). As perguntas não foram pré-elaboradas, evitando, assim, que as mesmas sejam utilizadas de maneira rígida, como recomenda Minayo (1998). É importante que o entrevistador seja bastante flexível na condução da entrevista, podendo até realizar pequenas alterações em seu roteiro em função do andamento da mesma (Bauer & Gaskell, 2002).

A condução de uma entrevista semidirigida alterna momentos onde o entrevistador dirige a conversa e momentos onde o entrevistado assume o comando. Em função dessa peculiaridade, a entrevista semidirigida em profundidade é muito pouco estruturada e abrange poucos temas (Turato, 2003).

O método de Rorschach permite uma avaliação profunda da personalidade dos sujeitos, sua estrutura, seus traços, seus controles (Vaz, 1997). Esse instrumento é utilizado tanto em uma perspectiva psicométrica como de uma interpretação qualitativa dos conteúdos expressos. Dessa forma, o método de Rorschach permite uma ampla investigação da personalidade dos transexuais participantes deste estudo.

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2.3. Procedimentos para Coleta de Dados

Foram realizados cinco encontros com cada participante da pesquisa. No primeiro encontro foi obtida a autorização por escrito do pesquisado concordando em participar deste estudo (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, Anexo II). Tal procedimento dá garantias ao sujeito acerca da confidencialidade do trabalho e funciona como um rapport. Ainda nesse primeiro encontro teve início a primeira entrevista com o sujeito.

O segundo e o terceiro encontro serviram, ainda, para a realização das entrevistas, permitindo um levantamento detalhado da história de vida e da história clínica de cada participante. Todas essas entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas. Foi realizada uma entrevista por semana e cada encontro teve a duração aproximada de uma hora.

Após a realização de três entrevistas, no quarto encontro foi aplicado o método de Rorschach, de modo que as características de personalidade pudessem ser investigadas. O quinto e último encontro teve como objetivo a devolução dos dados analisados através das entrevistas e do método de Rorschach. Caso o sujeito sentisse a necessidade de mais esclarecimentos, outros encontros poderiam ser agendados para esse fim. Esse último procedimento ocorreu apenas no segundo caso estudado.

2.4. Procedimento para Análise dos Dados

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dados qualitativos do método foram interpretados segundo a abordagem psicanalítica. Desse modo, os dados quantitativos permitiram, principalmente, uma avaliação dos controles e da força do ego dos sujeitos, enquanto que os dados qualitativos contribuíram na compreensão da representação de si, analisada a partir dos indicadores relativos à identidade, identificação sexual, imagem do corpo e identificações com as figuras parentais.

Utilizou-se como critério para análise da representação de si os indicadores apresentados por Traubenberg & Sanglade (1984) e Chabert (1999). Traubenberg & Sanglade (1984) propõem um esquema de análise pluridimensional, onde as respostas são investigadas pelos substantivos, verbos e adjetivos presentes na fala. Essa análise deve levar em conta quatro aspectos: a dimensão corporal, o modo de relação investida, a identificação sexual e a integração da identidade e qualidade da individuação, como pode ser observado no Quadro 1.

Quadro 1: Análise pluridimensional do conteúdo

Objeto Representado

Modo de Entrar em Contato com o

Objeto

Identificação Sexual Caráter Diferenciado ou

Indiferenciado Entre Si e o Outro - Humano – real,

irreal ou imaginário; - Animal – real, irreal ou imaginário; - Reino vegetal; - Inanimado; - Fenômenos naturais. - Ação; - Interação. Sexo dos personagens e animais representados: - Masculino; - Feminino; - Ambivalente; - Indeterminado ou impreciso.

- Caráter unilateral do percepto; - Interpretação em duplo: gêmeos, siameses.

Análise Análise Análise Análise

- Exprime a imagem corporal, a inteireza e parcialidade; - A prevalência de uma zona indica as centrações sobre a experiência de vida; - Dominância de uma categoria indica o nível da

representação de si.

- A resposta é

caracterizada por um tipo de ação,

interação, ausência de relação;

- As interações podem ser positivas, neutras, agressivas, de dependência, incongruentes; - Ação sofrida ou ativa.

- Especifica a

identificação sexual, sua ambivalência, estabilidade, modo de expressão cru ou elaborado.

- Caráter unilateral pode anunciar a visão em espelho ou defesa contra a focalização de uma relação próxima; - Nível da diferenciação; - Representação narcísica.

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Em relação à dimensão corporal, Traubenberg & Sanglade (1984) destacam a necessidade de verificar em que categoria o objeto percebido é representado. Nesse sentido, o objeto pode pertencer ao reino humano ou quase humano (real ou irreal), ao reino animal (real ou irreal), ao reino vegetal ou ao reino inanimado.

Quanto ao modo de relação investida, as autoras supracitadas referem-se à forma com que o sujeito entra em contato com o objeto. Para isso, deve-se levar em conta a qualidade das respostas em termos de tipos de ação e interação.

A identificação sexual é avaliada, segundo as autoras, através do sexo dos personagens e dos animais percebidos. Dessa forma, quatro são as classificações possíveis: masculino, feminino, ambivalente e impreciso.

Em relação ao último aspecto enfatizado pelas autoras, a integração da identidade e a qualidade da individuação podem ser analisadas pelo caráter de diferenciação ou indiferenciação entre o si e o outro. Tais aspectos devem considerar os elementos qualitativos introduzidos nas respostas como: o caráter unilateral dos perceptos, a interpretação em duplo (gêmeos, siameses) e a deterioração da imagem.

Chabert (1999) também propõe um modo de interpretação dos protocolos do método de Rorschach para a avaliação da representação de si. A autora não sistematiza sua análise de forma tão esquemática quanto Traubenberg & Sanglade (1984), mas enfatiza aspectos semelhantes aos abordados por estas últimas.

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demonstram uma imagem corporal bem integrada. A percepção de imagens bem definidas, na prancha IV, representativas de figuras humanas ou com características antropomórficas, pode, também, revelar uma imagem corporal bem definida. Nos casos de perda da integridade corporal, as percepções da prancha V mostram-se como as últimas a sofrer qualquer alteração. Nesse sentido, Chabert questiona a validade de se considerar o aparecimento de respostas vulgares nesta prancha como garantia de uma imagem corporal bem integrada.

Também as pranchas não compactadas podem dar uma boa amostra da integridade com que o sujeito percebe seu corpo, especialmente as pranchas com configuração bilateral, como a II, a III e a VII. De acordo com Chabert (1999), as imagens do corpo pouco integrado são representadas por percepções de má qualidade onde o indivíduo se esforça para globalizar as figuras que se apresentam como dispersas ou fragmentadas. As pranchas de tons mais coloridos (VIII, IX e X) também se referem à imagem do corpo no que diz respeito às preocupações hipocondríacas ou de angústia de fragmentação. Nesse sentido, é comum observar, em protocolos de psicóticos, percepções de transparência, onde a visualização de órgãos e vísceras denotam a dificuldade de se estabelecer os limites dentro-fora.

A construção inadequada de um sentimento de identidade pode ser vista, nos protocolos do método de Rorschach, através de percepções de duplos ou pela não diferenciação dos reinos mineral, vegetal, animal e humano. Nas pranchas compactas, o eixo central não é percebido como eixo do corpo, mas, sim, como ponto de separação entre duas figuras, onde uma não é mais do que a repetição da outra. Nas pranchas com configuração bilateral, essas percepções de duplo também são indicativas de um sentimento vago de identidade. As respostas de espelho, em especial, podem ajudar a caracterização de uma problemática de ordem narcísica no processo de identificação (Chabert, 1999).

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definição acerca de serem masculinas ou femininas. Em geral, a maior parte das percepções está de acordo com a identificação sexual do sujeito. Problemáticas no campo da identificação sexual podem ser observadas através da não diferenciação sexual das percepções humanas ou pela oscilação e hesitação das mesmas, em especial na prancha III, considerada de caráter bissexuado. Nas pranchas do método de Rorschach, pode-se observar a ocorrência de temas específicos ligados à questão da identificação sexual. A prancha II é representativa de problemas relacionados à angústia de castração. A ênfase em conteúdos sexuais, e a qualificação dos mesmos, assim como a evitação dessas percepções podem indicar esse tipo de problemática. A prancha VI evoca, preferencialmente, as percepções fálicas, enquanto que a prancha VII favorece as identificações femininas.

Para Chabert (1999), existe uma interdependência da construção da imagem de si e o modo como se estabelecem as relações de objeto. Nesse sentido, as modalidades de relações com as imagos parentais tornam-se um tema importante de ser analisado. A autora acaba dando ênfase, em sua avaliação, ao modo de relação com a figura materna.

A identificação com a figura materna pode ser avaliada, principalmente, através dos conteúdos percebidos nas pranchas I, VII e IX. A prancha I sugere a percepção de um corpo feminino no eixo central e, segundo Chabert, apela para a “relação com o primeiro objeto” (p. 83), em geral a mãe. Myrian Orr (1958, citada por Adrados, 1982) chama a atenção para a ausência de percepções humanas nessa prancha, o que pode denotar que “a figura materna foi incorporada como fonte de angústia e frustração” (p. 51). Esta autora destaca, ainda, a percepção de conteúdo de anatomia rígida (bacia, vértebra, osso sacro) como um indicativo de uma grave frustração primária com a mãe relacionada, de modo ambivalente, com um desejo de um retorno a um estado embrionário com a mesma.

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época de uma relação simbiótica. Por fim, a prancha IX, por sua própria configuração, favorece o aparecimento de percepções bastante regressivas, a ponto de Chabert denominá-la de prancha uterina.

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CAPÍTULO III

RESULTADOS: APRESENTAÇÃO DOS CASOS DE

TRANSEXUALISMO

Nesta seção serão discutidos quatro casos de transexualismo masculino, nos quais foram realizadas entrevistas para o levantamento da história clínica das pacientes, juntamente à aplicação do método de Rorschach. Os nomes que constam nos relatos são fictícios.

Em cada caso é apresentado um relato a respeito da história de vida de cada sujeito. Essas histórias foram levantadas a partir das quatro entrevistas realizadas com cada participante. Posteriormente, os resultados psicométricos dos protocolos de Rorschach são descritos, enfatizando o tipo vivencial, tipo aperceptivo, controles, estrutura de ego e a ordenação do pensamento. Em um terceiro momento, procede-se a análise da representação de si, através dos eixos relativos à imagem do corpo, à identificação sexual, à identidade e às identificações com as figuras materna e paterna. Por fim, em cada caso, realiza-se uma breve discussão acerca dos dados obtidos por meio das entrevistas e do método de Rorschach.

3.1. O Caso Carla

3.1.1. História Clínica

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mãe de Carla tomou remédios, porém o aborto não ocorreu. Durante a gestação, a mãe de Carla desejava ter uma menina que servisse de companheira. Talvez pela tentativa de aborto, Carla nasceu bastante debilitada e teve uma infância marcada por muitas doenças e internações em hospitais. Vivia “grudada” na mãe que a levava para todos os lugares, inclusive para o banheiro, e, mesmo já crescida, continuava sentando no colo.

Carla relata sentir-se feminina desde a infância, gostava de bonecas, mas era reprimida pelo pai. Na adolescência, Carla foi levada, pelos pais, ao médico para tentar “corrigir” seu comportamento feminino. Nessa época, submeteu-se a um tratamento com hormônios masculinos, o que, segundo Carla, só serviu para “ativar” sua sexualidade. Até à idade adulta, Carla não sabia da existência do transexualismo e, portanto, acreditava ser homossexual. Chegou a freqüentar círculos homossexuais, mas sentia-se deslocada, pois, segundo ela, o universo feminino era tratado com irreverência e ironia. Somente quando fazia faculdade descobriu, através da internet, a existência do transexualismo e logo se identificou com essa condição. Ainda na faculdade, Carla conheceu um transexual, ainda com aparência masculina, com quem criou um grande vínculo. Esse transexual se submeteu à cirurgia de redesignação sexual e Carla teve a oportunidade de ver o resultado. Logo percebeu que era isso que faltava para se sentir bem consigo mesma.

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não pode olhar para o pênis durante a masturbação, pois, perde o desejo. Carla tem consciência de que a cirurgia não melhorará sua vida afetiva, uma vez que não fará com que homens heterossexuais se interessem por ela, mas considera que este não é o ponto mais importante, uma vez que sua problemática é mais ampla do que o campo sexual, pois envolve seu sentimento de identidade.

Carla sempre se vestiu com roupas que não ressaltassem as características masculinas. Por volta dos 23 anos, resolveu começar a se vestir de mulher. Pouco tempo depois, seu pai saiu de casa, alegando que, se continuasse ali, acabaria por matá-la. A ausência do pai trás para a paciente um sentimento de liberdade. A mãe de Carla não aceita a condição da filha e se recusa a falar com ela sobre essa situação. Ainda que conflituosa, Carla considera que a relação com a mãe permanece “simbiótica”. O nome feminino que adotou é o mesmo que sua mãe daria à filha que desejava.

O pai de Carla sempre procurou reprimir a feminilidade da mesma, chegando a mandá-la para viver na casa da avó paterna, em outra cidade, para “endireitá-la”. Seu pai era muito agressivo e, algumas vezes, agrediu fisicamente a mãe de Carla. A própria paciente foi ameaçada pelo pai, principalmente em razão de seus comportamentos femininos.

O irmão do meio de Carla sofreu grande rejeição por parte da mãe. Levava surras violentas, enquanto os demais levavam apenas “uns tapinhas”. Ainda bem novo tinha sua higiene negligenciada e até mesmo o leite, preparado para todos os filhos, era mais ralo para ele. Na época em que servia ao exército, esse rapaz teve um surto psicótico. Todos os filhos, até à adolescência eram impedidos de freqüentar a casa de colegas ou de receber visitas. Os pais nunca foram afetuosos e carinhosos entre si e em relação aos filhos.

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sair de casa. Os maus tratos que sofria levaram a mãe de Carla a abandonar o marido e voltar para a casa de sua mãe, após o nascimento do primeiro filho. Posteriormente, voltou a se comunicar com o marido e acabou por retornar para o convívio com este.

Carla se queixa de conflitos relacionados ao seu corpo, fazendo, há cerca de três anos, tratamento hormonal por conta própria, visando adquirir uma aparência feminina. Relata não ter dinheiro para realizar o tratamento como deveria, mas sente-se aliviada com as mudanças já ocorridas em seu corpo. Apesar de fazer parte de um grupo de transexuais ligado à rede pública de saúde, não pretende esperar os trâmites oficiais para a realização da cirurgia de redesignação sexual, pois alega ser muito demorada a obtenção de uma autorização. Desse modo, pretende conseguir um bom emprego para poder custear a cirurgia. Atualmente, Carla vive com a mãe e com a avó materna na casa desta última. O ambiente é bastante conflituoso e Carla quase não sai de casa. Sua avó aceita a condição da neta, mas proíbe que ela leve homens para casa.

3.1.2. Análise do Psicograma

O Quadro 2 esquematiza a classificação do protocolo do método de Rorschach do Caso Carla:

Quadro 2: Resultado da cotação do protocolo do Caso Carla

Localização Determinante Conteúdo G = 4

G/ = 3 GS = 1 D = 12 Dd = 4 DdS = 1

F+ = 6 F- = 4 M = 5 FM = 2 m = 1 adicional C = 1 adicional CF = 2 / + 3 adicionais FC = 1 FC’ = 1 FK = 1 cF = 2 / + 1 adicional Fc = 1 / + 1 adicional

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O exame de Carla sugere que a mesma apresenta uma disposição temperamental introversiva (5M : 2,5C), em conflito com tendências extratensivas (FM + Σm = 2 : Σc + ΣC’ = 4) que não podem ser operacionalizadas no momento ou não são aceitas. Pode-se, também, levantar a hipótese de um início de mudança vivencial decorrente do processo psicoterápico. Seu controle intelectivo é um pouco rebaixado (F% = 40), não sugerindo, contudo, desorganização de sua dinâmica. A vida interior é rica, com ênfase na criatividade e fantasia, o que permite controlar seus aspectos mais instintivos e impulsos (5M : 2FM + 0,5m). Porém, o controle na exteriorização de suas emoções é bastante fraco (1FC : 3,5CF +0,5C), caracterizado pela vulnerabilidade, irritabilidade, sugestibilidade e, eventualmente, explosões emocionais (em condições de estresse).

Referências

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