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Estuprar e Apagar: violência e mulher na Bíblia hebraica

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Academic year: 2020

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Resumo: o presente artigo pretende estudar a violência contra as mulheres na Bíblia não como algo narrado, mas como componente intrínseco do texto sagrado. Ele mostra como textos normativos que, apa-rentemente, tratam da violência sexual contra a mulher são na verdade fazem violência à mulher ao tirar-lhe o domínio de sua sexualidade e ao culpá-la sempre que possível pelas violências cometidas contra ela. Ele mostra também, através da figura de Miriam, irmã de Moisés, a violência simbólica contra as mulheres que muitas vezes caracteriza o processo de redação do texto sagrado..

Palavras-chave: violência contra a mulher, sexualidade femilina, estupro, adultério, Miriam, lidernça feminina

Claude Detiene

estuprar e apagar: violência e mulher na bíblia hebraica

REFLEXÕES INICIAIS

Sendo a Bíblia produto de uma civilização patriarcal, a presença nela da violência contra a mulher não é algo surpreendente. E relatos como o caso de Dina, filha de Jacó (Gn 34) ou de Tamar, filha de Davi (2 Sm 13) podem ser apresentados como exemplos típicos dessa cultura na qual a mulher não tem peso nem voz. Além disso, a Bíblia consegue ‘se sair bem’, pois nesses casos os agressores das mulheres foram devidamente castigados. Tal leitura da Bíblia, um tanto ingênua, deixa tranquilizado o leitor comum, que sempre busca na Bíblia uma fonte de inspiração para os valores que norteiam sua vida. Porém, para avaliar a verdadeira posição da violência contra a mulher dentro da Bíblia, é necessária uma leitura mais atenta e crítica.

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Sem pretender ser exaustivo, queremos neste artigo examinar dois casos que dizem respeito ao tema da violência contra a mulher: o primeiro é um trecho que contém leis que tratam de adultério e/ou estupro (Dt 22, 22-29); o segundo é um estudo da figura de Miriam, irmã de Moisés que aparece em vários lugares da Bíblia hebraica, com o qual queremos discutir a questão da violência simbólica feita a uma figura feminina importante na história do povo israelita.

DT 22, 22-29: LEIS SOBRE ADULTÉRIO E/OU ESTUPRO

O conjunto de leis de Dt 22, 22-29 trata de casos de relações sexuais ilícitas com uma mulher consentinte ou não. As leis distinguem três tipos de mulheres: a mulher casada (v. 22), a jovem virgem prometida a um homem (vv. 23-27) e a jovem virgem não prometida (vv. 28-29). Vejamos primeiro o texto1:

22 Se um homem for pego em flagrante deitado com uma mulher casada, ambos serão mortos, o homem que se deitou com a mulher e a mulher. Deste modo extirparás o mal de Israel.

23 Se houver uma jovem virgem prometida a um homem, e um homem a encontra na cidade e se deita com ela, 24 trareis ambos à porta da cidade e os apedrejareis até que morram: a jovem por não ter gritado por socorro na cidade, e o homem por ter abusado da mulher do seu próximo. Deste modo extirparás o mal do teu meio. 25 Contudo, se o homem encontrou a jovem prometida no campo, violentou-a e deitou-se com ela, morrerá somente o homem que se deitou com ela; 26 nada farás à jovem, porque ela não tem um pe-cado que mereça a morte. Com efeito, este caso é semelhante ao do homem que ataca seu próximo e lhe tira a vida: 27 ele a encontrou no campo e a jovem prometida pode ter gritado, sem que houvesse quem a salvasse.

28 Se um homem encontra uma jovem virgem que não está prome-tida, e a agarra e se deita com ela e é pego em flagrante, 29 o homem que se deitou com ela dará ao pai da jovem cinquenta siclos de prata, e ela ficará sendo a sua mulher, uma vez que abusou dela. Ele não poderá mandá-la embora durante toda a sua vida.

Ao serem perguntados sobre quem é vítima nesses casos, muitos lei-tores responderão espontaneamente que a vítima é a mulher2. Tal resposta

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é facilitada pela leitura sequencial do texto, que termina com casos onde a mulher é apresentada como não consentinte. Trata-se, porém, de textos jurídicos, e precisamos examiná-los do ponto de vista jurídico. No âmbito jurídico, um critério eficaz para determinar quem, para a lei, é vítima é de quem é a indenização. Nos casos abordados no trecho citado, há um só caso de indenização: o caso de virgem não prometida, cujo pai recebe cinquenta siclos de prata. Que não se trata simplesmente de dote, mas sim de uma indenização fica mais claro no trecho paralelo de Ex 22, 15-16:

15 Se alguém seduzir uma virgem que ainda não estava prometida em casamento, e se deitar com ela, pagará o seu dote e a tomará por mulher. 16 Se o pai dela recusar dar-lha, pagará em dinheiro conforme o dote das virgens.

Note-se de passagem que só em aparência o texto da versão do Êxo-do é mais ‘favorável’ à mulher, pois o casamento com o estupraÊxo-dor não é automático. Mas, como na realidade é o pai, e só ele, quem pode recusar o casamento, mais uma vez a mulher não tem voz. A indenização mostra que a vítima é o pai, como dono da sexualidade de sua filha. Como escreve Pressler (2000, p. 112),

a lei deuteronômica (de acordo com a maioria dos textos bíbli-cos e do Antigo Oriente Próximo) vê a sexualidade feminina e a capacidade reprodutiva como uma propriedade masculina. A sexualidade da mulher pertence, primeiramente, a seu pai e depois a seu marido.

Retomando o trecho inteiro, podemos notar uma perfeita simetria de conteúdo:

v. 22: mulher casada consentinte

v. 23-24: jovem virgem prometida consentinte v. 25-27: jovem virgem prometida não-consentinte v. 28-29: jovem virgem não prometida não-consentinte

Contudo, apesar dessa construção com ares de completude, muitas perguntas surgem ao analisar o texto no ponto de vista de sua aplicação prática. Em primeiro lugar, no caso da mulher casada, não se leva em consideração a possibilidade dela ser violentada. A formulação da lei parece implicar que,

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no caso da mulher casada, o seu consentimento ou não-consentimento é irrelevante e que em todo caso ela é culpada de adultério.

Só no caso da jovem virgem prometida o consentimento ou não-consentimento é levado em conta, mas isso não se dá sem problema. O caso mais problemático é o da relação sexual dentro da cidade. O legis-lador considera que o comportamento correto da mulher é de gritar por socorro e que, dentro da cidade, sempre vai haver alguém para ouvir o grito. O que acontece, então, com a jovem paralisada pelo medo e que não consegue gritar? Ou com a jovem ameaçada de ser morta caso gritar? Ou com a jovem violentada em um ambiente urbano muito barulhen-to onde seus gribarulhen-tos não podem ser ouvidos (perbarulhen-to de uma ferraria, por exemplo)? A lei não deixa espaço para tais exceções e a jovem tem que ser condenada junto com o seu agressor. Em contrapartida, o tratamento reservado à jovem virgem prometida que tem relações sexuais fora da cidade é mais benevolente. Como não há ninguém para ouvir gritos, a dúvida sobre o seu consentimento deve beneficiá-la e só o homem é culpado. É interessante notar que a mesma distinção de lugar é feita nas leis hititas a respeito da relação sexual de uma mulher casada com um homem que não seja o seu marido:

Se um homem agarrar uma mulher nas montanhas, a culpa é do homem, mas se ele a agarrar em casa, a culpa é da mulher: a mulher morrerá. Se o marido os encontrar, ele pode matá-los sem cometer crime (HALLO, 2000, p. 118).

Nesse caso – não podemos generalizar –, as leis hititas se revelam um pouco mais humanas que as leis bíblicas.

O último caso, o da jovem virgem não prometida, também não considera várias circunstâncias possíveis. Aqui a lei só trata da possibilidade de ter sido um ato de violência e não se pergunta pelo consentimento ou não consentimento da jovem. Como vimos anteriormente, não se deve deduzir que a lei é mais positiva neste caso, pois a jovem deve se casar com o estuprador, a não ser que o pai dela recusar.

Como explicar as diferenças a respeito do consentimento ou não consentimento nos casos acima. Pode-se pensar que, como as moças eram prometidas assim que chegavam na puberdade, uma moça não prometida não estaria em condição fisiológica ou psicológica de consentir (não teria ainda atingido a idade de razão, ou seja a capacidade de decidir por conta própria). Fica, contudo, arriscado levar o mesmo tipo de raciocínio aos outros casos,

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como o fez J. J. Finkelstein ao analisar leis sumérias de ofensa sexual, com referência às leis bíblicas:

As correlações (entre o estatuto de casada/solteira e consentimen-to/não consentimento), parece-me, são baseadas na experiência da vida diária. As mulheres solteiras, mesmo quando noivas, geralmente eram menores de idade, sexualmente falando, uma vez que com o advento da sua nubilidade logo teriam sido casadas, ou, caso já tenham sido prometidas, teriam logo tido o seu casamento consumado. Em termos estritamente fisiológicos, portanto, teria sido incomum para uma moça nessa faixa etária buscar experiência sexual por sua própria iniciativa. Em outras palavras, a combinação de mulher solteira e do elemento de consentimento era altamente improvável do ponto de vista empírico. As moças nesta faixa etária, porém, não eram imunes ao estupro ou à sedução por homens estranhos, especialmente em circunstâncias em que os homens podem ter confundido coqueteria inocente com um convite.

Com as mulheres casadas, por outro lado, uma situação de consenti-mento é mais facilmente levada em consideração, apesar das salvaguardas estabelecidas pela sociedade para evitar a sua ocorrência, como, por exemplo, o uso do véu. Com efeito, o estupro desempenha um papel menor em tal situação, embora não seja de maneira nenhuma excluído como uma ocorrência possível (FINKELSTEIN, 1966, p. 368). Ao afirmar que as distinções são “baseadas na vida diária”, Finkelstein deixa o campo da explicação para pisar o da justificação. Pois é o comporta-mento quotidiano da mulher/moça que é colocado como justificativa para essas leis altamente problemáticas. Embora se possa concordar com o fato de que, no contexto social da época, a moça ainda não prometida é jovem demais para poder decidir ou consentir uma relação sexual, como dissemos acima, o(a) leitor(a) atento aos problemas das relações de gênero ficará atô-nito com a afirmação de que a mesma “experiência da vida diária” faz com que “com as mulheres casadas.... o estupro desempenha um papel menor”. O(a) mesmo leitor(a), com toda certeza, lerá com o mesmo espanto que o estuprador de uma jovem virgem pode muito bem ser apenas um coitado que confundiu “coqueteria inocente com um convite” (à relação sexual), sendo que tal circunstância (mesmo que não seja afirmado pelo autor do artigo aqui citado, mas fica implícito) constitui um fator que diminui a sua culpa ou o exonera totalmente.

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Ao explicitar “experiências da vida diária” sem nenhum tipo de distanciamento pessoal (ele não diz que se trata da experiência de vida dos sumérios ou dos israelitas), o autor parece legitimar duas das mais usadas desculpas dos estupradores de todos os tempos: a não resistência física da mulher seria um tipo de consentimento tácito ao ato sexual e o fato de uma moça jovem se produzir seria um convite para tal ato. O comentário ficou pior do que o texto! E se examinarmos o raciocínio de mais perto, logo veremos a sua inconsistência. Com efeito, a probabilidade de muitas mulheres se arriscarem a ter relações sexuais extramaritais é muito baixa numa sociedade na qual as mulheres são educadas, desde o berço, para se adequarem ao que a sociedade patriarcal machista lhes impõe. E até hoje podemos ver como mulheres assim educadas introjetam valores e imposições que fazem delas seres humanos inferiores. A fortiori, numa sociedade antiga onde os contatos com sociedades que tivessem outros valores (se é que tais sociedades existiam!) eram quase inexistentes, a não adequação ao modelo social vigente devia ser uma raridade. Altamente questionável é também a apresentação por Finkelstein do véu como prote-ção social contra o consentimento da mulher a uma relaprote-ção extramarital. Parece-nos que o autor inverte a proteção: não se trataria pelo contrário de uma proteção contra o desejo incontrolado do homem que encontra uma mulher atraente?

Em conclusão o estudo das leis de Dt 22, 22-29 e do seu comentário por um pesquisador moderno se revela interessante, não tanto pelo que nos mostra da sociedade que criou essas leis, que sabemos ser patriarcal e machista e, por isso, não podia deixar de ser altamente discriminativa con-tra as mulheres. O mais interessante é ver o quanto a visão de mundo e o ethos a respeito da sexualidade feminina continua idêntica, mesmo depois de milhares de anos.

A FIGURA DE MIRIAM NA BÍBLIA: MEMÓRIA APAGADA

Entre as figuras femininas da Bíblia hebraica, Miriam ocupa um lugar de destaque. E pode parecer incongruente pretender que pode ter sido sub-metida a um tipo de damnatio memoriae pelos redatores do texto sagrado.

Conforme a tradição, Miriam é a irmã de Moisés que aparece no segundo capítulo do Êxodo, observando de longe o cesto no qual fora colocado Moisés e, mais tarde, fazendo com que o seu irmão fosse criado pela sua mãe biológica. O texto não dá o seu nome , mas é verdade que não é um fato que lhe seja próprio. O pai e a mãe de Moisés, Amram e

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Jocabed, também não são nomeados (os nomes aparecem apenas no re-censeamento de Nm 26), assim como também o Faraó e sua filha ficam anônimos. Não se trata aqui de uma damnatio memoriae específica, mas de uma maneira de focar a atenção do leitor na figura de Moisés, grande salvador do povo hebreu.

Miriam reaparece em Ex 15, 19-21:

19 Pois, quando a cavalaria de Faraó com os seus carros e os seus cava-leiros entraram no mar, Iahweh fez voltar sobre eles as águas do mar; os israelitas, porém, caminharam a pé enxuto pelo meio do mar. 20 Maria, a profetisa, irmã de Aarão, tomou na mão um tamborim e todas as mulheres a seguiram com tamborins, formando coros de dança. 21 E Maria lhes entoava: ‘Cantai a Iahweh, pois de glória se vestiu; ele jogou ao mar cavalo e cavaleiro!’

O versículo 19 parece ser um resquício de uma manipulação do texto no momento de sua redação final, pois ele é redundante com o final do capítulo 14. Temos no estado atual dois desfechos da travessia do mar dos juncos: um que termina com um canto dirigido por Moisés, outro que termina com um canto dirigido por Miriam. Serão duas versões paralelas que acabaram fusionadas na versão atual, ou uma versão seria mais antiga do que a outra? É muito difícil decidir. Mas três coisas são notáveis: o verbo que descreve a ação de Miriam no v. 21 (‘anah) supõe um canto responsório e o pronome ‘lhes’ é claramente em hebraico um pronome masculino, o que implica que Miriam não estava apenas entoando para as mulheres mas para o povo todo, e finalmente, o seu canto começa com um imperativo, ‘Cantai’. Em contraposição, em Ex 15, 1, Moisés e os israelitas não entoam3, eles apenas cantam, e o canto deles começa com um imperfeito, ‘Cantarei’.

O uso do verbo ‘entoar’ e do imperativo para começar o canto parece sugerir a seguinte interpretação. O capítulo 15 do livro do Êxodo relata um culto de louvor após a vitória sobre os egípcios, culto liderado por Miriam que entoa e manda cantar, ordem cúltica à qual os israelitas obedecem cantando ‘Cantarei’. O papel de liderança de Miriam teria sido camuflado pela trans-ferência dos v. 19-21 para o final do capítulo e a colocação de Moisés no v. 1 como iniciador do culto. Tratar-se-ia de uma clara manipulação textual para apagar a função de liderança cúltica de uma mulher na história de Israel.

A terceira atuação de Miriam se lê em Nm 12: uma revolta de Miriam e Aarão contra Moisés provoca o castigo apenas de Miriam, atingida pela

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lepra e segregada durante sete dias da comunidade. Aqui também o texto não deixa de ser problemático:

1. Maria e Aarão murmuraram contra Moisés por causa da mulher cuchita que ele havia tomado. Pois ele havia desposado uma mulher cuchita.

2 Disseram-lhe: “Falou, porventura, Iahweh, somente a Moisés? Não falou também a nós?”

... (Iahweh convoca os três à Tenda da Reunião e destaca a singula-ridade de Moisés) ...

9 A ira de Iahweh se inflamou contra eles. E retirou-se

10 e a Nuvem deixou a Tenda. E Maria tornou-se leprosa, branca como a neve. Aarão voltou-se para ela, e estava leprosa.

11 Disse Aarão a Moisés: “Ai, meu senhor! Não queiras nos infligir a culpa do pecado que tivemos a loucura de cometer e do qual somos culpados.

12 Peço-te, não seja ela como um aborto cuja carne está meio con-sumida ao sair do seio de sua mãe!”

... (Moisés suplica a Iahweh, que decreta que Miriam seja segregada por sete dias) ...

15 Maria foi segregada durante sete dias fora do acampamento. O povo não partiu antes do seu retorno.

16 Depois o povo partiu de Haserot e foi acampar no deserto de Farã

O primeiro problema do texto é o motivo da revolta de Miriam e Aarão. O v. 1 fala do casamento de Moisés com uma cuchita, mas o resto do relato mostra que a briga é outra. Trata-se mesmo de uma briga pelo poder dentro da comunidade, de um questionamento da liderança exclusiva de Moisés.

O segundo problema é a reação de Iahweh. O texto diz claramente que a ira de Iahweh é dirigida aos dois revoltados. Sendo assim, por que o castigo é reservado apenas a Miriam? Só ela se torna leprosa, castigo seve-ríssimo, pois a lepra acarretava a exclusão da comunidade por causa de sua grande facilidade de contágio. E se só Miriam foi castigada por Iahweh, por

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que Aarão pede para não infligir a culpa a “nós”? Essas incoerências podem ser explicadas por uma manipulação de um texto mais antigo, no qual os dois se rebelam e os dois são castigados. Por que tal revisão do texto? Den-tro da sociedade patriarcal, é normal que homens briguem pelo poder e a briga de Moisés e Aarão poderia talvez ser interpretada como uma briga do poder sacerdotal com o poder civil. Contudo, fica claro que uma mulher não pode brigar com homens pelo poder. Por isso a culpa de Miriam tem que ser maior do que a de Aarão e o castigo também.

O relato contém, no final, uma informação importante: “O povo não partiu antes do seu retorno”. Interpretamos essa atitude como um protesto silencioso do povo, que não concorda com o castigo de Miriam. A Bíblia, como a tradição judaica em geral, se caracteriza pelo fato de deixar trans-parecer opiniões contrárias à opinião vencedora. O protesto do povo é um exemplo dessa voz da ‘minoria’ (minoria não em número mas em poder). Como, depois de sua volta, Miriam não faz mais nada até a sua morte, mencionada brevemente em Nm 20,1, não era indispensável mencionar a ‘greve das pernas’ do povo para esperar o retorno de Miriam. Essa frase mostra o apego do povo a uma de suas líderes principais.

O mesmo apego popular à figura de Miriam aparece no livro de Miqueias (Mq 6, 4): “Sim, eu te fiz subir da terra do Egito, resgatei-te da casa da escravidão e enviei diante de ti Moisés, Aarão e Maria.” Aqui, em contradição total com o episódio da revolta de Aarão e Miriam em Nm 12, os três são colocados como três líderes sem distinção de poder. Por isso, pensamos que se trata do resgate de uma tradição popular pelo texto profético.

A mesma tradição popular favorável a Miriam pode também estar por trás de alguns textos rabínicos talmúdicos que vão no mesmo sentido que o protesto popular de Nm 12, 15 e a equiparação de Moisés, Aarão e Miriam de Mq 6, 4.

Assim, no tratado Shabbath do Talmude de Babilônia, p. 97a,4 po-demos ver que a incoerência entre “a ira de Iahweh se inflamou contra eles” e o castigo apenas de Miriam foi notada:

Nessa mesma linha:

‘E a ira do Senhor se acendeu contra eles, e ele partiu’ (Nm 12: 9) - isto ensina que Aarão também foi ferido com a doença de pele, palavras de Rabi Akiva5.

Disse-lhe Rabi Judah ben Batirahf ‘[Akiva!] De um modo ou de outro você está destinado a juízo. Se você estiver certo, a Torá o

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protegeu e você o expôs, e se você estiver errado, você calunia esse homem justo’.

Bem, não está escrito, ‘contra eles’? Está escrito apenas como uma repreensão.

Foi ensinado de acordo com a opinião de que Aarão, também foi ferido com a doença de pele: ‘E Arão voltou-se para Miriam e eis que ela estava aflita com a doença da pele’ (Nm 27:10): Significa que ele voltou-se de sua doença de pele [para a dela] (NEUSNER, 2005). Em vez de tentar justificar o castigo de Miriam e a impunidade de Aarão, Akiva usou os recursos da exegese rabínica para explicar que os dois foram castigados apesar do texto bíblico aparentemente dizer o contrário, apontando um detalhe do texto que parece sustentar a interpretação do castigo igual para os dois rebeldes.

Um outro trecho do Talmude de Babilônia (tratado Ta’anith, p. 9a) vai no mesmo sentido que o versículo do livro do profeta Miqueias, ao equiparar em dignidade Moisés, Aarão e Miriam:

Replicam: Rabi Yosé ben Rabi Judá diz: ‘Três bons administradores se levantaram para Israel. Eles são: Moisés, Aarão e Miriam. E três bons dons foram dados por meio deles e são eles: o poço, a nuvem e o maná’ (NEUSNER, 2005).

Contudo, não se deve generalizar, e a literatura rabínica contém também trechos que tentam ‘recolocar Miriam no seu devido lugar’ de submissão feminina. Tentando justificar o duplo canto de vitória depois de travessia do mar (Ex 15), um comentário rabínico tradicional, a Mekhilta de Rabi Ishmael diz:

E Miriam cantou para eles. A Escritura diz que, assim como Moisés disse o canto para os homens, assim Miriam disse o canto para as mulheres: ‘Cantai ao Senhor, pois Ele é altamente exaltado’ etc. (LAUTERBACH, 2004, p. 221).

O papel de liderança de Miriam que transparece na Bíblia é reduzido a uma liderança sobre as mulheres israelitas e não sobre o povo como um todo, sem se preocupar com o pronome masculino plural de Ex 15,21.

O estudo dos textos bíblicos e rabínicos sobre Miriam nos mostra uma figura em tensão, o que não deixa de ser normal se a gente leva em

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conside-ração o processo de redação progressiva da Bíblia, de um lado, e a prática da discussão rabínica que não esconde as vozes discordantes, de outro. Do lado conservador machista, temos uma Miriam apresentada positivamente quando ela exerce papéis ‘normais’ de uma mulher (cuidando do irmãozinho Moisés para garantir sue sobrevivência, liderando as mulheres, e só as mulheres, na celebração da vitória sobre os egípcios). Do outro lado, temos resquícios tex-tuais que mostram que a tradição foi transformada para construir essa figura de mulher modelo e indícios de uma tradição popular diferente que coloca Miriam no mesmo patamar que Moisés e Aarão; temos também uma certa leitura crítica rabínica, como sempre muito atenta aos detalhes do texto, e que não hesita em questionar o texto bíblico na sua incoerência.

CONCLUSÃO

A Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Sabemos que até hoje tal universalidade incondicional está longe de ser aplicada e que, com frequência, as mulheres desfrutam de uma dignidade e de direitos amputa-dos. Sabemos também que as religiões, inclusive pelos seus textos sagrados, têm um papel determinante no tratamento igual ou desigual das mulheres.

Buscando na literatura sagrada uma resposta a suas perguntas sobre valores os fiéis de todas as religiões se deparam com textos problemáticos que uma leitura ingênua pode transformar em armas poderosas de opressão. Na tradição judaico-cristã, a Bíblia não constitui um caso diferente. Nos seus textos normativos, ela veicula ideias e normas que fazem da mulher um ser humano inferior, incapaz de ser sujeito de sua própria vida. Isso se vê claramente nas leis que tratam das relações sexuais ilegítimas, nas quais se vê que a sexualidade da mulher não lhe pertence e que, muitas vezes, a mulher vítima é transformada em mulher culpada. Também figuras femininas de destaque, como Miriam, são apresentadas de maneira ambígua: elas são enaltecidas quando correspondem ao seu suposto papel na sociedade e castigadas quando se rebelam.

Para evitar que uma leitura ingênua dos textos reforce a opressão e a submissão da mulher, a única saída é sem dúvida a difusão ampla de uma leitura crítica da Bíblia, assim como de todo texto sagrado. Isso não impli-ca nenhum desrespeito a qualquer tradição religiosa, como mostra bem o exemplo dos rabinos que traduziam o seu respeito pelo texto bíblico numa leitura atenta e crítica que não se deixasse enganar pelas certezas aparentes na superfície, mas sempre procuravam escavar mais fundo na procura do sentido mais exato.

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Notas

1 As citações bíblicas seguem a última edição da Bíblia de Jerusalém ( 2002).

2 Fizemos essa experiência durante um seminário sobre Literatura sagrada e Direitos Humanos no

programa de pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Católica de Goiás, no qual as principais ideias do presente artigo foram discutidas e a resposta dos colegas foi mesmo unânime: a vítima é a mulher.

3 A Bíblia de Jerusalém traduz por ‘entoar’ dois verbos diferentes do texto hebraico, escondendo assim

a diferença de papel entre Moisés e os israelitas no v. 1 e Miriam no v. 21.

4 O Talmude de Babilônia cita-se comumente pelo nome do tratado seguido pela tradicional paginação

da edição de Daniel Bomberg (século 16), o que possibilita achar o texto ou a tradução em qualquer edição impressa ou eletrônica. Essa paginação se faz, na verdade, por fólio (frente = a, verso = b).

5 Rabi Akiva (ca. 50 – ca. 135 d. C.), figura importante do rabinismo, considerado com um dos

‘fundadores’ do judaísmo rabínico.

6 Outro rabino do período tanaítico, período assim chamado porque os rabinos desse período (70-

200 d.C.) são chamados em aramaico de taná (literalmente, ‘repetidor’). A palavra aramaica taná é aparentada à palavra hebraica Mixná.

Referências

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.

FINKELSTEIN, J. J. Sex Offenses in Sumerian Laws. Journal of the American Oriental Society, v. 86, n. 4, p. 355-372, out./dez. 1966.

HALLO, William W. (Ed.). The Context of Scriptures II: Monumental Inscriptions from the Biblical World. Leiden: Brill, 2000.

LAUTERBACH, Jacob Z. (Ed.). Mekhilta de-Rabbi Ishmael; Philadelphia: Jewish Publication Society, 2004.

NEUSNER, Jacob. The Babylonian Talmud: a translation and commentary. Peabody: Hendrickson Publishers, 2005.

PRESSLER, Carolyn. Violência sexual e lei deuteronômica. In: BRENNER, Athalya (Org.). De Êxodo

a Deuteronômio a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 111-122.

Abstract: this article aims to study violence against women in the Bible not as something told, but as an intrinsic component of the sacred text. It shows how legal texts that seem to deal with sexual violence against women do in fact violence to the woman depriving her of the mastery of her sexuality and blaming her whenever possible for the violence committed against her. It also shows, through the figure of Miriam, sister of Moses, the symbolic violence against women that often characterizes the redaction process of the sacred text.

Key words: violence against the woman, feminine sexuality, rape, adultery, Miriam, female leadership

CLAUDE DETIENNE

Doutorando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Licenciado em Filologia Clássica e em Filologia e História Orientais pela Universidade Católica de Louvain, mestre em Ciências da Religião.

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