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História da educação: textos de apoio

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Academic year: 2021

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Nelson Veríssimo

(org.)

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

TEXTOS DE APOIO

Universidade da Madeira

Funchal

2017

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- 2 - Nelson Veríssimo, 1955-, org.

História da Educação: textos de apoio

Funchal: Universidade da Madeira, 2017 ISBN 978-989-8805-18-8

2.ª edição revista e ampliada

Capa:

Escola Romana. Aula de leitura (Das Schulrelief aus Neumagen). Relevo com cena escolar, dos finais do séc. II A. D., proveniente de um monumento funerário romano situado em Neumagen. Rheinisches Landesmuseum Trier (Museu Estatal Renano, de Trier, Alemanha; PEREIRA, Maria Helena da Rocha – Estudos de História da Cultura

Clássica: II volume: Cultura Romana. 4.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

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- 3 - Índice 4 Nota prévia 5 Éric Weil 15 Homero 18 Xenofonte 19 Platão 32 Protágoras 33 Tucídides 34 Aristóteles 39 Cícero 40 Horácio 41 Quintiliano 47 Santo Agostinho 49 Baldesar Castiglione 53 Lutero 63 Ratio Studiorum 68 Juan Luis Vives 69 Jerónimo Osório 74 Michel de Montaigne 101 Coménio 106 John Locke 112 Jean-Baptiste de La Salle 114 Fénelon

120 Luís António Verney

122 Alvará régio de 28 de Junho de 1759 128 Jean-Jacques Rousseau

131 Immanuel Kant 142 Condorcet

151 Constituição Política da Nação Portuguesa, de 1822 151 Carta Constitucional de 1826

152 Reforma da Instrução Secundária: a criação dos Liceus 154 Ensino industrial

155 António Feliciano de Castilho 159 João de Deus

161 Ana de Castro Osório 163 John Dewey

164 Adolphe Ferrière: 30 características da Escola Nova 169 Maria Montessori

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Nota prévia

A presente antologia sobre Educação destina-se, exclusivamente, às aulas das unidades curriculares de História da Educação e História e Filosofia da Educação lecionadas na Universidade da Madeira, com o objetivo pedagógico de promover, em especial, o estudo de ideias e ideais educativos ao longo dos tempos, através da análise de textos, selecionados e disponibilizados sem quaisquer fins comerciais.

Agradecemos a dedicada colaboração da Dr.ª Anabela Gomes na digitação da maioria dos textos desta coletânea.

Nelson Veríssimo Faculdade de Ciências Sociais Universidade da Madeira

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Éric Weil (Parchim, Mecklenburg, Alemanha, 1904 – Nice, França, 1977)

WEIL, Éric – In POMBO, Olga (sel., trad. e pref.) – Quatro textos excêntricos. Lisboa: Relógio D'água, 2000. p. 55-70.

[1967]

A EDUCAÇÃO ENQUANTO PROBLEMA DO NOSSO TEMPO I

O mínimo que se pode dizer é que os problemas contemporâneos relativos à educação têm sido fastidiosamente repisados. Todas as pessoas sensatas reflectem intensamente, ou pelo menos consagram muito do seu tempo, a questões relativas ao ensino superior, secundário e elementar, à educação destinada às crianças, aos adolescentes e adultos, às nações bárbaras e civilizadas, aos cidadãos e estados de todo o tipo, aos membros das assembleias legislativas, aos administradores, aos quadros sindicais et cætera. Além disso, existem associações privadas, Ministérios da Educação, encontros, simpósios que se ocupam destas questões; há a UNESCO; há os defensores dos sagrados valores nacionais. Que mais haverá ainda para dizer sobre um assunto a propósito do qual, se a probabilidade estatística é válida neste domínio, já tudo deve ter sido dito e redito muitas e muitas vezes?

Contudo, talvez seja possível fazer ainda uma observação em favor da oportunidade de retomar, uma vez mais, esta questão. A experiência adquirida em numerosos domínios indica que uma questão não se torna necessariamente mais clara por ter sido discutida em toda a parte e por muito tempo. Pelo contrário, quando o debate se prolonga ao longo de um certo número de anos, constata-se com frequência que há inúmeras receitas que são propostas mas que, muitas vezes, se deixa de saber quais os problemas que essas respostas era suposto resolverem. Sem sermos exageradamente pessimistas, poderíamos pensar que foi exactamente isso que nos aconteceu – e não apenas no domínio da educação. Uma vez mais, as árvores teriam

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encoberto a floresta. Numa situação tão desagradável como esta, o melhor é sempre regressar à atitude do perfeito ingénuo e, como o velho marechal Foch, perguntar: mas afinal, de que se trata?

De que se trata na educação? O século XIX tinha uma resposta: a educação é a instrução. Bem entendido, a instrução não era sempre suficiente. Para lá do ideal da pura instrução, em países como a Inglaterra, a França e a Alemanha, subsistia um outro ideal. O gentleman, o homem do mundo, der edle Charakter (ou ainda – e a alternativa é significativa – der grosse Mann) não podiam ser resultado da instrução. E mesmo quando se exigia instrução (o que nem sempre acontecia) essa não era a condição prévia principal. Em todo o caso, para as massas, os «Three R’s»1 eram

considerados suficientes. De facto, eram mais do que suficientes. Não porque se pensasse que o homem vulgar pudesse dispensá-los, mas porque não havia nem uma oferta suficiente deste tipo de instrução nem mesmo uma suficiente procura.

Creio no entanto que não deveríamos abandonar com demasiada ligeireza o ideal da educação pela instrução. Infelizmente, para uma grande parte da humanidade contemporânea este ideal ainda permanece um ideal. É certo que, nos países ocidentais, praticamente toda a população é instruída. Também é certo que, por vezes, somos tentados a confessar que nem por isso a marcha do mundo se tornou mais harmoniosa ou as pessoas de convívio mais fácil. Mas os homens que, no decurso do século XIX – e também do século XVIII, para dar a cada um o que lhe é devido – insistiram na necessidade da educação popular, nunca acreditaram que a instrução fosse um fim em si mesma. O que pensaram e ensinaram foi que os analfabetos seriam sempre seres violentos, incapazes de compreender os seus próprios interesses racionais, que não teriam oportunidades reais, que nunca poderiam ser membros úteis, e por consequência prósperos, numa sociedade moderna, industrial e racional. Eles não admitiriam nunca algo que, hoje em dia, é por todo o lado proclamado como uma verdade histórica e evidente, a saber, que durante as épocas por eles audaciosamente designadas como idade das trevas e idade bárbara, todas as coisas estavam bem ordenadas, cada homem no seu lugar natural, cada instituição cumprindo um papel cordato e satisfatório.

Por outro lado, esses homens também nunca afirmaram que a instrução fosse capaz de satisfazer todas as nossas necessidades: a instrução era uma condição necessária, mas não suficiente. Condição de quê? Do aparecimento de um homem novo, capaz e desejoso de desempenhar o seu papel na sociedade moderna, preparado e apto para julgar todos os problemas inerentes à vida da comunidade a que pertence, satisfeito com a sua posição porque consciente da dignidade inerente e

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da necessidade social do seu trabalho, convencido do carácter racional da ordem existente, mas determinado a melhorar essa ordem e a sua posição nela. Operários, camponeses, membros das classes médias e superiores compreenderiam que ninguém pode resistir ao progresso, que a mudança é inevitável. Mudança essa que devia efectuar-se – pelo menos a longo prazo – no interesse de todos. Só homens instruídos seriam trabalhadores competentes, só trabalhadores competentes seriam capazes de destruir a resistência produzida pelos reaccionários não esclarecidos. Todos, do mais elevado ao mais baixo da escala social, deviam colaborar nesse grande projecto que tinha por nome: progresso. E, nesse sentido, cada um devia considerar-se como um operário. A instrução era o meio; o progresso, o fim.

II

Entretanto, tornou-se moda deixar de acreditar no progresso. Porquê? É uma questão difícil à qual, de momento, não tentaremos responder. Mas talvez possamos chamar a atenção para o facto de, entre aqueles que maldizem o progresso, poucos serem os que estão dispostos a deixar levar esse seu desprezo pelo progresso ao ponto de recusarem os contributos que este proporciona às comodidades da vida. Sem dúvida que a electricidade, a água canalizada, a possibilidade de viajar ou de visitar museus, de passear nas ruas sem o perigo de nos cair na cabeça o conteúdo de toda a espécie de recipientes domésticos, a certeza de se encontrar aquilo de que se necessita, ou que simplesmente se deseja, em locais determinados – nenhuma destas comodidades conduz à felicidade, no sentido mais profundo (ou mais elevado) do termo. No entanto, estes pequenos nadas colocam-nos na situação daquele homem rico que dizia que o dinheiro não tornava o homem feliz, mas que só quem tivesse dinheiro em abundância estava em condições de escolher a infelicidade preferida.

O facto, em toda a sua simplicidade, é que ninguém quer renunciar ao progresso, ao simples e vil progresso material. Ora, pelo contrário, coloca-se hoje o problema de saber como fazer chegar o progresso a todos os que dele não beneficiam ainda. Por consequência, a instrução continua a ser uma das tarefas essenciais do nosso tempo: as pessoas são pobres porque não têm instrução, porque não conhecem os meios e os recursos de uma sociedade moderna, industrial e racional e, por outro lado, é porque são pobres que têm falta desses meios. Aquilo que as nossas comunidades ocidentais conquistaram nas três ou quatro últimas gerações tem que ser alcançado pelo resto da humanidade. As comunidades que ficaram para trás pretendem beneficiar dos frutos da tecnologia moderna e o preço que vão ter que pagar para lá chegar é a aquisição, muitas vezes à revelia das suas próprias tradições, das capacidades e do saber necessários para edificar uma indústria, formar operários,

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engenheiros, professores de ciências, administradores, funcionários. Para obter os mesmos resultados, essas comunidades vão ter que modificar, talvez mesmo mudar radicalmente, as suas concepções e os seus valores fundamentais, exactamente como nós o tivemos que fazer. Sem dúvida que, pela nossa parte, teremos também que melhorar o nosso próprio sistema de instrução, espalhar o saber ainda mais longe, elevando ao mesmo tempo o nível geral, produzir cada vez mais e mais técnicos, administradores e especialistas em todos os domínios. O progresso nunca tem fim porque, uma vez aceite como tal, a ideia de um fim do progresso torna-se uma contradição nos seus próprios termos. Tanto os povos atrasados como os avançados terão necessidade, por mais algum tempo, sempre de mais e mais instrução pela simples razão de que uns e outros querem sempre mais e mais frutos do progresso. Pode esse querer ser incorrecto. Mas o facto é que querem. Podem os povos estar prontos a proclamar que há valores mais importantes que os valores do progresso. Mas isso não significa que estejam prontos a pensar que esses valores superiores os obriguem a rejeitar os menos elevados.

Se, portanto, a instrução é uma necessidade, o problema desaparece. É certo que as dificuldades continuam. Mas são de ordem meramente técnica. Sabemos perfeitamente o que é necessário fazer se quisermos realmente resolvê-las. Falta quem ensine; os alunos e os pais nem sempre escolhem as especialidades socialmente mais úteis; às vezes, recusam mesmo categoricamente a aquisição da pouca instrução elementar a que a lei obriga. Porém, se uma sociedade decidisse realmente modificar este estado de coisas, seria perfeitamente capaz de o fazer. Dai bons salários e tereis bons mestres. Podemos talvez ficar por aqui, uma vez que os nossos dirigentes sociais e políticos parece terem já começado a compreender este ponto.

Uma única coisa poderia vir ainda perturbar-nos. É certo que se realizou aquilo que os apóstolos da educação popular – de uma educação popular sempre mais elevada – profetizaram. As nações que primeiro compreenderam essa mensagem deram realmente passos de gigante na estrada do progresso e os novos aderentes obviamente também compreenderam a lição. Tornámo-nos calculadores civilizados, seres racionais com plena consciência dos nossos interesses pessoais, com uma vida muito melhor do que a dos nossos antepassados. Temos hoje acesso a bens e prazeres de que os antigos não podiam sequer suspeitar. Somos admitidos, ou melhor, cordialmente convidados, para todas aquelas manifestações do espírito e da alma que, dantes, eram privilégio do gentleman, do homem de bem, do gebildete Mensch. É forçoso reconhecer que hoje isto só é verdade nas nações avançadas. Mas é mais do que provável que esta situação venha a prevalecer em toda a parte num futuro não muito afastado. Grande número de seres humanos estão esfomeados, não têm tempo para si próprios, não conhecem os meios e as comodidades da vida moderna. Mas a fracção da humanidade que dispõe desses bens é já relativamente importante e não

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há dúvida que os restantes acabarão por obter os mesmos benefícios. De uma maneira geral, o progresso é um facto e irá continuar. O tempo consagrado aos lazeres ocupará uma parte cada vez maior na vida humana. Pode-se pois dizer que a instrução conduziu à liberdade, se entendermos por liberdade a possibilidade dada ao homem de fazer o que quer, na medida em que isso não interfira com a liberdade do seu vizinho, sendo que o nosso homem pode dispor do seu tempo sem que, para isso, tenha que renunciar aos bens deste mundo e à parte que lhe cabe no produto social. Os apóstolos do progresso tinham razão.

Então, o que é que nos pode ainda perturbar? Muito simplesmente, o facto de termos obtido o que nos prometeram e desejámos e o facto de, mesmo assim, não estarmos ainda completamente satisfeitos com os resultados. Podemos comer quantos bolos quisermos, mas eis que, ou já não somos as crianças que fomos outrora, ou o bolo já não tem o mesmo sabor. Não que o queiramos desperdiçar. Recordamo-nos muito bem do tempo em que não Recordamo-nos podíamos satisfazer sequer com pão duro. Mas vejamos: comer sempre bolos de pastelaria? Sempre de pastelaria? Ainda que o bolo seja cada dia melhor e que nos dêem fatias cada vez maiores, ainda que seja bom ter bolos para comer, parece que já nada nos satisfaz.

III

Podemos porventura chamar tédio a isto. Normalmente, considera-se o tédio com um olhar desaprovador. Se alguém se queixa de tédio não o tomamos muito a sério. Que se ocupe, dizemos nós de bom grado, que faça alguma coisa para sair do seu tédio. Mas, se uma civilização inteira for atingida pelo tédio, este pode tornar-se uma coisa efectivamente séria até porque, nesse caso, não existiria ninguém para dizer aos outros por que razão se aborreciam e o que seria necessário fazer para remediar a situação. Se, obtido tudo o que razoavelmente se pode desejar, as pessoas estão ainda insatisfeitas e se todo o mundo partilha do mesmo sentimento de insatisfação, pode então desencadear-se o recurso a coisas não razoáveis. Estamos todos certamente de acordo num ponto, a saber: que a violência é o único verdadeiro passatempo.

Ora, é exactamente isto que parece estar a produzir-se nas sociedades mais avançadas do nosso tempo, se bem que, por agora, numa escala reduzida. Nos E.U.A., há jovens brilhantes e bem-educados que torturam e matam mendigos nas praças públicas para se divertirem; na U.R.S.S., há filhos e filhas de dignitários que roubam para tirar aquilo de que não têm qualquer necessidade. Por outro lado, o tédio pode engendrar uma espécie de violência que se vira contra o próprio. Homens de prósperos negócios e funcionários com êxito nas suas carreiras suicidam-se, ou tentam a morfina, o sexo, o álcool, as religiões estranhas. Procura-se por vezes uma explicação

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para este facto no excesso de trabalho e na fadiga nervosa. Mas, longe de refutar a nossa tese, esta explicação vem antes confirmá-la: por que outra razão um homem que tem tudo aquilo de que necessita se deixaria cair numa tal situação senão porque, sem a droga do excesso de trabalho, se arrisca a morrer de tédio? O fenómeno não tende a diminuir de importância. Podem tornar-se mais raros os crimes crápulas cometidos com violência, as tentativas ilegais de adquirir bens legais. Mas a violência desinteressada, aquela que é, ela mesma, o seu próprio fim, quer seja dirigida contra os outros quer contra si mesmo, está a espalhar-se cada vez mais. A percentagem não é a mesma em todo o lado e, aqui e além, as tradições servem de dique. Mas servir de dique é uma ocupação fastidiosa, particularmente quando os diques estão a desaparecer e os construtores de diques são cada vez mais raros.

A situação é inquietante. A sociedade pode esforçar-se, muitas vezes com êxito, para fazer compreender ao potencial criminoso – digamos, ao criminoso em geral – que as vias legais conducentes à abundância são mais seguras; que é do seu próprio interesse conduzir-se de forma a não desencadear sobre si a violência defensiva da sociedade. Mas o interesse particular tem muito poucas hipóteses de prevalecer sobre o tédio que nasce da insatisfação de um interesse satisfeito. O interesse pessoal tornou-se desinteressante (o que, em grande parte, poderá explicar a moda literária que vê na violência desinteressada a verdadeira realização da vida humana). Devemos, por consequência, tentar compreender a natureza deste tédio e perguntarmo-nos se ele não está, de alguma maneira, ligado à educação.

IV

Se fosse necessário reduzir os fins da educação a um só, este seria o de, precisamente, dar ao homem a oportunidade de levar uma vida que o satisfaça (enquanto ser racional, isto é, na condição de que cada um procure a sua própria satisfação sem impedir o seu vizinho de fazer outro tanto). A educação surge assim como uma questão de oportunidade. Mas «oportunidade» é um termo ambíguo neste contexto. Os educadores antigos queriam atingir precisamente este fim – e no entanto fomos confrontados com o problema do tédio precisamente porque essas pretensões obtiveram êxito. Muitos são os que têm a oportunidade de construir uma vida satisfatória se se entende por isso que nenhum obstáculo exterior os impede. Mas são poucos aqueles que têm a oportunidade de aproveitar esta oportunidade. A razão é evidente: se quisermos construir para nós próprios uma vida boa, devemos ser nós próprios a construí-la, segundo os nossos próprios planos; devemos ser o arquitecto da nossa própria casa, não podemos contactar especialistas para nos fazerem o trabalho. Se um vizinho nos pretendesse vender ou alugar a sua casa, até mesmo se nos

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quisesse oferecê-la, ela seria sempre feita ao seu gosto, não ao nosso, e, como tal, não nos agradaria.

Ora, aqui, a instrução não nos pode ajudar. Sem ela – não é demais repeti-lo – não existiriam materiais de construção, nem tempo, nem vontade de construir. Mas, viver sobre um amontoado de tijolos e de vigas, rodeado de todas as espécies de utensílios e de máquinas, sem a menor ideia do que se vai fazer com esses materiais, é igualmente desagradável. A instrução diz-nos como proceder para fazermos o trabalho, mas não nos indica como será a obra final. Podemos jogar com as pedras e a argamassa mas, ou levamos o jogo de tal modo a sério que, por medo inconsciente de ter que reconhecer que se trata de um jogo, nos esgotamos nesse trabalho ou rapidamente descobrimos que se trata de um jogo e, nesse caso, somos tentados a regozijarmo-nos com isso. Uma guerra, uma revolução, uma catástrofe maior podem então aparecer como preferíveis à simples continuação das coisas tais como estão, uma vez que estas se tornaram absolutamente desprovidas de interesse. E não se veja nesta comparação uma invenção fantasiosa. Pensemos quanto os terrores e os pânicos da nossa época contêm de desejos reprimidos e antecipações deliciosas (não confessados mas inconscientes); observemos a forma como, em tempo de guerra e violência, diminui a curva dos casos de doenças mentais, provavelmente porque se

passa enfim qualquer coisa que interrompe a mediocridade da vida.

Por consequência, para além da instrução e acima dela, há lugar para a educação. Não que os antigos educadores estivessem errados. Simplesmente, esqueceram-se de um facto: porque pensavam sempre nos males que oprimiam a grande maioria dos seus contemporâneos, não reflectiram naquilo que podia dar significado, valor e sentido à sua vida. Porque eles próprios certamente levavam uma vida sensata, partiam compreensivelmente do pressuposto de que os outros, aqueles que não tinham a mínima oportunidade de conduzir a sua própria vida, teriam feito como eles se lhes tivesse sido permitido imitá-los. Desse modo, não deram o devido valor àquilo que os seus alunos mais teriam necessitado caso fossem livres: o conhecimento do que poderiam fazer com a sua liberdade. Acreditavam que esse saber emergiria naturalmente em cada um. Não pensaram nunca que é possível ficar paralisado por se ter demasiado tempo livre à sua disposição.

Está hoje fora de dúvida que os planos e projectos dos antigos educadores se modificaram. Mas, no entanto, continuamos a proceder em conformidade com as orientações que eles traçaram. Inventámos novos estímulos para incentivar a aprendizagem; introduzimos métodos sofisticados para estudar; abrimos ao público lugares onde cada um pode escolher livremente a sua alimentação numa lista rica de ofertas. Mas, a cozinha está no andar inferior e os clientes nunca aí vão (a menos, bem entendido, que queiram tornar-se cozinheiros), porque nunca são convidados a visitar a cozinha, ou sequer informados dos procedimentos culinários. Os clientes aprendem

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assim a avaliar – digamos, a distinguir – uma alimentação boa, média ou má. Mas não aprendem a cozinhar um prato ou a descobrir os seus desejos mais pessoais em matéria de cozinha. São-lhes oferecidas todas as espécies de ideais, de maneiras de viver, de filosofias, de sistemas jurídicos e políticos, de tabelas de valores. Mas, ao fim de um certo tempo, todos esses pratos maravilhosos parecem ter o mesmo sabor – o cliente perde o apetite e fica entediado.

Pode parecer «natural» dizer que o remédio consiste em instruir os homens no uso da sua liberdade. A resposta é natural para nós, velhos mestres e bons alunos de mestres ainda mais velhos. Mas é uma resposta supremamente ridícula: é que não se pode instruir ninguém no uso da liberdade. Tudo o que a instrução pode fazer é tornar a liberdade possível. Poderíamos então dizer que nos cabe tornar a liberdade razoável e, nesse caso, que deveríamos encontrar os meios para levar aqueles que educamos a pensar por sua própria conta nos dois sentidos que esta expressão possui: por sua própria conta, porque terão de ser eles a construir o seu próprio pensamento e porque, para eles, pensar deve ter um sentido e não apenas constituir um valor comercializável.

Será que isto se pode fazer? A tarefa não é impossível. Ela exige a educação, qualquer coisa de radicalmente diferente da instrução. Uma educação que não seria positiva mas negativa, que não mostraria onde reside o sentido mas onde ele não pode estar. Uma educação que obrigaria cada um a admitir a sua perplexidade, o seu tédio, o seu desespero – não a confessá-lo publicamente a uma autoridade ou a um especialista, mas a confessar a si mesmo que está à procura de qualquer coisa que não tem e que deseja mais do que tudo no mundo. Não há uma impossibilidade inerente a esta tarefa, nem para o educador, nem para o aluno. É claro que não é tarefa fácil. Mas, se fosse fácil, não valeria a pena ser uma tarefa. Embora, num primeiro momento, a utilidade social do indivíduo pudesse diminuir, a sociedade moderna poderia tornar-se mais eficiente se permitisse a irradicação da insegurança fundamental e da violência escondida que a caracterizam. As tensões sociais e internacionais poderiam diminuir. À humanidade poderia ser revelado algo que ela quase esqueceu, a saber, que o pensamento é em si mesmo uma grande e bela coisa, que o sentimento é nobre quando não é adulterado pelo sentimentalismo e pelo desejo de posse e que, quando ousamos olhá-lo, o mundo é belo.

Que não se pense que isto pode ser atingido sem a instrução. Nada nas páginas precedentes deveria permitir pensar que a instrução é destituída de valor e que a educação é possível sem ela. A instrução é necessária para que a sociedade possa progredir e oferecer mais oportunidades de aceder à liberdade e de um maior número de pessoas dela fazer uso. Só a instrução pode dar a experiência da verdade objectiva, o respeito pela universalidade dos direitos, dos deveres e dos valores, a modéstia intelectual, elementos que são indispensáveis se se pretende que a liberdade não

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permita criar uma situação na qual se tornaria de novo actual aquilo que o velho Hobbes pensava da natureza humana, bem assim como as receitas que propunha. É um facto – e um facto pouco agradável – que nascemos egocêntricos, violentos, egoístas e que só a instrução nos domínios do conhecimento e das boas maneiras, nos transforma em seres humanos, quer dizer, em seres cuja vida não consiste apenas na luta pela sobrevivência, mas que, legitimamente, procuram libertar-se dos constrangimentos que a natureza humana e todas as outras espécies de violência natural exercem sobre eles. Porém, uma vez ganha a batalha da instrução, o problema de uma educação para a liberdade adquire estatuto de primeiro plano.

Não estamos perante um problema novo. Se ele nos parece como pouco familiar é simplesmente porque as circunstâncias se modificaram desde a época em que surgiu pela primeira vez. Formulado do ponto de vista do historiador, o nosso problema é o problema central da filosofia grega. Que procuraram filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles, senão um conteúdo para a vida do homem livre, do homem que não estava constrangido a trabalhar para viver ou a combater a natureza com as suas próprias mãos? O que é penoso para nós é que os Gregos tinham escravos e nós temos máquinas. Quer dizer, aquilo que, no tempo dos Gregos, era um problema para uma pequena elite, transformou-se – ou vai transformar-se em breve – num problema para todo o género humano. É impossível aceitar as soluções gregas que pressupõem condições que já não existem e que nunca mais se poderão voltar a dar. Mas, aquilo que os Gregos tentaram talvez nos possa ajudar na nossa procura. Eles perceberam de forma muito clara que os homens livres que se esquivam às responsabilidades que a liberdade implica não poderão jamais ser felizes nem continuar livres. E nisto não se enganaram. A Grécia chegou ao fim – e não foi um fim feliz – porque quem está em condições de assumir a sua liberdade tem necessidade de um mestre. Todas as comunidades que põem a eficácia acima de tudo e consideram a liberdade como um brinquedo acabam por ficar submetidas a um mestre. A instrução e o progresso material são condições prévias indispensáveis. Quando as transformamos num fim, é mesmo possível que se não destruam por si mesmas. Mas podem ser destruídas pelo tédio e pelo desespero. Enquanto o progresso não tiver reduzido as diferenças existentes entre os níveis de vida de comunidades avançadas e atrasadas, enquanto houver tarefas urgentes que tenham que ser realizadas por intermédio de avanços técnicos, de instrução positiva, de organização racional, o perigo não está iminente. Mas, por mais impressionantes que sejam, os perigos mais graves não são necessariamente as fricções e os conflitos internacionais. O perigo futuro poderá traduzir-se numa ameaça muito maior: o perigo de uma humanidade liberta da necessidade e do constrangimento exterior mas impreparada para dar conteúdo à sua liberdade. Neste sentido, não seria exagerado afirmar que não existe nenhum problema mais importante, mais urgente, que o da educação. E os nossos

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sucessores podem vir a ser incapazes de o resolver se demorarmos demasiado tempo e se, desde já, não reflectirmos suficientemente sobre esse problema. Podem mesmo vir a ser incapazes de ver o problema e de tomar consciência daquilo que já vem mal de trás – exactamente da mesma maneira que a filosofia grega, nos seus últimos momentos, deixou de procurar uma resposta válida para todos os homens livres e para toda a comunidade de homens livres e apenas procurou encontrar consolação para os raros indivíduos que continuaram a pensar que tudo tinha acabado mal. Ela renunciou assim a perceber que era possível, ou teria sido possível, encontrar um remédio.

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Homero (séc. VIII a. C. ?)

HOMERO – Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2005. p. 192. [séc. VIII a. C.]

Por fim tomou a palavra o velho cavaleiro Fénix, rompendo em lágrimas, pois muito receava pelas naus dos Aqueus:

“Se no teu espírito lançaste o regresso, ó glorioso Aquiles, e não estás disposto a repelir das naus velozes o fogo ardente, uma vez que a cólera se abateu sobre o teu coração,

como então, meu querido filho, é que vou ser aqui deixado, sem ti? Foi contigo que me mandou o velho cavaleiro Peleu naquele dia em que da Ftia te mandou a Agamémnon, criança que nada sabias da guerra maligna

nem das assembleias, onde os homens se engrandecem. Por isso ele me mandou, para que eu te ensinasse tudo, como ser orador de discursos e fazedor de façanhas. Assim, querido filho, não quereria ser aqui deixado por ti, nem que um deus se dispusesse ele próprio a despir-me da velhice e a fazer de mim um jovem,

como quando primeiro deixei a Hélade de belas mulheres, fugindo do conflito com meu pai, Amintor, filho de Órmeno, [...]

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HOMERO – Odisseia. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2003. p. 34-35. [séc. VII a. C.]

Cantava para eles o célebre aedo, e eles estavam sentados em silêncio a ouvir. Do triste regresso dos Aqueus cantava, do regresso que de Tróia Palas Atena lhes infligira.

De seus altos aposentos ouviu o canto sortílego a filha de Icário, a sensata Penélope.

E desceu da sua sala a escada elevada,

não sozinha, pois duas criadas com ela seguiam.

Quando se aproximou dos pretendentes a mulher divina, ficou junto à coluna do tecto bem construído,

segurando à frente do rosto um véu brilhante. De cada lado se colocara uma criada fiel. Chorando assim falou ao aedo divino:

“Fémio, conheces muitos outros temas que encantam os homens, façanhas de homens e deuses, como as celebram os aedos. Uma delas canta agora, enquanto estás aí sentado; e que eles em silêncio bebam o seu vinho. Mas cessa já esse canto tão triste, que sempre no meu peito o coração me despedaça,

visto que em mim está entranhada uma dor inesquecível. Pois vem-me sempre à memória a saudade daquele rosto, do marido a quem toda a Hélade e Argos celebram.”

Tal resposta deu à mãe o prudente Telémaco:

“Minha mãe, por que razão levas a mal que o fiel aedo nos deleite de acordo com a sua inspiração? Não são culpados os aedos, mas Zeus: aos homens que por seu pão trabalham estabeleceu o destino que entendeu.

Não é justo levarmos a mal que ele cante a desgraça dos Dânaos. Pois os homens apreciam de preferência o canto

que lhes pareça soar mais recente aos ouvidos. Que o teu espírito e o teu coração ousem ouvir. Não foi só Ulisses que perdeu o dia do retorno em Tróia; também pereceram muitos outros.

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aos teus lavores, ao tear e à roca; e ordena às tuas servas que façam os seus trabalhos. Pois falar é aos homens

que compete, a mim sobretudo: sou eu quem manda nesta casa.”

Penélope, espantada, regressou para a sua sala e guardou no coração as palavras prudentes do filho. Depois de subir até aos seus aposentos com as servas, chorou Ulisses, o marido amado, até que um sono suave lhe lançasse sobre as pálpebras Atena de olhos garços.

Por seu lado levantaram os pretendentes um grande alarido, e a todos veio o desejo de se deitarem no leito de Penélope. No meio deles foi o prudente Telémaco o primeiro a falar:

“Pretendentes de minha mãe, homens de força e violência,

por agora nos deleitemos com o banquete; e que não haja barulho da parte de ninguém, pois é bom ouvirmos um aedo como este, cuja voz na verdade à dos deuses se assemelha.

Mas amanhã cedo deveremos dirigir-nos à assembleia, para que declare sem rodeios o que tenho a vos dizer. Desta casa devereis sair. Outros festins preparai,

devorai os vossos próprios bens, em casa uns dos outros. Se no entanto vos parecer coisa boa e proveitosa

destruir sem desagravo o que a outro pertence,

destruí! Mas pela minha parte invocarei os deuses imortais e queira Zeus que não falte a devida retribuição.

Que então pereçais todos sem que haja retaliação!”

Assim falou; e todos os outros os beiços morderam

e olharam admirados para Telémaco, pela audácia com que falou.

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Xenofonte (séc. V-IV a. C.)

A educação pelos Poemas Homéricos

XENOFONTE – Banquete, Apologia de Sócrates. Trad. do grego, int. e notas Ana Elias Pinheiro. Coimbra: Faculdade de Letras – Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2008. p. 44-45, 48.

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[…] Mas agora é a tua vez, Nicérato: diz-nos lá, qual o saber de que te orgulhas? Ele respondeu:

– O meu pai, preocupado com que eu me tornasse um homem de bem, obrigou-me a aprender o Homero todo; de modo que agora seria capaz de recitar, inteiras e de cor, a Ilíada e a Odisseia.

– Ora, e não sabes – interrompeu Antístenes – que todos os rapsodos conhecem esses versos?

– E como é que não haveria de saber, se os ouço quase todos os dias? – E, por acaso, conheces gente mais estúpida do que os rapsodos? – Não, por Zeus, – disse Nicérato – acho que não.

– De facto – interferiu Sócrates –, é evidente que eles não conhecem o sentido profundo desses versos. Agora, tu pagaste bom dinheiro a Estesímbroto, a Anaximandro e a muitos outros, pelo que não desconheces nenhum dos seus valiosos ensinamentos. […]

(Banquete, III, 5-6) Depois foi a vez de Nicérato:

– Ouçam-me, por favor, no que hão-de ser melhores se seguirem os meus ensinamentos. Sabem, claro, que Homero, o mais hábil dos poetas, versou quase todos os temas humanos. Se algum de vocês quiser ser administrador, orador, general ou igualar-se a Aquiles, a Ájax, a Nestor ou a Ulisses, é só passar mais tempo comigo. É que eu sou perito em todas essas matérias.

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- 19 -

Platão (Atenas, 428 ou 427 – Atenas, 348 ou 347 a.C.)

Homero educador da Grécia

PLATÃO – A República. Int., trad. e notas Maria Helena da Rocha Pereira. 9.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 472.

[séc. IV a. C.]

– Por conseguinte, ó Gláucon, quando encontrares encomiastas de Homero, a dizerem que esse poeta foi o educador da Grécia, e que é digno de se tomar por modelo no que toca a administração e a educação humana, para aprender com ele a regular toda a nossa vida, deves beijá-los e saudá-los como as melhores pessoas que é possível, e concordar com eles que Homero é o maior dos poetas e o primeiro dos tragediógrafos, mas reconhecer que, quanto a poesia, somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encómios aos varões honestos e nada mais. Se, porém, acolheres a Musa aprazível na lírica ou na epopeia, governarão a tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do princípio que a comunidade considere, em todas as circunstâncias, o melhor.

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Alegoria da Caverna

PLATÃO – A República. Int., trad. e notas Maria Helena da Rocha Pereira. 9.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 315-322.

[séc. IV a. C.]

– Depois disto – prossegui eu – imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos «robertos» colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles.

– Estou a ver – disse ele.

– Visiona também ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objectos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados.

– Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – observou ele.

– Semelhantes a nós – continuei –. Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projectadas pelo fogo na parede oposta da caverna?

– Como não – respondeu ele –, se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida?

– E os objectos transportados? Não se passa o mesmo com eles? – Sem dúvida.

– Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam?

– É forçoso.

– E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava?

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- 21 - – Por Zeus, que sim!

– De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos objectos.

– É absolutamente forçoso – disse ele.

– Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objectos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objectos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objectos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?

– Muito mais – afirmou.

– Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objectos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?

– Seria assim – disse ele.

– E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objectos?

– Não poderia, de facto, pelo menos de repente.

– Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objectos, reflectidas na água, e, por último, para os próprios objectos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.

– Pois não!

– Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.

– Necessariamente.

– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.

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- 22 -

– É evidente que depois chegaria a essas conclusões.

– E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os outros?

– Com certeza.

– E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prémios para o que distinguisse com mais agudeza os objectos que passavam, e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo «servir junto de um homem pobre, como servo da gleba», e antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo?

– Suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de preferência a viver daquela maneira.

– Imagina ainda o seguinte – prossegui eu –. Se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol?

– Com certeza.

– E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?

– Matariam, sem dúvida – confirmou ele.

– Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomardes como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública.

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- 23 -

– Continuemos pois – disse eu –. Concorda ainda comigo, sem te admirares pelo facto de os que ascenderam àquele ponto não quererem tratar dos assuntos dos homens, antes se esforçarem sempre por manter a sua alma nas alturas. É natural que seja assim, de acordo com a imagem que delineámos.

– É natural – confirmou ele.

- Ora pois! Entendes que será caso para admirar, se quem descer destas coisas divinas às humanas fizer gestos disparatados e parecer muito ridículo, porque está ofuscado e ainda não se habituou suficientemente às trevas ambientes, e foi forçado a contender, em tribunais ou noutros lugares, acerca das sombras do justo ou das imagens das sombras, e a disputar sobre o assunto, sobre o que supõe ser a própria justiça quem jamais a viu?

– Não é nada de admirar.

– Mas quem fosse inteligente – redargui – lembrar-se-ia de que as perturbações visuais são duplas, e por dupla causa, da passagem da luz à sombra, e da sombra à luz. Se compreendesse que o mesmo se passa com a alma, quando visse alguma perturbada e incapaz de ver, não riria sem razão, mas reparava se ela não estaria antes ofuscada por falta de hábito, por vir de uma vida mais luminosa, ou se, por vir de uma maior ignorância a uma luz mais brilhante, não estaria deslumbrada por reflexos demasiadamente refulgentes; à primeira, deveria felicitar pelas suas condições e pelo seu género de vida; da segunda, ter compaixão e, se quisesse troçar dela, seria menos risível essa zombaria do que se se aplicasse àquela que descia do mundo luminoso.

– Falas com exactidão – afirmou.

– Temos então – continuei eu – de pensar o seguinte sobre esta matéria, se é verdade o que dissemos: a educação não é o que alguns apregoam que ela é. Dizem eles que introduzem a ciência numa alma em que ela não existe, como se introduzissem a vista em olhos cegos.

– Dizem, realmente.

– A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma e de um órgão pelo qual aprende; como um olho que não fosse possível voltar das trevas para a luz, senão juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado, juntamente com a alma toda, das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e da parte mais brilhante do Ser. A isso chamamos o bem. Ou não?

– Chamamos.

– A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de o fazer obter a visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na posição correcta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso.

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- 24 - – Acho que sim.

– Por conseguinte, as outras qualidades chamadas da alma podem muito bem aproximar-se das do corpo; com efeito, se não existiram previamente, podem criar-se depois pelo hábito e pela prática. Mas a faculdade de pensar é, ao que parece, de um carácter mais divino, do que tudo o mais; nunca perde a força e, conforme a volta que lhe derem, pode tornar-se vantajosa e útil, ou inútil e prejudicial. Ou ainda não te apercebeste como a deplorável alma dos chamados perversos, mas que na verdade são espertos, tem um olhar penetrante e distingue claramente os objectos para os quais se volta, uma vez que não tem uma vista fraca, mas é forçado a estar ao serviço do mal, de maneira que, quanto mais aguda for a sua visão, maior é o mal que pratica?

– Absolutamente.

– Contudo, se desde a infância se operasse logo uma alma com tal natureza, cortando essa espécie de pesos de chumbo, que são da família do mutável e que, pela sua inclinação para a comida e prazeres similares e gulodices, voltam a vista da alma para baixo; se, liberta desses pesos, se voltasse para a verdade, também ela a veria nesses mesmos homens, com a maior clareza, tal como agora vê aquilo para que está voltada.

– É natural.

– Ora pois! Não é natural, e não é forçoso, de acordo com o que anteriormente dissemos, que nem os que não receberam educação nem experiência da verdade jamais serão capazes de administrar satisfatoriamente a cidade, nem tão-pouco aqueles a quem se consentiu que passassem toda a vida a aprender – os primeiros, porque não têm nenhuma finalidade na sua vida, em vista da qual devam executar todos os seus actos, particulares e públicos; os segundos, porque não exercerão voluntariamente essa actividade, supondo-se transladados, ainda em vida, para as Ilhas dos Bem-Aventurados?

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Teoria da reminiscência (anamnese)

Ménon é um diálogo de Platão, convencionalmente incluído na 6.ª tetralogia

(Eutidemo, Protágoras, Górgias e Ménon). Questiona a possibilidade do ensino da virtude (areté).

PLATÃO – Ménon ou da Virtude. Trad., pref. e notas A. Lobo Vilela. 2.ª ed. Lisboa: Inquérito, [1984].

Sócrates – […] Assim, a alma imortal, nascida muitas vezes, tendo contemplado todas as coisas sobre a terra e na morada de Hades, aprendeu tudo quanto é possível. Portanto, não é para admirar que possua, quer acerca da virtude, quer de tudo o mais, reminiscências dos seus conhecimentos anteriores. Sendo solidária toda a natureza e tendo a alma prévio conhecimento de tudo, nada impedirá que, relembrando uma coisa qualquer (é a isto que os homens chamam aprender), encontre todas as outras, por si mesma, sempre que tenha coragem e não se canse de investigar. Com efeito, o que se chama investigar e aprender não é mais que recordar. […]

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PLATÃO – Protágoras. Trad. Ana da Piedade Elias Pinheiro. Lisboa: Relógio d’Água, 1999. p. 78-83.

Sócrates pretende saber o que é um sofista e qual o proveito do seu ensino.

– Diz-me uma coisa, Hipócrates, estás disposto agora a procurar Protágoras e a oferecer-lhe o teu dinheiro como salário por ele se ocupar de ti, mas porque é que o procuras e para te tornares o quê? Se, por hipótese, tivesses intenção de procurar o teu homónimo, Hipócrates de Cós, o dos Asclepíades, para lhe ofereceres o teu dinheiro, como salário por se ocupar de ti, se alguém te perguntasse «Diz-me, Hipócrates, estás disposto a pagar um salário a Hipócrates por ele ser o quê?», o que responderias?

– Responderia que por ele ser médico. – E para te tornares o quê?

– Para me tornar médico.

– E se tencionasses procurar Policleto, de Argos, e Fídias, de Atenas, para lhes pagares um salário por eles se ocuparem de ti, se alguém te perguntasse «Pagas esse dinheiro a Policleto e a Fídias porque achas que eles são o quê?», o que responderias?

– Responderia que porque são escultores. – E para te tornares tu o quê?

– É óbvio que um escultor!

– Muito bem! – disse-lhe eu. – Agora vamos, tu e eu, procurar Protágoras, dispostos a pagar-lhe um salário por se ocupar de ti... se os nossos bens forem suficientes para, com eles, o persuadirmos, mas, se não, a gastarmos até os dos nossos amigos. Se, por acaso, alguém por estarmos assim tão empenhados neste propósito, perguntasse: «Digam lá, Sócrates e Hipócrates, vocês têm intenção de oferecer os vossos bens a Protágoras por ele ser o quê?», o que lhe responderíamos? Que outro nome ouvimos já referir a propósito de Protágoras? Tal como de Fídias que é escultor e de Homero que é poeta, que designação ouvimos dar a Protágoras?

– Bom, costumam dizer do nosso homem que é sofista. – De modo que vamos entregar os nossos bens a um sofista? – Precisamente!

– Então, e se alguém te fizesse ainda mais esta pergunta: «E procuras Protágoras para te tornares o quê?»

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Ele corou – percebeu-se porque começava já a surgir alguma claridade – e disse:

– Se o caso é semelhante aos anteriores, evidentemente que para me tornar um sofista.

– Mas, pelos deuses! – exclamei eu. – E não terás tu vergonha de te apresentares aos Helenos na qualidade de sofista?

– Claro, Sócrates, por Zeus; isto, se for mesmo preciso que diga o que penso. – Ora bem, Hipócrates, talvez não te pareça semelhante o ensino que vais encontrar junto de Protágoras e aquele que recebeste junto dos professores das primeiras letras, de cítara e de ginástica. Com efeito, estudaste cada uma dessas disciplinas não como uma técnica, para te tornares um profissional, mas para teres cultura, como convém ao leigo e ao homem livre.

– Parece-me, precisamente, que o ensino de Protágoras é semelhante a esse. – Sabes, então, o que estás agora a ponto de fazer ou desconhecê-lo?

– Queres dizer o quê?

– Que estás a ponto de confiar a tua alma aos cuidados de um homem que é, segundo dizes, um sofista. Contudo admirar-me-ia muito se soubesses o que é um sofista. E, se o ignoras, não sabes nem a quem entregas a tua alma, nem se é uma coisa boa ou má.

– Mas, eu acho que sei – respondeu ele.

– Diz-me lá, então, o que pensas que é um sofista?

– Bem, penso que, como o próprio nome indica, é aquele que possui uma sabedoria.

– Ora bem – repliquei eu –, essa é também a definição que se dá a propósito dos pintores e dos arquitectos, que são aqueles que possuem uma sabedoria, mas se alguém nos perguntasse: «Que sabedoria possuem os pintores?», dir-lhe-íamos que a da reprodução das imagens e o mesmo dos outros. Mas, se alguém nos perguntar: «Em que é que o sofista é sábio?», o que lhe responderemos? É mestre em que ofício?

– O que diremos, Sócrates, se não que é mestre em habilitar os outros a falar? – Talvez disséssemos a verdade, mas, claro que não é suficiente, porque a nossa resposta levantaria ainda outra pergunta, sobre o assunto em que o sofista habilita os outros a falarem. Do mesmo modo como o citarista, presumo eu, habilita a que se fale sobre a matéria de que sabe, sobre a arte de tocar a cítara, não é verdade?

– É.

– Pois bem, e o sofista habilita os outros a falarem sobre o quê? – É óbvio que também sobre a arte que conhece.

– É bem provável! E que matéria é essa em que ele, sofista, é sabedor e torna sabedor o seu discípulo?

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- 28 - Em seguida, continuei eu:

– E agora? Vês o tipo de risco a que vais expor a tua alma? Se te fosse preciso confiar o corpo a algo que implicasse riscos, quer fosse bom, quer fosse mau, ponderarias durante muito tempo se o confiavas ou não e chamarias os teus amigos e familiares para te aconselhares, reflectindo durante dias a fio. Tratando-se, contudo, de algo muito mais importante que o corpo, a tua alma, na qual se sediam todas as tuas acções, boas ou más, consoante ela for boa ou má, a este propósito, não consultas nem o teu pai, nem o teu irmão, nem nenhum de nós que somos teus companheiros, para saberes se hás-de confiar ou não a tua alma a este estrangeiro recém-chegado. Antes, pelo que dizes, ouviste à noitinha que ele tinha chegado e vens, mal o dia amanhece, sem ouvires uma palavra ou um conselho sobre essa questão – se deves ou não confiar-te a ele –, disposto a gastar os teus bens e os dos teus amigos, já que decidiste, custe o que custar, frequentar a companhia de Protágoras, que não conheces – pelo que dizes – e com quem nunca falaste. Chamas-lhe sofista, mesmo parecendo não saberes o que é esse sofista, a quem estás disposto a confiar-te.

E ele, depois de me ouvir, assentiu: – Pelo que tu dizes, é o que parece.

– Pois é, Hipócrates, não achas que o sofista é uma espécie de comerciante ou retalhista de produtos, com os quais a alma se alimenta? Pois a mim é o que me parece.

– E a alma alimenta-se de quê, Sócrates?

– De ciência, creio eu – respondi-lhe. – E não é bom, meu amigo, que o sofista, elogiando os artigos que vende, nos seduza como o fazem o comerciante e o retalhista com os alimentos para o corpo. Porque esses não sabem se os produtos que trazem são bons ou maus para o corpo (antes, elogiam tudo o que vendem) e nem o sabem também os clientes, a menos que se trate, por acaso, de um professor de ginástica ou de um médico. Do mesmo modo, também aqueles que levam a ciência de cidade em cidade, vendendo-a a retalho, elogiam sempre ao interessado tudo quanto vendem, mas talvez alguns deles, meu caro, desconheçam o que é que desses artigos que vendem é bom ou mau para a alma. E o mesmo se passa também com os seus clientes, a não ser que, por acaso, algum seja médico da alma. Se, pelo menos, fizeres uma ideia do que é bom ou do que é mau, então não te fará mal comprar a ciência de Protágoras ou de qualquer outro. Mas, se não, vê bem, meu amigo, não jogues os dados à sorte, nem corras riscos em matérias tão delicadas. Porque o perigo é muito maior na compra da ciência do que na compra dos alimentos. Com efeito, ao comprares alimentos ou bebidas ao retalhista ou ao comerciante, podes transportá-los noutros recipientes, e, antes de beberes ou comeres, podes levá-los para te aconselhares, informando-te junto de quem souber, sobre se o deves comer e beber, ou não, e

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quando e em que quantidade. Assim, o perigo na compra não é grande. Pelo contrário, a ciência não se pode meter noutro recipiente; é preciso pagá-la e metê-la na alma, e, uma vez assimilada, ir para casa, ou para sofrer dissabores ou para usufruir vantagens. Examinemos, então, todas estas questões junto com outros mais velhos que nós, porque somos ainda muito novos para estarmos a discutir assuntos desta natureza. E agora, tal como começámos por planear, vamos lá ouvir o nosso homem. Ouvi-lo e conversar com outros, porque Protágoras não está lá sozinho, está lá também Hípias de Élide e julgo mesmo que Pródico de Ceos, e, ainda, muitos outros sábios.

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PLATÃO – Protágoras. Trad. Ana da Piedade Elias Pinheiro. Lisboa: Relógio d’Água, 1999. p. 96-98.

Para Sócrates, a aretê (virtude) não se pode ensinar. Protágoras, no entanto, entende ser possível e, a pedido de Sócrates, demonstra de que modo se ensina a virtude.

[…] Logo que alguém compreende o que se lhe diz, a ama, a mãe, o pedagogo e até o pai fazem esforços nessa área, para que a criança se torne o melhor possível. Por cada palavra ou cada acto ensinam-lhe e explicam-lhe o que é justo e o que é injusto, o que é bom e o que é censurável, o que é pio e o que é ímpio, «faz isto», «não faças isso». Se obedece voluntariamente, ainda bem, se não, endireitam-no, com ameaças e pancadas, como se fosse um pau torto e recurvo. Em seguida, quando o enviam para a escola, prescrevem que os mestres tomem muito mais cuidado com o bom comportamento das crianças que com a aprendizagem das letras e da cítara. Os mestres, por sua vez, seguem a prescrição e, então, assim que as crianças aprenderem as letras e estiverem prontas para compreenderem os textos escritos do mesmo modo que, até aí, compreenderam os sons, colocam-lhes sobre os bancos poemas de bons poetas, para que os leiam, e obrigam-nas a aprendê-los de cor, pois neles há muitas advertências, muitas histórias e elogios dos heróis de outrora, para que a criança, entusiasmada, os imite e se esforce por ser igual a eles. A seguir, os citaristas tomam idêntico cuidado no que diz respeito à moderação, para que os pequenos não venham a agir erradamente. Depois, assim que souberem tocar cítara, ensinam-lhes, então, poemas de outros bons poetas – os líricos, desta vez – com o fim de aprenderem a música para serem tocados à cítara, e obrigam a que os ritmos e as melodias se tornem familiares às almas das crianças, para que sejam mais delicadas; ao tornarem-se mais graciosas e mais moderadas tornarem-serão melhores quer no falar quer no agir. Tudo na vida do homem precisa de ritmo e de harmonia! E mais ainda, a seguir, mandam-nas ao pedótriba, para servirem o espírito bem formado com corpos melhores e não serem obrigados a abster-se, por causa de deficiência física, nem nas guerras nem em outras actividades. Os que têm mais possibilidades – e os mais ricos são os que mais podem – é assim que actuam e os seus filhos começam a frequentar a escola muito cedo e deixam-na muito tarde. Logo que saem da escola, é a vez de a cidade os obrigar a aprender as leis e a viver de acordo com elas e com os seus paradigmas, para não agirem apenas como bem lhes parecer. E, simplesmente, do mesmo modo que os mestres das primeiras letras, depois de traçarem linhas com o estilete, dão as

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tabuinhas às crianças que ainda não sabem escrever e as obrigam a seguir a direcção das linhas, assim também a cidade, depois de traçar leis, obra de bons e antigos legisladores, obriga a que se governe e a que se seja governado de acordo com elas, e pune aquele que, porventura, vier a transgredi-las. [...] Sendo tal o cuidado em torno da virtude, quer na vida privada quer na comunitária, admiras-te, Sócrates, e questionas que a virtude possa ser ensinada? Pois não deves espantar-te; deverias, antes, espantar-te muito mais se o não pudesse ser.

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Protágoras (Abdera, Trácia, c. 480 a. C. – Sicília, 410 a. C.)

PEREIRA, Maria Helena da Rocha (org. e trad. do original) – Hélade: antologia da

Cultura Grega. 10.ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, S. A., 2009. p. 289.

O homem é a medida de todas as coisas

O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto existem, e das que não são, enquanto não existem.

O ensino

O ensino requer dotes naturais e prática. Deve começar-se a aprender em novo.

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Tucídides (Atenas, c. 460 a.C. — Atenas, c. 400 a.C.)

TÚCIDIDES – História da Guerra do Peloponeso. Trad. do texto grego, pref. e notas introdutórias Raul M. Rosado Fernandes e M. Gabriela P. Granwehr. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian – Serviço de Educação e Bolsas, 2010. p. 201-202

[Guerra do Peloponeso – 431-404 a. C.]

Oração imperial de Péricles: elogio dos mortos e do poder democrático

[…] Também no que respeita a educação, enquanto desde crianças eles [Lacedemónios ou Espartanos] por meio de dolorosa disciplina procuram tornar-se homens de coragem, nós que levamos uma vida mais equilibrada, estamos não menos prontos a enfrentar os mesmos perigos.

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Aristóteles (Estagira, 384 – Cálcia, 322 a. C.)

ARISTÓTELES – Política. Trad. António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes. Lisboa: Vega, 1998. p. 561-573.

1. Plano geral da educação cívica

Ninguém questiona que a educação dos jovens deva constituir preocupação premente do legislador. Efectivamente, nas cidades onde a educação não tem lugar, isso redunda em prejuízo dos regimes. A educação deve ser exercida de acordo com cada regime, pois importa defender o carácter próprio de cada um, tal como foi estabelecido desde o começo. Por exemplo, o carácter democrático em relação à democracia, e o oligárquico em relação à oligarquia; o mais excelente princípio é sempre causa do mais excelente regime. Ora, tal como para o desempenho de cada faculdade ou arte são imprescindíveis uma aprendizagem prévia e um hábito, a prática das virtudes exige o mesmo.

Tendo toda a cidade um único fim, é evidente que a educação deve necessariamente ser uma e a mesma para todos, e que o cuidado posto nela deve ser tarefa comum e não do foro privado, como se tornou prática corrente (pois que cada um se preocupa em particular com a educação dos seus filhos, dando-lhes um ensino privado, segundo parece melhor a cada qual). O exercício daquilo que é comum deve ser também realizado em comum. Tão pouco nenhum cidadão deve julgar-se útil por si próprio, mas sim em função da cidade, visto que cada um é uma parte dela, e o cuidado de cada parte deve, por natureza, reflectir-se na preocupação pelo todo. Estes considerandos podem reportar-nos aos Espartanos que encaram a educação das crianças como questão da maior e decisiva importância, e dela fazem um objectivo público. Torna-se evidente, portanto, que os assuntos relativos à educação devem ser objecto de legislação, e são assunto do interesse de toda a cidade.

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2. Os estudos liberais

Que a educação deva ser assumida, e como deve ser realizada, são aspectos que não devem ser ignorados. Este assunto tem presentemente gerado controvérsia, na medida em que nem todos estão de acordo acerca do que deve ser ensinado aos mais novos, no que se refere à virtude, e no que diz respeito à vida melhor. Também não é evidente se é mais adequado que a educação vise as capacidades intelectuais ou o carácter da alma. Iniciar a indagação a partir do estado actual da educação, só gera mal-entendidos, pois não é evidente para ninguém se a educação deve incutir o que é útil para a vida, ou o que é adequado à prática da virtude, ou mesmo aquilo que não tem utilidade alguma; todas estas alternativas têm os seus partidários. Além do mais, também não há consenso no que conduz à virtude: em boa verdade, devido a não possuírem todos ao mesmo tempo uma evidência imediata, do que seja a virtude, discordam também no que seja o seu exercício.

Ninguém coloca reservas, é certo, ao facto de se dever ensinar as coisas úteis absolutamente indispensáveis, embora não todas. Sendo distintas as tarefas próprias dos homens livres e as tarefas dos não livres, é evidente que importa realizar tarefas que não aviltem os que delas se ocupam. E devemos considerar aviltantes todas as tarefas, artes e disciplinas que não preparam o corpo, a alma, e a mente do homem livre, para o exercício e a prática da virtude. É por isso que chamamos aviltantes os ofícios que debilitam o corpo, tais como as actividades assalariadas que mantêm a mente presa e degradada. Há ainda uns tantos estudos liberais de que os homens livres se podem ocupar em certa medida, já que um estudo demasiado intensivo desses saberes provocaria os efeitos nocivos que acabámos de referir. Reveste-se, portanto, da maior importância o objectivo que alguém se propõe ao realizar ou ao aprender seja o que for: na verdade, a prática de certos actos por si mesmos, por causa dos amigos ou em nome da virtude, em nada degrada o homem livre; o que parece fazê-lo comportar-se como um escravo ou assalariado é, isso sim, o realizá-los com frequência e em função de outros. Os estudos ancestrais actualmente vigentes implicam ambas as possibilidades.

3. Gramática, ginástica e música

São praticamente quatro os estudos liberais que se podem ensinar: a leitura e a escrita, a ginástica, a música e desenho. A leitura e a escrita e o desenho, por serem úteis para a vida e terem múltiplas aplicações; a ginástica porque incute bravura. Quanto à música, é caso para perguntar por que razão se inclui na educação. No presente, a maioria cultiva-a pelo prazer que dá; porém os que a integraram desde o

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