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O LIVRO DIDÁTICO ENQUANTO POLÍTICA PÚBLICA E GÊNERO DISCURSIVO EM CIRCULAÇÃO NO BRASIL

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Academic year: 2020

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Nº 2, volume 11, artigo nº 7, Abril/Junho 2016 D.O.I: http://dx.doi.org/10.6020/1679-9844/v11n2a7

ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 113 de 191

O LIVRO DIDÁTICO ENQUANTO POLÍTICA PÚBLICA E

GÊNERO DISCURSIVO EM CIRCULAÇÃO NO BRASIL

THE TEXTBOOK AS PUBLIC POLICY AND DISCURSIVE

GENRE IN CIRCULATION AT BRAZIL

Sérgio Arruda de Moura1, Thiago Eugênio Loredo Betta2

1Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF, Campos dos Goytacazes-RJ; Brasil,

arruda.sergio@gmail.com

2Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF, Campos dos Goytacazes-RJ; Brasil,

thiago.eugenio@gmail.com

Resumo – O livro didático é um gênero discursivo cujos espaços de emergência e circulação envolvem vasta cadeia mercadológica. No contexto brasileiro, essa cadeia apresenta influência e participação do Estado por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), ancorado em um histórico de severo controle desde o Estado Novo. Neste artigo, por meio de um estudo bibliográfico, remontamos a história e recuperamos o sentido pragmático do livro didático como gênero discursivo, convertido em política pública. O objetivo consiste em localizar e analisar a presença e participação dos atores sociais envolvidos na sua produção, gerenciamento e circulação a fim de elucidar posicionamentos ideológicos. O estudo é embasado na teoria do discurso proposta por Pêcheux em diálogo com Marx e Althusser e atualizada por Maingueneau. Também consideramos o conceito de Aparelhos Ideológicos de Estado em Althusser. Atribuímos à língua o caráter de fato social e apreendida em dispositivos estáveis, e enquadramos o livro didático como gênero discursivo. Nessa investigação, sugerimos que a atuação do Estado na circulação de livros didáticos traduz-se na manutenção do status quo e, no contexto dos livros de Língua Portuguesa e Literatura, na imposição de um modelo sociodiscursivo dominante. Por fim, pontuamos que os investimentos públicos

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 114 de 191 devem contemplar o empoderamento intelectual do professor, especialmente o professor de Língua Portuguesa, para que ele se torne um ator efetivo no processo pedagógico, construindo seu material de trabalho de forma dialética na atividade em sala de aula, a produção ininterrupta de discursos na sociedade e os estudos acadêmicos.

Palavras-chave: Livro Didático; Política Pública; Gênero Discursivo; Discurso; Ideologia.

Abstract – The textbook is a discursive genre whose emergence and circulation spaces involve extensive marketing chain. In the Brazilian context, this chain has influence and participation of the state through the National Textbook Program (PNLD), anchored in a history of severe control from the Estado Novo. In this article, through a bibliographic study, we go back in history to retrieve the pragmatic sense of the textbook as a discursive genre, converted into public policy. The objective is to locate and analyze the presence and participation of stakeholders involved in its production, management and circulation in order to elucidate ideological positions. The study is grounded in discourse theory proposed by Pêcheux in dialogue with Marx and Althusser and updated by Maingueneau. We also consider the concept of Ideological State Apparatuses in Althusser. We attribute the language the character of social fact and seized in stable arrangements, and we fit the textbook as a discursive genre. In this investigation, we suggest that the state's role in the circulation of textbooks is reflected in the status quo and, in the context of Portuguese Language and Literature textbooks, the imposition of a dominant sociodiscursive model. Finally, we stress that public investment should include the intellectual empowerment of the teacher, especially the Portuguese one, in a way so he/she can becomes an effective actor in the educational process, creating dialectically his own material of work in the room class activity, in the uninterrupted production of discourses in society and in the academic studies.

Keywords: Textbook ; Public policy; Discourse genre ; speech ; Ideology.

“[...] plural no espaço social, o poder é, simetricamente, perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver, re-germinar no novo estado de coisas. [...] Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem — ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua”

Roland BARTHES

O livro didático: um objeto multifacetado

O livro didático é um objeto que vem sendo estudado por meio de diversas teorias e olhado e sob variadas perspectivas de análise. Em sua maioria, existem

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 115 de 191 estudos de cunho pedagógico voltados para os aspectos textual, expositivo e instrucional cujo foco é a análise da forma como os conteúdos didáticos são apresentados nesses livros. Desses estudos, uns são mais abrangentes como em Libânio (2002) e Silva (2001), pois partem do campo da didática e do currículo, e outros mais específicos advindos das metodologias de ensino de cada uma das disciplinas escolares, como Bittencourt (2004) e Cereja (2005).

Há uma segunda via que, considerando o livro didático um objeto cultural, procura investigá-lo sob a forma de um veículo de ideologias a serviço de interesses políticos, em pesquisas que têm em vista revelar aspectos da organização social em diferentes épocas e lugares por meio dos fazeres pedagógicos inscritos nas obras. São estudos voltados, portanto, para os aspectos que estão no entorno do livro, no seu contexto de produção e circulação e que reverberam no texto.

A origem de estudos sistemáticos sobre materiais bibliográficos

especificamente produzidos com fins didáticos está nessa última perspectiva e integra pesquisas nos campos da História e da Sociologia. Nesse sentido,

o campo de estudos sobre os livros escolares iniciou-se, provavelmente, no âmbito de um dos primeiros programas sistemáticos de pesquisa, coordenado pelo historiador Georg Eckert, no fim da Segunda Guerra Mundial, com o propósito de analisar os conteúdos desses livros, em relação, sobretudo, com as identidades nacionais e o ensino do patriotismo (ROCHA e SOMOZA, 2012, p. 21).

Esses primeiros estudos foram desenvolvidos na Alemanha e propuseram a reflexão a respeito do papel dos livros escolares na formação da consciência nacional do povo europeu. As pesquisas iniciadas por Georg Eckert continuam, ainda hoje, no Georg Eckert Institute for International Texbook Research, cujo site,

www.gei.de, abriga relevantes informações sobre o tema e um vasto banco de

dados sobre o conteúdo e o mercado editorial do livro didático ao redor do mundo. O site, ao apresentar o instituto, caracteriza o livro didático como um ―hot topic‖, ou seja, um tema quente/polêmico e de significativo valor acadêmico, político e educacional. Sem reduzir o assunto ao maniqueísmo – ou seja, se prestam ou não um bom serviço –, a página sugere que

the condensed and canonical character of the information selected for and presented in textbooks gives them central significance in academic, political

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 116 de 191 and educational respects. Textbooks, as carriers of the knowledge and information that one generation wishes to pass on to the next, frequently find themselves at the centre of political controversy. They may promote prejudice and animosity, yet can also contribute to reconciliation and peace-building1.

Promovendo a animosidade ou a reconciliação e somando-se a outras questões relacionadas à sociedade de um modo geral, o livro didático é um objeto que suscita controvérsias, mas não deixa de ocupar, ainda nos dias de hoje, lugar de destaque no ambiente escolar, pois é ferramenta de trabalho para os professores e material de estudo para os alunos.

No âmbito da educação formal, ele está presente desde o início do processo de institucionalização da escola no mundo moderno – fato que ocorre entre os séculos XV e XVI, quando o capitalismo em ascensão passou a exigir pessoas instruídas que soubessem lidar com a manufatura e o comércio e, no mesmo momento, em que a igreja católica, enfraquecida pela reforma protestante, buscava novos fieis.

Daquele período, duas publicações merecem destaque: a Ratio Studiorum, publicada pelos padres jesuítas em 1599, e a Didática Magna, de Comenius, em 1657, conforme aponta Gadotti (2005). Ainda que não tenham sido publicadas em série para uso dos alunos, elas possuem a finalidade comum de orientar o funcionamento da rotina escolar e instruir sobre a maneira de ensinar.

A primeira estava alinhada aos preceitos, valores e ideologias da doutrinação católica, e a segunda voltada à democratização do conhecimento e à laicização da escola. Ainda que partindo de vieses ideológicos distintos, em ambas, vemos o esforço para, a sua maneira, tornar o ensino mais eficiente e, textualmente, a materialização de posicionamentos políticos.

As pesquisas sobre o livro didático no campo da Didática e do Currículo tendem a considerá-lo, principalmente, sob o ponto de vista da eficiência pedagógica. Nelas, o livro didático é abordado como ferramenta capaz de tornar o

1

O caráter condensado e canônico da informação selecionada e apresentada no livro didático dão a eles significação central em contextos acadêmicos, políticos e educacionais. Os livros didáticos como portadores de conhecimentos e informação que uma geração deseja transmitir para a próxima, frequentemente se encontram no centro de uma controvérsia política. Eles podem promover preconceito e animosidade, mas também podem contribuir para a reconciliação e construção da paz (tradução dos autores).

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 117 de 191 ensino melhor com estudos que apontam meios para aprimorar essa eficiência. Considerando a importância do material pedagógico no processo de escolarização, o especialista em Didática, José Carlos Libânio (2002), ainda que faça algumas ressalvas que mais à frente apontaremos, é favorável à existência e ao uso do livro didático nas escolas. Nas palavras desse autor,

o livro didático, em certo sentido, operacionaliza objetivos do ensino, define o que deve ser ensinado e o que deve ser aprendido tem, assim, um papel pedagógico-didático fundamental como apoio ao professor e ajuda no desempenho escolar dos alunos. Basicamente porque ele se encontra no meio da relação entre o professor e o aluno. Além de ser um veículo da cultura elaborada e, também, um prolongamento da ajuda pedagógica do professor (LIBÂNIO, 2002, p. 127).

Por meio das duas vertentes de investigação do livro didático apresentadas –

uma ligada ao texto e a outra ao contexto de produção e circulação do livro –, consideramos que ele pode tanto estar no centro de controvérsias políticas, como aponta o Instituto Georg Eckert, quanto servir de auxílio para professores e alunos nas salas de aula, conforme sugere Libânio (op. cit.). São essas possibilidades paradoxais que fazem do livro didático um objeto fértil para o desenvolvimento de pesquisas que o tome por análise.

Assim como Georg Eckert, o francês Alain Choppin foi outro historiador europeu que realizou um extenso estudo sobre o livro didático, investigando a história dos manuais escolares na França. Em suas palavras,

o livro escolar não é um dado, mas o resultado de uma construção intelectual: não pode então ter uma definição única. É, ao contrário, indispensável explicitar os critérios que presidem esta elaboração conceitual (CHOPPIN, 2009, p. 74).

Considerando essa assertiva, acreditamos que uma definição para o livro didático só pode ser construída no espaço circunscrito pelo ponto de vista que se quer priorizar no projeto de investigação. Deste modo, como muitas são as visões possíveis de se ter do livro, sendo duas delas a visão sobre o texto e a visão sobre o contexto, optamos por defini-lo como um objeto multifacetado, pois nossa proposta é promover um diálogo entre tais vertentes, destacando a relação simbiótica entre elas. Por exemplo, por mais eficiente que o projeto pedagógico dos padres jesuítas possa ser e a Ratio Estudiorium mostra isso, não se pode deixar de considerar o

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 118 de 191 aspecto ideológico e doutrinador do discurso inscrito nessa obra didática.

O plano de instrução era consubstanciado na Ratio Studiorum, cujo ideal era a formação humanista e cristã. [...] A essência humana é considerada criação divina e, assim, o homem deve se empenhar para atingir a perfeição, ―para fazer por merecer a dádiva da vida sobrenatural‖ (SAVIANI apud NASCIMENTO, 2007, p. 188).

A definição do livro didático como um objeto multifacetado que se propõe vai ao encontro da proposta de Alain Choppin. O historiador considera o livro didático em quatro perspectivas, ou melhor, o descreve em quatro ―faces‖: o livro didático como objeto, suporte, ferramenta e veículo.

A primeira face destaca o aspecto material, técnico e comercial do livro, ou seja, o objeto livro e a cadeia mercadológica que o certa e da qual ele emerge. A segunda e a última, alinhadas à vertente contextual que apresentei, dizem respeito, respectivamente, aos aspectos sociais e culturais que se quer incutir por meio do que é ensinado nos livros e ao sistema de valores e ideologias neles veiculados. A terceira face, alinhada à vertente textual que mostrei, procura dar conta dos métodos de ensino presentes nos livros.

Conforme Choppin, o livro é essencialmente

un objet: sa fabrication évolue avec progrés des techniques du livre, sa cormecialização et sa distribuition avec les transformation du monde de l'édition, des contextes économiques, politique et législatif. C'est ensuite le support – longtemps privilégié – du contenu éducatif, le depositaire de connaissances et de techniques dont l'aquisition est jugée nécessaire par la société; il est, à ce titre déformé, incomplet ou décalé, mais toujours révélateur dans sa schématisation, de l'état des connaissances d'une époque, et des principaux aspects et stéréotypes de la société. C'est aussi un instrument pédagogique, inscrit dans une longue tradition, inséparable dans son élaboration comme dans son emploi, des structures, des méthodes et des conditions de l'enseignement de son temps. C'est enfin le véhicule, au-delá des prescriptions étroites d'un programme, d'un systéme de valeur, d'une idéologie, d'une culture; il participe ainsi du processus de socialisation – voire d'endoctrinement – des jeunes générations auxquelles il s'adresse (CHOPPIN, 1980, p. 01)2.

2

Um objeto: sua fabricação evolui com o progresso técnico do livro, sua comercialização e distribuição com a transformação do mundo da editoração, dos contextos econômico, político e legislativo. Na sequência, é um suporte – longamente privilegiado – do conteúdo educativo, o depositário de conhecimentos e técnicas cuja aquisição é considerada necessária pela sociedade; é, desta forma, distorcido ou deformado, mas sempre revelador na sua esquematização, do estado de conhecimento de uma época, e dos principais aspectos e estereótipos da sociedade. Ele também é um instrumento pedagógico, inscrito numa longa tradição, inseparável

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 119 de 191 A proposta do autor francês, ao destacar quatro diferentes aspectos, é muito interessante, pois não reduz o livro didático a um único enfoque. Neste estudo, tem-se Choppin como embasamento mas, em virtude do que tem-se propõe, traça-tem-se duas grandes perspectivas de análise: uma que considera os aspectos vinculados ao texto do livro, por meio da qual se destaca a noção de gênero do discurso e a outra que considera os aspectos contextuais, da qual toma-se o livro como uma política pública e, dialogando com as duas perspectivas, utiliza-se o conceito de cenas de enunciação de Dominique Maingueneau.

Neste estudo, contempla-se o livro didático por meio de duas perspectivas: o livro enquanto gênero discursivo e enquanto política pública. Perspectivas que, no

âmbito da Análise do Discurso – campo de investigação baseado num quadro

teórico que alia o linguístico ao sócio-histórico –, se complementam, ou melhor, tornam-se indissociáveis para a compreensão dos efeitos de sentido suscitáveis nos discursos que circulam nesses livros e também naqueles discursos produzidos em seu entorno ou a partir deles, como as análises e pareceres que o acompanham e os instrumentos legais que o legitimam.

Um gênero do discurso

O Livro Didático é parte da grandiosa história das tecnologias da escrita e da tipografia sobre as quais está assentada a edificação do saber na cultura ocidental. Na Antiguidade clássica, a tecnologia da escrita possibilitou liberar a expressão verbal do contexto imediato de enunciação e conservá-la para além daquele instante. Posteriormente, a partir de Gutenberg nos século XV, a impressa e a produção industrial do livro garantiu a reprodutibilidade e a consequente maior circulação do pensamento, da literatura, da história, das ideias e das ideologias políticas.

na sua elaboração e no seu emprego, de estruturas, de métodos e de condições de ensino de seu tempo. É, enfim, o veículo além das exigências estreitas de um programa, de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura; ele faz parte do processo de socialização – ou doutrinação – de novas gerações às quais ele se endereça (tradução dos autores).

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 120 de 191 O livro, enquanto objeto material produzido em escala, promoveu uma verdadeira revolução no conhecimento, sendo a força motriz do que concebemos hoje em nossa cultura como texto. Se considerarmos as diferenças do que se concebe hoje por literatura e por conhecimento filosófico-científico em relação ao período que antecedeu o século XVI, grande parte das dessemelhanças, para além do conteúdo do que se produziu de lá para cá, advém da facilidade e da praticidade para se registrar, conservar e divulgar esses saberes.

Assim como o surgimento do objeto livro alterou o estatuto do conhecimento no século XVI, as atuais edições digitais estão redefinindo o conhecimento nesse

início de século XXI. Sobre esse tema, Jean Clément, afirma que ―não se pode [...]

abstrair os textos dos objetos que os comportam, ignorando que os processos sociológicos e históricos de construção do sentido se apoiam nas formas em que se dão a ler‖ (CLÉMENT, 2003, p. 29).

A história do conhecimento atrelada ao objeto livro e a proposição de Jean Clément a respeito das edições digitais mostram que a forma por meio da qual um texto se dá a ler é determinante para a construção dos efeitos de sentido que por meio dele serão produzidos. As implicações decorrentes da relação entre o texto e a forma como ele se apresenta remetem ao conceito de discurso, noção que contempla os elementos que estão para além da estrutura puramente textual e, por conseguinte, põe foco sobre as ―condições de produção‖, conforme enuncia o fundador da Análise do Discurso, Michel Pêcheux:

os fenômenos linguísticos de dimensão superior à frase podem efetivamente ser concebidos como um funcionamento, mas com a condição de acrescentar imediatamente que este funcionamento não é integralmente linguístico [...] e que não podemos defini-lo, senão, em referência ao mecanismo de colocação dos protagonistas e do objeto de discurso, mecanismo que chamamos de ―condições de produção‖ do discurso (PÊCHEUX, 1993, p. 78).

Em conformidade com essa proposição, consideramos que, mesmo quando se busca dar ênfase ao aspecto meramente textual do livro didático, não se pode deixar de contemplar os elementos que estão atrelados ao que nele é dito, os quais sejam as condições de produção, os sujeitos do discurso e os objetos do discurso. Michel Pêcheux introduz o conceito de discurso atrelado à condição de produção, ao

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 121 de 191 promover um diálogo interdisciplinar entre a teoria linguística de Ferdinand de Saussure, o materialismo histórico de Karl Marx e a teoria da subjetividade em conformidade com Jacques Lacan.

Assim, relacionando o linguístico, o social e o subjetivo, a Análise do Discurso concebe a linguagem na forma de um fenômeno a ser estudado não somente por meio de seu sistema interno, mas também em relação ao contexto social, histórico e ideológico de sua produção e circulação. Por tal perspectiva, consideramos o livro didático não somente como um texto a ser analisado linguisticamente e não somente como um suporte material alheio ao texto que circula em suas páginas, mas, o consideramos também na forma de um discurso no qual texto e contexto se fundem na produção de sentidos.

A relação entre as condições materiais de produção e circulação do livro didático e os aspectos textuais pode ser contemplada por meio do conceito de instituição discursiva. A instituição discursiva é

uma expressão que combina inextrincavelmente a instituição como ação de estabelecer, processo de construção legítima, e a instituição no sentido comum de organização de práticas e aparelhos [...]. Ela articula: – as instituições, os quadros de diversas ordens que conferem sentido à enunciação singular: a estrutura do campo, o estatuto do escritor, os gêneros de texto [...]; – o movimento mediante o qual o discurso se institui, ao [...] legitimar a cena de enunciação e o posicionamento no campo que tornam possível esse enunciado (MAINGUENEAU, 2006, p 53-54).

Considerada essa perspectiva, a instituição discursiva do livro didático é formada pelas instituições que o produzem, portanto, os autores, as editoras, as gráficas, enfim, os elementos materiais que possibilitam a materialização do livro, elementos que englobam desde o papel empregado na impressão das obras até as instituições públicas que, no caso brasileiro, são determinantes para a manutenção desse mercado editorial, especialmente por meio do Programa Nacional do Livro Didático, herdeiro do Instituto Nacional do Livro Didático criado em 21 de dezembro de 1937.

Além dos aspectos materiais de organizações, práticas e aparelhos, a legitimidade do livro didático, ou seja, os aspectos que possibilitam que uma obra seja denominada como tal e a forma como esse discurso se institui é parte da

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 122 de 191 instituição discursiva do livro didático. Isto é, um livro didático ao ser produzido precisa também fomentar um espaço de enunciação, uma cena de enunciação no campo onde os livros didáticos são produzidos. Buscando uma analogia, seria como se o livro didático precisasse encontrar um espaço para si na prateleira onde estão os outros livros assim denominados para se instituir.

Ocupar um espaço na prateleira significa obedecer a determinados protocolos que caracterizam o livro didático como tal. Alain Choppin (op. cit.), ao categorizar o livro didático, nos indica dois protocolos que definem o que vem a ser um livro didático: a categoria da prática e da intenção.

Distinguimos assim duas categorias de produtos: de um lado, aqueles que foram intencionalmente reconhecidos pelo autor ou pelo editor para um uso "escolar", exclusivo ou não, e aqueles que tinham ou não foram efetivamente utilizados; de outro, aqueles que não foram concebidos com fins educativos, mas que adquiriram posteriormente uma dimensão escolar, seja pelo uso, que não podemos precisar se foi permanente ou generalizado no contexto da escola, seja em virtude de uma decisão administrativa que lhe conferiu explicitamente (CHOPPIN, 2009, p. 64-65).

Desta maneira, segundo o historiador francês, há livros que foram produzidos com a intenção de serem didáticos e aqueles que, em virtude da prática, vieram a ser assim classificados. Dessas categorias, torna-se importante destacar que ambas consideram o aspecto das práticas sociais a definir a categorização de um texto. Um conceito balizar da linguística pós-estruturalista a contemplar os textos e as práticas sociais a eles atreladas é a noção de gêneros discursivos. Os gêneros do discurso, conforme Mikhail Bakhtin, são instituições de fala ―relativamente estáveis‖ por meio das quais os discursos se manifestam.

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais —, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional [...]. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 1983, p. 279).

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 123 de 191 pedagógica, dão ao discurso nele materializado uma compleição particular da qual destacamos a apresentação do conteúdo de forma didática, ou seja, o emprego linguístico de uma estrutura composicional e estilística que facilite o aprendizado e a função sociocomunicativa atrelada à escola e aos atores nela envolvidos. É nesses termos que o livro didático se constitui um gênero discursivo, estabilizado como prática social e que assume funções igualmente sociais num determinado âmbito.

Deste modo, o adjetivo ―didático‖ consiste numa delimitação, uma parte da instituição sociocultural do livro. Outra consideração a se fazer a partir dessa, e observando o adjetivo ―didático‖ atrelado, é a de que a obra com fins didático está inscrita numa parte específica da sociedade e, portanto, inclui sujeitos e lugares. Deste modo, o livro, ao ser classificado como didático, materializa um projeto pedagógico específico e aqueles que o produzem fazem recortes de conteúdos que são histórica e ideologicamente situados.

Portanto, assim como o suporte influi nos sentidos do texto por ele veiculado, os condicionamentos sociais – históricos, políticos, técnicos e econômicos – confluem para definir os conteúdos veiculados e os espaços de emergência e circulação do gênero. Nesse sentido, a maneira como os conteúdos presentes nos livros didáticos são apresentados permitem que todos reconheçam ali um tipo relativamente estável de enunciado, ou seja, um gênero discursivo.

A noção de gênero discursivo possibilita o descortinar das implicações que determinam o que pode ou não ser dito em determinadas condições enunciativas previamente estabelecidas. Portanto, um enunciado não é somente a expressão de ideias, mas a construção e legitimação da enunciação. Esse processo consiste na construção simultânea de uma cena de enunciação, tal qual será abordado mais a frente.

Um caso emblemático da força política a determinar o que pode ou não circular num livro didático foi celeuma formada tanto na mídia quanto nos meios intelectuais quando o Ministério da Educação avaliou positivamente e recomendou às escolas, em 2011, o livro Por uma vida melhor, da coleção ―Viver, Aprender‖, de Heloísa Ramos, dirigida aos alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA).

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 124 de 191 livro e a avaliação do MEC foram rechaçados, o livro por ensinar ―errado‖, e o MEC por estar supostamente alinhado a um possível pernicioso projeto político encabeçado pelo governo federal. A crítica acusatória foi relevante e ―a questão foi tratada de forma demasiadamente política e sem aquilo que no jornalismo se chama apuração circunstanciada, com direito à voz de todas as partes e interesses reunidos‖ (LUQUETTI et. al., 2011, p. 15).

Uma política pública

Políticas públicas são ações governamentais voltadas para a sociedade de um modo geral ou para um setor específico dela. São ações criadas e executadas com a finalidade precípua de garantir direitos sociais tais como educação, saúde, moradia, segurança pública, etc. Há autores, dentre os quais Vianna (2002), que utilizam para tal definição o termo mais específico de políticas sociais, em virtude do destinatário dessas ações, o qual seja a sociedade em geral. Pela natureza desse trabalho, nós os utilizaremos como sinônimos, optando pelo termo políticas públicas.

Elaborar uma política pública significa definir quem decide o quê, quando, com que consequências e para quem. São definições relacionadas com a natureza do regime político em que se vive, com o grau de organização da sociedade civil e com a cultura política vigente (TEIXEIRA, 2002, p. 2) Conforme o autor acima citado, a proposição de uma determinada política pública ou a análise de uma ação governamental em curso têm por princípio responder às seguintes indagações: para quê? por quem? e para quem? Deste modo, faz diferença, naturalmente, se determinada ação é implementada por tecnocratas encapsulados em seus gabinetes, como acontece nas ditaduras, ou se é implementada com base em procedimentos democraticamente estabelecidos. A materialização destes posicionamentos político-ideológico é vislumbrada por meio dos documentos escritos, tais como leis, diretrizes, programas e linhas de financiamento que pontuam a criação e execução das políticas públicas.

No caso brasileiro, ao falarmos de ações governamentais relacionadas à publicação de livros e materiais impressos em geral, constata-se que a ingerência governamental existe desde o período colonial, quando tal atividade era aqui

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 125 de 191 proibida. Foi somente com a criação da Imprensa Régia, por D. João VI, em 1808 que a publicação de livros passou a ser praticada no Brasil, ainda assim sob o controle da corte portuguesa, como aponta Abreu (2004).

O que é percebido ainda nos dias atuais, em que o Estado é, a um só tempo, o definidor das políticas e legislações a respeito da criação e circulação de livros didáticos no país e o maior cliente das editoras.

Os manuais escolares aparecem em nosso país com o surgimento do ensino público após a independência, tendo o colégio Pedro II como espaço de divulgação e produção de compêndios de ensino secundário. Aquelas obras sofriam forte influência francesa, sendo, em alguns casos, traduções.

Na década de 1930, Francisco Campos e Gustavo Capanema, ao estabelecerem uma política de estado voltada à educação pública, especialmente com a criação do Ministério da Educação e Cultura em 1937, institucionalizam o Instituto Nacional do Livro, por meio do Decreto-lei n° 93, de 21 de dezembro daquele ano. Uma das competência do Instituto então criado foi a de ―promover as medidas necessárias para aumentar, melhorar e baratear a edição de livros no país bem como facilitar a importação de livros estrangeiros‖ (Art. 1º do Decreto-Lei n. 93, de 21 de dezembro de 1937).

Naquele período, início do Estado Novo, pautava-se pelo centralismo do poder e pela disseminação de um nacionalismo institucionalizado, cujo projeto era a construção da unidade da nação brasileira, contexto favorável à produção de material didático em série e com fortíssimo controle estatal.

Na mesma época e em consonância com o projeto político centralizador de Getúlio Vargas, vê-se a promulgação do Decreto-Lei nº 1.006, de 30 de dezembro de 1938, responsável por estabelecer ―condições‖ para a produção, importação e utilização do livro didático. Tal documento faz reverberar a iniciativa estatal de controlar as condições de produção e circulação de materiais didáticos, o que pode ser vislumbrado por meio da criação da Comissão Nacional do Livro Didático, responsável por fiscalizar os livros e pela extensa lista de temas que não poderiam neles circular.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 126 de 191 Dentre as atribuições da Comissão, a principal fora a de examinar os livros didáticos a ela apresentados e proferir julgamento favorável ou contrário à autorização de seu uso, por consequência a utilização de livro não autorizado passou a ser passível de sanção com multa e suspensão do trabalho, no caso de servidor público, como um professor, por exemplo, que desejasse a utilizar um material de sua autoria.

Também, por meio do Art. 9º, vislumbra-se o exclusivismo editorial do Estado em relação ao livro didático: ―A publicação oficial de livros didáticos, para uso nos estabelecimentos de ensino do país, será atribuição do Instituto Nacional do Livro, segundo a regulamentação que for estabelecida‖.

Também neste Decreto-Lei, no Art. 18, ficou instituído que o Ministério da Educação publicaria, no Diário Oficial, no início de cada ano, ―a relação completa dos livros didáticos de uso autorizado, agrupados segundo os graus e ramos do ensino, e apresentados, em cada grupo, pela ordem alfabética dos autores‖.

Já nos Art. 25 e 28, respectivamente, ficava ―vedada a adoção de livros didáticos de autoria do professor, na sua classe, do diretor, na sua escola, e de qualquer outra autoridade escolar de caráter técnico ou administrativo‖ e o preço do livro didático era determinado pela Comissão Nacional do Livro Didático.

É nesse documento também que a primeira definição jurídica de livro didático aparece no Brasil:

Para os efeitos da presente lei, são considerados livros didáticos os compêndios e os livros de leitura de classe. § 1º Compêndios são os livros que exponham, total ou parcialmente, a matéria das disciplinas constantes dos programas escolares. § 2º Livros de leitura de classe são os livros usados para leitura dos alunos em aula (Art. 2° do Decreto-Lei n. 1.006 de 30 de dezembro de 1938).

Vê-se aí o caráter se não de censura, pelo menos de controle da produção e circulação do livro didático. Seguiu-se a esse Decreto-Lei, o de número 8.460, de 26 de dezembro de 1945, responsável por dar continuidade à política de estado em relação ao livro didático. Já no seu Art. 3º, tem-se que

os livros didáticos que não tiverem tido autorização prévia [...] não poderão ser adotados no ensino das escolas pré-primárias, primárias, normais,

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 127 de 191 profissionais e secundárias, em todo o território nacional.

Posteriormente, o Decreto n° 59.355 de 04 de outubro de 1966, criou a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (COLTED) que determinou a participação do Estado no mercado editorial de livros didáticos no que tange à produção, edição, aprimoramento e distribuição. Cabendo ao Estado o incentivo, a orientação, a coordenação e a execução de uma política de ―difusão‖ do livro didático, que pode ser muito bem lida como uma difusão também ideológica de viés centralizador.

Tal Decreto previa a celebração de contratos entre autores, tradutores, editores gráficos, distribuidores e livreiros e incentivava a definição de um plano de ação editorial com orçamentos públicos e da iniciativa privada para o fomento da produção do mercado editorial, como ainda hoje pode ser visto na associação público X privado entre os grandes conglomerados editoriais brasileiros – Abril, Positivo, Saraiva, FDT, entre outros – e o Ministério da Educação.

A década de 1960, marcada pela Ditadura Militar, testemunhou a disseminação da educação tecnicista de vertente norte-americana, fato que culminou com a promulgação da Lei 5.692 de 11 de agosto de 1971 que fixou diretrizes e bases para o ensino de 1° e 2º graus.

Num estudo sobre a prática escolar do ensino de literatura nas últimas décadas do século XX no Brasil, Cereja (2005) ao analisar a utilização dos manuais escolares nas aulas dessa disciplina e relacionar o surgimento e a circulação do gênero à promulgação da Lei 5.692 de 11 de agosto de 1971 e o quadro escolar dela decorrente, conclui que o livro didático passou a atuar a serviço do nivelamento da qualidade do ensino. Segundo o autor, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, consolida-se no ―mercado escolar brasileiro‖ o manual didático, em oposição ao que se utilizava enquanto material didático até aquele momento. ―Até então, o material didático mais utilizado nas aulas de Português eram as obras de referência, constituídas por uma gramática, uma antologia de textos literários e, eventualmente, um dicionário‖ (CEREJA, 2005, p. 57).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1971, foi o gatilho para a ampliação da escolarização pública com obrigatoriedade do ensino de 1º grau dos 7

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 128 de 191 aos 14 anos de idade, estendendo a escolarização obrigatória de quatro para oito anos de duração. Consequentemente, naquele período houve um sucateamento do magistério: desprestígio social, descaracterização da categoria profissional, achatamento salarial e, o que o surgimento do manual didático releva, a perda da autonomia e da identidade do professor no espaço de trabalho.

A ampliação do atendimento levou à ampliação do quadro de professores e, por isso, à contratação de profissionais sem o devido preparo. Assim, os editores do manual didático, nesse contexto, procuraram adaptá-lo ao novo perfil de professor.

O professor, que antes podia dispor livremente das chamadas obras de referência, utilizando-as nas ocasiões e na sequência que julgasse mais interessantes, passa agora a uma posição secundária no espaço da sala de aula, subordinado ao livro didático e às opções feitas previamente pelo autor (CEREJA, 2005, p. 59).

Caracterizado o professor como repassador das atividades administradas no livro didático, Cereja conclui:

―Se por um lado, esses manuais facilitam as atividades pedagógicas e didáticas desse novo professor sobrecarregado e mal preparado, [...] por outro lado subtraem-lhe a identidade e a autonomia no processo de ensino-aprendizagem‖ (CEREJA, 2005, p. 59).

Essa conclusão nos parece demasiadamente relevante. Ainda a respeito do professor que pauta seu trabalho exclusivamente no que é apresentado no livro didático, Libânio (2002) afirma que os docentes mais tradicionais contentam-se em transmitir apenas a matéria que está no livro e, com isso, acabam por não considerar a funcionalidade dos conteúdos ali apresentados e a não relacioná-los ao mundo prático. É nesse ponto que o livro didático se torna um aparelho a serviço de uma ideologia. Por que o professor não se dá conta desse aparelhamento?

A reboque da redemocratização, vem o Decreto n° 91.542, de 19 de agosto de 1985 que, finalmente, criou o, ainda hoje em vigor, Programa Nacional do Livro Didático.

Historicamente, o desenvolvimento do mercado de livros didáticos, no Brasil, se deu paulatinamente à medida que o poder público se dispôs efetivamente a pagar os custos da manutenção de um sistema de escolarização universal. Desse modo, a expansão desse mercado específico aconteceu de maneira lenta, acompanhando as esparsas

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 129 de 191 medidas governamentais em prol da qualidade e gratuidade dos manuais escolares. Isto significa dizer que a editoração do livro didático está sujeita às condições que configuram o campo educacional num dado momento histórico (DA SILVA, 2010, p. 121).

Assim é que o livro didático sempre esteve a serviço de uma ideologia e de um manuseio político que extrapola o campo educacional stricto sensu. As sucessivas gerações de alunos tão bem quanto a de professores não se apercebem do seu caráter prático de aparelho de uma política de estado.

As cenas de enunciação do livro didático

Observada a legislação, observam-se também as condições de surgimento de um discurso específico resultante – o manual didático. Tais condições não só o legitimam numa esfera política como também o transforma num aparelho ideológico de estado. É necessário aqui entender o manual didático e abordá-lo discursivamente como um discurso resultante de todas essas contingências, sendo impossível dissociá-lo da cena que o gerou. Esta cena é definida como cena de enunciação (dado que todo enunciado gera uma cena ao mesmo tempo em que é gerido por ela). Com isso, afirmamos que os conteúdos dos livros didáticos, sua forma de apresentação, a adequação de metodologias aos conteúdos, a forma como chega à escola e é depositado nas mãos do professor e do aluno, configuram o que estamos chamando de cena de enunciação, ao condicionarem o surgimento de um enunciado chamado ―livro didático‖, que dela não se dissocia. Em Análise do Discurso, Maingueneau (op. cit.) distinguiu a cena de enunciação de forma tripartite para melhor definir o ponto de partida e o ponto de chegada do discurso.

Na ‗cena de enunciação‘, distingo, de minha parte, três cenas que atuam em planos complementares: a cena englobante, a cena genérica, a cenografia. [...] a ‗cena englobante‘ é a que corresponde ao tipo de discurso (político, religioso, administrativo...). Na verdade, os locutores só interagem nas cenas englobantes através de gêneros de discursos específicos, de sistemas de normas: pode-se então falar de ‗cena genérica‘. Quanto à ‗cenografia‘ ela é construída pelo próprio texto (MAINGUENEAU, 2010, op. cit., p. 206).

Assim, entendemos que a cena englobante diz respeito à pragmática (a finalidade do texto); a cena genérica corresponde ao gênero do discurso empregado;

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 130 de 191 enquanto que a cenografia é gerida no e pelo próprio texto, tratando-se de sua ―encenação‖. Do mesmo modo que a Literatura é parte de uma cena englobante característica da conjuntura que surgiu no início do século XIX, com a publicação e circulação do romance, enquanto cena genérica, e do indianismo, por exemplo, como uma cenografia literária de então, é possível pensar o manual didático nos mesmos termos.

O que chamamos de livro didático se insere em um campo político de determinações institucionais e corresponde a toda sorte de textos que serve ou serviu de suporte ao exercício escolar de transmissão e exercício da aprendizagem; já o manual didático, o livro específico que reúne em um só tomo, às vezes dois, o segmento de uma disciplina, como o português, por exemplo, corresponde ao que Maingueneau chama de cena genérica; já o modo específico como o próprio texto se constrói é o que chamamos, ainda com Mainguenau de cenografia.

Assim temos a Didática como campo onde se institui a escola e os seus sistemas de ensino como cena englobante. Em seguida, temos os livros em geral como instrumentos didáticos, além do livro didático em si, como cena genenérica. Já a cenografia se faz em um certo livro didático como o já citado Por um mundo melhor que traz um contraponto polêmico entre a língua chamada culta e uma outra língua, popular, ou errada, ou variante do português falado no Brasil.

A cenografia é o lugar no qual, a nosso ver, mais se concentra a polêmica. Parece não haver qualquer resistência ao fato de que os livros se apresentem na forma de um manual a ser seguido fielmente pela entidade escolar, pelo lado institucional, e pela classe de professores e alunos que deles se beneficiam diretamente. Todavia, vez ou outra, ainda no caso do manual de Língua Portuguesa, uma polêmica se instaura desde quando se extrapolam as condicionantes que asseguram haver um único e definitivo português, chamado de culto ou padrão.

Na tradição brasileira dos manuais didáticos, observou-se que à medida que os livros didáticos de leitura foram sendo gradativamente substituídos pelos manuais atuais, a leitura nesses fragmentou-se excessivamente. Assim, não é só a leitura dos clássicos da literatura que interessa, mas toda a sorte de textos diversos, tais como a matéria jornalística, a reportagem, a crônica, o poema, o texto publicitário e

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 131 de 191 comercial, o letreiro, a charge, o quadrinho, a literatura popular. Esse novo dimensionamento textual dentro do manual didático deu-lhe um novo enquadre conceitual e acabou trazendo para dentro dele conceitos científicos produzidos pelos campos da ciência linguística, e abriu prerrogativas para uma nova discussão da língua, dentre eles o fenômeno variacional dos falares. De qualquer forma, quem ―ensina‖ aos professores que esta é uma questão relevante no ensino da língua é o manual didático, e não a sua prática de pesquisador e observador da dinâmica da língua, ou seja, na forma como ele se impõe e não na constatação real, científica e cultural dos fenômenos linguísticos que ele trata.

Podemos a título de ilustração, retomar o manual didático Por uma vida melhor, ao qual já nos referimos. Em prejuízo dele, toda a crítica não especializada, coloriu-se de vínculos e ajuizamentos políticos e ideológicos desenvolvidos desde os primeiros decretos do Estado Novo, e do regime de exceção de 1964-1985, até os nossos dias com as políticas do PNDL. Segundo os críticos do Por uma vida melhor, a obra se apresentava como um manual que dava uma nota muito destoante ao apresentar a língua portuguesa falada nas suas variantes, e, por consequência, a própria sociedade como desigual, ferindo o que se esperava de um livro didático desde o Estado Novo, que não autoriza livro que pudesse despertar ou alimentar ―a oposição e a luta entre as classes sociais‖ (Art. 20, alínea ―h‖ do Decreto-Lei n. 1.006, de 30 de dezembro de 1938). Os manuais didáticos, pelo menos os de Língua Portuguesa, vez ou outra, entram em polêmica ao darem uma ênfase mais acentuada ao ensino das variantes ―sem prestígio social‖ da língua. Esse tema fere o normatismo como pedra de toque do ensino da língua, tradição já longa, segundo a qual é a norma o benefício maior do bem falar e do bem escrever.

É nesses termos que, ao se elaborar um texto didático, editá-lo, publicá-lo e submetê-lo ao crivo do PNDL, obedecidas todas as regras, está-se evocando pragmaticamente uma determinação englobante segundo a qual a construção do gênero ―livro didático‖ está intimamente vinculada aos ditames estatais, como se pôde ver nas leis que aqui foram analisadas.

Considerações Finais

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 132 de 191 contraditórias: os livros didáticos vêm sendo historicamente utilizados para a transmissão de dogmas e para a disseminação de autoritarismos de forma implícita ou explícita e, ao mesmo tempo e paradoxalmente, empregado como ferramenta na prática de projetos pedagógicos emancipatórios e suprido lacunas na atuação profissional de professores pouco capacitados ou sem tempo para elaborar suas aulas e atividades diversas com afinco e dedicação necessários.

Embora muito se insista na assertiva de que a escola é um campo de atividade crítica e reflexiva, que o conhecimento é construído mais que transmitido, todas essas noções esbarram no fato de que a imposição velada dos manuais nas escolas caracteriza uma ingerência política na esfera da educação. O lado mais problemático é o fato de que a indústria do manual didático foge a qualquer controle e se impõe como política de estado.

Nessa investigação, sugerimos que a atuação do Estado na circulação de livros didáticos traduz-se na manutenção do status quo e, no contexto dos livros de Língua Portuguesa e Literatura, na imposição de um modelo sociodiscursivo dominante. Por fim, pontuamos que os investimentos públicos devem contemplar o empoderamento intelectual do professor, aqui observando especialmente o de Língua Portuguesa, para que ele se torne um ator efetivo no processo pedagógico, construindo seu material de trabalho de forma dialética entre a atividade em sala de aula, a produção ininterrupta de discursos na sociedade e os estudos acadêmicos.

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Thiago Eugênio Loredo Betta. Mestre em Cognição e Linguagem pela UENF, em 2014. Pedagogo da Rede Municipal de Educação de Campos dos Goytacazes – RJ e Professor de Língua Portuguesa da Rede Municipal de Educação de São João da Barra – RJ.

Data de submissão: 04/11/2015 Data de aceite: 26/03/2016

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