Ficha Técnica Capa: Anchieta Rolim
Diagramação: Thiago Jefferson Galdino
É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.
Agradecemos ao artista plástico Anchieta Rolim que, em gesto de solidariedade, concebeu a capa deste nosso trabalho. Estendemos o reconhecimento aos escritores Oreny Júnior e Thiago Gonzaga: sem o apoio de ambos, certamente naufragaríamos.
Apresentação
“A sensação mais precisa e mais aguda, para quem vive neste momento, é não saber onde está pisando a cada dia. O terreno é frágil, as linhas se dividem, os tecidos se esgarçam, as perspectivam oscilam […]”.
O inominável atual, Roberto Calasso.
As velas estão, agora, colhidas. Impossível marear sem que o barco encontre, longe do porto, salvação. Atracamos, pois, ao cais. O homem que, outrora, insinuava a conquista dos oceanos, percebe a si mesmo reduzido. Em sua pequenez, o vírus denotou toda a fragilidade humana.
Ancorados (como veleiros) em nossas casas e protegendo-nos dos anzóis pandêmicos, fomos capazes de ressignificar o abraço. A presente coletânea foi, em sua totalidade, elaborada através de recíproca assistência. Acreditamos que a distribuição gratuita da obra digital coopere com a democratização do acesso ao livro e à leitura em momento de incertezas.
Continuamos no aguardo da cura. Em “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway, “O velho sabia que o tubarão estava bem morto, mas o tubarão, ele mesmo, não queria acreditar”. No clássico da
literatura árabe “As mil e uma noites”, por sua vez, Sherazade constrói, seguidas madrugadas, trechos de um interminável conto, garantindo, a cada dia, com a narrativa, o adiamento de sua morte. Talvez o que precisamos hoje, afinal, se assemelhe a isto: um poema que surja feito ode à vida.
Sumário
11 | 15 | 22 | 28 | 29 | 33 | 38 | 40 | 44 | 48 | 50 | 55 | 57 | 60 | 66 | 69 | 74 | 78 | 80 | 85 | Alexandre Filho Anchella MonteÂngela Rodrigues Gurgel Bárbara Fonseca
Caio César Muniz Camila Paula
Carlos Guerra Júnior Carmen Vasconcelos Cefas Carvalho Cellina Muniz Clauder Arcanjo
David de Medeiros Leite Demétrio Diniz Dulce Cavalcante Gessyka Santos Gonzaga Neto Gustavo Luz Humberto Hermenegildo Iara Maria Carvalho Jeanne Araújo
88 | 94 | 96 | 99 | 103 | 107 | 108 | 111 | 114 | 119 | 123 | 127 | 130 | 133 | 136 | 139 | 148 | 152 | 155 | 158 | João Andrade José de Castro Junior Dalberto Kalliane Amorim Leonam Cunha Lívio Oliveira Lucas Rafael Marcos Ferreira Marcos Medeiros Margareth Freire Maria Maria Gomes Marina Rabelo Nivaldete Ferreira Rizolete Fernandes Salizete Freire Soares Theo G. Alves
Thiago de Goés Thiago Medeiros Vanda Maria Jacinto Wescley J. Gama
Antologia Poética quarenta em quarentena 11
Cena
Alexandre Filho
O sol voltou a castigar a cidade
A rua do centro tomada de automóveis Na parada de ônibus
Pessoas esperam seus coletivos Ao meio dia,
Só queremos ir para casa. Sentados no banco da parada
Ele e ela estão distantes daquilo tudo As mãos dadas
Os olhares cúmplices A conversa baixinha
Os sorrisos nos olhos e lábios. O casal é estranho à cena Eles subvertem o comum Em pleno horário de pico Eles se amam.
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Esperando
Espero nesse texto não me alongar demais Rabiscarei ele o tanto que for capaz
Provavelmente, o rejeitarei antes do penúltimo verso Cansarei dele ainda neste verso
Palavras não casarei Não rimarei
Além de fingidor Sou poeta mentiroso Não há vontade nesse lápis
Nem nessa tinta advinda da gráfica Esse texto é uma espera
De não sei o que.
Espero enquanto ponho café na caneca de porcelana Enquanto estou na varanda antiga cercada de verde Quando observo um transeunte
Na praça logo em frente
Espero procrastinando no celular Quando estou lendo
Quando estou escrevendo
Mas esse texto quase autobiográfico Desconheço o que espero
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Apenas aceito meu estado A única certeza é a espera Ela é inevitável
Então,
Estarei nos instantes vindouros Esperando.
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Um beijo, baby
Baby, não precisa desse beijo apressado Temos a tarde inteira
Então não há besteira Diminuamos o ritmo. Sinta as minhas mãos
Segurando com delicadeza o seu quadril Sua nuca arrepia
Quando estas mãos
Sobem e descem suas costas.
Um encontro entre lábios deve ter placidez Toca a minha alma com o teu tato
Para tornar esse episódio em um retrato Quando me convir será revisitado. Então, baby
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Retratos
Anchella Monte
Retrato 1
Dona Tereza criou os filhos costurando cresceram e costuram também
fantasias, roupas de dormir, roupas de festa costuram e bordam juntos, sem
descanso, mas até antes com alegria.
Antes de viajar o inimigo de todos para todo lugar, incansavelmente. As festas acabaram, as brincadeiras não saem porta afora,
as pessoas dormem sem sonhos, as pessoas temem a hora de acordar.
Dona Tereza e seus filhos costureiros
fecharam a loja de fantasias e fazem máscaras coloridas e tristonhas.
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pouco paga o pão, os carnês e a alegria.
Dona Tereza chorou e eu chorei surpresas e tristes, sabendo que existe o medo, a falta, o aprisionamento, a dor costurada na máscara que nos esconde
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Retrato 2
Minha mãe tem 80 anos e uma luz sempre ardente às vezes não quero lembrar de mamãe jovem porque lembro suas lutas e sua luz acesa mesmo quando escasso o pão na mesa e a paz. Agora seus dias eram de presença, plural
de coisas felizes: amigas, cabelo e unha, cantos na igreja filhos, netos, bisnetos, liberdade de lucidez e alegria. Mas veio o vento, e com ele apartamentos fechados sandálias postas na porta, ausência de abraços, nenhum café com a família, sozinha, dias lentos. Continua feliz, com sua luz absoluta que sai da redoma, posto que canta para fora e ora.
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Retrato 3
Você entra nos lugares
olhando de lado, temendo gente você se afasta se alguém se aproxima tem medo do que lhe é dado
na boca uma máscara
nos dedos uma sutileza de tocar não tocando. Você entra nos lugares
Achando que vive uma perigosa aventura uma odisseia que derruba gregos e troianos frágil presa nas mãos do imponderável destino. Retrato de 2020: a morte presente
em cada vida, como sempre, porém frente a frente intensa, exigente.
Você precisa ficar sozinho, precisa de poucos somente loucos violam a lei da necessidade usando máscaras para um carnaval de rua quando agora a máscara não é fantasia. Saudade do mundo como um teatro brincante, cortinas abertas convidando para a alegria.
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Retrato 4
A morte viaja
visita a China e seus rios deslumbrantes o sol sobre muralhas, seus picos nevados. E mata.
A morte viaja
visita a Itália e suas catedrais
os sinos tocando sobre a história e a hóstia. E mata.
A morte viaja
visita a França e se lança sobre perfumes torres e praias, música e poesia.
E mata.
A morte visita o Brasil e surpresa encontra um rei que não se importa com a viajante
para o rei só interessa o espelho, o cetro e a coroa. A morte se instala com avidez
A gente do país já não pode acompanhar
os mortos, postos nas covas sem canto e cortejo sem cruz e último beijo.
Quando irá embora a morte, para viajar Somente a distâncias no tempo?
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A magia da ciência, a esperança.
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Retrato 5
Da varanda, décimo andar
o som do saxofone atravessa o fim da tarde emocionado o músico se curva
quase voando.
De um outro edifício, mares adiante a cantora deixa ecoar o seu canto enquanto replicantes vozes fazem lírico um mundo claudicante. O padeiro faz o pão e o doce
No campo o agricultor colhe nosso sustento Nos hospitais o ritmo passa do relógio Cuidado e risco no ofício do salvamento
Nas ruas passam dia após dia os coletores de lixo Nos cemitérios as covas são abertas e fechadas Continuamente, fechadas e abertas.
Música, poesia, livros, cores nas telas
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Castradoras amarras
Ângela Rodrigues Gurgel
Dentro de mim as palavras vão emudecendo e morrendo. As estrofes silenciam,
as frases não criam forma, os poemas são abortados…
isoladas, separadas umas das outras, as palavras se escondem dentro de mim e não conseguem se expressar…
com olhos de pavor,
elas observam os hospitais e cemitérios e se recusam a descrever esse holocausto… não querem testemunhar a dor
dos que ficam nem o terror dos que não querem ir… minhas mãos,
sempre molhadas,
impedem o deslizar das letras… Enxuguem minhas mãos, devolvam-me as palavras!
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Quero, outra vez, minha voz, meu grito poético, minha alegria… Eu ainda preciso escrever um poema que preencha minhas ausências… ainda quero rabiscar minhas linhas, quero recuperar meu olhar
e livrar-me das sombras que não me deixam sonhar e sempre me mostram
o mundo sombrio e assustador como uma folha em branco ou um bloco vazio,
jogado sobre a escrivaninha, coberto de poeira
amarrotado pela força das mãos improdutivas, gotejado pelas nuvens do nada mais.
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Tempo de reclusão
É tempo de reclusão,isolamento, medo, tensão tempos cinzas, assustadores…
É tempo de desacelerar os “motores”, não temos para onde ir,
melhor pararmos para refletir… É tempo de olhar em volta, reconhecer o lugar que habitamos,
quem sabe refazer alguns planos!?… Mas, também podemos
permanecer doentes, atingidos pelos já conhecidos vírus
e nada de novo, a nossa vida, acrescentar… Não é apenas a COVID-19
que precisamos derrotar, há, mais, muito mais, que precisamos recuperar, ou, morre
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Viralizando o pavor
Um, dois, três, centenas de vídeos, quatro, cinco, milhares de mensagens seis, sete, nove, dezenas de notícias, e ainda tem as fake news, as piadas, os áudios anunciando o colapsoos especialistas anunciando o holocausto… todos estão seguros de suas informações, não importam as fontes.
De repente todo mundo conhece alguém, que conhece uma prima que também conhece outra pessoa, que é amiga de uma profissional que contou a outra conhecida que estamos todos perdidos… todos, sem exceção.
A vizinha ouviu de uma amiga que mora noutro condomínio, que tem um parente distante, amigo de alguém importante, que tudo isso é culpa da mídia, isso é coisa de satanás,
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disse o pastor da igreja… Encontraram a cura, juro que é verdade,
diz alguém em algum lugar. ufa, ainda bem, estamos salvos… Não? Como assim?
Essa não é mais a última notícia? Então, o que faço com essa angústia que arrombou a porta de meu peito, ignorando meus gritos de protestos, minha prece vazia
e minha esperança contaminada? Não posso abrir, não posso abrir, murmuro em lamento,
mas a porta foi jogada contra a parede… entre soluços pedi, feche a porta, abre só a janela,
dela eu vejo o amanhecer e deixo o sol entrar, na esperança de deixar sair a ameaça e,
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que vai demorar,
é preciso resistir, acreditar não sei em quem ou o que… mas vou permanecer aqui, com uma oração nos lábios, sem abrir vídeos ou áudios, implorando ao Deus da vida que cuide de todos nós!
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Valores reais
Bárbara Fonseca
É fato de que a terra passa por uma enorme transformação Para que nós, semelhantes, irmãos
Vivamos em plena comunhão.
Desde o princípio o dinheiro e o triunfo, eram dignos de deslumbre. Os valores reais, o que ninguém compra… Tão somente recupera. É a nossa saúde.
Oremos pelos nossos irmãos enfermos.
Saibamos ter esperança, mesmo perante o medo. “Toda doença no corpo
é processo de cura para alma.” Limitados, não compreendemos
Que o outro necessita de nosso amor, de nosso perdão e de nossa palavra.
É fato de que a terra passa por uma grande provação Virá um novo tempo! Uma nova era!
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Um abraço a todos
Caio César Muniz
De Wuhan à Cabrobó, De Codó ao Reino Unido, Segue o Homem apavorado Com seu peito dolorido, Aturdido e acuado, Preso em casa, assustado Num planeta adoecido.
Do tamanho de um nada, Mas feroz feito um tufão, Surge um vírus poderoso Que nem toda evolução Da pesquisa e inteligência, Tomaram ainda ciência Desta sua dimensão.
Nas duas pontas da vida Os cuidados redobrados: As crianças, os idosos,
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Todos, todos isolados, Como um filme de terror, Até os toques do amor Seguem assim, monitorados.
E aquilo que até ontem Julgávamos essencial, Agora é dispensável E ponto fundamental: A distância e não presença, A ciência e não só crença, Para não fazer o mal.
Então eu posso estar longe, Mas me sinta aí bem perto, Bote um som do Belchior, Leia um livro, faça o certo, Fique em casa, deixe a rua, Essa causa é minha e sua, Seja luz neste deserto.
Lave sempre bem as mãos, Use sempre álcool em gel, Use máscara se sair,
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Cumpra bem o seu papel, Nos ajude, se ajudando, Como eu estou falando, Pra você, neste cordel.
E mantenha a sua fé, Neste momento em Deus, Se apegue às suas crenças E aos ritos que sejam seus. É momento de união, De judeu e de cristão, De agnósticos e de ateus.
Eu ouço daqui seu riso, Ouça minha oração, Sossegue seu pensamento, Acalme seu coração, Vamos todos ajudar
E receba em qualquer lugar Meu abraço, meu irmão.
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Foi preciso que um vírus Carregado de perigo Isolasse todo mundo Cada um no seu abrigo Pra que nossa ignorância Percebesse a importância De viver e ter AMIGO.
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Quando passa das dez
Camila Paula
Quando passa das dez Você volta pra casa, Abre a porta
E vê que tudo é nada. E nada é tudo que você tem. Você procura a mãe,
o gato, o irmão… Alguém? Você procura por você Em nome de quem? Já é tarde
E tantas noites ainda virão. Você mora de favor. Você só quer amor
Mas também precisa de pão. Teu ofício, teu vício,
Tua poesia não vale um tostão. Enquanto os teus pertences
São uns livros que você nem lê mais, tá sempre correndo pra dar conta
Antologia Poética quarenta em quarentena 34 De pagar a conta da cerveja barata
Que amortece de paz e alivia o cansaço. Trabalhadora não é feita de aço.
São dias difíceis para problematizar Quando você não tem o controle do carro, As chaves do portão.
Os papeis estão todos espalhados…
Se morrer hoje onde teu nome estará escrito? Sem a luta ninguém deixa legado.
Há quem deixe herança: Ouro, ilhas, países…
Existem países que há séculos só fomentam a guerra. Quantas guerras ainda existirão?
Contra a guerra a gente é flor ou canhão? Em meio aos tiros
A gente vai ao chão.
E num delírio lembra de fazer uma prece: Se amanhã eu acordar viva,
Me dê mais sede do que água, Mais fome que comida, Mais esperança que saída, Mais pecado que salvação.
Porque saciada é quem não vive a contradição Dos quereres e não teres
Antologia Poética quarenta em quarentena 35 Da loucura que é ter razão.
A graça é, assim, escurecer a vista E acender a fé
Para enfrentar a escuridão de lá… … Dos dias que não conhecemos E que não sabemos se vamos alcançar.
Antologia Poética quarenta em quarentena 36
Coisa de saudade
Hoje eu quis encaixar
Minha esperança, meu amor e todo o meu v e r s o no teu abraço.
Onde estão teus braços? Olhei pros meus, aqui. Os teus braços…
… não vi.
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Entre Mundos
Este mundo…
Drummond disse vasto.
E ainda que digam: — tá gasto E que não vale a minha poesia, Meu suor,
Minha lágrima E a minha utopia, Neste mundo há você!
Então que seja neste mundo que façamos o outro. O nosso.
Que valha mais a fé, o amor e o encanto. Que não fique pra tanto depois.
Que este mundo um dia seja o mundo Que mereça todo mundo
Antologia Poética quarenta em quarentena 38
19-COVID
Carlos Guerra Júnior
C
adaC
apitãoC
apitalistasC
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rdinárioO
bcecadosO
portunistasV
ovóV
omitaV
alorizamV
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ndoI
dioticesI
bovespa eI
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e repente!D
iscursivas!D
ólar!D
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emônio!D
omésticas!D
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utrosO
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elhinhosV
ersusV
erdadeirosI
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mportantíssimosI
ndividualismoI
dolos,Antologia Poética quarenta em quarentena 39
C
hiquesC
enárioC
iênciaC
lamoO
ntem,O
brigaO
fereceráO
bediência!V
iraramV
oltarmos aV
iragem?V
idasI
mpotentesI
nteligência deI
munizaremos aI
mportam!D
esesperados!D
outores.D
oença!D
oe-se!C
aminharC
onvívio éO
missoO
pressãoV
ivendoV
endo :I
nformado daI
nocentesD
estruição?D
espedindoC
omeceO
bedecendo oV
eto:I
sole-seD
iariamente!Antologia Poética quarenta em quarentena 40
Era só uma canção de lamento
Carmen Vasconcelos
Eu ainda posso abrir a boca
estarrecida com a violência do mundo ainda posso erguer as mãos
e pedir delicadezas
Eu ainda posso abrir os olhos e procurar os silêncios
de que careço permanentemente
como se permanecer fosse uma palavra com algum sentido posso dizê-la, ainda
E ainda escolher, neste caminho estreito e sujo as pedras mais leves
e desenhar uma trilha e até fazer paisagismo
Mas pra ela as pedras cessaram e o caminho cessou
Ela já não sente os pés cortados ela já não pode mais sangrar porque só há tempo coagulado no seu vestido
Antologia Poética quarenta em quarentena 41
no seu corpo
Eu posso sentir o ferimento dos espinhos mas pra ela dúzias de flores não bastarão dúzias de flores ocas e cansadas
plantadas no vazio mais denso
Ainda posso escolher entre o mau e o terrível e isso pode ser um alívio
Ela já não escolhe
nem entre posses, nem sensações nem entre pertencimentos.
Antologia Poética quarenta em quarentena 42
Ausência
Mães entardecidas recolhem suas crianças a casa. Menos as crianças que morreram no começar do dia, as que não podem mais ser chamadas.
As crianças que não podemos mais recolher vão perdurar, no entanto,
como estios na nossa alma,
como raízes fundas de plantas ressecadas.
Vai invadir nossas narinas o cheiro seco de suas ausências, de seus ossos,
cada vez que o vento levantar as cortinas da sala.
Suas empoeiradas ausências vão continuar conosco
em cada breve soluçar de espelhos, na luz e na sombra de cada olheira nossa.
Antologia Poética quarenta em quarentena 43
Todo poema é perjuro
Todo poema é perjuro,todo poema é corpo. E o corpo, esse passante…
Por quanto tempo suportará o corpo a decomposição da alma?
Que é alma, senão aquilo que não se põe no poema? Não é fácil compor a alma, nem compor o verso,
o medo de existir nos acossa. Acordei tarde com medo de existir, o sono era grave, com pesadelos. O medo de existir não cicatriza.
Antologia Poética quarenta em quarentena 44
Às vezes
Cefas Carvalho
às vezes
a alma sai do corpo e no limbo se demora
às vezes
os gritos são sussurros e não querem ir embora
às vezes
o vinho vira água
não mata a sede, nem embriaga
às vezes
a mão que apedreja não é a que afaga
às vezes nada faz sentido nem o vício, nem abstinência eis-me aqui: confinado, perdido
Antologia Poética quarenta em quarentena 45
Antologia Poética quarenta em quarentena 46
De esfinges
meus olhos em profano estarrecimentomeio de soslaio
detém-se, ano após ano à imagem do que adoro
de desgosto, de passamento em fundo poço caio
cá me demoro
em agosto, abril ou maio mas não me apavoro
ouço seu chamamento seu enigma, seu plano decifra-me ou te devoro
Antologia Poética quarenta em quarentena 47
Acessos
havia uma passagem secreta por trás da porta
um atalho, uma trilha uma armadilha
havia um labirinto em meio à tempestade
uma antecâmara, um altar um santuário…
havia uma fresta, uma janela um salto para o abismo havia o lirismo, os retalhos a poeira no chão…
mas não havia um mapa sem acessos, sem desvios
todos os caminhos levam realmente a roma? (e que estrada me levará ao fim dessa história?)
Antologia Poética quarenta em quarentena 48
No rastro do nada
Cellina Muniz
Numa tarde de domingo faz
— como fez e fará — outra vez: calor. E eu suava, eu fedia.
Era eu isso ali, antes de sumir revolvida em terra:
apenas um fedor. Corpo que sou,
cheirei assim minha condição: matéria,
imperfeita,
pequena possível podridão. E antes que poeira
sejam os poros desta pele que por ora visto
eu insisto: eu suo. Eu sou.
Antologia Poética quarenta em quarentena 49
E sendo carne e sangue, sendo cheiro vil,
assumo ser isso somente: incômodo em narina servil que, satisfeita de si, não aceita estranheza. Essa narina eu renego,
prefiro, antes, perfumar alhures,
ser outros olores, dizer não a esta venta vil. Vou antes voar com o vento
e rir de nariz que espera sonho impossível de perfume-salvação.
Eu? Não.
Vou antes feder bem muito pois logo mais
serei somente aquilo: Matéria morta. Sem vida, sem cheiro
sem sequer sombra do corpo que fui serei nada.
Antologia Poética quarenta em quarentena 50
Vozes da quarentena
Clauder Arcanjo
Prelúdio
Lá fora a morte me espreita, Cá dentro a solidão se insurge. Grito… Um poema de esguelha A duvidar se eu morrerei mudo. Lá fora a sorte me alivia,
Cá eu cismo, o acaso se me rebela. O poeta é arauto da liberdade E duvido da força desta procela. Quedo, a garganta se insurge. Sopro dois tercetos de esmola — Remédio para este moribundo. Lá fora a morte me agonia. Cá dentro a solidão ruge… A brisa da fé não me alivia.
Antologia Poética quarenta em quarentena 51
Do vivo
Valei-me, Nossa Senhora do Desterro! Valei-me, médicos angustiados! Valei-me, maqueiros sem rumo! Valei-me, enfermeiros em alerta! Confesso, pus a máscara, fugi da rua, Mas me encontraram na feira.
As frutas estavam maduras, O caixa isolado, e com receio… Na esquina, o vírus me abraçou; O espirro na chegada me denunciou. Há uma febre dentro de mim:
O corpo, cansado; e a alma, condenada. Valei-me, todos os santos! Irei ao desterro. Lá os homens de branco me entubarão; Eu, angustiado, me renderei, pois me calarão.
Antologia Poética quarenta em quarentena 52
Do coveiro
Nunca vi tanto movimento Nunca vi tamanha pressa Nem nos chega o caixão Sem reza, sem oração Já nos ordenam: “Enterra!”
Nunca vi coisa assim
Onde está a família deste homem? Onde está a mãe deste menino? Para onde foi o filho deste velho? Sepultaremos todos, sem bênção?… E outros mais se apresentam
Enquanto uma voz rude impera: “Valas maiores e fundas, soterrem!”
Nunca vi coisa igual Vão para o Céu, meu Pai, Enterrados assim como bichos?
Antologia Poética quarenta em quarentena 53
Do anjo
Quem te ensinou, homem A te livrares dos teus mortos, A enterrare-los em vagas abertas, Sem vigília, nem oração;
Sem te relembrares dos feitos deles, Sem lhes abonares as faltas ou os pecados, Sem dares a teus entes um terço
Ou uma ave-maria de consolação?
Quem te ensinou tamanha brutalidade: A congelares teus parentes em câmeras frias, A não recolheres os cadáveres sob choro e vela, A colocares código de barras nas frias testas, A dares velocidade no crematório insano — a queimares as carnes da humanidade — Ou a jogá-las nas valas dos cemitérios ímpios, A evitares tão só corvos, hienas e urubus?
Saibas tu, filho ingrato de Cristo, Que as almas haverão de retornar, A fim de ajustarem contigo as contas De enterro correto: condigno e bendito!
Antologia Poética quarenta em quarentena 54
Epílogo
Na porta da dor,
há sempre o capacho da esperança. Na janela do sofrer,
trina o canto do pássaro temporão. No alpendre da desventura,
surge a lua cheia da ventura. Na sala de estar da saudade,
revelam-se o abraço e o afago. No quarto principal,
abeirado ao leito, o amor em espera. Na noite, afinal, sem estrelas nem brilho,
Antologia Poética quarenta em quarentena 55
Púrpuras tardes
David de Medeiros Leite
No silêncio turvo e gélido,
espelhos e sorrateiros passos melódicos, fundem-se em enigmática noite.
Serenata indesejada à janela, assobios de ventos são augúrios a arrepiar a epiderme da madrugada.
Com gotas de claridade, Vaga-lumes,
Sintagmas-luzes,
ponteiam o manto negro do cio da escuridão.
E surgem
murmúrios de brisa a balançar o escuro véu, soprando vida,
Antologia Poética quarenta em quarentena 56
em tímidos veios de cor.
O dia avança,
com a liberdade de um condor, sabendo que outra vez morrerá.
Púrpuras tardes, prelúdios e presságios, que outros passos e espelhos urdirão de mistérios
Antologia Poética quarenta em quarentena 57
Encantamento
Demétrio Diniz
Da janela do hospital
Milhares de prédios de cor cinza Por onde a vista não alcança.
Um ou outro helicóptero sobrevoa distante a cidade monstruosa.
Um pequeno sobrado
De duas janelas e uma árvore na frente que dá flores amarelas Se espreme entre dois arranha-céus.
As janelas são da cor de ferrugem, de tão velhas. Entre cimento e pedra
Entre cimento e ferro Um encantamento.
Antologia Poética quarenta em quarentena 58
Gentileza
A verdade é que Jesus Cristo esteve sempre lá por casa nas saias compridas das crentes
nos cabelos em trança, penteados com óleo de ovo nos velhos hinos repetidos
nos livros de capa preta e letra miúda
nas orações que faziam ao redor da cama da irmã Toinha.
O pai, eternamente descrente
deixava que cantassem e orassem a tarde inteira e à saída das mulheres
que se despediam com café e bolo agradecia, humilde, o favor religioso.
Antologia Poética quarenta em quarentena 59
Do outro lado da rua
Calidônia fica no PanamáNo Michigan, a vila Caledônia
E por acaso ficou rodando no meu sonho Essa palavra que não me recordo bem agora Se Calidônia ou Caledônia
Sem sentido
Inexistente como substantivo comum. Dormia e sonhava
Enquanto lá fora, do outro lado da rua Estrondavam foguetões
Antologia Poética quarenta em quarentena 60
A jasmineira solitária
Dulce Cavalcante
Estremeço ante a passagem Do escuro pelas ruas Dos pesadelos Enfraqueço vagando pelas avenidas distraída
entre postes de lâmpadas pendentes, enquanto as mariposas noturnas disputam um lugar ao redor
donde emana uma luz bruxuleante. Envelheço
na dor de praças,
aonde antes, somente os sonhos, tontos, passeavam
de mãos dadas ao amor… hoje resta solidão
esquecida nos bancos há muito envernizados pelas nádegas vagabundas
Antologia Poética quarenta em quarentena 61
de outrem. Esqueço e, quero voltar
ao passado de fantasias
mas os fantasmas me assombram estão todos mortos, tanto quanto as jasmineiras do quintal
tão sem flor, tão sem perfume, sem viço.
Só o pensamento branco arranha
Antologia Poética quarenta em quarentena 62
É proibido seguir
A minha almanão se quer emparedada. Trespassa o muro
e cinza de tinta sai por aí a alçar voos brancos Que ardem nos olhos…
E lépidos varam paredes de mil anos luz Invólucros de lembranças e vontades
A alma atropela os malditos males que a cerca e aborrece
e, os lançam
no precipício dos infortúnios, aqueles onde vivem
alijados do convívio. Serão com certeza devidamente esquecidos.
Não é fácil furar o cerco que a detém. Rompam os braços, cordas, galhos e fios de seda, de ouro
Antologia Poética quarenta em quarentena 63
até os fios de puro algodão a acorrentam sem dó minha alma, minha pobre alma numa caixa… Embora sinta o calor da ternura, a mão de ferro da firmeza me castiga Fustiga sem dó minha pobre alma Já ferida e cabisbaixa.
Senhor!
Congela por favor a pandemia num planeta inóspito
onde não quero ir
onde ninguém, ninguém possa ir e, minha alma não ultrapasse
Antologia Poética quarenta em quarentena 64
Mil saudades
Vivo com muita saudade. Saudade de um tempo não este que corre ao lado,Saudade de lugares onde nunca pisei de caminhos que me perderam e por puro enfado não retornei… De amores, de sonhadas completudes.
Saudades de coisas pequenas, transparentes, emplumadas,
que de tão leves, não pesaram nos olhos apenas cravaram como ínfimos amuletos e se eternizaram como pássaros
em revoada de sonhos.
Saudade das paisagens noturnas, nascidas como sobras de gestos esquecidos de dizerem adeus…
Saudades, apenas vislumbradas nos desenhos antigos,
Antologia Poética quarenta em quarentena 65
mesmo borradas me diz a sombra é meu tempo… vontade, meu destino sonho, um bálsamo ao aliviar a descrença e matar de vez essa saudade
Antologia Poética quarenta em quarentena 66
Gessyka Santos
não houve tempo pra despedidas
os sapatos ficaram forçadamente encostados no canto da sala os cinzeiros repletos de cigarros
e o peito com pouco ar para vazios inteiros
hoje
vejo o céu pela moldura do quarto as nuvens não tem mais
Antologia Poética quarenta em quarentena 67
“escrevo pra não durar” ¹
na fumaça ansiosa
que vai até meus brônquios semiabertos respirar é difícil quando se divide espaços
duas pessoas
ocupando doze centímetros de um peito dois corpos
sem caber inteiro que respiram
só quando estão fora
Antologia Poética quarenta em quarentena 68
na insustentável contagem dos dias a ausência do teu nome
Antologia Poética quarenta em quarentena 69
Gonzaga Neto
eu não me arrisco a calçar os tênis
e brincar de passear no parapeito da janela por isso fecho as cortinas todas as noites e deduzo que seria um prejuízo enorme para o serviço de limpeza maputense ninguém sai de casa de manhã
pensando em limpar restos latino-americanos antes do pequeno almoço
um abraço do outro lado da rua a mandíbula perto da barraca de frutas da mamana
que exclamaria, talvez,
se pudesse reconhecer meu rosto partido em três pedaços
era um puto tão nice
e me comprava banana todos os dias domingo passado até tirou uma foto do meu sorriso e me marcou no instagram mas ela não teria como saber
Antologia Poética quarenta em quarentena 70
seria preciso ter habilidade profissional de um jogador de tetris
quebra-cabeça, quem sabe
o pé direito escondido debaixo do carro ainda calçado me faria ter certeza
de que fiz bem ao pagar tão caro por isso mas eu não me arrisco a calçar os tênis
e brincar de qualquer coisa no parapeito da janela tenho medo de altura, como bem sabem
e de saltos em locais ocos em direção a lugar nenhum já me bastam os para dentro de mim
Antologia Poética quarenta em quarentena 71
o quarteirão deseja dar a volta em mim
toda vez que vou à padaria do outro lado da rua pois os pés estão cansados do mesmo chão das facas na parede
dos pelos crescendo nos ombros dos dedos cheirando a manteiga
eu mesmo
só quero dar a volta nele sem pressa
e me encontrar por aí perdido em alguma esquina
Antologia Poética quarenta em quarentena 72
quando falaram que o mundo ia acabar imaginei que estaria a olhar pela janela e uma bola de fogo do tamanho de são paulo
se chocaria com o prédio mais alto da minha cidade imaginei que alienígenas surgiriam do asfalto
no fim de uma tarde de calor e nos fariam de escravos ou de pilhas para recarregar as suas naves neon imaginei novas hiroshima novas nagasakis mísseis americanos coreanos e russos fazendo arco-íris nos céus avermelhados imaginei que pudesse ser algo lento e doloroso como uma pandemia com nome de cerveja ou uma guerra biológica em prol da liberdade de um país no oriente médio rico em petróleo
ontem eu vi espancarem um homem com um cassetete
do conforto do meu sexto andar eu vi espancarem um homem e nada fiz além de me sentir mal
hoje cedo chorei por conta de tudo aquilo que sinto e não pelo homem espancado
ou pelo projeto ditatorial que está a se instalar no brasil quando falaram que o mundo ia acabar
Antologia Poética quarenta em quarentena 73
eu imaginei que saberia a hora
e que daria tempo de me despedir daqueles que amo agora sem poder dar adeus a ninguém
percebo que provavelmente o mundo já acabou
Antologia Poética quarenta em quarentena 74
Quarentena
Gustavo Luz
Estou em casa e você?
Também, deitada na minha cama,
comemorando um aninho do meu gatinho Nanã. — Estávamos com dez dias de quarentena.
Antologia Poética quarenta em quarentena 75
De tantos dias
De tantos diasexistem aqueles acidentados
passei pelas avenidas endereçadas ao futuro deveria compor frases e formar palavras-chaves Sento na mesma cama e o comentário
é coisa conhecida
não consigo renovar minha paciência carrego das avenidas o pó preto
e bebo em goles a paixão — fumo o dia O sol não mudou sua estrutura
a cor é de chumbo
e as calçadas, as árvores, os idosos, as motos, o vento sem iniciativa, a menina que eu deveria enamorar, os trechos, as linhas e os sonhos são apenas diálogos
mas vidas que tentam ser Na fala alheia soluço
e sinto o cansaço roncar no peito A música não consegue a gratidão encontra-se viajando na menina da casa da esquina
Antologia Poética quarenta em quarentena 76
Todo o momento tem um significado perdido a vida que não encontro no minuto.
Antologia Poética quarenta em quarentena 77
A semana
Na segunda quero morrer Na terça a vida é possível Na quarta alimento os gatos Na quinta chama o celular
Na sexta as estrelas ganham nome No sábado acode os amigos No domingo o buraco é fundo acabou-se o mundo.
Antologia Poética quarenta em quarentena 78
Cinzas
Humberto Hermenegildo
Eu isolado Eu conformado Eu intocado Eu imolado. Porta cerrada Asas nas brechas. Janela aberta Giro nas trevas. Tão longe o próximo De antes da quebra. Eu renascido Eu ressurgido Eu insurgido Eu conseguido. Fênix perdida No agora pronto.Antologia Poética quarenta em quarentena 79
Alma inventada No reencontro Perto a lonjura De um grave sonho?
Antologia Poética quarenta em quarentena 80
Ainda viva
Iara Maria Carvalho
no fim, tudo morre.
mas o fim ainda não chegou. eu, que tão natureza morta já fui, ainda estou viva.
eu, que já fui impermeável à vida, hoje me vejo líquida,
lírica.
uma maçã com escuros
à espera de um aboio que amanheça o sol.
Antologia Poética quarenta em quarentena 81 É primavera noutros cantos.
No meu canto de aqui, é uma estação
funda sem versos que a traduzam.
Mas sinto de longe nascer um
perfume.
Um perfume de flor que não existe no meu canto de aqui.
Talvez em lugar nenhum haja o cheiro que
ora atravessa minhas narinas.
Antologia Poética quarenta em quarentena 82 A solidão nunca foi
Antologia Poética quarenta em quarentena 83 Se eu dançar em meio ao caos,
não me cure.
Não me cure de ser alegre, ainda que reticente. Não me cure de amar entre cuidados exagerados.
Não me cure.
Eu sou terra, eu sou a Terra.
O meu corpo dança entre os hemisférios.
O meu corpo ri do pandemônio. Falta-me o ar e me sobra chão pra dançar com os pés
em febre.
Tenho a fibra das mãos gastas, tão alvas quanto
Antologia Poética quarenta em quarentena 84 Eu dançaria agora mesmo
com vovó se ela não tivesse morrido.
Permissão pra dançar.
Permissão pra adoecer de amor.
Permissão pra beijar quem eu ainda não beijei. Permissão pra cair do planeta
e ir vagar noutros sistemas: alegre
entre tijolos intergalácticos.
Antologia Poética quarenta em quarentena 85
Quem é essa?
Jeanne Araújo
Quem é essa que me busca desde a hora em que a claridade cega meus olhos?
Quem é essa que me espreita
e me oferece rendas, flores e névoas se eu a abraçar delicadamente?
Mas de que me servirá o cálice,
o beijo,
o penhasco se estarei hirta?
Ouça.
Não quero lápide. A palavra imortaliza.
Antologia Poética quarenta em quarentena 86
Rito de Passagem
Quando vens liberta-me do medo dos tropeços dos desertos tudo é névoa naufrágiorios de areia nos olhos tudo é silêncio
nada ouço
apenas percebo tua sombra escrevendo em pergaminhos minha angústia velada minha alma frívola e minha condenação.
Antologia Poética quarenta em quarentena 87
Senhora
Passei em claro escuras madrugadas e esta tem sido minha sina:
a palavra inacabada um outro rosto, abismado sequóia sagrada
coroa diáfana uma voz áspera um gesto tosco mãos em calafrio
Do vento, da vida e do tempo: Senhora
Antologia Poética quarenta em quarentena 88
1.
João Andrade
Meu verso é fratura exposta, nervo partido,
hemorragia borbulhante, punhal cravado
sobre a ferida aberta, ácido sobre as vísceras.
Eu canto o grito mudo que salta aos olhos
dos que se esgueiram invisíveis pelos becos e esgotos.
Eu canto
os humanos-helmintos encharcados de não, os famintos de amor e pão, os que trazem, no corpo e na alma, chagas e cicatrizes.
Antologia Poética quarenta em quarentena 89 Eu canto o canto imundo
dos que fedem, dos que azedam e dos que sujam
a tediosa normalidade azul dos belos,
dos salvos e dos felizes.
Antologia Poética quarenta em quarentena 90
2.
Não me importo com o punhal dilacerando a carne,
rasgando fibras, cortando nervos em seu balé insano de sangue e metal.
Importo-me com efeito estético da dor.
Interesso-me pela hemorragia encarnada e borbulhante de hemoglobinas
sobre a face branca e estéril da ordem.
Preocupo-me com a beleza rubra dos pássaros sanguíneos em uma revoada caótica e escarlate
salpicando de carmim a tediosa normalidade
Antologia Poética quarenta em quarentena 91 azul do certo.
Antologia Poética quarenta em quarentena 92
3.
O rio de minha aldeia não é mais belo que o tejo. Nunca me banhei nele nem sequer serviu para matar minha sede.
O rio de minha aldeia não suporta grandes navios. É raso como rasos
são os ribeirinhos, como raso sou.
O rio de minha aldeia é um rio qualquer
como tantos outros no mundo. Não é sagrado,
não guarda segredos e nada de útil ou de relevante é possível retirar de suas águas fétidas.
Antologia Poética quarenta em quarentena 93 O rio de minha aldeia
não merece constar em atlas ou em manuais de história.
A ponte sobre o rio de minha aldeia serve de trampolim para os suicidas.
Os esgotos e os esgotados jogados nele afagam e afogam minha alma inútil em um vórtice de merda,
abortos, agonia, desespero e solidão.
A única qualidade
que lhe justifica um poema
é que suas águas imundas empestam o cínico e indecente azul-turquesa do mar de minha aldeia.
Antologia Poética quarenta em quarentena 94
ao degredo
José de Castro
um vírus me condena salva-me! suplico ao poemaAntologia Poética quarenta em quarentena 95
recluso, longe do sertão
onde está meu boi de reisxote, forró — meu baião? saudades dançam aqui
Antologia Poética quarenta em quarentena 96
Solidão.
Junior Dalberto
Gosto de atravessar fronteiras, oceanos e almas.
Gosto de viajar lugares e percorrer pessoas, me acalma. Mas hoje me sinto acorrentado,
Meu corpo preso a paredes faz minha alma desejar voar, Abro janelas e fujo de mim.
Olho ao infinito e ensaio voos incertos, bonitos, Vou até você e te carrego nessa viagem.
Viajamos felizes, mãos dadas sobre montanhas, marés, nuvens e fantasias.
Um par de desesperados sonhando acordados, torcendo para esse pesadelo passar.
Solidão é uma tristeza quente que salga os olhos da gente, tem que dormir para passar.
Antologia Poética quarenta em quarentena 97
Abandono.
Dói abrir a porta e nada enxergar.
Olhar pra rua e ela estar nua, despida de gente, Apenas paralelepípedos quentes
e poeira nos narizes da gente. Nem os gatos vagabundos, Nem os cães vira-latas. A vida sumiu,
Estou só envolto em pensamentos estranhos, Por que não me levaram?
Será que foram todos abduzidos? O vento rodopia folhas,
Eu sigo,
Não sei para onde nem por que Apenas sigo,
Logo será noite,
Vou dormir novamente,
Quero um sonho cheio de gente Para quando acordar,
Antologia Poética quarenta em quarentena 98
Big Bang.
Somos instantes Explodimos em coisas Refletimos ocasos Multiplicamos viventes Conflitantes amores Somos sabores e cores Errantes estranhos Elegantes passantes Somos terráqueos Eternos ausentesLuzeiros nessa escuridão Que chamamos vida.
Antologia Poética quarenta em quarentena 99
Foice
Kalliane Amorim
Tua ausência me comove
como uma estrada em linha reta.
Os cercados, como ouvidos, espreitam meu caminhar rente às flores amarelas e roxas que vou pisando.
Tua ausência me comove… a cor murcha dessas flores…
Tua ausência é meu limite — intervalo entre o verde e a foice.
Antologia Poética quarenta em quarentena 100
Remissão
O dia termina de pernas cansadas O dia com suas varizes profundas A agenda vestida de náufragas horas
E à tona das horas, uns versos que boiam À tona dos dias, canções se recordam À tona de mim, solidões que se acolhem
Antologia Poética quarenta em quarentena 101
Oração
Dá-me flores,quando meus olhos só virem pedras, ainda que sejam
essas pétalas ressequidas, lembranças de sol e vento que na curva da estrada ficaram,
à beira de meu olhar peregrino.
Dá-me flores,
quando minhas mãos só guardarem o pó de meus próprios passos
e meus braços se estenderem, abertos, esperando, quase inutilmente,
uma resposta,
vinda de qualquer lugar, de onde nem ouso imaginar…
Dá-me flores,
que minhas sandálias já estão gastas, que meus lábios já entoam canções antigas,
Antologia Poética quarenta em quarentena 102
que uma outra curva já se aproxima, e eu quero florescer
Antologia Poética quarenta em quarentena 103
Observações prosaicas em tempos de
suspensão
Leonam Cunha
Corona vírus (relato núm. 1)
As ruas estão roxas de sossego. Rodeia a praça um cão — estou vendo da minha janela — que levou sua dona a passear. Há que haver uma boa desculpa para percorrer os cantinhos de solidão da cidade; por exemplo, faltou abacaxi em casa e eu sem suco de abacaxi não aguento a vida; ou preciso levar minha mãe ao interior mas vamos sozinhos no carro e nós dois estamos protegidos pelo paninho das máscaras — tá vendo, seu polícia?; ou também: sou agricultor, tenho que carregar sobre os ombros umas cidades inteiras um sem fim de mundo.
Além disso, estamos rodeados de nossos livros, nossos jornais, nossas notícias, o eco da casa sem muitos passos, o ruído de uma porta batendo à distância ou o murmúrio de uma pomba (sons aos que não podemos nos dedicar devido ao trabalho, à agonia, ao trânsito, à embriaguez, à disciplina, aos turistas, aos sinos das igrejas, etc. etc.) Nesses momentos em que direitos estão suspensos, a gente tem que redescobrir e promulgar novas conquistas — não para o tempero de meras ilusões,
Antologia Poética quarenta em quarentena 104
mas como alento, como cafuné. Hoje quis deixar claro que ESTOU EXERCENDO MEU DIREITO DE OUVIR O RESSONAR DE UMA JOANINHA.
Mas ao redor tudo ardequeima. O menino da loja de embutidos foi dispensado e a irmã do meu amigo demitida temporariamente. Os antigos pedintes da cidade ou já morreram de fome ou de vírus ou talvez os albergues municipais os tenham acolhido (não se sabe em que condições estão). Todos os dias dá no jornal da manhã o número de pessoas que por tanto tempo suportaram o mundo e de repente lhes decretaram que sua perseverança não mais valia. O governo apela para várias medidas que durante minha vida chamei de estratégias socialistas. Mas a revolução agora é a do medo.
…
O território está dividido aos cacos. Sobra dinheiro de um lado e há árvores demais neste quintal.
À mulher que quer falar sobre violência lhe dirão que não. Ao casal que quer falar de amor (não obstante a maquinaria torpe da psiquiatria) também lhe dirão que não.
Os corpos voam num espiral de incertezas: amanhã alguns milhões de pessoas não saberão se vão comer. Hoje à noite outros tantos não saberão se sua pele será tatuada com um projétil comprado por gente decente.
Antologia Poética quarenta em quarentena 105
Dessa gente, o saco do país está cheio. Estamos diante de um telão posto aqui por incentivo do governo e dentro da tela surgem uns olhos enormes, assustadiços, surge um grito dentro da sala vazia, dentro da fortaleza da falta de som.
E vamos aplaudir! como cidadãos que querem retirar o status quo até do cu, se necessário. (O cu não. Aí não se pode mexer. Também não se pode pôr o dedo no apart-hotel onde dorme um senhor sonhando tranquilamente com sua carga de cocaína que chegará a Sevilha no dia seguinte).
Terminamos os dias assistindo a uma ruína espetacular que sussurra que o futuro não será aquilo, e não terá aquele brilho que havíamos previsto.
Corona vírus (relato núm. 2)
Hoje vi um menino sendo multado pela polícia: parece que não conseguiu se explicar direito, estava em um local muito afastado de sua casa. Tudo isso ainda dá muito medo mas eu tive pena do menino. Parecia querer formar-se uma cara de lágrima no rosto redondo dele. Tive pena porque ninguém sabe bem — mesmo auscultando direitinho e rebuscando pelo de dentro — a dor do outro, não dá pra se saber bem direitinho.
Faz bem um mês que escrevi o primeiro relato (não sei bem, acabaram-se os dedos de contar). Alguma coisa mudou, parece que o silêncio acabaram-se
Antologia Poética quarenta em quarentena 106
está diluindo. Em alguns pontinhos da cidade parece formigar uma esperança, que coça o pé de manhã. Só não sabemos o quanto durará esse tremelique, se nos afetará inexoravelmente, se será apenas um devaneio favorecido pelo momento…
Mas finalmente parece que está sendo mais possível pensar n’O Depois. Não sabemos como vai ser a vida n’O Depois, é certo. Se o que vai vir do após-calipse vamos continuar chamando vida, tal qual entendíamos esse tão aludido conceito. O certo também é que vamos voltar pouco a pouco à merda de antes: vamos reparar na merda que não reparávamos? Não sei o que nos dirão os quatro cavaleiros quando levantemos um sol forte como o sol de outros anos. Vai ser o mesmo verão? Acho que a vida mudou pra sempre. Espero. Pelo menos espero que os laços que unem as vidas tenham mudado pra sempre, mudado pra serem laços duros que nem a vontade contra a morte. Pelos menos, estou esperando.
Antologia Poética quarenta em quarentena 107
Haicais
Lívio Oliveira
Gado velho pasta mato sem dono: avenida da palavra gasta.
No planeta um vírus invade casas, abrigos reinos vãos: exílios.
Vapor de dor: gás
pulmões secam, almas caem E DAÍ? Engasgo!
Antologia Poética quarenta em quarentena 108
Lucas Rafael
“O que vou falar aqui é tipo um desabafo… nada de ser um oportunista literário,
desses que aproveita o tema do momento pra fazer texto… famoso escritor midiático.
É que meu amigo disse que se pega chorando, desesperado e assustado, porque sabe que pra gente não há nenhum amparo.
Se aqui, o primeiro que morreu tava no hospital mais caro, quem dirá nós, com recursos em péssimo estado.
É de se preocupar a cada nova informação,
o outro chega e fala: “Como faz pra não surtar com toda essa situação?”
Não tiro isso da minha cabeça, principalmente quando tô só,
penso no meu pai, na minha mãe, nas minhas irmãs e na minha avó.
Sim, minha avó! Porque falam: “não se preocupem, essa doença só mata quem é idoso”,
Antologia Poética quarenta em quarentena 109 quem pensa dessa forma é o mesmo que cometer um crime doloso.
A vida deles importa!
Cada um representa uma história!
Em relação a esse teu pensamento? Destrua!
Seus arrogantes! Querem saber sobre a história do mundo, quando não sabem nem a da sua própria rua!
Nessas situações que só reforça o que eu já dizia: O mal do mundo é a falta de empatia.
Aí, L7NNON, sabe o que é o causador de toda essa asma, mano?
É que os pulmões humanos têm dificuldade em conseguir ar suficiente para que possamos pronunciar um simples “eu te amo”.
Irmão, sabe o que é lamentável?
É que quando as pessoas estão com o amor nas mãos, elas passam álcool em gel.
Ninguém floresce sozinho aqui,
quem vai regar o jardim das flores que nascem das dores do fim?¹
Antologia Poética quarenta em quarentena 110 Nosso corpo é uma caixa. Só por curiosidade, liberte a sua esperança.”
Antologia Poética quarenta em quarentena 111
Ofício poético
Marcos Ferreira
Sentado sobre a cama, à luz da vela Duplica a solidão que o penaliza. Escreve num papel, que se amarela Ao foco dessa luz tão imprecisa.
Levanta e vai fumar junto à janela — O peito aberto à esmola de uma brisa. Recorda com desgosto o beijo dela Ainda no batom preso à camisa.
Apoia os cotovelos no batente. Inclina-se um bocado, espreita a rua E cospe na roseira à sua frente.
É tarde… Um galo canta no vizinho. Então ele retorna e continua
Antologia Poética quarenta em quarentena 112
O impaciente
Num triste e moribundo leito de hospital, Tomado pela angústia e pela cefaleia, Me chega esta esquisita e complicada ideia Querendo fazer verso à minha dor renal.
Então, meio sem brilho e me sentindo mal (A mão tremendo feito um bolo de geleia), Puxei pela cabeça e dei na seborreia — Em vez do metro certo e a rima original.
No entanto, julgo até que vou saindo bem — Embora assim furado pela Voltaren E um pouco sufocado pela mão do tédio.
Pois findo este soneto mesmo na carreira, Agora quando chega a santa da enfermeira Trazendo a bandejinha cheia de remédio.
Antologia Poética quarenta em quarentena 113
Horas mortas
Assim das águas desse mar de sonhos mortos, Onde perdemos tantas vezes nossos barcos, Eu vou levando minha nau para outros portos, Eu vou deixando para trás todos os charcos…
Eu deixarei meus dez ou mais projetos tortos, Os meus lamentos e prazeres muito parcos; Hei de levar meus ferimentos, mas suporto-os, Como você há de deixar também seus marcos.
Irei, talvez, no meu momento mais precário, Quando me encontro tão perdido e solitário Nas horas mortas desse cais da solidão.
E quando eu for, você dirá com jeito forte: — Seja feliz!… Eu lhe desejo muita sorte… — E eu levarei mais essa dor no coração.
Antologia Poética quarenta em quarentena 114
A vida está em casa
Marcos Medeiros
É triste essa Pandemia Em que a gente todo dia
Tem que em casa estar trancado, Mas o ponto positivo
É mesmo seguir bem vivo E não ser contaminado.
Esse vírus é um danado Porque vem de todo lado, Entra em boca e em nariz. Por isso máscara use, Proximidade recuse, Faça o que a Ciência diz.
Não siga o doido infeliz. Não faça o que não condiz, Nem saia do isolamento. Faça o certo, peça a Deus, Chame por vídeo aos seus,
Antologia Poética quarenta em quarentena 115
Mantenha o distanciamento.
Em casa, curta o momento, Procure divertimento, Veja “laive” na TV. Faça uma boa leitura, Brinque de forma segura, Olhe mais para você.
Procure ver o que vê, Buscar o quê e o cadê, Na sua casa querida, Pois assim vais descobrir Que não deverás sair Porque nela está sua vida.
Antologia Poética quarenta em quarentena 116
À mulher vai(idosa) na quarentena
Vá idosa conversarCom a mesa e o frigobar, Sem pensar que está caduca. Isso é fruto do momento, Do profundo isolamento, Tão longe de uma muvuca.
Procure arejar a cuca. Para não ficar maluca, Muito invente e exercite. Use a criatividade. Não acredite que a idade Atividade limite.
Uma dançarina imite. No seu gingado acredite. Com sua vassoura dance Ao bom som de Rita Lee. Cante de si para si.
Antologia Poética quarenta em quarentena 117
Dia a dia nisso avance. A tristeza braba amanse. Não fique impressionada. Renove-se a cada dia. Durante essa pandemia Mostre estar bem preparada.
Se estiver descabelada, Finja ser bem penteada Por sua cabelereira, Ou coloque uma bandana Só pra ver se ela engana Numa selfie de primeira.
Antologia Poética quarenta em quarentena 118
Meu muito obrigado a Deus
Nesse meu confinamento,De dentro do isolamento, Muita coisa já escrevi. Procurei a fantasia, Vesti-me de poesia, Para ver quem eu não vi.
Na maratona insisti, Livros já li e reli. Visitei novo universo. Refleti bem de repente. Pensei mais em minha gente, Retratando em cada verso.
Meu viver ficou diverso De qualquer modo transverso Que eu tivesse exercitado. Por isso a Deus agradeço Poder do meu endereço
Antologia Poética quarenta em quarentena 119
Dentro de mim
Margareth Freire
Quero rasgar teu peito E me colocar lá dentro Mesmo sem saber Se tenho
Esse direito
Ficar presa no teu coração Quero enveredar
Por tuas retinas Para que nada vejas Além de mim Quero ser teu desejo Teu pensamento E teu único amor
A paixão que avassala sem medo Quero ser tua órbita
Teu princípio Meio e fim Eu quero ser você Bem aqui
Antologia Poética quarenta em quarentena 120
Antologia Poética quarenta em quarentena 121
Sem medo de errar
Lembro a primeira vezEm que você me amou A magia do momento Uma sensação esquisita Onde se misturavam Ao mesmo tempo Medo e ansiedade Eu te queria e sentia Que você me desejava Tuas mãos macias Teu beijo quente Fizeram-me esquecer De todo o mundo E de repente eu deixei
Que a emoção me conduzisse E me deixei levar por você Sem medo de errar
Naquele momento Eu só queria
Antologia Poética quarenta em quarentena 122
Desafio
Eu te desafio A me mostrar Quem neste mundo Te ame mais que eu Que seja capaz de se dar Fazer loucurasTer coragem suficiente De mostrar sem medo Sem vergonha
O querer palpável O desejo latente O amor gritante Que sinto por você Eu te desafio A me mostrar Quem neste mundo Te ame sem frescura Te queira com loucura Mais que eu.
Antologia Poética quarenta em quarentena 123
Os gatos voltam à meia-noite
Maria Maria Gomes
Os gatos se confundem ante as situações —nada triviais— e rompem a escuridão da noite seridoense : ambígua e solitária.
Mesmo que Netunos e Afrodites se lamentem —pelos falsos desejos— há de se saber
:
Antologia Poética quarenta em quarentena 124
Anúncio classificado
Preciso urgentemente de um pintor: que retoque, toque, pinte o meu coração. Preciso de um construtor para ressurgir as ruínas— Vendaval que passou.
Preciso de flores na casa, cortinas divididas
Um sino do vento Pendurado à janela, preciso!
Antologia Poética quarenta em quarentena 125
para iluminar o telhado e a mesa de jantar.
Preciso reconstruir meu coração
com uma cama para amar
Preciso ser Cleópatra e
Antologia Poética quarenta em quarentena 126
Desassossego
O instanteàs vezes me atormenta:
toca-me o ombro, desembala meu sono,
acorda o parceiro que dorme, mexe na minha loucura, rouba-me a solidão, tira-me, escondido, todos os meus sentidos.
O instante se afoga nos fonemas da palavra.