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Eu e o outro no centro: uma reflexão acerca dos processos de identificação no espiritismo

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS. GLEIDE SACRAMENTO DA SILVA. EU E O OUTRO NO CENTRO: UMA REFLEXÃO ACERCA DOS PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO NO ESPIRITISMO. ORIENTADORA Profª. MIRIAM CRISTINA M. RABELO, Phd, Cs.. Salvador 2006.

(2) GLEIDE SACRAMENTO DA SILVA. EU E O OUTRO NO CENTRO: UMA REFLEXÃO ACERCA DOS PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO NO ESPIRITISMO. Dissertação apresentada ao Curso de PósGraduação Stritcu Sensu em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia para a obtenção do Grau de Mestre.. Salvador 2006.

(3) GLEIDE SACRAMENTO DA SILVA. EU E O OUTRO NO CENTRO: UMA REFLEXÃO ACERCA DOS PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO NO ESPIRITISMO. Aprovado em 28 de julho de 2006.. BANCA EXAMINADORA. Profª. Miriam Cristina M. Rabelo, Phd. Cs – Orientadora Universidade Federal da Bahia. Prof. Edson Silva Farias, D. Cs. Universidade Federal da Bahia. Prof. Jorge Iriart, D. Antropologia Universidade Federal da Bahia.

(4) S586. Silva, Gleide Sacramento da Eu e o outro no centro: uma reflexão acerca dos processos de identificação no espiritismo / Gleide Sacramento da Silva. – Salvador, 2006. 232 f. Orientadora: Profa. Dra. Miriam Cristina M. Rabelo. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2006. 1. Espiritismo. 2. Espiritismo – Estudo de caso. 3. Corpo e Espírito. I. Título. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. CDD – 133.9.

(5) À minha família, especialmente minha mãe..

(6) AGRADECIMENTOS. À fapesb, pelo financiamento ao longo de dois anos de estudo; aos professores, colegas e funcionários co-presentes na minha jornada, tornando-a, ao mesmo tempo, mais agradável e instigante; à minha orientadora, pela compreensão; à minha família, por sempre estar junto a mim; a todos os participantes do centro espírita, especialmente àqueles que me ouviram e, principalmente, falaram, sempre com muita boa vontade; A Isaurinha e Tito, membros da COBEM e amigos novos, com os quais tive o mérito de conviver e ser contemplada com a estima; A Aloísio Ribeiro, Noraldino Pitanga, Clarice e Aldenora Cristina, parentes e amigos mais antigos pelos quais nutro especial carinho, e que de alguma forma, ou mesmo de várias, tiveram uma importância capital para a realização deste trabalho. Sem vocês, “novos e velhos”, a concretização desta etapa seria uma quimera, por isso, a todos, mesmo àqueles que por qualquer descuido da minha parte não citei, os meus sinceros agradecimentos..

(7) RESUMO. Constituindo-se no bojo temático Modernidade, Religião e Identidade o propósito que norteou todo o trabalho dissertativo refere-se à compreensão dos processos e elementos que entram em jogo para a construção de identificações no espiritismo e prováveis reorientações existenciais. Com a finalidade de contemplar tal objetivo foi realizado trabalho de campo durante dois anos e meio em um centro espírita de grande porte na cidade de Salvador, entrevistas e aplicação de quinze questionários gravados com os participantes da instituição. Os resultados da pesquisa estão refletidos na estruturação dissertativa em quatro capítulos. Em dois deles procuro problematizar religião, modernidade e possíveis relações entre ambos; a emergência da Razão e do Sujeito Reflexivo; e a conformação cosmológica e histórica do espiritismo dialogando com outras instâncias sociais modernas. No capítulo intermediário foi abordado a estrutura organizativa e funcionamento do centro espírita levando em consideração seus rituais e práticas; e por último, analisados os processos de identificação contribuidores de redefinições de contextos e sujeitos em dimensões que abrangem reflexividade, corporalidade e performance.. Palavras-Chave: Espiritismo, reflexividade, corpo, processos de identificação..

(8) ABSTRACT. Constituted of the thematic core of modernity, religion and identity, the purpose which orients all of the dissertation project refers to the processes and elements which enter in play for the construction of identifications in Spiritism and probable existential reorientations. With the end of considering this objective, fieldwork was carried out during two and a half years in a large Spiritist center in the city of Salvador, involving interviews and the application of fifteen questionnaires recorded with the participants of the institution. The results of the research are reflected in the dissertation’s organization in four chapters. In two of them I attempt to problematize religion, modernity and possible relations between both; the emergence of reason and the reflexive subject; and the cosmological and historical conformation of Spiritism dialoging with other modern social instances.. In the intermediate chapter I examine the organizational structure and. functioning of the Spiritist center taking into consideration its rituals and practices; finally, I analyze the processes of identification which contribute to redefinitions of contexts and subjects in dimensions which include reflexivity, embodiment, and performance.. Key-Words: Spiritism, reflexivity, embodiment, processes of identification..

(9) SUMÁRIO INTRODUÇÃO. 10. DELIMITAÇÃO EMPÍRICA E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS. 15. CAPÍTULO I - RELIGIÃO E MODERNIDADE. 20. CAPÍTULO II – ESPIRITISMO: HISTÓRICO E COSMOLOGIA. 51. 2.1. A Cosmologia Espírita 2.1.1. A caridade 2.1.2. O estudo 2.1.3. A mediunidade 2.2. O Espiritismo no Brasil. CAPÍTULO III – CONHECENDO A COBEM. 54 66 67 68 71. 85. 3.1. DAS – Departamento de Ação Social 3.2. DEPAT – Departamento de Administração e Patrimônio 3.3. DIJ – Departamento de Infância e Juventude 3.4. DED – Departamento Doutrinário 3.5. DAM – Departamento de Assuntos Mediúnicos 3.5.1. O Setor de Passes 3.5.2. Setor de Atendimentos Espirituais 3.5.3. Setor Mediúnico. 98 99 100 102 108 109 110 119. CAPÍTULO IV - EU, OUTRO E CONTEXTO: INCURSÃO ACERCA DE ALGUNS PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO NA CASA DE ORAÇÃO. 133. 4.1. Construindo um perfil 4.2. Trajetórias e Processos de auto-identificação do Eu 4.3. Eu, corpo e contexto juntos na experiência de transformação. 136 147 174. CAPÍTULO V – CONSIDERAÇÕES FINAIS. 194. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. 202. ANEXOS. 211.

(10) INTRODUÇÃO. Esta pesquisa, desenvolvida junto à linha de estudos Saúde, Cultura e Sociedade oferecida pelo Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH)/UFBA, tem uma origem um tanto quanto longínqua. Na época da seleção de Mestrado deste Programa o projeto então apresentado constituía-se em um prolongamento do trabalho anterior desenvolvido na graduação, materializado em sua forma acabada na Monografia de conclusão do Bacharelado. Esta, por sua vez, adensada em um tema de fôlego como o do estudo da religião enquanto recurso terapêutico, não só teve o seu ponto de partida como foi tecida mediante a minha participação durante três anos enquanto bolsista de iniciação científica no Núcleo de Ciências Sociais e Saúde (ECSAS) – situado nesta faculdade e também vinculado à linha de pesquisa deste Programa acima referida. Em termos cronológicos, a elaboração do projeto da dissertação sucedeu-se quase imediatamente à defesa da Monografia, que teve por objetivo principal investigar o processo terapêutico do espiritismo em um centro espírita situado num bairro popular de Salvador. Tendo em vista o frescor dos dados, análises e debates realizados durante e no término da então recente pesquisa, foi-me praticamente impossível não construir um projeto que buscasse não só dar continuidade ao trabalho desenvolvido como também objetivasse preencher lacunas e responder questões que, sem dúvida, ficaram abertas. Assim, como todo processo de pesquisa sempre aponta para múltiplas possibilidades, havia uma questão, dentre tantas outras sugeridas, presente de maneira latente na Monografia, mas que me intrigava profundamente. Tal questão foi ganhando corpo durante o Mestrado na medida em que ia cursando determinadas disciplinas1 e dialogando com alguns professores e colegas, promovendo, neste sentido, alterações no projeto apresentado inicialmente ao programa, de tal sorte que ela passou a ser, hoje, o cerne do meu esforço dissertativo. 1. As discussões travadas ao interior das disciplinas Teoria Social Contemporânea, ministrada pelo profª. Edson Farias; Pesquisa Orientada (PO), ministrada pelos professores Pedro Agostinho e Maria Rosário de Carvalho, bem como Estudos sobre Contemporaneidade, conduzida pelo profº. Milton Moura foram fundamentais para a redefinição do problema..

(11) Ao reconstruir, na pesquisa monográfica, a trajetória de espíritas em relação às suas doenças e formas de tratá-las ficou patente nas narrativas dos participantes daquele espaço (pacientes, médiuns, doutrinadores e líderes) que para o sucesso da terapêutica proposta não era suficiente uma simples atenção voltada unicamente à doença, mas fundamental um olhar centrado no doente, havendo, neste sentido, nos discursos e práticas espíritas um apelo constante a uma redefinição existencial; uma mudança do agir, pensar e ser. Obviamente, concepção como esta envolve muito mais que uma ação setorializada ou estritamente voltada para algo específico, tais como manifestações patológicas. Tal compreensão religiosa imperiosamente punha constantemente em jogo todos os aspectos do seu arcabouço cosmológico tecendo continuamente uma estrutura simbólica e, conseqüentemente, práticas postas em diálogo com os crentes e prováveis adeptos, ou, dito de outra maneira, com tudo o quanto os crentes e prováveis adeptos eram ou acreditavam ser: suas representações, histórias, pertenças, biografias, etc. Algo assim tão evidente e, ao mesmo tempo – estranha ironia -, difuso e pouco explicito naquele trabalho - na medida em que fazia parte da discussão central, embora não se constituísse ele mesmo enquanto tal – deixou de ser aprofundado, tornando-se uma inquietação crescente. Refiro-me a uma abordagem acerca das elaborações identitárias, ou, de outra forma, dos processos de identificação ao interior do contexto espírita. Longe de caracterizar-se enquanto uma ruptura com a proposta do projeto anterior, a questão que, em sua problemática, firmou-se de maneira mais contundente, passou a sugerir um redirecionamento e também um alargamento da discussão anteriormente proposta. Construído na tessitura deste novo objeto temático: espiritismo e identidade, o meu objetivo geral passou, então, a ser a compreensão dos processos e elementos que entram em jogo para a construção de identificações no espiritismo, notando-se que esta proposta poderia tornar-se ambígua se – o que não é o caso – procurasse abarcar várias frentes de um mesmo problema. Uma delas, sem dúvida interessante, mas que não se constitui móvel do nosso trabalho, refere-se à construção identitária da religião enquanto grupo congregador de determinadas idéias e posturas que procura firmar-se nas fronteiras de embates com outros grupos ou segmentos igualmente arregimentadores de determinados significados e práticas. Este movimento pode ser observado com muita nitidez durante o processo histórico de formação e estabelecimento do espiritismo no Brasil a partir de meados do século XIX,. - 10 -.

(12) período no qual os espíritas forjaram sua identidade mediante o enfrentamento e/ou diálogo com vários setores da sociedade, como por exemplo, a Igreja Católica, o saber biomédico, o Direito, as camadas populares, a Umbanda e as classes médias (Camurça, 1997; Damázio, 1994; Giumbelli, 1997; Santos, 1997). Mas pode ser flagrado também em tempos mais atuais – mesmo porque uma construção identitária nunca cessa a sua (re)elaboração – quando voltamos o nosso olhar para o comportamento de espíritas em relação àquilo que se lhe apresenta como seu exterior, àquele “outro de fora”. Fato possível de ser percebido, como o faz Stoll (2004), através da reconstrução de narrativas biográficas de duas figuras emblemáticas do espiritismo brasileiro, Chico Xavier e Antonio Gasparetto, cujas histórias marcadas, cada um a seu modo, por um dialogo com o universo católico, contribuíram para a inscrição de vertentes diversas no seio espírita; ou ainda – polêmica instituída mais recentemente – com os livros psicografados pelo médium mineiro Robson Pinheiro, a exemplo de Tambores de Angola (2003) e Aruanda (2004), que além de abordarem veementemente a Umbanda fornecendo-lhe um teor positivo2 criticam o sectarismo do espiritismo propondo um encurtamento das distâncias, assim como um diálogo mais perene e fértil com aquela religião. Desnecessário dizer que isto tem causado um rebuliço nos meios espíritas tendo em vista que propõe implicitamente, ou talvez até mesmo explicitamente, uma redefinição de alguns elementos da identidade espírita, já que sugere uma revisão de postura frente a Umbanda. Algo nada fácil e tranqüilo de se realizar, pois que um dos elementos discursivos historicamente constituidores dessa identidade espírita era a demarcação de fronteiras com a Umbanda, buscando incansavelmente sua afirmação mediante a negação de qualquer similaridade com esta última. Sem dúvida, a construção do eu num jogo de afirmação e negação com a alteridade (Rubem, 1988; Silva, 2003; Hall, 2003). Neste sentido, a proposta do médium mineiro parece traduzir-se senão em uma reelaborção identitária por completo, ao menos em uma abertura “oficial” de diálogo com outras religiões3 e uma renegociação de fronteiras. Estratégia inteligente de afirmação? Provavelmente. Conflituosa ao interior da própria religião, na medida em que esta sustenta – aliás, como praticamente toda religião no Brasil – um discurso da pureza baseado no. 2. Apesar de Pinheiro trazer para a discussão o tema de outras religiões – as Igrejas Evangélicas são também tematizadas através do livro O Transe – em se tratando especificamente de Aruanda e Tambores de Angola, o escritor, me parece, não deixa de submeter a umbanda a uma lógica e certa hierarquia espírita. 3 Pois não há como negar que este diálogo já ocorre sob vários aspectos no cotidiano dos adeptos.. - 11 -.

(13) revisitar das origens e fundamentos espíritas? Sem dúvida. Mais uma faceta do nosso já tão complexo, dinâmico e “mixado” campo religioso brasileiro? Incontestavelmente. Contudo, como mencionei acima, o enfoque sobre a dinâmica de constituição dos grupos espíritas em suas relações dialógicas, políticas e conflituosas com outros estratos sociais religiosos ou não religiosos é uma abordagem que, embora interessante, por ora, neste trabalho, não será o foco, não obstante, em alguns momentos seja referenciado, pois – como não poderia deixar de ser - implícita e até explicitamente perpassa as relações e discursos dos participantes ao interior do contexto religioso. Nesse sentido, a perspectiva que me interessa mais de perto no momento, igualmente instigante e não menos complexa, diz respeito às redefinições existenciais que provavelmente ocorrem com os adeptos e com a própria religião quando as duas partes interagem, pondo em diálogo sempre contínuo, numa acepção goffmaniana, a identidade social religiosa com as identidades pessoais e do “eu” (1988). Como argumenta Weber (1982), a religião sofre modificações em suas práticas na medida em que ao atender os interesses dos fiéis ela não apenas contribui para a conformação de um certo ethos como também encontra-se sujeita a reelaborações no processo de angariar e manter um corpo estável de membros. Com efeito, é possível observar nos centros espíritas formas particularizadas de interpretar e viver a doutrina em que os aspectos cosmológicos adquirem relevância de forma diferenciada, conformando assim ethos espíritas bastante específicos. Sob esta perspectiva, trata-se de uma interação dialógica, de um ir e vir, onde são constantemente acionados, redefinidos e reorientados, tanto por parte da religião quanto da perspectiva dos fiéis, símbolos, percepções e emoções. Em se tratando mais detidamente dos membros, nestas novas reelaborações e redirecionamentos processuais imbrica-se um feixe complexo de significações e traços identitários de diversos níveis e tradutores de várias pertenças. Característica da Modernidade, onde mecanismos de auto-identidade são formados e formadores das instituições modernas, o “eu”, segundo Giddens (2002), é elaborado reflexivamente em meio a uma multiplicidade de opções e possibilidades. Sem desconsiderar o acesso diferenciado ao poder e ao consumo, assim como as desigualdades e diferenças fundamentais presentes no mundo capitalista, compondo as referencias identitárias dos sujeitos, à exemplo da etnicidade, gênero e classe, Giddens argumenta que a elaboração identitária torna-se um empreendimento organizado reflexivamente no qual narrativas são. - 12 -.

(14) construídas e continuamente revisadas proporcionando a seleção e agregação a “estilos de vida” os mais distintos. Contudo, em meio a tantas escolhas e “mecanismos de desencaixe” possibilita também aquilo ao que ele denominou de “insegurança ontológica do eu” afetando o “casulo protetor” constituído, sobretudo, na infância. Em uma cultura moderna de altos “riscos” tornam-se primordiais a seleção e o relacionamento com instituições que possam promover segurança ao eu abalado. A religião, assim, pode ser uma dessas instituições. Todavia, é importante ressaltar que em se tratando de tematizar o contexto brasileiro e seu universo religioso, a leitura que o sociólogo faz da Modernidade racionalizante e racionalizadora em suas relações e conseqüências para o eu igualmente racionalizador e plenamente consciente em todos os instantes da vida não pode ser simplesmente transposta para a nossa realidade por ser esta não apenas marcada por tradições muito diversas, como também levar em consideração que este eu reflexivo não o é em todos os momentos e dimensões da vida. Entretanto, Giddens tem razão ao pontuar outros aspectos que têm peso na dinâmica das redefinições das identidades. Um deles, sem dúvida, constitue-se nos hábitos de classe aos quais os freqüentadores, no caso aqui especificamente tratado, dos centros espíritas, estão atrelados, contribuindo para a diferenciação dos diversos contextos desta religião, tendo em vista as camadas sociais neles envolvidas. Trata-se, por conseguinte, de perceber a pertença de classe não pela ótica estreita do meramente econômico, mas de ter em conta a existência de uma produção simbólica na qual perpassam valores, estilos e percepções fornecendo indicações dos contornos entre os grupos sociais específicos. Não obstante a dimensão “reflexiva” priorizada por Giddens ser de importância capital para este trabalho, não podemos deixar de levar em consideração que ela é também insuficiente para abarcar os processos de identificação desenrolados entre sujeito e contexto ao interior dos centros espíritas, nos quais entram em jogo tanto outros aspectos pertencentes às biografias dos sujeitos quanto elementos da cosmologia religiosa. Dessa forma, outros ângulos, como o ritual e o corpo, são trazidos à discussão, pois também eles fazem parte de maneira ativa e não menos importante da dinâmica de tais processos. Uma certa literatura sobre ritual e o conceito bourdiesiano de habitus tornam-se, assim, fundamentais, para a abordagem do problema.. - 13 -.

(15) Com o intento de alcançar o objetivo principal levando em consideração os aspectos acima mencionados e, consequentemente, apreender da melhor maneira possível as dimensões da pesquisa, foi estruturado um plano de trabalho orientado por objetivos específicos, através dos quais busquei refletir a concepção mais geral da dissertação e operacionalizar as etapas do trabalho. Os objetivos transparecem, assim, ao longo da estrutura dissertativa, contemplados em capítulos específicos. São eles: i). problematização da religião no contexto da modernidade, momento a partir do qual insurgi-se um demanda teórica e empírica por uma discussão do sujeito e toda a problemática que o envolve;. ii). reconstituição do histórico, da cosmologia espírita e de suas principais categorias, percebendo nesta discussão como se deu e em que se constitui uma identidade espírita forjada no bojo do mundo moderno;. iii). Análise da composição dos meios e elementos constantes na dinâmica dos processos de identificação e de reelaboração identitária ao interior dos quais interagem estrutura religiosa, biografias, narrativas e experiências no espaço do centro espírita.. DELIMITAÇÃO EMPÍRICA E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS. Foi realizado um levantamento exploratório dos centros espíritas da cidade e uma seleção prévia - mediante alguns critérios como porte, estrutura e tempo de fundação daqueles onde possivelmente a pesquisa poderia ser realizada por se adequarem aos critérios estabelecidos. Após tentativas frustradas em alguns centros tive acesso através de colegas de faculdade a uma casa espírita de grande porte localizada no bairro de Brotas da cidade de Salvador e freqüentada majoritariamente por uma classe média. Fundada há mais de 30 anos, isto lhe confere um caráter de instituição solidamente estabelecida e um corpo de fiéis fortemente agregado à instituição. Com uma estrutura física considerável, instalado em um prédio de cinco andares no qual também funciona uma creche que presta serviço à comunidade carente do bairro, o centro abriga um grande número de pessoas (espíritas, colaboradores e simples freqüentadores) que por ali transitam diariamente. São pessoas que. - 14 -.

(16) vão buscar os serviços da religião ou estão engajadas em algumas das muitas atividades oferecidas pelo centro nos mais variados horários durante toda a semana. Assim, com a finalidade de atingir ao que foi inicialmente estabelecido no projeto fui para campo imbuída do sincero desejo de observar o dia-a-dia da Casa de Oração, como é chamada, e quiçá a vida cotidiana dos participantes. Algo que mostrou-se, a priori, não muito fácil de ser atingido, pois, as pessoas embora extremamente amáveis e atenciosas são também muito reservadas, e ao que pude constatar durante a minha permanência no centro, não é muito comum as relações de amizade extrapolarem o âmbito da instituição. Este hábito, sem dúvida, nos primeiros meses se constituiu num obstáculo para alguém ainda estranha como eu, que tinha a ousada pretensão de gozar da intimidade daqueles que mal conhecia, ávida por ouvir histórias tão delicadas quanto as que envolvem momentos críticos, crises existenciais e convivência com familiares e amigos. No entanto, com o tempo este óbice foi parcialmente removido graças a atenção e solicitude que os participantes daquela casa sempre demonstraram para comigo. Além disso, a medida que o tempo passava fui me familiarizando, ficando mais próxima daquele universo absorvente. Tornei-me freqüentadora assídua de todas as atividades a que tive acesso, inclusive das reuniões em que ocorre o transe. Fato que além de me suscitar felizes momentos de aprendizado, proporcionou-me a compilação de um farto material de campo. Neste sentido, para tentar abarcar toda a dimensão da pesquisa, bem como contemplar o meu objetivo principal o trabalho empírico ocorreu da seguinte forma: a) Através de um processo de observação durante mais ou menos dois anos e meio – de junho de 2003 à janeiro de 2006 -, que compreendeu idas sistemáticas ao centro, participação em todas as atividades nas quais foi permitido o acesso e aproximação dos sujeitos atuantes nestes contextos: lideranças, doutrinadores, médiuns, etc. Foram coletados dados gerais sobre os grupos, suas histórias e organização interna tendo como suporte todas as fontes secundárias possíveis de serem coligidas, como jornais, atas, registros e documentos históricos da instituição, além das entrevistas feitas e conversas mantidas com os membros. Características e performance das atividades foram descritas e mapeadas. Para tanto, foram registrados em relatórios de campo aspectos físicos e estruturais da instituição, organização e desenvolvimento das reuniões e rituais, procedimentos rotineiros e/ou. - 15 -.

(17) acontecimentos inusitados. Atenção procurou ser dispensada também a aspectos comportamentais e de relacionamento dos agentes inseridos nestes espaços, bem como a comentários e impressões externalizados pelos sujeitos. Assim, busquei centrar a atenção em aspectos observáveis da experiência religiosa a partir dos diferentes grupos e categorias de pessoas envolvidas no universo estudado, levando em consideração tempo de inserção no contexto religioso, funções desempenhadas, cargos e papéis assumidos. b) A pesquisa incidiu sobre o conjunto de indivíduos freqüentadores há mais de cinco (05) anos, assíduos e participativos no centro. Esta seleção se fez necessária para possibilitar o trabalho com grupos delimitados de membros efetivamente envolvidos com a cosmologia religiosa e que se auto definem espíritas. Neste sentido, as conversas informais e algumas entrevistas gravadas se configuraram em um contato preliminar e antecipação à aplicação dos questionários. Elas foram feitas fundamentalmente com algumas lideranças. c) A aplicação de um questionário sensível ao contexto cultural estudado a quinze membros da instituição, entre eles doutrinadores, médiuns e trabalhadores de maneira geral. A aplicação do questionário foi acompanhada de gravação, fato que permitiu a obtenção de um entrevista ampliada. O instrumento foi estruturado de maneira a destinar-se a uma abordagem da trajetória religiosa, do nível de envolvimento com o atual grupo religioso em que está inserido e das relações que mantém com os outros participantes. Também busquei caracterizar a experiência religiosa propriamente dita, os modos de vivência nos rituais, bem como as percepções que os entrevistados têm deles mesmos e de suas possíveis redefinições existenciais. Face essa coleta de informações, procurei analisar os dados por meio de duas entradas: quantitativa e qualitativa. Foram criados tanto quadros, tabelas e categorias visando a apreensão de conjunto do universo da pesquisa, construção do perfil do grupo, assim como possíveis ilações e relações estruturais e conjunturais mais amplas, quanto analisadas as narrativas dos respondentes, buscando captar as dinâmicas dialógicas envolvendo “eu, outro e contexto”. A pesquisa foi, assim, adensada em uma elaboração dissertativa manifesta em quatro capítulos. O primeiro deles, Modernidade e Religião, destinou-se a uma abordagem do contexto da modernidade situando, segundo autores que discutem o tema, as principais. - 16 -.

(18) configurações que a informam – dentre elas, a temática do Sujeito Moderno -, assim como problemáticas e perspectivas da religião localizadas no espaço-tempo moderno. Isto mostrou-se necessário, primeiro, para construirmos um quadro panorâmico deste amplo tema que é a religião na modernidade; segundo, por aparecer enquanto um suporte necessário ao núcleo central da dissertação, cuja análise refere-se aos processos identificadores no espiritismo. Um esforço analítico que necessariamente remete às características e dinâmica do mundo moderno, a emergência “teórica e empírica” do Sujeito e. da. identidade. neste. universo,. assim. como. escolhas,. dramas. e. processos. (des)identificadores vivenciados por ele nas configurações destes espaços. No segundo capítulo busquei caracterizar a cosmologia espírita e reconstruir, ainda que brevemente, o seu histórico não só no país de origem, mas também, e principalmente, no Brasil. Tal esforço se fez necessário por entender que a apreensão do que ocorre (e como ocorre) entre sujeito-contexto envolvendo diálogo, reelaborações e transformações não poderia ser bem sucedia sem a compreensão impreterível da estrutura e “visão de mundo” religiosa abrangendo suas concepções e práticas mais gerais. Por sua vez, estas últimas também não poderiam ser açambarcadas desvinculadas das principais tendências gestadas ao longo do período em que o espiritismo foi introduzido e se firmou no país. Estas tendências que o espiritismo brasileiro desenvolveu são imprescindíveis não só para se compreender as várias formas pelas quais elas podem comparecer atualmente nos centros espíritas, mas como são construídas novas possibilidades de remodelagens mediante a interpenetração sempre contínua e atuante entre símbolos e signos “novos e velhos”, contextos e sujeitos transformadores de si mesmos e do entorno, corroborando para a construção de identidade ou identidades específicas. A pesquisa empírica está retratada nos dois capítulos subseqüentes. Eles são o resultado do meu trabalho de campo desenvolvido durante dois anos e meio na Casa de Oração Bezerra de Menezes. A, então, estrutura, caracterização e funcionamento do centro espírita estão refletidos no terceiro capítulo, onde procuro fazer um mapeamento das principais atividades e rituais da instituição. Cotidiano que quase sempre leva os participantes a uma reorientação de expectativas, visão de mundo e relações de alteridade, com uma conseqüente pretensão de mudança de comportamento. Dessa forma, utilizo boa parte de um farto material de campo, cujos relatórios registrei observações e inferências.. - 17 -.

(19) Além disso, contei também com um material de apoio, fontes secundárias, para a confecção deste capítulo, à exemplo de jornais de grande circulação e documentos e pesquisas encontrados na Secretaria de planejamento da Prefeitura de Salvador. Ajudou-me ainda a compor uma certa “Identidade Social” do centro alguns relatórios de exercício findo e documentos (estatuto e regimentos) que juntamente com os relatórios de campo se conformaram em uma forte ferramenta na descrição da estrutura organizativa da COBEM e no desenvolvimento de suas atividades. O quarto e último momento da pesquisa constitui-se na análise de dados propriamente dita. Procurando combinar informações de cunho quantitativo e qualitativo busquei através de entrevistas e quinze questionários aplicados - material este trabalhado por meio da criação de categorias e da análise das narrativas – abordar e esmiuçar aspectos relacionados à adesão e trajetória religiosa, envolvimento com a religião e o centro, às experiências vividas nos rituais envolvendo síntese e expressões corporais e às percepções e compreensões construídas pelos participantes acerca de si e dos outros antes e depois da religião, tentando demonstrar se tais processos dialógicos contribuem e em que medida contribuem para as identificações e redefinições existenciais. Mediante esta apresentação acredito ter conseguido dar mostras de um esboço geral do meu trabalho, esperando não só ter atingido os objetivos propostos como recompensar o leitor, que ao mergulhar no horizonte de significados e práticas que busquei reconstruir da melhor maneira possível sinta-se, assim como eu, envolvido pelas histórias e dramas contados pelos próprios autores, mas partícipes da vida de todos nós. Obviamente, e como poderia não ser, que o recontar dessas histórias conta com a minha participação. O que longe de ser um problema, configura-se em mais uma possibilidade daquilo que é “ser com outros”.. - 18 -.

(20) I Religião e Modernidade O que é Modernidade? Uma indagação ao mesmo tempo ampla e profunda, frente a qual ensaiando um giro de 360 graus percebe-se a extensionalidade de suas dimensões, insinuando o vislumbre de outras tantas interrogações pelas quais se pode iniciar a construção deste complexo fenômeno. Algumas delas podem tratar de suas características, origens e implicações, ou em outros termos, inquirir acerca do que e como se define a modernidade. Sob qual prisma defini-la? E ainda, hoje se vive na modernidade ou ela já está superada em favor de uma pós-modernidade? E os problemas – não me refiro nem aos do plano cotidiano, mas aos da dimensão teórico-filosófica que foram instaurados com a narrativa da modernidade – já foram superados ou não? Que diagnósticos são feitos para a atualidade? Quais os caminhos apontados? Ou não há caminho algum para indicar? Para onde estamos indo... baseados em que... com quem...? A época moderna é compreendida, definida e discutida por inúmeros pensadores (Weber, Horkheimer, Adorno, Nietzsche, Touraine, Bauman, Habermas, Foucault, Giddens, Baudrilard, Berman, Eisenstadt são apenas alguns deles) que desfrutam da liberdade de escolha – sem dúvida, condição oriunda da e na Modernidade – mediante a possibilidade de um horizonte temático extremamente vasto. Sendo assim, a Modernidade pode significar para uns o mapeamento das concepções e estratégias políticas com os seus respectivos antecedentes e conseqüentes; o diagnóstico das estruturas e conjunturas sócioculturais enfatizando não apenas a liberdade, mas as incertezas e inseguranças modernas, ou para alguns mesmo pós-modernas – todas filhas diretas da individualidade e individualismo, estes, por sua vez, gestados nas entranhas do ventre-mater da Modernidade -; outros, no entanto, põem o acento nas estruturas e processos econômicos, nos avanços científicos e revoluções tecnológicas para proceder ao entendimento deste mundo contemporâneo “globalizado”; e outros há, ainda, que mergulham fundo nos próprios fundamentos do discurso moderno tentando divisar-lhes os pressupostos e matrizes filosóficas no afã não só de identificar e analisar, mas também tecer criticas e propor.

(21) alternativas ao que construiu e ossificou-se enquanto pilar de sustentação deste grande discurso. Tamanha amplidão de abrangência acarreta, indubitavelmente, um leque igualmente amplo e não menos diversificado de opiniões, posturas, compreensões (outra característica destes tempos). Todavia, em um ponto, me parece, todos concordam: seja no plano teórico ou empírico a proliferação da narrativa moderna com tudo o que lhe constitui e a própria Modernidade só tornaram-se possíveis face o deslocamento – não sem conflitos e em processos históricos complexos e demorados mediante os quais se deram o “desencantamento do mundo” e a “secularização” (Weber, 1982; 1994) – da encachapante matriz de pensamento religiosa que maestrou amplamente legitimada durante um longo período da história da humanidade em que organizou e fundamentou o “ser” e o “existir” do mundo ocidental. Deus e a religião deixaram de ser o eixo pelo qual orientava-se o mundo e suas significações. O ponto pacifico e as concordâncias, contudo, cessam por aí. Atualmente, até o local e significado da religião no mundo moderno é tema de controvérsia, indo desde aqueles que consideram, como nos informa Pierucci (1998), que o mundo está sendo reencantado até aqueles que acham que a expressão de religião moderna diz respeito apenas aos movimentos fundamentalistas (Bauman, 1998). Este capítulo pretende-se a uma discussão não exaustiva acerca do significado “moderno” fazendo-se valer da contribuição de alguns autores (Touraine, Habermas e Giddens), bem como das complexas relações que se estabelecem entre a religião e contexto social, com suas demandas e significados construídos na modernidade.. I. Emergir a modernidade enquanto tema analítico é dar-se conta, minimamente, das atividades produzidas e difundidas pelo homem, sejam elas políticas, produtivas, científicas, administrativas, artísticas, tecnológicas ou econômicas, tal e qual as conhecemos hoje, enquanto práticas possíveis mediante o processo histórico através do qual o transcendentalismo e as explicações finalistas foram secundarizados no “ato” da. - 20 -.

(22) humanidade em favor da instauração de uma antropocéia e de uma crescente diferenciação dos âmbitos sociais. Weber (1980; 1982) identifica este fenômeno ao procurar compreender o modo específico de desenvolvimento ocorrido no Ocidente, no qual a relação entre modernidade. e racionalismo. tornou-se expressiva,. sobretudo,. nas emaranhadas. interconexões da empresa capitalista com a burocracia, marcando a modernidade pelo que o autor denominou de “ação racional econômica e administrativa” voltada a fins. Sob este aspecto, referindo-se a um conjunto significativo extremamente complexo de relações sociais que orientam as ações, antes de qualquer “fazer” cuja autoria é reivindicada pelo homem e não atribuída a Deus, a modernidade funda-se porque o indivíduo ocidental reconhece para a regência da vida uma outra “divindade”: a Razão. A ordenação do mundo passa a ser reconhecida mediante a atividade racional, e o homem enquanto um sujeito particularizado no mundo devido a esta atividade, desprendendo-se do fluxo continuo da vida, do tempo, para melhor compreender a eles e a si próprio. De acordo com Habermas (2002), esta compreensão torna-se evidente em Hegel, para quem a modernidade é caracterizada pela consciência de si e da história. Na análise dos tempos modernos há o reconhecimento de uma história universal e a especificidade do tempo presente caracterizado tanto pela genitividade do novo, sempre aberto a um futuro heterogêneo e indeterminado, quanto pelo movimento continuo de rompimento com o passado. Esta nova condição, entretanto, leva a uma outra que, para Hegel, configura-se no cerne dos novos tempos e no próprio problema da filosofia moderna: a necessidade de autocertificação. Na medida em que recusa-se a reconhecer-se em um passado que ela mesma identifica e reconstitui, a modernidade tem que buscar em si mesma os fundamentos para sua auto compreensão e auto afirmação. Esta necessidade manifestou-se inicialmente no campo das artes, onde a crítica da experiência estética valeu-se de uma consciência de época para auto avaliar-se e, ao mesmo tempo, o presente não podia obter consciência de si a partir de uma figura do passado, tornando-se a atualidade, o transitório, o eixo de intersecção entre tempo e eternidade na arte. (Veja Habermas, pp. 13 e seguintes). Contudo, ela transborda para o “todo” da modernidade, mediante o qual a filosofia hegeliana identifica o princípio da subjetividade enquanto estrutura dos “tempos modernos”, marcado tanto por sua liberdade de reflexão ao. - 21 -.

(23) auto conhecer-se e reconhecer suas expressões (Estado, religião, moral, arte, ciência, etc.), quanto pela possibilidade de estranhamento, alienando-se. Sob este fundamento, a Modernidade em um sentido amplo presentifica-se por duas configurações intercambiáveis fundantes do discurso e da prática modernos. Uma, constitui-se em torno do binômio razão-mundo levando em consideração como o primeiro termo desta relação abarca e tematiza a realidade, formulando construtos próprios que se pretendem extremadamente objetivos sobre o segundo; e, posto que ao utilizar meios destinados à apreensão do que se lhe apresenta exterior torna-se irresistível à razão voltarse a si, revendo fundamentos, dialogando consigo mesma e questionando-se. Tal perspectiva, fruto dileto da filosofia moderna e background dos discursos e práticas científicas, naturais ou sociais (Kuhn, 1992; Alexander, 1987; 1999), fornecendo-lhe a condição de legítimos, refere-se à capacidade de reflexão sobre as práticas e de reflexão da reflexão das práticas mediante o estabelecimento de regras rigorosas de lógica e coerência. È no cerne desta abordagem que na filosófica kantiana, por exemplo, a razão tornase o tribunal da cultura. Todavia, ela, em Kant, acaba cindida em vários momentos, cada qual com seus próprios critérios de validade, cuja unidade passa a ser apenas formal, não obstante, o filósofo não perceba essas diferenciações como cisões. Algo que leva Hegel a questionar acerca da capacidade desta razão de propor normatividade e equilíbrio a uma modernidade disposta a romper com os vínculos do passado. E quanto mais as dimensões da existência desenvolvem-se mais as cisões são presentes e poderosas. Dissociações que Hegel tenta – ao que parece, sem muito êxito – superar através do conceito de “absoluto” e da filosofia do sujeito. (Habermas, 2002). A outra configuração moderna diz respeito à problemática instaurada com a emergência de um sujeito que reflete, sente e particulariza-se frente a um mundo instituído enquanto seu objeto, traduzindo-se desde o seu início em uma relação também cindida, com implicações profundas nas formas de apreensão (sociológica, filosófica e científica de maneira geral) e exercício da realidade. É segundo esta problemática bifronte que Touraine (1994) identifica a Modernidade precisamente com estes dois grandes movimentos inicialmente complementares e contraditórios, mas que gradualmente vão se distanciando. Uma separação crescente não pressentida, ou ao menos, não sentida com tanta agudeza em seus primórdios no século XVII, e mesmo no início do século XVIII, em que, de um lado,. - 22 -.

(24) lenta e vigorosamente passou a delinear-se um mundo objetivo, natural, regido por leis passiveis de apreensão e manipulação pela razão, e, do outro, erigindo-se os pilares do Sujeito-Humano, não divino e transcendental, desvinculado dessas bases por Descartes, mas que encontra seus pressupostos, conforme Touraine – e mesmo outros autores, como Dumont – nas construções religiosas mesmas. Em se tratando da problemática do Sujeito, de acordo com o sociólogo francês, todas as religiões de revelação introduziram o princípio de subjetivação do divino, entretanto, duas correntes religiosas, sob este aspecto, merecem destaque por parte do autor. Uma delas é a Escolástica de Agostinho, que ao abordar o conflito entre a infinitude e divindade do homem e a sua temporalidade busca o interior descobrindo uma subjetividade através do questionamento da “ordem racional da criação” e do significado de Deus, notabilizando, assim, o princípio da subjetivação, pois, ao perguntar o que é Deus, ele não encontra resposta nas suas manifestações exteriores, embora belas, mas voltando-se para o seu interior, no qual depara-se com a razão: a alma criada por Deus a sua própria semelhança. É, portanto, em Agostinho que se permite a passagem de um exterior para o interior. A outra corrente, de certa maneira, submete a consciência individual à coletiva, às regras e papéis sociais por meio da “teologia da fé” luterana, a qual, constituindo-se em um capítulo do processo de secularização, contribui para a desmagização da religião, construindo o individuo moral na medida em que procura romper “práticas mágicas” da Igreja Católica, levando o homem a buscar uma relação direta com Deus, perante o qual deve sujeitar-se pela fé e pelo amor. Neste sentido, a este homem liberado de mediações e intermediários para ter com o Criador, lhe são atribuídas a solidão e a responsabilidade de si mesmo, instituindo, assim, a noção de sujeito não divino. Com esta interpretação Touraine rejeita a idéia de que o individualismo é um advento tão só dos tempos modernos, quanto uma concepção de que o holismo seria uma característica das sociedades tradicionais marcadas pela religião. No que tange à subjetivação, para ele, os universos religioso e moderno se tocam justamente porque em Agostinho e em Lutero é possível encontrar as origens do individualismo moderno e a alavancagem dos processos de desencantamento do mundo.. - 23 -.

(25) Descartes é um dos pensadores influenciado por esta tradição. No lugar da separação cada vez maior entre indivíduo e divindade o filósofo põe o dualismo que irá marcar toda a modernidade: Sujeito e Razão. Já que ao procurar uma explicação para a existência de Deus, o homem reconhece-se com vontade criadora e descobridor de leis da natureza, notando que liberdade e conhecimento racional são dois aspectos não necessariamente excludentes – pensa ele – mas auto complementares. O mundo da natureza e de Deus separados, se comunicam pelo homem, que tanto procura subordinar o mundo sensível as suas necessidades, quanto, não sendo Deus, percebe-se como um EU que pensa, formula opiniões, tem vontades e desejos, e que põe ordem ao mundo através de um pensamento racional. Com a construção de que o indivíduo não é natureza, mas também não é simplesmente criatura de Deus, e sim sua imagem semelhante Descartes torna-se o principal responsável pela transformação do dualismo cristão em um pensamento moderno do Sujeito. Reforçando as formulações cartesianas por um ângulo diferente, uma outra maneira de se perceber a formação da subjetivação é através da teoria do Direito Natural, que tem em Locke uma das suas maiores expressões. Entendido enquanto princípios preexistentes a qualquer situação do Estado ou particular, o Direito Natural adquiriu uma dimensão econômica separada do poder político e em oposição, sobretudo, ao regime absolutista, fornecendo bases tanto para o surgimento do Individualismo Moderno, quanto para a sociedade civil. O Contrato Social funda a dualidade e também tenta dar conta da sociedade civil e do Estado, ao mesmo tempo em que fomenta o pensamento burguês e movimentos operários; e desde Descartes, passando por Locke e chegando até Kant ganha força a secularização do pensamento cristão em que o sujeito divino vai cedendo lugar ao sujeito humano, ator responsável por suas ações e portador de uma consciência. De início uma vertente não partícipe da dicotomização, mas complementar a outra que marca a sociedade moderna, a Razão. Contudo, no desenrolar empírico e teórico destes dois grandes eixos articuladores da Modernidade nem sempre foi possível uma composição harmônica dos termos, em que, para Touraine, o tema do sujeito se enfraquece durante o século XVIII em detrimento dos avanços da secularização e do capitalismo, só recobrando força a partir do século XIX, quando surge uma profunda crítica à Razão. Neste sentido, arremata o autor, ocasionando uma tradição definidora de um modo de vida no qual combinando-se. - 24 -.

(26) secularização e desencantamento do mundo, os dois termos criam relações demasiado tensas entre si, durante as quais ora priorizou-se a razão, ora enfatizou-se o sujeito, trazendo consigo, uma e outro, implicações graves para a própria vida, pois como afirma o sociólogo: (...) A modernidade não repousa sobre um princípio único e menos ainda sobre a simples distribuição dos obstáculos ao reinado da razão; ela é feita do diálogo entre Razão e Sujeito. Sem a razão o Sujeito se fecha na obsessão da sua identidade; sem o Sujeito, a Razão se torna o instrumento do poder. Neste século conhecemos simultaneamente a ditadura da Razão e as perversões totalitárias do Sujeito; é possível que as duas figuras da modernidade, que combateram ou ignoram, finalmente dialoguem e aprendam a viver juntas? (p. 14).. Na concepção do sociólogo francês torna-se, então, preponderante o resgate, em outras bases, da relação sujeito-razão, na medida em que a modernidade se instaurou e desenvolveu tendo por marcos uma separação crescente entre mundo objetivo e subjetividade, esta, aliás, cedendo terreno para o individualismo e a apelos de liberdade. Tal configuração não só desencadeou práticas solipsistas e políticas totalitárias constituintes das empiricidades, como informa e foi informada por uma razão que, trilhando caminhos tortuosos, experimenta desde o apogeu, quando reverenciada e “cortejada” por muitos – obviamente, não sem controvérsias e contestações – até seus momentos mais amargos nos quais parece não dar conta do próprio território moderno em que, ao mesmo tempo, criou e criou-se, revelando cansaço e, para alguns mesmo (á exemplos da Escola de Frankfurt), sinais de completo esgotamento, tornando-se alvo de severas críticas. (Touraine, 1994; Habermas, 2002). Todavia, a razão, sobretudo no séc. XVIII, era percebida pelos pensadores da época como a possível responsável não só pelo novo estado racional que se legitima, mas também pela instauração e manutenção de valores como a liberdade e de “estados” felizes e de abundância1. Voltados para o desenvolvimento de um método do pensar, os filósofos iluministas através das idéias de racionalização ou modernização concebem a experiência no sentido de percepções e sensações pelas quais a razão tem que passar para chegar à verdade. No mundo agora fundamentado racionalmente crenças, sentimentos, tradições e valores são desprezados ou utilizados enquanto meios para se chegar aos fundamentos de 1. Algo que, segundo Touraine (1994), não se confirmou.. - 25 -.

(27) universalidade e igualdade inerentes ao sujeito. Ao voltar-se para o método, o iluminista opera uma separação entre racionalidade e não racionalidade (valores, preconceitos, contextos socioculturais, etc.) acarretando duas implicações: 1º. A de que há uma essência comum a todos os homens, seja natureza, razão, humanidade, que é universal e igualitária. Logo, o homem é naturalmente igual; 2º. Esta isonomia natural, essencial e universal está encoberta pelos valores, preconceitos, instituições e contextos sociais e culturais forjados historicamente, mascarando a “igualdade individual” e produzindo a desigualdade. Uma vez descoberta esta realidade e de posse dela, igualdade, liberdade e mesmo felicidade tornar-se-iam as inevitáveis conseqüências (Simmel, 1998). Esta nova concepção de Homem na qual opera a razão está alicerçada nas mesmas idéias compartilhadas por uma ciência natural da existência de leis gerais, entendendo-o enquanto um ser universal e abstrato que abarca o particular, o específico. Indo nesta direção, são traços característicos deste pensamento a necessidade de substituição de uma moral religiosa pelo conhecimento das leis naturais; a valorização do prazer e gosto estético deste mundo natural com leis e encantos próprios internos a si mesmo e a constituição de um pensamento político e social no qual as formações coletivas orientadas pelo homem racional – e não mais um Deus ou religião – passam a ser fontes de valores, isto é, as diretrizes determinantes do bem e mal, do certo e errado. Não obstante a construção analítica e crítica da ilustração em torno da tradição e em nome de um festejado destaque à razão, esta última, bem como o período moderno não escapam à crítica de pensadores da modernidade, como Hegel, Weber e Rousseau. Este último, longe de considerar a razão por si só como portadora de estados de felicidade e liberdade, chama a atenção para a profunda desigualdade na qual a sociedade moderna do seu tempo encontra-se mergulhada, contrapondo ao caos que observa a proposta de “pacto social”, tentando estabelecer um vínculo entre necessidade e liberdade. (Rousseau, 2004; Touraine, 1994). Assim, a ideologia modernista seria, sem dúvida, um pensamento secularizado que rejeitaria todo o mundo sagrado, mas que também, através de várias de suas expressões, procuraria manter em outras bases – talvez, não com muito sucesso – a relação fomentada pelo pensamento cristão onde o individualismo moderno fincaria suas origens. Não se trataria mais de uma determinada metafísica Deus-Homem, mas homem-Natureza/Universo. - 26 -.

(28) em que se buscaria unir razão e vontade, sistema e voluntarismo. Preocupação com a ligação ente “natureza interior” e exterior presente ao longo dos séculos XVII e XVIII, que se tornará cada vez mais distante no desenrolar da modernidade na qual o sujeito parece perder-se e uma razão instrumental impor-se. Dessa forma, se durante este período constituiu-se o progresso da ideologia e dos princípios iluministas, nos séculos seguintes consubstanciou-se a prática desta filosofia em transformações e progressos nos âmbitos político, social e econômico. A modernidade se vê permeada não apenas pelo pensamento racional, mas ela é experienciada no bojo de um progressismo onde a vontade de ser também marca o seu espaço. Sendo assim, as leis naturais e sua evolução são identificados no desenvolvimento capitalista, no esquadrinhamento urbano e na pujança industrial parametrada pelo suporte técnico-científico, como, aliás, Weber já havia muito bem identificado. Nesse sentido, grande parte do pensamento que se seguirá nos “novos tempos” se dedicará a uma análise bastante crítica dos processos e conformações modernos, bem como demonstrará profundo desencanto com a razão, buscando alternativa a ela, A crítica, de maneira geral, refere-se à submissão dos sujeitos aos sistemas, estandardizações e normas; ao predomínio cada vez maior de uma razão instrumental e a um estado da sociedade moderna que torna-se progressivamente menos coeso e “sólido” em detrimento de fluxos múltiplos e contínuos de mudanças. (Touraine, 1994; Habermas, 2002; Giddens, 1991). Touraine (1994) delimita a crise moderna em três momentos aos quais estão vinculadas as respectivas críticas. Uma, diz respeito ao esgotamento do movimento de libertação iniciado e propalado pelos iluministas, suplantado pelo outro da racionalidade técnico-instrumental e suas conseqüências. Estes, por sua vez, apreendidos através da alienação em Hegel e Marx, ou associados, como em Schopenhauer, ao egoísmo e ao interesse, ou ainda, por meio da pessimista Teoria Crítica, onde a visão racionalista do mundo depauperada em favor da ação puramente instrumental é denunciada, na mesma medida em que o ‘eclipse da razão” com sua incapacidade de emancipar-se é diagnosticada. Estes dois momentos da crise levam a um terceiro ainda mais profundo – já comentado em outra parte -, de difícil conciliação entre totalidade e pluralidade que se manifesta nas mais diversas dimensões, desde alma-corpo, até Sociedade-Estado e Sociedade-Indivíduo. Nesse sentido, fica difícil equacionar nos contextos modernos a. - 27 -.

(29) noção de liberdade, e mesmo a de felicidade, cogitada pela Ilustração, com as manifestações práticas e discursivas de poder, controle, integração e repressão extraordinariamente presentes e tão bem discutidas por Foucault (1999). Como alcançar o equilíbrio?. Como. encontrar. a. unidade. mediante. a. necessidade. moderna. de. “autocertificação” e de sua “consciência do tempo” com tudo o que lhe envolve, nos quais o experienciado se traduz numa existência extremadamente acelerada e fragmentada? A tal ponto que os campos social e cultural longe de qualquer unidade e perenidade – como já identificava Hegel e mesmo Baudelaire no campo das artes – o que temos é a capturação do eterno no instante, no efêmero do presente que se realiza sempre aberto à indeterminação do futuro. Nietzsche também percebe as dificuldades da modernidade e adotando a crítica de Schopenhauer sobre o individualismo, demonstrará descrença em relação à razão e à modernidade fragmentada, sucumbida ao utilitarismo e à subordinação do “Ser Individual”. (Habermas, 2002). Rejeitando toda uma filosofia do Sujeito, assim como o Cristianismo, para ele: A modernidade conduziu ao nihilismo, ao esvaziamento do homem cuja potência total foi projetada no universo divino pelo cristianismo e que não possui nada além da sua fraqueza, o que acarreta a sua decadência e o seu desaparecimento inevitável. (Touraine, 1994; 118, 119).. Trata-se, então, para Nietzsche, de resgatar por outras vias – obviamente não a religiosa – os valores perdidos, a “energia vital” do homem e sua “vontade de poder” extraviadas na modernidade. Num retorno ao passado, ele irá buscar a unidade perdida do Ser e sua vontade de poder no mundo pagão do mito dionisíaco. Um mito que escapa ás regras sociais, onde a unidade é restaurada através da arte ou mesmo na volúpia do viver de um instante. Assim, o pensamento antimoderno e antisocial de Nietzsche se dedicará a uma ascensão do Ser nostálgico e da arte, bem como a um espírito nacional, enquanto alternativas a uma modernidade moralizada, civilizada e dividida. Mais recentemente Giddens (1991) também se dedica ao estudo da modernidade, analisando criticamente as características e instituições sociais do final do século XX em termos de suas conseqüências, inclusive para o Sujeito, acarretando um novo tipo de sistema social baseado na informação e no consumo.. - 28 -. Os modos de vida modernos.

(30) promovem “descontinuidades” com as formações societais tradicionais devido ao ritmo e natureza das mudanças e instituições gestadas ao interior da modernidade. Estas últimas, referindo-se ao capitalismo, industrialismo, vigilância e controle dos meios de violência, que estão integradas globalmente propiciando conseqüências negativas, como a estrondosa degradação do meio ambiente, a constituição no poder político de vários governos e ideologias totalitários – aliás, como Touraine já havia salientado -, assim como o fomento industrial do arsenal bélico e o crescimento da violência. Tudo isto possibilita a emergência de um mundo perigoso e repleto de riscos, no qual uma ordem social mais feliz e segura inspirada inicialmente pela crença otimista no progresso e na razão detém um espaço (se é que o possui) ínfimo, cedendo lugar para um estado mais ou menos constante de crise, penetrando fundo tanto nos sentimentos quanto no centro das auto-identidades dos indivíduos. Para além disso, assim como os pensadores modernistas dos séculos XVIII e XIX, embora sob um ângulo diferente, o sociólogo reconhece a intensificação sem precedentes das especificidades modernas identificadas pelos críticos no início dos “novos tempos”, já não tão novos assim. Sob esta acepção, para Giddens a modernidade é expressão de um dinamismo social derivado principalmente da separação e recombinação do tempo e espaço, do desenvolvimento de mecanismos de desencaixe dos sistemas sociais e da ordenação e reordenação reflexiva das relações sociais. Com a invenção do relógio começa a existir um esvaziamento do tempo, sobretudo, através da uniformização em todos os espaços. Diferenciando-se dos períodos pré-modernos, o tempo se desvincula de suas referências espaciais, e com isso, o lugar também vai se transformando num espaço vazio. A desconexão tempo-espaço permitirá, por conseguinte, a sua recombinação favorecendo relações bem ases cuja ausência de participantes não é mais um entrave; além do que, as configurações regionais e locais dos espaços podem ser estruturadas ou influenciadas por situações e relações sociais “invisíveis” constituídas à distância, já não tão distantes. Este desacoplamento entre tempo e espaço e a conseqüente abertura para a possibilidade de infinitas combinações fornece um impulso para o exacerbado dinamismo social moderno, bem como para um desenraizamento de muitas das tradições atreladas ao espaço-tempo. A reflexividade na cotidianidade, como já se sabe pela própria narrativa moderna instaurada, é um outro grande marco contemporâneo contribuidor da dinâmica e estados. - 29 -.

(31) modernos. Como salienta Giddens: “...Ela é introduzida na própria reflexão da reflexão das práticas. Nesse sentido, as certezas só se estabelecem até o momento de uma nova revisão, pois a produção e a apropriação reflexiva do conhecimento passa a ser inerente a própria manutenção e reprodução da vida social moderna. E por fim, os mecanismos de “desencaixe”, que são os deslocamentos das relações espaço-tempo para a sua recombinação em meios a uma extensionalidade indefinida destas variáveis são uma outra marca da experiência contemporânea. As “fichas simbólicas” e os “sistemas de perito” são dois dos mecanismos de desencaixe que o autor identifica. As primeiras dizem respeito a meios de intercâmbio circulantes em qualquer contexto sem ter em conta as particularidades de pessoas ou grupos, adquirindo, assim, uma interface impessoal. A legitimação política e o dinheiro constituem exemplos de tal intercâmbio generalizado. Já os “sistemas de peritos” referem-se às capacidades técnico e profissionais organizadoras de grandes áreas no convívio social e as quais os indivíduos recorrem cotidianamente promovendo contatos “não pessoais”. Segundo o sociólogo, tanto os “sistemas de peritos” quanto as “fichas simbólicas” são mecanismos de desencaixe porque extrapolam as mediações contextuais e locais, expandindo-as no espaço-tempo; e na modernidade um número cada vez maior de pessoas vive em circunstâncias nas quais as ‘instituições desencaixadas” organizam aspectos da vida cotidiana. Naturalmente, tal conformação implica em doses de “confiança” que os indivíduos devem depositar em tais mecanismos. Dessa forma, a “confiança”, diferente da situação de crença, leva em consideração as alternativas e os riscos possíveis numa dada situação a qual os indivíduos se engajam; assim como, em tais situações os agentes tornam-se reflexivamente responsáveis total ou parcialmente sobre o desencadeamento do evento, tendo este um resultado positivo, de sucesso, ou não. Sob esta acepção, a confiança é central para compreender as estabilidades e instabilidades no mundo moderno, com suas inevitáveis conseqüências para a formação e manutenção de estados emocionais e psicológicos, na medida em que os sujeitos estão constantemente confrontando-se com ambientes de riscos, indo desde os que temos que lidar por serem fruto de nossas ações e dos eventos que nos envolve diretamente (os quais podemos de alguma maneira ter um certo controle - embora, nem sempre), até aqueles de. - 30 -.

(32) dimensões mundiais que não podemos evitar, como os desastres ecológicos, a ameaça de guerra nuclear e, mais recentemente, a do terrorismo. Não obstante, penso que tais situações conformam-se enquanto de risco no momento mesmo em que os indivíduos consideram seria e reflexivamente tais possibilidades. Do contrário, eles continuam mergulhados em suas vidas cotidianas tratando com os riscos que lhes envolvem mais diretamente. Contudo, a confiança e o risco individual ou coletivo se entrelaçam nos ambientes e universo experiencial dos sujeitos em que a primeira serve para minimizar o segundo. Relação que pode oscilar bastante justamente porque esta confiança se sabe fundamentada não em uma natureza divina, transcendental, mas na atividade humana criada e sustentada socialmente. Desta maneira, a natureza das instituições modernas estão alicerçadas na confiança depositada tanto nos sistemas abstratos – como o dos peritos – quanto nas relações pessoais face a face. Isto é fundamental para a manutenção e funcionamento do próprio sistema social e das atividades cotidianas. Fundamental a tal ponto, que a confiança está intimamente relacionada com o que Giddens chama de “segurança ontológica” - fenômeno emocional referente à certeza que temos de nós mesmos, dos outros e da continuidade e estabilidade dos ambientes de ação e relação social. Sendo assim, configura-se em uma necessidade psicológica a confiança nos outros e o desenvolvimento de hábitos e rotinas, já que estes possibilitam a constituição de um “terreno” firme e constante pelo qual o indivíduo possa transitar, desenvolvendo desde a infância sua segurança. A segurança ontológica é imprescindível para garantir a nossa existência, o nosso estar no mundo com os outros por meio de um entendimento recíproco. Se as certezas cotidianas em torno do que é mutuamente compreendido passam a ser gravemente abaladas, afetando a segurança nas experiências vivenciadas, processos de ansiedade existencial e esquizofrenias podem começar a ser gerados, afetando a autoidentidade dos indivíduos. Giddens faz uma análise mais detida acerca desta problemática em seu livro Identidade e Modernidade (2002), no qual argumenta como a reflexividade moderna se estende ao núcleo do EU, identificando mudanças em dimensões da intimidade da vida pessoal diretamente relacionadas a conexões e conformações sociais mais amplas. Característica da “Alta Modernidade”, em que mecanismos de auto-identidade são. - 31 -.

Referências

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