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Layla: uma borboleta negra sertaneja, abordagem queer da performatização de si como mulher trans

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS CAMPUS DO SERTÃO. CAMILA FAUSTINA SANTOS PEREIRA RAMOS. LAYLA: UMA BORBOLETA NEGRA SERTANEJA ABORDAGEM QUEER DA PERFORMATIZAÇÃO DE SI COMO MULHER TRANS. Delmiro Gouveia 2018..

(2) CAMILA FAUSTINA SANTOS PEREIRA RAMOS. LAYLA: UMA BORBOLETA NEGRA SERTANEJA ABORDAGEM QUEER DA PERFORMATIZAÇÃO DE SI COMO MULHER TRANS. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Letras-Português, Licenciatura da Universidade Federal de Alagoas-Campus do Sertão, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciada em Letras. Orientador: Prof. Dr. Ismar Inácio dos Santos Filho.. Delmiro Gouveia 2018.

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(4) CAMILA FAUSTINA SANTOS PEREIRA RAMOS. LAYLA: UMA BORBOLETA NEGRA SERTANEJA ABORDAGEM QUEER DA PERFORMATIZAÇÃO DE SI COMO MULHER TRANS. Trabalho de Conclusão de Curso submetido ao corpo docente do Programa de Graduação em LetrasPortuguês Licenciatura da Universidade Federal de Alagoas- Campus Sertão e aprovada em 28 desetembro de 2018.. Banca Examinadora:. ______________________________________________________________________ (Professor Doutor Ismar Inácio dos Santos Filho, UFAL-Sertão) (Orientador) ______________________________________________________________________ (Professora DoutoraAna Cristina Conceição Santos, UFAL-Sertão) (Examinadora Externa) ______________________________________________________________________ (Professor Mestre Samuel Barbosa, UFAL-Sertão) (Examinador Interno).

(5) Aminha mãe Maria, e ao feminino em suas diversas possibilidades..

(6) Ao Prof. Dr. Ismar Inácio dos Santos Filho, dono da minha admiração e profundo respeito, meu orientador, por não apenas acreditar, mas por ter depositado fé em mim e em meu trabalho, por todo seu empenho, paciência e dedicação. À Maria de São Pedro, minha tão amada e admirada mãe, que mesmos com todas as suas limitações físicas e financeiras, me apoiou, suportou e sustentou sem esmorecer, durante toda minha caminhada. A minha irmã Carolina,pelo apoio, confiança, paciência e por sempre tentar compreender que mesmo precisando da minha presença, eu precisava continuar essa minha jornada. Ao meu pai, Paulo Roberto, pelo incentivo, apoio e confiança. A minha amiga e madrinha acadêmica, Ana Cristina, por seu apoio e puxões de orelha, e por ter me ensinado na pratica o “uma sobe e puxa a outra”. A minha amiga Maria Aparecida, meu exemplo, minha referência, eque tanto me apoioue incentivou de diversas maneiras. A todos os professores e todas as professoras que me ensinaram por toda a minha vida escolar até este momento, com empenho, dedicação e paciência. Aos amigos e amigas e colegas que mesmo sem saber, com suas demonstrações de carinho e confiança, me ajudaram a recuperar as forças para alcançar esse objetivo. A Layla Moura, que tão gentilmente compartilhou partes de sua história para que fosse possível essetrabalho. Ao NUDES-UFAL (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Diversidades e Educação do Alto Sertão Alagoano) e ao GELASAL (Grupo de Estudos em Linguística Aplicada do Sertão Alagoano) por terem contribuído grandemente em meus conhecimentos. Forças espirituais e mentais que me fortalecem..

(7) “(...)Não passo pano pra otário E mesmo ameaçado, eu serei cada vez mais viado Quebrando armários, extermínio à normatividade Revolução! Bicha preta se amando de verdade Botando fogo nas regras dessa sociedade Vai falar mal, mas vai assistir a nossa liberdade Vamo assistir você ouvindo a nossa realidade Tirando nossas capas de invisibilidade As mona unidas pro combate e olha no que deu Se quer verso com massagem, pare de socar os meus.” (Harlley, 2018).

(8) RESUMO Este Trabalho de Conclusão de Curso expõe ideias que visam refletir acerca da construção do gênero social por meio da língua(gem), aqui tomada enquanto ação, e da relação sócio-interacionalque se constrói variavelmente de acordo com o tempo, contexto e espaço, não sendo a língua(gem) neutra, mas sim política e ideológica. A concepção de gênero aqui defendida é a de constructo social, portanto não admitindo a compreensão enquanto papeis essenciais dos sujeitos. Buscamos, dessa forma, compreender, em análise linguístico-enunciativa dos sentidos propostos nas falas colhidas durante entrevista realizada com uma mulher de gênero trans, assumidamente negra e sertaneja, como se dá a construção de seu gênero, os processos de subjetivação que constroem esse sujeito político, que com sua própria vida questiona os discursos dominantes, com apoio dos entrecruzamentos dessas outras performances marginalizadas que compõem o seu ser enquanto sujeito político e social que existe enquanto discursos de resistência. A própria existência do gênero trans configura-se dissidente e desenvolve em si performatividade que TRANSgride, TRANSpassa e TRANSforma, de modo que dentro da visão estruturalista da forma binária de gênero, que imputa sua inteligibilidade, referindo-se apenas a homem e mulher, segue chocando a tradição heteronormativa. São considerados, para enriquecer e elucidar a discussão, os conceitos de multidões queer e atos performativos, entre outros. O trabalho se dá embasado nos estudos de Linguística Queer, que serve de arcabouço teórico por propiciar maior liberdade para a sua realização, por se configurar um campo do conhecimento atuante com indisciplinaridade, contestação e provocação de renovação, desconstrução e reconstrução de conhecimentos solidificados na estrutura social, e que defende a tese do conceito de identidade de gênero enquanto sentidos construídos e praticados na língua(gem) e em perspectiva dialógica, em que sua compreensão se dá de forma refratada. Como fundamentação teórico-metodológica para a pesquisa são utilizados os estudos de Bakhtin (2004), Bento(2009), Borba (2006; 2016); Butler (2003); Louro (1997; 2008), Preciado (2011); Santos Filho (2012; 2015a; 2015b; 2015c; 2017a; 2017b), entre outros. Palavras-chave: Linguagem; Linguística Queer.. GêneroTrans;. Transexualidade;. Performatividade;.

(9) ABSTRACT This academic work exposes ideas that reflect on the construction of the social gender through language, understood as action, and the socio-interactional relationship that is constructed according to time, context and space. In this understanding, language is not neutral, but political and ideological. The conception of gender defended here is that of social construct, therefore, moving away from the notion of the essential roles of subjects. In this way, we intend to understand, in linguistic-enunciative analysis, the meanings proposed duringan interview with a transgender woman, admittedly Black and sertaneja. The purpose is to understand how the construction of her gender, the processes of subjectivation that construct this political subject, that with his own existence questions the dominant discourses, with the support of the intertwined ones of these other marginalized performances, that make upherbeing asa political subjectand social that exists as discourses of resistance. The existence of the transgender configures itself dissident and develops performativity that TRANSgresses, TRANSpasses and TRANSforms, so that, within the structuralist view of the binary form of gender, which impute its intelligibility, referring only to man and woman, it continues to shock the heteronormative tradition. The concepts of queer crowds and performative acts, among others, are considered to enrich and elucidate the discussion. The work is based on the studies of Queer Linguistics, which serves as a theoretical frame work for providing greater freedom for its realization, for setting up a field of knowledge that acts with indiscipline, contestation and provocation of renovation, deconstruction and reconstruction of solidified knowledge in thestructure social, and that defends the thesis of the concept of gender identity as senses constructed and practiced in the language and in a dialogical perspective, in which their understanding is given in a refracted way. As theoretical and methodological basis for the research are used the studies of Bakhtin (2004), Bento (2009), Borba (2006; 2016); Butler (2003); Louro (1997, 2008), Preciado (2011); Santos Filho (2012, 2015a, 2015b, 2015c, 2017a, 2017b), among others. Keywords: Language; GenderTrans; Transsexuality; Performativity; QueerLinguistics.. 10.

(10) LISTA DE ILUSTRAÇÕES. FIGURA 01: Manchete em site jornalístico ............................................................. p. 15 FIGURA 02: Manchete em site jornalístico .............................................................p. 15 FIGURA 03: Recorte de jornal ..................................................................................p. 22 FIGURA 04: Capa de Revista ...................................................................................p. 31 FIGURA 05: Capa de Revista ...................................................................................p. 42 FIGURA 06: Quadro de imagens de Layla Moura durante a entrevista ...................p. 58 FIGURA 07: Imagem da Layla, a entrevistada ..........................................................p. 63 FIGURA 08: Cena em que o companheiro da entrevistada aparece .........................p. 64 FIGURA 09: Imagem de Layla, em construção de sim como mulher trans durante a entrevista .................................................................................................................... p. 72. 11.

(11) SUMÁRIO. 10. CAPÍTULO 01 – INTRODUÇÃO CAPÍTULO 02 – DA (TRANS)FORMAÇÃO EPISTÊMICA QUEER NOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS. 22. 2.1 Por uma Linguística Queer. 23. 2.2 “Toda nossa fala ordinária é um ato performativo”. 27. 2.3 Linguagem, gênero e sexualidade. 30. CAPÍTULO 03 – DA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES TRANSVERSAIS. 37. 3.1 Transgênero. 40. 3.2 A cultura de gênero no Sertão/Nordeste: o fator masculinidade. 44. 3.3 Raça. 50. CAPÍTULO 04 – INTRPRETANDO POSSIBILIDADES TRANS. 56. 4.1 A pesquisa. 58. 4.2 Das perguntas de pesquisa. 63. 4.3 Narrativas de si como mulher trans. 69. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 77. 81. REFERÊNCIAS. 12.

(12) Capítulo 01: INTRODUÇÃO. U. ma pesquisa1 realizada no ano de 2016, pelo site de conteúdo pornográfico, RedTube, mostra que o Brasil lidera o ranking de país que mais busca por conteúdo pornográfico em que estejam em cena transexuais/travestis. A. pesquisa não relata números, contudo, evidencia algumas características mais relevantes desta relação do Brasil com a pornografia, argumentandoque a busca por Shemale – termo que usualmente se utiliza para a referência de conteúdo trans/travesti em sites pornôs – está em 4º (quarto) lugar dentre os mais buscados pelos brasileiros, e segue em 9º (nono) lugar quando comparado mundialmente. A pesquisa afirma que as buscas por conteúdos pornográficos com o tema relativo a transexuais/travestis tem 89% (oitenta e nove) por cento a mais de chances de ocorrer se esta for originada do Brasil. Essa busca, vislumbrando o prazer sexual, por sujeitos que cruzaram os gêneros binários (mulher e homem), colide ferozmente com a outra realidade comprovada em relatos reunidos por organizações preocupadas com a existência, sobrevivência e bem viver depessoastravestis e transexuais no Brasil, atuantes, assim, no exército da luta por adquirir e sustentar direitos para essas e esses, a exemplo da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e o Grupo Gayda Bahia (GGB). Esses relatos foram organizados e publicados em relatório pela ONG TransgenderEurope (TGEU)2, expondo internacionalmente que o Brasil também é o país em que mais ocorrem assassinatos de pessoas travestis e transexuais no mundo. De acordo com esse relatório, o Brasil marca absoluta vantagem referente ao México, por exemplo, que está posicionando em 2º (segundo) lugar, registrando, dessa maneira, uma superação de três vezes mais o número de homicídios registrados: entre o período de janeiro de 2008 a julho de 2016 foram notificados e registrados para o Brasil 868 (oitocentos e sessenta e oito) assassinatos de travestis e transexuais em comparação ao México, com seus 259 (duzentos e cinquenta e nove) mortos e mortas. No que se refere a essa questão, durante minha trajetória de vida pessoal e de militância, vivi e presenciei inúmeras situações de violências aplicadas contra sujeitos. 1. A pesquisa não foi intitulada, por este motivo o nome da pesquisa não foi especificado. Relatório da TGEU de 2016, disponível em acesso virtual em <https://transrespect.org/wpcontent/uploads/2016/11/TvTPS-Vol14-2016.pdf>. 2. 13.

(13) de corpos que não se adéquam totalmente ao que as ordens heteronormativas de gênero e sexualidade concebem enquanto pessoas “válidas”, “viáveis” (SANTOS FILHO, 2015b), ainda mais quando essas transgressões são realizadas por corpos negros, que além. de. sofrerem. o. apagamento. social. em. direitos,. também. sofrem. a. hipersexualização.A violência contra esses sujeitos se inicia com o cruel processo de invisibilização e inviabilidade de vidas válidas para esses corpos dissidentes.Esse movimento se dá no ato da construção dessas identidades, via língua(gem) sob o olhar hegemônico e binário da heteronormatividade (COLLING, 2015). Essa existência de cultura naturalizada de violência contra corpos que divergem dos esquemas cunhados para sexualidade e os gêneros alicerçados na lógica da estrutura hétero é o que justifica a existência desse estudo. Essa estrutura toma por estratégia rumar o caminho do abafamento e não consentimento à voz para esses corpos a ela desobedientes, para de fato alcançar a remodelagem ou extermínio, pela lâmina afiada da desatenção política, marginalização social e autorização, por negligência, à violência simbólica e física empregada contra esses corpos TRANSgressores, considerados desviantes (LOURO, 1997; 2000). Em duas cenas em que podemos perceber a construção, pelo outro, desses corpos na inviabilidade/vulnerabilidade,ocorrendo via língua(gem), é possível perceber ainda mais concretamente a relevância desse estudo na tentativa de enxergar, de forma sensível, os danos acometidos a esses corpos devido à disseminação e manutenção do discurso prejudicado pelo preconceito, auto referenciação heterocentrada e negação em compreender esse outro rosto enquanto possível de ser habitável (LOURO,2000), de modo a perceber as violências desumanizantes que naturalizaram o forjar da construção de. sujeitos. desobedientes,. aqueles. que. se. atrevem. a. romper. com. a. (hétero)normatividade hegemônica. A esse aspecto são somadas outras características que podem relegar ainda mais esses rostos à vulnerabilidade da margem (BUTLER, 2011). Para a primeira cena em que se evidencia a construção de um corpo não habitável, estranho, inviável, dissidente, está Verônica Bolina, 24 anos, mulher trans negra, que foi acusada e presa por agressão. Após sua detenção, foram divulgadas na internet algumas fotos do tratamento recebido, que infringiu esse corpo3. Nas fotos clicadas, ainda na delegacia em que foi detida, seu rosto é apresentado completamente. 3. Endereço de acesso ao conteúdo disponível nas Referências.. 14.

(14) desfigurado, apresentando hematomas em várias partes, como costas e abdômen. Teve seus longos cabelos raspados. Em uma das imagens registradas, aparece sentada no chão do pátio rodeada por policiais, pés algemados, mãos para traz – certamente também imobilizadas por algemas. A parte superior do seu corpo é apresentada completamente desnudada. Sobre esse fato lamentável, Bento (2015) relembra esse tratamento truculento e de desumanização por violência física e simbólica empregado a Verônica Bolina, quando detida no Segundo Distrito Policial (2º DP) da capital paulistana naquele mesmo ano. Para a pesquisadora, merecem atenção os marcadores de gênero, sexualidade e raça construídos para/performatizados no corpo desse sujeito, pois foi por motivo da existência de cada um deles transversalizando um mesmo corpo em desobediência que se busca justificar a permissividade das violentas ações realizadas. Tendo em vista que em nossa cultura ocidental remetemos tanto os cabelos longos quanto a presença de seios a marcadores do gênero feminino, o ato de raspar aqueles cabelos longos, da mesma forma a exposição dos seios nus, pode ser lido como a busca por provocar referência ao masculino para aquele corpo, já que culturalmente compreende-se que compete aos homens a permissão da exposição pública da parte superior de seu tronco. Ainda é possibilitada a leitura da tentativa de implantar para aquele corpo uma situação vexatória, já que sendo reconhecido enquanto masculino, apresentaria, devido ao implante mamário, deformidade – o que de acordo com a heteronormatividade se qualifica por desvios e segue sendo não permitidos para ele, ainda mais este sendo um corpo negrohipo ou hipersexualizadopela estrutura do racismo. Assim, a lógica que esse sujeito deveria seguir é a de ser considerado viril, desbravador, ferozmente ativo em suas performances – mas que, se ainda tido enquanto feminino, este estaria sendo exposto publicamente, algo que para cultura brasileira remete à vergonha, já que a exposição pública dessa parte de corpo feminino ainda deve se reservar ao privado – o que poderia se tomar por prova viva do terror de se colocar habitando um corpo feminino trans negro pobre no Brasil. Em outra cena, registrada em um vídeo de um pouco mais de um minuto, e disponibilizado na internet4, há um corpo feminino sentado no chão de uma rua, cercado por várias casas, frente a um carrinho de mão, trajando short curto e movendo-se com. 4. Link de acesso disponível em referências.. 15.

(15) dificuldades, tentando vestir-se com uma blusa que possivelmente lhe foi retirada, com a cabeça ensanguentada – certamente devido às agressões sofridas momentos antes do início do registro em vídeo.Visivelmente sem forças, tenta obedecer, mas sem grande sucesso, a ordem de seus agressores para que subisse no carrinho a sua frente, entre risos, xingamentos, chutes e chineladas na cabeça e costas, paulada nas costas.Seus algozes despejam e carregam-na no carrinho para o local de seu apedrejamento e alvejamento com arma de fogo na cabeça. Essa é Dandara dos Santos, aos 42 anos, travesti. Sem reservas ou restrições, essa cena brutal e covarde de tortura, em plena luz do dia, que foi filmada e disponibilizada na internet por seus próprios executores, faz transparecer o sentimento de impunidade, assim como na cena anterior, de Verônica, sem pudor, no fato da ousadia de registrar esses momentos sem que haja demonstração de preocupação quanto à presença de testemunhas ou mesmo da existência do registro desses ocorridos. No vídeo do linchamento de Dandara, as vozes de seus agressores dirigem-se a ela aos gritos e de forma pejorativa, dizendo “vai viadinho”,“baitola”, “a mundiçatá de calcinhae tudo”, revelando a repulsa às expressões de gênero e sexualidade desenvolvidas no e pelo corpo de Dandara. Essa violência contra corpos avessos ao esquema inteligível hétero-binário busca a preservação do modelo padrão de ser e de viver, na estratégia de silenciamento, e porque não dizer de apagamento existencial de pessoas dissidentes, como as pessoas trans. O processo de flagelo a esses corpos acontece via língua(gem) e pode ser percebido, por exemplo, nas escolhas feitas tanto dos temas, quanto na forma que são “apresentados” (construídos) esses sujeitos pela grande mídia.Mesmo com publicações diversas sobre pessoas trans e travestis atualmente, ainda há uma timidez no desejo de falar sobre esses sujeitos na TV, revistas e jornais, exceto quando atores e humoristas as interpretam – ou seja, sem a participação direta desses corpos transgressores de gênero, sexualidade e desejo, mas apenas a interpretação segundo a visão de um outro observando esse rosto – com o intuito de adquirir risos, ou de outro modo – dessa vez em participação direta, mas não em primeira pessoa – se fazendo presentes nas páginas policias, que, mesmo quando se propõem a noticiar, constroem no discurso esses sujeitos de forma pejorativa, mesmo que estejam ali na condição de vítimas. Considerando esses aspectos, é preciso evidenciar que a compreensão adotada para o uso linguístico é de que todo e qualquerrecurso linguístico realiza-se enquanto marcador contextual (SANTOS FILHO, 2015a). Ou seja, conforme esse linguista, o 16.

(16) sujeito com os usos linguísticos, ou mesmo a falta de recursos linguísticos, está constantemente produzindo sentidos para si e para o outro, sobre si e sobre o outro com quem interage, e essa construção é forjada no momento da interação. Além disso, configura-se como relação de poder, pois é no uso dos recursos linguísticos que ocorrem. os. processosque. tornam. corpostrans. não. viáveis,. invisibilizando-. os/inviabilizando-os,tornando-os abjetos, seres malquistos, mal vistos, indesejáveis.Isso implora atenção para uma maior compreensão das motivações ao tratamento empenhado aos dissidentes sexuais e de gênero – aqui focando nas pessoas de gênero trans – a exemplo das escolhas lexicais para noticiar quaisquer fatos relacionados a esses sujeitos, pois as referências que são adotadas para mencionar essas pessoas não raras são desenvolvidas com a confusão e despreocupação em identificar as identidades travestis e transgêneros. Assim, a maioria dos sujeitos termina por ser marcada enquanto travesti, não importando seu auto reconhecimento – certamente por motivo de reconhecimento social da identidade travesti em maior vulnerabilidade que a de pessoas trans. Outra característica é a marcação visando a preservação do gênero de modo inteligível, referenciando a pessoa por sua genitália, com a escolha, por exemplo, do uso de artigose de morfemas de gênero masculino como “o” ou “um”, como em “o/um transexual”, “o/um travesti”, ou “travesti assassinado”, priorizando a marcação não de acordo com a assumida expressão de gênero desenvolvida por aquele sujeitono feminino, mas sim referenciando a genitália que se desenvolveu até seu nascimento. Exemplos evidentes desse aspecto podem ser apreciados na Figura 01, do Jornal do Comercio, alocado no portal de notícias UOL,e na Figura 02, do MG, no Ar do portalR7, na sequência:. 17.

(17) Figura 01: Manchete em site jornalístico Fonte Fonte: Jornal do Comércio, 25 de novembro de 20175.. Figura 02: Manchete em site jornalístico. Fonte: R7, 21 de setembro de 20176.. 5. Link de acesso <encurtador.com.br/blpLT>, ador.com.br/blpLT>, com acesso em 04 de outubro de 2017. Link da matéria, < encurtador.com.br/jrxP4 >, com acesso em 04 de outubro de 2017.. 6. 18.

(18) Porém, nos últimos anos, não apenas nos espaços acadêmicos, devido aos avanços nos meios de comunicação, como a web 2.0 e uma maior difusão das mídias virtuais alternativas –blogs, vlogs, murais de redes sociais, entre outras, é possível perceber com maior facilidade as muitas transformações discursivas em apoio e respeito à possibilidade de existência desses corpos dissidentes. Essa movimentação contrária à normatividade e em prol desses sujeitos é bem comum por parte de pessoas que militam, mesmo que apenas virtualmente, dentro dos espaços de discussões feministas e/ou em prol dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, de pessoas travestis e transgêneros (LGBT), e é nessa relação dialógica de influências que os gêneros discursivosentram em processo de abertura às insurgências, a exemplo de campanhas comerciais e/ou mesmo programas televisivos ou on-lineque agora roubam a cena e tornam possíveis as falas e os corpos de sujeitos antes apenas silenciados (SANTOS FILHO 2017a), como é o caso do canal alocado no site de vídeos YouTube denominado “Barraco da Rosa”, com o programa de mesmo nome, comandado por Rosa Luz, mulhertrans negra periférica, artista e acadêmica, que “expõe” sua realidade e impressões do mundo, construídas a partir do seu lugar de fala, de maneira politizada e ao mesmo tempo explosiva, impactante e um tanto irreverente. Ou mesmo pessoas sensíveis às questões de valor e respeito às vidas humanas também de sujeitos travestis e transgênero, a exemplo de muitas que independentes do lugar social que ocupam, curtem, compartilham e comentam positivamente as aparições na mídia da artista “terrorista de gênero”7, MC Linn da Quebrada, “uma bicha transviada, uma bicha travesti, periférica, preta, que tá experimentando o corpo”8, e que em suas letras e performances, segundo ela,não somente no palco, avança no debate chamando a atenção para problematização sobre gênero, sexualidade, desejo, raça e classe, assim como o aprisionamento social desses corpos ante a percepção social que se tem para o seu direito ou não de existir. Por outro lado, também é fortemente perceptível a movimentação da campanha em direção contrária à insurreição, que é validada por muitos que demonstram desconforto com as alterações da ordem social em relação as mais diversas possibilidades de existência de gêneros, sexualidades e desejos refratados, nãopertencentes ao paradigma uno heteronormativo, apenas podendo perceber sua única 7. Denominação adotada e auto referênciada pela cantora, no sentido de não obediência às normas inteligíveis de gênero. 8 Fala da artista em apresentação de si, em entrevista para o programa “Prazer, Eu Sou”,exibido pelo canal Regina Valparo, no site de vídeos Youtubeem 06 de setembro do ano de 2016.. 19.

(19) verdade enquanto possível, aceitável e referenciável, tomando este enquanto argumento lógico de justificativa para seguir em confronto direto com realidade das diversidades, na tentativa de preservar a permanência da ideia de conservação ou imutabilidade dos conceitos e dos modos de existência para os sujeitos dentro da sociedade. Nítido exemplo dessa realidade foi o discurso fundamentalistaconstruído por muitos representantes e integrantes de instituições religiosas que bradam lutar em prol do que, de acordo com suas concepções, é natural e estabelecido pelo divino, se mobilizando contrariamente ao que não percebem enquanto aceitável, a exemplo do veto ao projeto “Escola sem Homofobia”9,do Programa do Governo Federal, “Brasil sem Homofobia”e do recente caso “Queermuseu”10. Diante desse quadro do uso linguístico-discursivo ocorre a banalização, normalização e naturalizaçãodas violências e construções tendenciosas que favorecem a permanência do poder hegemônico sobre gêneros, sexualidades e desejos, permitindo um único modelo considerado válido, o modelo inteligível, de modo a inviabilizar a existência desse Outro, sujeitos relegados à imoralidade, ao desvio, à marginalidade social e de direitos, ao ostracismo, à invisibilidade de seu rosto e inviabilidade de seus corpos, de modo a dedicar-se ao seu abafamento, apagamento existencial, sendo por sua contradição, esse mesmo grupo, integrante de uma multidão que busca sobreviver às tentativas de extermínio de seu ser não validado pela heteronormatividade, personificando uma (...) guerra sustentada por uma visão de mundo naturalista, que tem em seu alicerce a heterossexualidade, que é tomada como paradigma na sociedade, já 9. Projeto do Programa Brasil sem Homofobia do Governo Federal e conveniado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que elaborou material impresso e de áudio e vídeo para ser distribuído às instituições educacionais por todo o Brasil, que foi embargado pelo Governo no ano de 2011, já pronto para ser impresso, devido à pressão da campanha da Bancada Evangélica e de conservadores do Congresso Nacional, de setores conservadores da sociedade. A justificativa central para validar as acusações feitas para o que foi pejorativamente apelidado de "kit gay" foi a de que o material desenvolvido seria responsável por "estimular o homossexualismo e a promiscuidade”. 10 A “Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira” foi uma exposição de vários artistas, apresentada na cidade de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul, no mês de agosto do ano de 2017, versaria questões de gêneros e das diversidades sexuais. Essa exposição, que deveria permanecer no espaço Santander Cultural, de 15 de agosto a 08 de outubro do mesmo ano, teve seu término antecipado, devido a manifestações encabeçadas pelo Movimento Brasil Livre (MBL), que acusou a exposição de fazer apologia à pedofilia e à zoofilia. Esse movimento de não aceitação teve vários apoiadores de grande significância política e religiosa – leia-se “grande significância” no sentido de arrebanhar um quantitativo de adeptos que melhor aceitam suas ideias, devido á posição religiosa que ocupa e/ou representa – como é o caso de Marcelo Crivella, atual prefeito do Rio de Janeiro e também bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, que vetou a presença da exposição no Museu de Arte do Rio (MAR), justificando, segundo o jornal El País, que “a população do Rio de Janeiro não tem o menor interesse em exposições que promovam zoofilia e pedofilia”.Contudo, essa ação foi tomada sem consulta à opinião pública.. 20.

(20) que nesta é muito forte a solidariedade entre qualquer identidade e sexualidade e gênero; a heterossexualidade é a norma (SANTOS FILHO, 2015b, p.05).. A omissão ao socorro e àdenúncia, ou, como nos específicos casos das duas cenas apresentadas anteriormente, a participação direta na violência empregada contra corpos que carregam em si marcadores de gênero, sexualidade, e mesmo raça, não hegemônicas e dissidentes, revelam, sem deixar margens para dúvidas, como bem emprega Bento (2015), o projeto político de extermínio – por parte da sociedade e Estado – a fim de exemplificar uma vida matável (SANTOS FILHO, 2015b). Com isso, o estranhamento ao nosso contexto cultural, político e social no que diz respeito aos gêneros e à sexualidade heterocentradas, diante da real existência de diversidades, de possíveis outras configurações que não apenas a construída e préestabelecida via língua(gem) enquanto natural, é o que justifica a existência dessa pesquisa, no sentido de problematizar a compreensão de inteligibilidade do gênero, refletindosobre a construção do feminino em um corpo de gênero trans negro, buscando interpretar os sentidos propostos na relação entre sujeito, linguagem, significado e identidade, em uma entrevista. Sendo assim, para além das faces apresentadas sob influências midiáticas e/ou políticas, como já demonstrado e exemplificado, aqui a atençãoé direcionada para a realidade experimentada pelo sujeito dessa pesquisa, umamulherestrans negra sertaneja, vivendo em Delmiro Gouveia, Alagoas, alto sertão. O focoé em como se constrói no momento da interação, considerando as cargas das influências desde antes do nascimento, chegando à educação escolar e até o momento dessapesquisa, o posicionamento e influências/interferências dessa esfera na construção desse sujeito que contraria a expectativa da normatividade social imposta para o gênero, sexualidade e o desejo. Mantendo em vista o processo dialógico, questionamos como esse sujeito recebe e dá em contrapartida, e convive com todas as imposições, já que se posiciona em movimento contrário ao esperado para ela dentro da lógica heteronormativa,a da heterossexualidade compulsória. Para tanto, o problema chave que norteou esse estudo foi pensar: “Como se dá a construção do gênero fortemente marcado no feminino desse sujeito que também se constrói trans negro sertanejo e que performatiza sua sexualidade de modo (pressuposto) desafiador à heteronormatividade? De que maneira essa construção se dá, apesar dos processos que inviabilizam sua possibilidade existencial, intensificado pelo 21.

(21) intercruzamento de suas identidades empurradas a abandonar às condições de marginalidade, de vulnerabilidade?Como, apesar de imerso em uma cultura de base fortemente machista, patriarcal e racista, esse corpo nega obediência ao modelo imposto relativo ao exercício da sua construção performativa?De que jeito, apesar de toda campanha normatizadora compulsória hétero, se construiu esse corpo em resistência e “oposição” ao masculino? Essas questões são respondidas ao longo do desenvolvimento desse trabalho. Com isso, não apenas percebendo os processos violentos de tentativa de remodelagem de corpos desobedientes, mas também percebendo todo empenho social, político e estrutural de pintar as genitálias de rosa ou azul, os corpos de branco e guardar no armário hétero-hegemônico, para o esquecimento, “corpos desviantes” (LOURO, 1997; 2000), e resgatando todo meu processo de construção no reconhecimento enquanto mulher negra lésbica não feminilizada, relembrando todo policiamento, rechaçamento/repressão – física e psicológica – sofridos devido ao desenvolvimento performativo de gênero e sexualidade avesso ao normativo, aliados ao desejo de falar de mim, mas não sobre mim, é que se construiu esse estudo, no objetivo de compreender a construção de si, por si, no momento da interação em uma conversa com esse sujeito sertanejo de corpo trans negro, sujeito de um corpo que ao mesmo tempo em que consegue despertar estranheza, aversão, repulsa, medo, desconforto, ódio, também provoca admiração, curiosidade, empatia, desejo. Percebendo como uma figura tida enquanto tabu social, e que apesar de ser muito pautada em diversos momentos, raramente tem voz, sofrendo assim com a existência de um grande problema de invisibilização, esse corpo viajante (LOURO, 2008) acometido à vulnerabilidade, passividade, ou melhor, o compromisso de ser matável, de não viabilidade existencial, compreender como em meio a todas essas adversidades e no momento de nossa interação ela construiu o seu gênero. Buscando uma melhor compreensão dos processos de construção desse sujeito, foram necessárias três etapas: foi preciso inicialmente compreender o sistema no qual opera esse movimento de silenciamento, e porque não dizer de apagamento existencial de pessoas trans, assim como de travestis, via língua(gem).Com esse fim, inicialmente foram realizados estudos bibliográficos, discussões e debates relativos à linguística de perspectivas queer,para que se percebesse a língua(gem) para além da subjetividade de seus falantes e acolhesse as escolhaslinguístico-discursivas de modo desobediente, para que houvesse possibilidade de problematização de sujeitos e das práticas de 22.

(22) sexualidades e de gêneros em subversão a normas vigentes, à luz dos conceitos abordados por Santos Filho (2012; 2015b;. 2015c) e. Borba (2016), por. exemplo.Também foram desenvolvidos estudos bibliográficos e travadas discussões para melhor entendimento teórico no que se refere àconstrução de identidades de gênero, bem como da sexualidade, fora da percepção de inteligibilidade, mas na performatividade via língua(gem), por sob a tutela dos conceitos em Livia e Hall (2010), Butler (2003; 2011), Bento (2008; 2012), Louro (2000; 2003), Santos Filho (2012), entre outros, percebendo o alcance dos prejuízos com os preconceitos cunhados na política da heterossexualidade compulsória (COLLING, 2015), sem perder de vista as questões de complexa pluralidade que envolve o sujeito dessa pesquisa, integrante em uma multidãoigualmente estranha e complexa em sua multiplicidade (PRECIADO, 2011). A segunda etapa consistiu na elaboração previa de um roteiro, intencionando proporcionar mais segurança no desenvolvimento da conversa, e, depois, efetivação da entrevista, tendo seu registro em vídeo, com posterior transcrição. E, finalmente, no tocante à terceira e última etapa, essa se deu no desenvolvimento da análise, seguindo os critérios dos conhecimentos conceituais adquiridos no início do processo da pesquisa e elaboração escrita do trabalho. De posse das ferramentas necessárias para a elaboração e desenvolvimento para o registro dos conhecimentos adquiridos nos estudos e análises para o desenvolvimento dessa pesquisa, o discorrer do processo de escrita resultou, além dessa Introdução, na elaboração de 03 (três) capítulos, cujo primeiro teórico versa sobre a Linguística Queer, apresentando. um. breve. histórico,. resgatando. seu. surgimento. tutelado. na. Sociolinguísticaatrelada à Teoria Queer, fortemente influenciada por estudos feministas;seu desenvolvimento indisciplinado e preocupado com a problematização das. relações. estabelecidas. entre. sujeito,. identidade,. linguagem,. significado. desenvolvidos na performatividade; uma ciência linguística que visa trazer a pique vozes de corpos dissidentes para melhor compreender, por exemplo, os processos de construção, estruturação, negociações e manutenção do controle das sexualidades e dos gêneroscontidas e organizadas na heteronormatividade, entender esses processos de construçõesenunciativo-discursivas materializadas para reverberar incansavelmente. No que se refere ao outro capítulo teórico, este versa, para uma melhor compreensão, sobre esse sujeito agridoce, situado em transição aos gêneros de caráter binário e inteligível, a identidade trans. Em diálogo com o conceito de gênero adotado, 23.

(23) foram relembradas as características da performatividade e ressignificação, bem como a invenção dessa identidade sertaneja e negra forjada em abundante masculinidade, para, assim, melhor compreender o sujeito trans, ocupante desse corpo construído para não ser habitável. Por fim, no quarto e último capítulo, estão disponíveis dados da metodologia aplicada na pesquisa, do conceito do gênero discursivo elegido para a geração dos dados, além das interpretações da entrevista de uma mulher trans que se constrói avessa, quando em sua própria construção de gênero questiona haver possibilidades de se construir fora dos esquemas predeterminados para as performatividades de seus modos de ser e de viver no mundo. A construção desse trabalho, com estudo e pesquisa, foram fundamentais para perceber mais intimamenteos processos que movimentam essa construção para a inviabilidade de sujeitos,além de perceber queas ocorrências desse modelo de construção existentes nas mais diversas esferas sociais, enquanto um processo do projeto estrutural e estruturante, político, ideológico e partidário da norma heterocentrada, que como um Cébero11, dilacera, dizima, corpos que a ela tentam escapar. É evidenciar e reconhecer o valor, a importância política e social na existência da resistência de construções dissidente sobre as sexualidades e gêneros não heterocentradas, reconhecendo que às margens, antes silenciadas, hoje gritam fazendo ecoar, reverberar, TRANScender a envergadura da heteronormatividade, abalando as estruturas da ditadura heterocentrada. Para compreender todo esse processo de construção desse e para esse sujeito, devemos antes desconstruir, destrinchar, a estrutura no sentido de compreender os conceitos que estão pautados para sua sustentação, conceitos que nortearam a perspectiva epistêmica para a efetivação dessa pesquisa. Dessa forma,no avançar da leitura serão elucidadas questões queajudarão a perceber de fato os processos de construção dos corpos, pois só compreendendo os processos estruturantes é que poderemos problematizar e até mesmo desconstrui-los.. 11. Animal mítico da cultura grega, também conhecido como Cão do Inferno. Édescrito como um Imenso cão feroz de três cabeças com dentes bem afiados e rabo de serpente, incumbido pelo próprio Hades, deus do submundo, de guardar os portões do inferno para que ninguém de lá possa escapar.. 24.

(24) Capítulo 02 DA (TRANS)FORMAÇÃO EPISTÊMICA QUEER NOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS. década de 1980, remete, entre outras questões, à epidemia da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) (AIDS), que muito influenciou, tanto na vida das pessoas, quanto nos pensamentos político e científico e com as produções acadêmicas da época. Segundo dados do o Ministério da Saúde, o Brasil teve seu primeiro caso de AIDS registrado no Estado de São Paulo, no ano de 1982, e, de acordo com a primeira reportagem brasileira exibida na emissora de TV aberta, Rede Globo, no programa Fantástico, do dia 27 de março de 1983, 70% (setenta setenta por cento) cento das vítimas infectadas com o vírus eram homossexuais. Seguindo nessa mesma perspectiva, o jornal impresso O Globo, assim também como outros, classificou o vírus como “câncer gay” e “mal de homossexuais”, como mostra a Figura igura 03,a seguir.Esse movimento desenvolvido pelas mídias contri contribuiu buiu muito com o advento da AIDS, AIDS em, para além de difundir pânico motivado pela incapacidade momentânea de conter a doença, ou mesmo compreender como um todo seu funcionamento, proporcionar um reforço negativo sobre o imaginário referente à homossexualida homossexualidade12.. Figura 03: Recorte de jornal. Fonte: O Globo, 9 de maio de 198313.. 12. Dados colhidos em documentários: Retrospectiva da década de 1980 (TV Globo) e Fantástico 30 Anos - A descoberta da Aids - Domingos Inesquecíveis. 13 Link de acesso < encurtador.com.br/doB12 >.. 25.

(25) O medo coletivo causado nesse momento histórico tornou-se também o agente de repatologização, não apenas simbólica, mas também concreta da homossexualidade, pois mesmo que historicamente a patologização e criminalização na maioria dos países ao redor de todo o globo terrestre já tivesse sido superada, a exemplo da iniciativa da Associação Americana de Psiquiatria, que, após a publicação em seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mentais, no ano de 1952, colocou a homossexualidade na qualidade de desordem, retirando-a de sua lista de transtornos mentais no ano de 1973. Contudo, a nível internacional, a Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu o “homossexualismo”14 na Classificação Internacional de Doenças (CID) de 1977 enquanto doença mental, e só retirou desta lista no início da década de 1990. E assim, em meio a essa atmosfera de horror e pânico coletivo dos anos de 1980, ocorreu a validação do imaginário coletivo relativo à homossexualidade, simbolicamente associada à ameaça deferir a sobrevivência existencial de toda ordem social ou mesmo das pessoas na Terra. 2.1 Por uma Linguística Queer Na academia, o emergir dos estudos gays e lésbicos, tanto no exterior como no Brasil, entre as décadas de 1970 e 1980, tendiam, sobretudo, a tentar compreender a existência de outras sexualidades, mantendo sempre o modelo heterossexual enquanto referencial único e legitimo, perpetuando o conceito da existência de identidades fixas, fazendo com que as dissidências sexuais e de gênero fossem encaradas enquanto desvios às normas para o sexo e para o gênero. Assim, por essa perspectiva, apenas um quantitativo mínimo da parcela populacional – a considerada como“anomalias desviantes” – poderia sentir desejo por pessoas do mesmo sexo que o seu, o que reforçava a ideia que ainda hoje no imaginário coletivo perdura, a de que a naturalidade do desejo sexual é hétero.. 14. Segundo Ceccarelli (2000), o termo foi inicialmente utilizado no ano de 1869 por usos médicos, sob a proposta do médico húngaro KarolyBenkert de ser retirada a “homossexualidade” do critério de crime para o de doença, transferindo assim do poder jurídico para o poder médico a tutela da manifestação da sexualidade não heterossexual classificada enquanto “homossexualismo”. Com o reconhecimento e exclusão da “homossexualidade” enquanto categoria de doença em 1973, hoje muitos argumentam que o sufixo “-ismo” denota o sentido antes aplicado de patologia, empurrando assim esse sujeito ao ser nomeado para a qualidade de doente. Com isso, adotou-se o uso do termo “homossexualidade”.. 26.

(26) Aqui também a Sociolinguística manteve-se dentro da perspectiva determinista da linguagem e dos sujeitos, como bem abordam Finegan (1997) e Santos Filho (2015a),pois essa área do saber defendia (defende?) a ideia de que a língua é a expressão do lugar do(a) falante, e que este lugar é pré-definido e pré-linguístico, o que implicaria dizer, por exemplo, que a mulher é sensível, mais propensa a pensamentos e ações de caráter emocionais que o homem. Assim sendo, as mulheres fariam uso de determinados recursos linguísticos consonantes com essas características, simplesmente por ser mulher. É essa uma atmosfera de horror coletivo, de aversão à dissidência sexual e de gênero similar aos momentos vividos por corpos como os de Verônica e Dandara (mencionadas na Introdução), que houve o nascimento da Linguística Queer, no fim dos anos de 1990. Quando nascem, esses estudos em Linguística Queer vêm também com a intenção de opor-se a essa ideia de língua enquanto expressão da subjetividade do(a) falante, na qual as características dos sujeitos, nesse sentido, são pensadas partindo de um caráter biológico, de uma essência, visando o corpo em sua materialidade, defendendo que todo comportamento linguístico está diretamente ligado, atrelado, à essência desse corpo material, validando o senso comum para a noção de língua, enquanto comportamento linguístico que expressaria o lugar do sujeito falante, não possibilitando problematizar a linguagem ou mesmo o sujeito (SANTOS FILHO, 2015a). Os estudos linguísticos com essa perspectiva queer em sua abordagem podem possuir tanto o caráter aproximado aos estudos etnográficos, que inclusive foi o grande foco no início do desenvolvimento dessa perspectiva epistemológica, no sentido de refletir sobre os usos do sistema gramatical de gênero usado por sujeitos de sexualidade e gênero dissidentes, como travestis, na possibilidade de marcações identitárias, quanto aproximação dos estudos enunciativo-discursivos, no sentido de construir diálogos com as questões de tradição cultural existente nos discursos (SANTOS FILHO, 2017). Assim, nessa abordagem teórica da Linguística Queer, as identidades não são tidas enquanto preexistentes, mas sim forjadas nos instantes dos usos da língua, e para sua análise devem ser considerados tanto o aspecto macrossocial quanto o micro contextual, atentando-se, por exemplo, ao momento histórico, a para quem fala, a porque fala, ao quadro político e aos contextos sociais relevantes que possam interferir na construção dessas identidades, no momento em que a prática de linguagem acontece, pois toda prática de linguagem do(a) falante é elaborada em acordo ou 27.

(27) desacordo/referente a questões que acontecem no momento histórico e da interação particular em que esse sujeito vive.A linguagem é compreendida não como naturalmente dada e oriunda da essência do sujeito, mas sim enquanto forjada em processo de construção que acontece no meio social, e o meio social também é construído pela linguagem, pois são nos usos linguísticos dos sujeitos que os modos de ser e de viver no mundo vão sendo forjados (LIVIA e HALL 2010 [1997]; SANTOS FILHO, 2015a). A urgência na necessidade de se perceber os estudos e pesquisas em língua(gem) com um novo, crítico e desobediente olhar, oferecido por uma nova e emergente episteme, que preze perceber com estranhamento o que já é dado como certo, correto, único e verdadeiro, passa a ser abordada, conforme esclarece Santos Filho (2015c). Essa abordagem necessária é, como já apontamos, a Linguística Queer, área que teve por marco inicial a publicação do livro organizado por Anna Livia e Kira Hall intitulado Queerlyphrased: Language, gender, andsexuality, publicado no ano de 1997, que mescla Teoria Queer relacionada ao feminismo e questionamentos aos estudos que envolviam linguagem, sexualidade e gênero. A Linguística Queer nasceu da junção de discussões no campo da Sociolinguística, recebendo sua tutela – apesar de levantar questionamentos em oposição a elae aos antecessores estudos linguísticos, que percebiam a língua apenas pelo sistema linguístico, por sua estrutura, dispersando todo o entorno que participa, dialoga, envolve, que se conecta com esse sistema – e do abraço forte da Teoria Queer. O “queer”, que leva em seu nome, é uma expressão da língua inglesa que foi/é utilizada pejorativamente como insulto direcionado às pessoas dissidentes sexuais e/ou de gênero, tidas por pervertidas, a exemplo de pessoas homossexuais, travestis e transgênero. Este termo não tem uma tradução exata, mas no que se refere a uma aproximaçãoremete ao “indefinido”, ao “estranho”, ao “esquisito”, de maneira abjeta, equivalente ao que em algumas regiões do Brasil expressariam com o uso de termos como “baitola”, “bicha”, “boiola”, “marica” ou “viado” (SANTOS FILHO, 2012). A Teoria Queer, segundo o professor Richard Miskolci, em fala no “I Seminário Queer”15, realizado pela Revisa CULT e SESC no ano de 2015, possui genealogias diversas, multissituadas, e que em seu forjar no fim da década de 1980, no fogo provocado das discussões acadêmico-feministas acerca de gênero, constrói-se enquanto. 15. Acesso no link < encurtador.com.br/nopyY>.. 28.

(28) uma corrente teórica militante preocupada com a “dinâmica da sexualidade e do desejo nas relações sexuais”, conforme esclarece Santos Filho (2012), entendendo o sujeito e suas. identidades. como. construtos.Por. este. motivo,. joga. luz. e. opõe-. seàheteronormatividade com o intuito de problematizá-la. Devido à complexidade do objeto desse trabalho, a escolha da perspectiva de análise que o fundamenta deve, sem sombra de dúvidas, acompanhar seu ritmo intenso e frenético,no que diz respeito à construção via língua(gem) do gênero de um sujeito trans, para que questões ali presentes que o envolvam e/ou o transversalizem, a exemplo de seu reconhecimento de pertencimento ao feminino, identidades negra e sertaneja, não escapem por limitação do interesse da metodologia elegida. O sujeito do estudo também é percebido no exercício de expressão de desconstrução, desobediência, afrontamento, transgressão e, porque não dizer, dissidência em certos aspectos. Assim sendo, em harmonia com essas características, para melhor atender às exigências da pesquisa, a metodologia aqui adotada é esta que nasce da emergente preocupação em compreender a construção das identidades nos estudos linguísticos. Dessa maneira, compreendendo que essa construção das identidades se dá através da língua(gem), a Linguística Queer se coloca enquanto uma ciência desobediente, indisciplinada e contestadora, que critica e problematiza as normas sociais no que se refere às identidades de gênero e de sexualidade, possibilitando alcançar também outras identidades, a exemplo das de classe, territorial e raça, que permite a percepção para a defesa de sujeitos e características de corpos dissidentes, notando as relações que influenciam a construção desses sujeitos no mundo, tanto em âmbito micro quanto no macrossocial, como sendo uma problemática pertencente a toda sociedade (SANTOS FILHO, 2015c). A esse respeito, Santos Filho (2015b) afirma que a “Linguística Queer” questiona justamente a linguagem e a captura de seu referente, ou se há nesse processo falhas, apresentando, portanto, a noção de performatividade, como posicionamento crítico em relação à linguagem e a sua falha. Nesse raciocínio, é possível pensarmos sobre as implicações dos usos linguísticos e a performatividade, e nesses a construção de subalternidades, precariedades e vulnerabilidade, e também de subversão, no tocante a gêneros e sexualidades, queerizando, desse modo, os estudos em linguagem, focalizando a relação linguagem, significado, sujeito e identidade, nesse contexto cultural de uma ditadura heteronormativa (SANTOS FILHO, 2015b, p. 18).. Assim, os estudos linguísticos na perspectiva queer preocupam-se em provocar abalos, no sentido de desconstruir, estranhar, problematizar as engrenagens desse sistema normativo imposto. Esse caráter de estranhamento, de problematização, se dá 29.

(29) em sentido de estratégia, vislumbrando compreender não como os sujeitos são, como se estes fossem fixos em sua essência, mas sim no sentido de desconstruir a cultura para então compreender estruturalmente o como e os porquês esses e/ou aqueles sujeitos se constroem ou são construídos do jeito que se constroem ou que estão construídos, permitindo evidenciar e questionar a visão hegemônica, produzida e mantida com apoio da socialização via linguagem, que percebe o mundo assim como as coisas nele, de modo que silencia e, outras muitas vezes, apaga vozes e corpos considerados por ela abjetos, inadequados, inferiores, anômalos, ‘corpos matáveis’ (SANTOS FILHO, 2015b), relegando-os à vulnerabilidade. Mas, agora, essas vozes, esses corpos, emegem para que os enxerguemos no mundo, provocando com isso os almejados abalos à norma imposta, ampliando, abrindo, outras possibilidades para os sujeitos existirem e resistirem no mundo. Epistemologicamente, para esse campo do conhecimento é percebida a língua(gem)de forma atrevida e subversiva, enquanto prática de ressignificação dentro dos estudos linguísticos.Isso se faz possível ao perceber e estranhar os conceitos linguísticos, movimentando-se em oposição, em direção a outras abordagens dentro das múltiplas ramificações do campo da Linguística. 2.2 “Toda nossa fala ordinária é um ato performativo” Também, nos sentidos antes comentados, a condição do sujeito é percebida não por uma perspectiva de sujeitos anteriores aos discursos, sujeitos pré-discursivos e que tenham plenitude de controle sobre suas enunciações, ou até mesmo existentes enquanto incorruptíveis verdades morfofisiológicas, e que por isso as condições referentes ao que é relativo às suas vidas (pensamentos, expressões, emoções) já estão dadas, sendo estes sujeitos livres, cujas escolhas são absolutas, com identidade primária que deva ser constatada e/ou descrita, representada. Tampouco o sujeito é percebido como assujeitado, como folha de papel em branco ou gaveta vazia, aguardando ser preenchida por esquemas normatizadores que o façam assumir papeis pré-estabelecidos (SANTOS FILHO, 2015c). Aqui a concepção para o sujeito que se faz interessante perceber é a de “sujeito que fala”, assumido como um sujeito que age, sujeito que forja seus movimentos, não necessariamente de forma retilínea, que existe com possibilidades, percebendo essas possibilidades dentro da perspectiva da performatividade, de Austin(1962), assumida 30.

(30) por Butler (2003).Por essa perspectiva, entende-se que “toda nossa fala ordinária é um ato performativo, uma ação pela língua(gem), na qual nos situamos em alguns ‘processos de fazer’ e ou nos ‘afastamos’ de outros” (SANTOS FILHO, 2015c, p. 01), compreendendo que (...) um ato linguístico transforma-se em um ato performativo com êxito quando as citações têm poder vinculante, isto é, quando têm a capacidade de “passar a valer”, a capacidadede não meramente orientar, mas de produzir um efeito “obrigatório”, no entendimento de que devem ser acompanhadas, devem ser seguidas. Esse poder vinculante dá força ao enunciado, transformando-o, assim, em ato, em ação, via sua capacidade de interpelação (SANTOS FILHO, 2015c, p.19).. Essa noção de performatividade nos permite perceber a língua(gem) enquanto ação, no sentido de que constrói sentidos que por sua vez podem provocar identificação dos sujeitos com esses significados propostos. Assim, quando ocorre a concordância com os sentidos propostos na enunciação, esses são tomados enquanto válidos em seus sentidos. Dessa forma, o sujeito incorpora, assimila, esses sentidos como sendo verdadeiros, ou mesmo o sujeito pode contrapor-se, criando desidentificação, fazendo com que o ato performativo não tenha sentido válido, não logre êxito. Conforme Santos Filho (2015c), quando falamos em estrutura do ato performativo o que se busca compreender dentro dessa abordagem é o funcionamento estrutural do ato de fala, compreender como a autoridade moral marca sua presença na ação, no sentido de como ocorre a autorização e manutenção dela enquanto performatividade. Para tanto, evidenciar que um ato performativo não é um ato linguístico em si, é necessário, pois, na realidade, a cena discursiva que está constituída deve ser percebida em dimensões sociais macro e micro, de modo a perceber esses sujeitos discursivos agindo na interação e se construindo no instante dela,tendo em vista também que o ato performativo mantém relação dialógica com a cultura na qual está inserido, construindo e sendo construído por ela. A estrutura do ato performativo é constituída por citações, e estas citações são vozes com autoridade resgatadas para validar o discurso, a exemplo de quando um dosagressores na cena 2, apresentada na Introdução, interpela Dandara com arecriminação contida na frase “a mundiça tá de calcinha e tudo”.Esse ato de fala busca na cadeia de citações, também imersa “na cultura heteronormativa, sustentada por scripts de significados que postulam a essência dos corpos e da língua(gem)” (SANTOS 31.

(31) FILHO, 2015c, p.17),resgatar apoio de ordem epistêmica determinista, a qual prevê papeis de gênero para os sujeitos, baseando-se no caráter morfofisiológico daquele corpo, na essência, para predeterminar o que são comportamentos apropriados para a mulher e/ou comportamentos adequados para o homem, como se os modos de ser e de viver no mundo refletissem, demarcassem, o lugar do sujeito. Nesse sentido, a sustentação, a força da citação, está em seu constante resgate, sua repetição, e é nessa força de citação que se pode gerar sentido ao que está sendo enunciado. Conforme argumenta Santos Filho (2015c, p. 19), “Isso é possível porque a citação se constitui no poder vinculante e se constitui poder vinculante”. No que diz respeito ao agir desse sujeito, é recebido enquanto efeito documprimento de determinadas normas que o precedem e o comandam. Assim sendo, convenções e regras o constituem e o afetam diretamente, condicionando-o à dependência uns aos outros para viver. Diante desse entendimento, não cabe possibilidade para entender esse sujeito enquanto autoconsciente dos limites do seu eu, da sua subjetividade. Devido a esse caráter, segue sempre dependente de que scripts culturais estabeleçam a cena de interpelação, a exemplo dos da “ditadura heteronormativa” (COLLING, 2015) e dos das insurreições que ocorrem por motivo dela, gerando tanto uma atmosfera de falta de liberdade quanto também de possibilidades. Logo, não há corpos e/ou identidades que tenha sua definição já dada em seu nascimento, ou antes dele, pois o sujeito é entendido não como um sujeito unificado, que se desenvolve retilineamente e de forma progressiva, seguindo a perspectiva tradicional humanística, que presume que o sujeito possa ser concebido enquanto pessoa substantiva, com características essenciais e outras não essenciais. A noção defendida para o estudo é a de que o sujeito é constituído em meio a processos conflituosos, abundantes em divergências e pluralidades, variação, difuso, como se esse sujeito fosse “lançado em uma viagem ao longo da vida, na qual o que é importante é o andar e não o chegar”(LOURO, 2008, p.13). Assim, esse sujeito age, pode ser percebido como um sujeito situado, na perspectiva bakhtiniana (SANTOS FILHO, 2015c). Fazer tais leituras, compreender e levantar tais questões no campo da linguística, de modo a problematizaras relações elaboradas entre a construção da língua(gem), do sujeito, suas identidades e dos significados não seriam abordagens acadêmicas possíveis sem a perspectiva queer para guiar esse estudo, já que anterior a essa compreensão, a Sociolinguística se empenhou em afastar-se da noção de língua apenas enquanto sistema, porém com resultados negativos, a exemplo da noção de gênero concebido tão 32.

(32) somente enquanto sexo biológico, essência, morfologia de nascimento. Isso limitou essa área dos estudos linguísticos, não a permitindo dialogar com os sujeitos em toda sua complexidade, limitando-se, desse modo,a perceber esses sujeitos retidos ao espaço que eles são designados, abandonando-os ali para retornar ao sistema, não às práticas de linguagem, interação, discurso. Ou seja, o sujeito nesse momento não era priorizado, pois os interesses da Sociolinguística se prenderam à análise e à avaliação da língua (FINEGAN, 1997; SANTOS FILHO, 2017). 2.3 Linguagem, gênero e sexualidade Assim, nos estudos sociolinguísticos, como apontados anteriormente, não havia problematização das sexualidades, dos gêneros, dos corpos, nem mesmo da língua(gem), causando a sublimação do sujeito, pela preocupação direta em analisar determinados padrõeseestilos (socio)linguísticos, no sentido de perceber as identidades enquanto rígidas, sem possibilidade de mobilidade, por serem compreendidas como essenciais, biológicas, dando vazão ao estranhamento, a problematização subversiva da Linguística Queer. Aqui, ainda bebendo da fonte de águas butlerianas para a compreensão desses sujeitos, no que concerne as suas identidades de gêneros e sexualidades, compreendendo-os enquanto não dados ou mesmo inerentes à morfologia de seus corpos, mas pelo entendimento de que se dão em construção por meio do diálogo, através das convenções culturais, e esses meios são atuantes enquanto autoridade moral e vinculante consolidadas via língua(gem). Logo, as afirmações ou negações na construção sobre esses corpos não se dão por autonomia desse sujeito, ou mesmo de sua reflexividade, pois é a língua(gem) que interpela os sujeitos para alcançar sua constituição, pois é o (...) corpo feminino ou masculino. Um processo que é baseado em características físicas que são vitais como diferenças e às quais se atribui significados culturais. Afirma-se e reitera-se uma sequência de muitos modos já consagrada, a sequência sobre gênero-sexualidade.Oato de nomear o corpo acontece no anterior da lógica que supõe o sexo como um “dado” anterior à cultura e lhe atribui um caráter imutável, a-histórico e binário. Tal lógica implica que esse “dado” sexo vai determinar o gênero e induzir a uma única forma de desejo. Supostamente não há outra possibilidade senão seguir a ordem prevista. A afirmação “é um menino” ou “é uma menina” inaugura um processo de masculinização ou feminização com o qual o sujeito se compromete. Para se qualificar como sujeito legítimo, como um “um corpo que importa”, no dizer de. 33.

(33) Butler, o sujeito severá obrigado a obedecer às normas que regulam sua cultura (SANTOS FILHO, 2015c, p. 14).. Compreensões. de. estudos. anteriores,. como. no. campo. da. sociolinguística,trabalhavam a categoria de gênero sob a luz da concepção de papéis de sexo, em que se pensa sexo pela morfologia, pela materialidade, enquanto uma questão fisiológica, fisiologia que determina, por suas características, expectativas e papeis específicos a serem desenvolvidos na sociedade, e que a efetivação do desenvolvimento desses papeis por esse sujeito deveatingir também as expressões do comportamento linguístico, já que este também é pensado sob a luz determinista, percebendo o sujeito limitado em conformidade com a materialidade a qual pertence, como sugeriu no ano de 2015 a manchete de capa da revista O Cérebro e a Sexualidade da editora Alto Astral, que pode ser observada na Figura 4, convidando o(a) leitor(a) a perceber que o comportamento humano, suas ideias, assim como atividades cerebrais,podem serespecíficos para cada sexo.. Figura 04:Capa de revista. Fonte: O cérebro e a sexualidade, 2015.. 34.

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