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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE LETRAS PORTUGUÊS-INGLÊS TIAGO QUINTANA

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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE LETRAS PORTUGUÊS-INGLÊS

TIAGO QUINTANA

IDEOLOGIA E INTENCIONALIDADE EM A SAGA DE HEDIN E HOGNI

Monografia apresentada ao Curso de Letras Português-Inglês da Universidade Veiga de Almeida – Campus Tijuca, como requisito à obtenção do título de Bacharel em Letras.

Orientador: Prof. Cimélio Senna.

Rio de Janeiro 2013

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RESUMO

O presente trabalho de conclusão de curso propõe-se a discutir as práticas textual, discursiva e social da saga nórdica Sörla tháttr eda Hédins saga ok Högna por meio de um estudo do ponto de vista da Linguística Textual e da Análise Crítica do Discurso que identifique os temas de intencionalidade, hegemonia e ideologia presentes na narrativa medieval islandesa a fim de comprovar que ela contém um discurso que expressa a superioridade da fé cristã sobre o imaginário pagão e demonstrar como uma obra de ficção pode ser usada como prática discursiva para a construção e transformação da sociedade.

Palavras-chave: Sagas nórdicas; Linguística Textual; Análise Crítica do Discurso; Sörla tháttr.

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ABSTRACT

This final paper proposes to discuss the textual, discursive and social practices of the Norse saga Sörla tháttr eda Hédins saga ok Högna by means of a study oriented by Textual Linguistics and Critical Discourse Analysis that identifies the themes of intentionality, hegemony and ideology in the medieval Icelandic narrative in order to substantiate that it contains a discourse which expresses the superiority of the Christian faith over pagan imaginary and show how a work of fiction may be used as discursive practice to build and transform society.

Keywords: Norse sagas; Textual Linguistics; Critical Discourse Analysis; Sörla tháttr.

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TIAGO QUINTANA

IDEOLOGIA E INTENCIONALIDADE EM A SAGA DE HEDIN E HOGNI

Esta monografia foi julgada adequada à obtenção do título de bacharel em Letras e aprovada em sua forma final pelo curso de Letras da Universidade Veiga de Almeida.

Rio de Janeiro, 30 de junho de 2013.

________________________________

Professor e Orientador Cimélio Senna Vasconcelos da Silva

________________________________ Professor

________________________________ Professor

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1. INTRODUÇÃO

A literatura nórdica medieval tem nas sagas uma de suas mais significativas manifestações. Nelas estão representados diferentes aspectos socioculturais do mundo nórdico, e embora sua autenticidade histórica ainda seja motivo de discussões acadêmicas, seu valor como fontes literárias para estudo das transformações sócio-históricas dos povos nórdicos medievais é inegável.

Uma das obras dessa literatura é a Sörla tháttr eda Hédins saga ok Högna (“O conto de Sörli, ou A saga de Hedin e Hogni” em uma tradução livre), traduzida para o português como A saga de Hedin e Hogni. A saga data do séc. XIV e faz parte do

Flateyjarbók (“O livro da ilha plana”, em uma tradução livre), uma coletânea de sagas

compilada pelos padres islandeses Jon Thordson e Magnus Thorhalson. Na saga, devido à vontade de Odin e às manipulações de Freya, os reis Hedin e Hogni começam a travar uma batalha sem fim entre eles; os dois se libertam do feitiço apenas pela intervenção de Ivar o Luminoso, guerreiro cristão a serviço de Olaf Tryggvason, rei da Noruega.

Não apenas a própria narrativa em si, mas também a prática textual da saga traz à tona várias considerações sobre a construção de sentidos e intencionalidade do texto, e também sobre os conflitos de hegemonia e ideologia nele presentes. Por exemplo, quando Odin (originalmente, o maior dos deuses nórdicos, mas no contexto da narrativa, ele é apresentado como sendo apenas um rei-feiticeiro poderoso) ordena a Freya que provoque a situação descrita acima, eis a maneira como ele se expressa: “(...)a menos que um homem batizado tenha o coração tão valente, e seu senhor tenha tal poder e ascendência(...)”. Porque apenas um homem batizado – isto é, um cristão – seria capaz de quebrar o encantamento que força os dois reis a uma batalha sem fim? Não apenas isso; o próprio enredo narra que o senhor de Ivar, isto é, o “senhor de tal poder e ascendência”, é Olaf Tryggvason – o rei que, apesar de seu curto reinado, entrou para a História (dentre outros motivos) por forçar a Noruega a se converter ao cristianismo.

A proposta deste trabalho de conclusão de curso é discutir as práticas textual, discursiva e social da saga de Hedin e Hogni a fim de comprovar que o conto islandês medieval contém um discurso cristão, isto é, um discurso que demonstra a superioridade da fé cristã sobre o imaginário pagão. O objetivo geral é estudar o texto da saga do ponto de vista da Linguística Textual e da Análise Crítica do Discurso com um foco nos temas de construção de sentidos, intencionalidade, hegemonia e ideologia; os objetivos

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específicos são definir as fontes históricas e literárias usadas no estudo, descrever brevemente o contexto sócio-histórico e a produção literária dos nórdicos medievais, resumir o processo de cristianização da Noruega e da Islândia, apresentar uma tradução para o português da saga estudada, sintetizar a literatura escolhida sobre Linguística Textual e Análise Crítica do Discurso, e por fim identificar os temas de intencionalidade, hegemonia e ideologia presentes na narrativa. O método utilizado é a leitura crítica da saga com base nos preceitos de autores como Anna Christina Bentes, Paulo Eduardo Ramos, Francisco Alves Filho, Norman Fairclough e Teun van Dijk, proponentes da Linguística Textual e da Análise Crítica do Discurso.

Com isso, espera-se observar a partir de um caso específico como uma obra de ficção pode ser usada como prática discursiva para a construção e transformação da sociedade, ou para se confrontar ou defender ideologias e manter uma hegemonia discursiva existente.

2. FONTES

Para se estudar o contexto sócio-histórico dos nórdicos medievais e sua produção literária, bem como o processo de cristianização da Noruega e da Islândia, serão tomados como base textos modernos de análise literária e historiografia de autores como Gwyn Jones, Lars Lönnroth, Patricia Pires Boulhosa e outros.

Para se traduzir a saga, além do texto original em nórdico antigo (escrito no séc. XIV), foram tomadas como base três traduções para o inglês: a de William Morris e Eiríkr Magnusson (feita em 1875), a de Nora Kershaw (feita em 1920), e a de Peter Tunstall (feita em 2005).

Para se analisar a saga em busca de construção de sentidos, intencionalidade, hegemonia e ideologia, serão tomados como base textos de Anna Christina Bentes, Paulo Eduardo Ramos, Francisco Alves Filho, Norman Fairclough e Teun van Dijk, proponentes da Linguística Textual e da Análise Crítica do Discurso.

3. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DOS

NÓRDICOS MEDIEVAIS

Chamam-se “nórdicos” os povos germânicos medievais originários da Escandinávia e da atual Dinamarca, à exceção dos finlandeses e dos lapões: os jutos e daneses, ancestrais dos atuais dinamarqueses; os getas e suevos, ancestrais dos atuais

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suecos; e os noruegueses, ancestrais dos atuais noruegueses e islandeses. Esses povos eram ligados entre si por uma ancestralidade comum, pela cultura, pela religião, e pela língua.

Embora sejam popularmente conhecidos como “vikings”, isso é um erro, pois os vikings1 eram especificamente os nórdicos que partiam em expedições marítimas de pilhagem, conquista ou comércio; não como um exército a serviço do rei, defendendo os interesses da coroa, mas sim como bandos guerreiros a serviço de senhores locais, em busca de riquezas e glória.

Do século VIII ao século XI, esses povos lançaram-se ao mar em busca de pilhagens, rotas de comércio, e terras para conquistar e colonizar. O impacto sociopolítico causado por eles na Europa foi tamanho que esse período também é conhecido como a Era Viking.

Dentre suas realizações históricas, estão a colonização da Islândia pelos noruegueses; o estabelecimento de um reino na Inglaterra pelos daneses, o Danelaw (“governo danês”, em uma tradução livre), que levaria à centralização do poder na Inglaterra sob um único rei; a fundação do Principado de Kiev pelos suevos, um reino que englobava partes das atuais Rússia, Belarus e Ucrânia e que viria a ser uma das raízes do futuro Império Russo; e o estabelecimento, na França, do ducado da Normandia pelos daneses, que dariam origem a outro povo, os normandos, que mais tarde conquistariam a Sicília e a Inglaterra. Além desses feitos, criaram rotas de comércio que ligavam o Atlântico Norte, o Mar do Norte e o Mar Báltico, fundaram povoados por toda a Europa (como Dublin, na Irlanda, por exemplo), e aportaram na América do Norte séculos antes de Cristóvão Colombo.

A sociedade nórdica tinha como principal grupo social o clã, um grupo de pessoas ligadas pelo parentesco e pela descendência de um ancestral comum (como os Völsungs, por exemplo, personagens da Völsungasaga – a saga dos Völsungs –, assim chamados por descenderem do rei Völsung). Essa sociedade dividia-se nas seguintes camadas socioeconômicas: os escravos (thralls), geralmente prisioneiros de batalhas, mas também escravos por dívidas ou homens livres punidos com a escravidão por seus crimes; os homens livres (karls), que podiam ser homens de posses modestas, como pequenos comerciantes e fazendeiros, homens quase sem posses, cuja principal fonte de

1

Por razões estilísticas, preferiu-se usar a tradução corrente “viking”, em vez da tradução mais antiga “viquingue”.

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renda eram os trabalhos que realizavam nas propriedades de outros, ou homens prósperos e politicamente influentes; e os nobres (jarls), líderes guerreiros e grandes proprietários de terras. Apesar da reputação belicosa dos nórdicos, a maior parte de sua sociedade era composta não por guerreiros profissionais, mas sim por agricultores, pescadores, artesãos e comerciantes.

A maior autoridade política entre os nórdicos, ao menos em teoria, era o rei (konung); na prática, no entanto, o verdadeiro poder político estava quase sempre nas mãos da aristocracia local (os jarls) e das assembleias locais (as things), onde se discutiam as leis, faziam-se os julgamentos e realizava-se a justiça. Muitas vezes ocorriam disputas de poder entre os reis e as autoridades locais, com os monarcas tentando impor seu poder sobre a aristocracia e as assembleias, mas nem sempre seus esforços eram bem-sucedidos; apenas quando a Era Viking já se aproximava de seu fim é que o poder real começou a suplantar o poder local.2

4. BREVE DESCRIÇÃO DA PRODUÇÃO LITERÁRIA DOS

NÓRDICOS MEDIEVAIS

A produção literária dos nórdicos medievais consistia principalmente na poesia

eddaica (assim chamada em referência à Saemundr Edda, que significa, em uma

tradução livre, “a Edda de Saemundr”, que é uma referência a Saemundr Sigfússon, presumido autor da obra, teoria hoje abandonada; é uma obra ainda sem tradução para o português na qual vários desses poemas foram compilados), na poesia skaldica (assim chamada em referência aos poetas que a declamavam, os skalds)3 e nas sagas. A maior parte dessa produção foi realizada na Islândia, mas o gênero literário da poesia nórdica, assim como muitas das lendas e narrativas que serviram de base para os poemas e as sagas, são muito antigas, originárias da cultura oral germânica e escandinava.4

2 Cf. JONES, Gwyn. A History of the Vikings. Oxford: Oxford University Press, 1984. e SAWYER,

Peter (Org.). The Oxford illustrated History of the Vikings. Nova York: Oxford University Press, 1997.

3 Poetas e contadores de histórias da cultura nórdica. Porém, não sabemos quase nada além disso: como

eles aprendiam sua arte, se possuíam privilégios ou responsabilidades adicionais, se sua poesia refletia rituais religiosos, etc. É fato, no entanto, que o ofício de skald era respeitado; sabemos, por exemplo, que reis, nobres e bispos também eram skalds. Em português pode-se também usar o termo “escaldo”, porém, por razões estilísticas, neste trabalho será mantido o uso do termo original.

4 Cf. BOULHOSA, Patricia Pires. Sagas islandesas como fonte da história da Escandinávia medieval.

Signum, n. 7, p. 13-39, 2005; CLOVER, Carol J. & LINDOW, John (Org.). Old Norse-Icelandic

literature: a critical guide. Toronto: University of Toronto Press, 2005; e SAWYER, Peter (Org.). The Oxford illustrated History of the Vikings. Nova York: Oxford University Press, 1997.

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A poesia eddaica tinha como objetivo narrar as aventuras de deuses e heróis mitológicos, como os deuses Odin e Loki ou o herói Sigurd, enquanto a poesia skaldica tinha como objetivo recitar e enaltecer os feitos de condes, reis e heróis nórdicos, como os reis Ragnar Lodbrok e Olaf Tryggvason ou o herói Egil Skallagrimsson. De modo geral, a poesia eddaica não era tão complexa, em termos de sintaxe, métrica e vocabulário, quanto a poesia skaldica, enquanto a maior parte dos poemas skaldicos tinham como tema personagens e eventos históricos, muitas vezes contemporâneos ao

skald que compusera o poema, apesar de existirem também poemas skaldicos com

temas mitológicos. Embora cada uma tivesse suas próprias características estilísticas e temáticas, bem como sua própria métrica, o uso de certos artifícios linguístico-literários, como aliteração5, kenningar6 e heiti,7 era comum a ambas.

Exemplos de poemas eddaicos são a Sigrdrífumál (“A balada de Sigurdrifa”, em uma tradução livre), que descreve um encontro entre o herói Sigurd e a valquíria Sigurdrifa (“Portadora da Vitória”, possivelmente um outro nome para a valquíria Brynhild) e como esta o ensina a invocar o poder mágico das runas; e a Lokasenna (“A contenda de Loki”), que descreve um banquete dos deuses durante o qual Loki e os outros deuses trocam insultos entre si, culminando no aprisionamento e punição de Loki pelo assassinato de Balder. Exemplos de poemas skaldicos são a Ólafsdrápa

Tryggvasonar (“Louvor a Olaf Tryggvason”), que foi composto em homenagem ao rei

norueguês Olaf Tryggvason e celebra seus feitos; e a Íslendingadrápa (“Louvor aos islandeses”) que relata a vida e os feitos de alguns heróis islandeses, como Egil Skallagrimsson, Grettir Asmundarson e Kormak Ogmundarson (que também são protagonistas de algumas sagas).

Já as sagas nórdicas eram histórias sobre deuses, heróis e antepassados da cultura nórdica. Eram, em sua maior parte, baseadas em histórias orais originárias da Escandinávia (ou seja, eram produto de uma cultura oral). Foram compostas entre os séculos VIII e XII, mas só foram registradas por escrito a partir do século XII, na

5 Aliteração é uma figura de linguagem que consiste na repetição de consoantes, vogais ou sílabas em um

verso. Um exemplo disso é o verso infantil “O rato roeu a roupa do rei de Roma”. Na antiga poesia nórdica, no entanto, a aliteração consistia na repetição de sílabas tônicas, não de letras.

6 Kenningar (no singular, kenning) são figuras de linguagem que, à semelhança da metonímia, substituem

o nome de uma pessoa, objeto, local ou evento. Desse modo, o kenning “matador de gigantes” pode ser usado para substituir o nome do deus Thor, conhecido por suas batalhas contra os gigantes.

7 Heiti são palavras raras usadas no lugar de outras mais comuns por razões estilísticas. Um exemplo de

heiti é o uso de skaevadr (“viajante veloz”, em uma tradução livre) em vez de hestr (“cavalo”), ou, em português, o uso de “donzela” no lugar de “virgem”.

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Islândia; antes disso, elas tinham como objetivo serem narradas por skalds. Podem ser classificadas de acordo com sua temática: as mais conhecidas são as sagas de reis, ou

konungasögur (“histórias de reis”, em uma tradução livre), que narram a vida e os feitos

de reis nórdicos; as sagas das famílias, ou íslendingasögur (“histórias de islandeses”), que narram eventos centrados ao redor de certas famílias e indivíduos históricos ocorridos na Islândia entre os séculos X e XI; e as sagas heroicas, ou fornaldarsögur (“histórias de tempos distantes”), que narram histórias lendárias repletas de elementos fantásticos e mitológicos.8

Exemplos desses tipos de sagas são a Harald Hardrades saga, uma saga sobre a vida, as conquistas e a morte de Harald Hardrada (Harald III da Noruega, Harald o Tirano em uma tradução livre) que faz parte da Heimskringla, uma crônica sobre os reis da Noruega desde a mítica linhagem dos Ynglings até o rei Magnus Erlingsson (Magnus V da Noruega) escrita por Snorri Sturluson no séc. XIII; a Grettis saga, uma saga sobre os feitos e as desventuras do fora-da-lei islandês Grettir Ásmundarson, também conhecido como Grettir o Forte (de autoria anônima); e a Hrólfs saga kraka, uma saga centrada no lendário rei Hrolf Kráki (“Hrolf Vara”, assim chamado por ser alto e magro) e seus campeões enquanto enfrentam o rei Adils para vingar o pai de Hrolf e Skuld, a meia-irmã de Hrolf que tenta tomar-lhe a coroa (de autoria anônima).

4.1 A representação literária e mitológica tradicional dos deuses Odin e Freya Antes de se analisar a maneira como Odin e Freya foram representados na Sörla

tháttr, é importante estudar como eles eram tradicionalmente representados nas histórias

anteriores à cristianização dos povos escandinavos. Embora Loki também faça parte da narrativa do conto, ele não fará parte desta análise por ser um personagem por demais secundário para a trama, e também por sua caracterização estar em geral de acordo com sua representação literária e mitológica tradicionais.

Nas narrativas nórdicas, Odin é o rei dos deuses de Asgard, o lar dos aesires – uma das famílias dos deuses nórdicos. Sentado em seu trono, ele observa as batalhas que ocorrem no mundo dos homens, e ele é quem decide pela vitória ou derrota dos

8

Cf. BOULHOSA, Patricia Pires. Sagas islandesas como fonte da história da Escandinávia medieval. Signum, n. 7, p. 13-39, 2005; CLOVER, Carol J. & LINDOW, John (Org.). Old Norse-Icelandic

literature: a critical guide. Toronto: University of Toronto Press, 2005; e LÖNNROTH, Lars. The

Icelandic sagas. In: BRINK, Stefan e PRICE, Neil (Org.). The Viking World. Londres: Routledge, 2011. p. 304-310.

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combatentes. Quando decide que um guerreiro deve morrer, envia as valquírias, deusas guerreiras, para provocar sua morte e levar sua alma ao Valhalla, o além-vida dos que morreram em batalha; dessa forma, ele age também como uma personificação do Destino, ao provocar a morte dos guerreiros quando é chegada a hora. Reis, nobres e guerreiros fazem sacrifícios em sua homenagem para conseguir seu favor e garantir a vitória em batalha.

Mas Odin não é apenas o deus dos mortos, dos guerreiros ou dos senhores; é também o deus da poesia e da magia, pois foi ele quem concedeu ambas ao homem. É o deus da inspiração, em todas as formas possíveis: a inspiração artística do skald, o frenesi de batalha do guerreiro, o transe do feiticeiro.

É ainda o deus criador, pois foi ele quem criou o mundo e os seres que nele vivem, como o Homem. Não é, no entanto, um deus progenitor, no sentido que toda uma família de deuses traça sua linhagem dele, como acontece com Urano, da mitologia grega, ou Tiamat, da mitologia babilônica.

Já a deusa Freya é uma vanir, a outra família de deuses nórdicos. Os vanires são deuses associados à Natureza e aos elementos (por exemplo, seu pai, Njord, é o deus dos mares), e Freya não é uma exceção: é a deusa da fertilidade em todas as suas concepções – a fertilidade da terra, a fertilidade da mulher, até mesmo a fertilidade do gado. Com isso, ela era também a deusa da prosperidade, pois o maior símbolo de prosperidade entre os nórdicos era um rebanho grande e saudável. Sua beleza é tamanha que até mesmo os gigantes a desejam como esposa ou amante, e quando chora, suas lágrimas são de ouro.

Assim como Odin, no entanto, Freya também tem muitas faces. É uma deusa feiticeira, como Odin, e também ela concedeu a feitiçaria aos homens; mas enquanto a magia que Odin ensinou é a magia rúnica, associada à nobreza, à guerra e ao universo masculino, a magia de Freya é a magia feminina, espiritual, xamânica. É verdade que Odin também aprendeu essa magia feminina (em algumas versões da história, com a própria Freya); no entanto, de acordo com os mitos não foi ele quem a ensinou à raça humana, mas sim Freya, o que diferencia o papel mitológico e literário de ambas as divindades.

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Freya é também uma deusa associada à guerra e aos mortos: metade daqueles que caem em batalha são levados não para o Valhalla de Odin, mas sim para o

Fólkvangr de Freya.

Guerreiro, feiticeiro, poeta, rei e andarilho; mãe, amante, mulher, feiticeira. Tanto Odin quanto Freya possuem muitas faces, e em todas as histórias em que aparecem são divindades respeitadas, nem sempre amadas (especialmente no caso de Odin, cujo culto era mais popular entre a aristocracia que entre o homem comum), muitas vezes temidas.9

5. BREVE DESCRIÇÃO DA CRISTIANIZAÇÃO DA ISLÂNDIA E DA

NORUEGA

O abandono da religião pagã e a adoção do cristianismo foi um processo que ocorreu de modo diferente entre os reinos escandinavos e a Islândia: na Noruega, na Suécia e na Dinamarca, ao contrário da Islândia, esse processo foi imposto por seus respectivos monarcas, alguns dos quais usaram de violência para tal. Foi também um processo lento; reações pagãs à cristianização forçada (normalmente em associação com insatisfações de natureza sociopolítica, não apenas religiosa) ainda ocorreram nos três reinos por muito tempo após serem oficialmente convertidos à religião cristã. No entanto, é seguro afirmar que tanto nos reinos escandinavos quanto na Islândia esse processo originou-se principalmente de considerações políticas, não apenas religiosas.

Devido à saga de Hedin e Hogni fazer referência direta ao rei Olaf Tryggvason, e por ela ter sido escrita e compilada na Islândia, este estudo se concentrará na cristianização da Noruega e da Islândia e não fará novas referências ao processo de cristianização dos outros reinos nórdicos.

5.1 O processo de cristianização da Islândia

Em contraste com os reinos escandinavos, o cristianismo foi aceito na Islândia de maneira pacífica. No ano 1000 d.C., a assembleia geral da Islândia, seu principal

9 Cf. DAVIDSON, H. R. Ellis. Deuses e mitos do norte da Europa. São Paulo: Madras, 2004;

DUMÉZIL, Georges. Do mito ao romance. São Paulo: Martins Fontes, 1992; ESOPINHO. Dicionário

da mitologia nórdica. São Paulo: Enigmística Moderna, 1903; JONES, Gwyn. A History of the Vikings.

Oxford: Oxford University Press, 1984; LINDOW, John. Norse Mythology. Nova York: Oxford University Press, 2001; e SAWYER, Peter (Org.). The Oxford illustrated History of the Vikings. Nova York: Oxford University Press, 1997.

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corpo jurídico e legislativo, votou pela aceitação imediata da religião cristã, ao menos em público – o culto particular aos deuses pagãos ainda era permitido. Meio século depois, não havia ocorrido ainda nenhuma reação pagã à cristianização, ao passo que mais e mais padres e bispos eram enviados para a ilha, culminando, por fim, na criação da primeira sé islandesa e na ordenação do primeiro bispo islandês. Um século depois, quase toda a Islândia era verdadeiramente cristã, e a veneração pagã – mesmo quando realizada apenas em altares domésticos – já não era mais permitida (JOCHENS: 1999, 621-622).

Antes da assembleia geral tomar sua decisão, o rei Olaf Tryggvason enviara missionários cristãos para a ilha em um esforço de catequese que terminou por não ser bem-sucedido – aceitar o cristianismo por pressão do rei norueguês seria aceitar implicitamente o domínio da Coroa norueguesa sobre a Islândia (SORENSEN: 1997, 220).

Também há muito a se dizer ainda sobre o processo de cristianização da Islândia; no entanto, por considerações de espaço, essa linha de pesquisa não será continuada neste trabalho, salvo para repetir uma comparação feita anteriormente: enquanto nos reinos escandinavos o processo de cristianização foi uma manobra política por parte de seus respectivos monarcas, sendo muitas vezes implementado de forma violenta, na Islândia ele foi resultado de uma decisão tomada pela comunidade, após a qual a cristianização da ilha continuou como um processo pacífico e orgânico.

5.2 O processo de cristianização da Noruega

Na Noruega, o processo de cristianização começou com o rei Haakon o Bom (Haakon I da Noruega), foi reiniciado com ainda maior força pelo rei Olaf Tryggvason e foi finalmente concluído pelo rei Olaf Haraldsson, também conhecido como São Olavo, santo padroeiro da Noruega.

Com o rei Hakon, esse processo parece ter ocorrido de maneira relativamente pacífica, consistindo apenas em uma pressão sociopolítica por parte do rei para que seus súditos adotassem o cristianismo; no entanto, ele mesmo foi forçado a renunciar à religião por eles.

Em contraste com o rei Haakon, esse mesmo processo ocorreu de modo muito mais violento com o rei Olaf Tryggvason. Tryggvason baniu, torturou ou executou pagãos recalcitrantes, destruiu templos pagãos e queimou feiticeiros. A “conversão pela espada” que implementou foi, se nada mais, eficiente: diversas regiões da Noruega que

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já lhe eram inteiramente fiéis, como Viken e Rogaland, aceitaram o cristianismo por completo em menos de um ano.

Apesar da eventual derrocada de Tryggvason, sua campanha de cristianização do reino já havia dado frutos, e a religião cristã se encontrava firmemente enraizada nas terras norueguesas. Quando o rei Olaf Haraldsson (futuro São Olavo) assumiu o trono, ele finalmente completou o processo de cristianização da Noruega através de uma combinação de evangelização, legislação e uso de força; após sua morte, já não havia mais nenhuma oposição historicamente notável ao cristianismo na Noruega (SORENSEN: 1997, 219-220).

Mais do que um ato de devoção religiosa, o esforço de cristianização da Noruega por parte de Olaf Tryggvason foi um instrumento político em sua campanha para fortalecer seu reino. Em termos políticos, uma Noruega cristã poderia aproximar-se dos reinos continentais, como a França ou o Sacro Império Romano Germânico, e estabelecer alianças com seus líderes; uma Noruega pagã permaneceria isolada e ignorada. Uma mostra dos possíveis benefícios dessas alianças foi dada quando o rei dinamarquês Harald Klak (“Harald o Contestador” em uma tradução livre) foi deposto pela primeira vez em 814, mas retornou ao trono graças à ajuda do rei francês Luís o Piedoso.

Em termos socioculturais, a adoção da religião cristã alteraria de modo fundamental a consciência sociopolítica do povo norueguês. Virtudes, ideias e conceitos que antes eram exaltados pela cultura nórdica pagã – como o orgulho guerreiro e a honra pessoal, por exemplo, ou a devoção religiosa como um ritual feito principalmente pelo indivíduo (embora rituais comunitários também fossem importantes), ou o clã como a unidade social mais importante de todas, acima de reis e senhores – passariam a ser condenados ou mesmo reprimidos pelo cristianismo: a devoção religiosa, por exemplo, seria um ritual quase exclusivamente comunitário, feito e regulado unicamente pelo clero, e a obediência absoluta à hierarquia feudal (especialmente ao rei) substituiria as noções de lealdade absoluta à família. Além disso, crimes que antes eram apenas violações das leis e normas da sociedade seriam transformados em ofensas diretas a Deus e o rei, criando uma camada adicional de repúdio ao ato dito criminoso e, ao mesmo tempo, colocando o rei como o árbitro maior da lei e da sociedade, usurpando o papel tradicional das assembleias comunitárias.

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Era uma relação simbiótica: o rei ajudaria os esforços de catequese da Igreja Católica, e em troca, os sacerdotes cristãos ajudariam a realizar essa transição sociocultural do modo de vida pagão para o modo de vida cristão e feudal, transferindo o poder sociopolítico do clã e das assembleias e nobreza locais para o rei e o clero.10

6. A SAGA DE HEDIN E HOGNI: TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS

I. Sobre Freya e os anões

A leste do rio Vanakvisl,11 na Ásia, havia um lugar chamado Asialand, ou então Asiaheim;12 as pessoas que viviam lá eram conhecidas como aesires, e a maior cidade do reino era Asgard; e o rei que lá governava chamava-se Odin. Havia ainda um grande santuário na cidade, e Odin instituiu Njord e Frey como os sumo sacerdotes. Njord tinha uma filha chamada Freya; ela era a amante e acompanhante de Odin.13

Havia também certos homens em Asiaheim: um chamava-se Alfrigg, outro Dvalin, e os outros Berling e Grer. Eram artesãos tão hábeis que podiam trabalhar com o material que fosse e do jeito que quisessem que seriam bem-sucedidos. Viviam em sua forja dentro de uma rocha, e seu lar não era longe do salão14 do rei. Homens como eles eram conhecidos como anões, e eles se misturavam às pessoas comuns com muito mais frequência naqueles dias.

Odin amava muito a Freya, e ela realmente era a mais bela de todas as mulheres então vivas. Ela tinha um quarto de madeira sólida e bem esculpida – tão sólida, diziam,

10 Cf. JONES, Gwyn. A History of the Vikings. Oxford: Oxford University Press, 1984. e SORENSEN,

Preben Meulengracht. Religions old and new. In: SAWYER, Peter (Org.). The Oxford illustrated History of the Vikings. Nova York: Oxford University Press, 1997.

11 Referência ao rio Don, na Rússia. Para os gregos antigos, esse rio servia de fronteira entre a Europa e a

Ásia.

12

Em uma tradução livre, “terra da Ásia” ou “vila da Ásia”. Referência à terra fictícia Ásaland (“terra dos aesires”, uma das famílias de deuses nórdicos), ou Ásaheim (“vila dos aesires”), criada por Snorri Sturluson.

13 Chama-se “euhemerismo” a este tipo de descrição, na qual os deuses são humanizados. “Euhemerismo”

é uma teoria criada pelo filósofo grego Euhemerus, a qual diz que eventos e personagens mitológicos nada mais são que reflexos de eventos históricos; sendo assim, mesmo os deuses eram apenas reis e heróis que foram deificados após sua morte.

14 No original, hall, uma referência aos mead halls nórdicos: construções de madeira compostas de uma

sala muito grande e alguns outros cômodos (como quartos e cozinha), onde os senhores ofereciam banquetes e viviam com sua família e seus servidores.

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que assim que a porta estivesse fechada e trancada, ninguém poderia entrar sem que Freya o permitisse.

Certo dia, Freya passeava quando por acaso encontrou aberta a rocha onde os anões viviam; eles estavam quase terminando de forjar um colar de ouro. Freya apreciou a beleza do colar, e os anões apreciaram a beleza de Freya. Ela quis comprar a joia, oferecendo ouro e prata, e ainda outros tesouros. Eles responderam que não lhes faltava riquezas, mas que trocariam o colar por uma coisa, e uma coisa apenas: que ela se deitasse com cada um deles por uma noite. E quer ela tenha concordado de bom grado ou não, foi o acordo que fizeram. E quatro noites depois, quando as condições do acordo haviam sido cumpridas, os anões entregaram o colar a Freya. Ela voltou aos seus aposentos e ficou em silêncio sobre o ocorrido, como se nada houvesse acontecido.

II. O pacto de Odin e Freya

Havia um homem chamado Farbauti, um simples fazendeiro, e ele tinha uma esposa chamada Laufey. Ela era pequena e magra, e por isso era conhecida como “Agulha”. Farbauti e Laufey tinham um filho, Loki; ele não cresceu muito de corpo, mas logo adquiriu uma língua afiada. Era ágil e veloz, e também superava os outros naquele tipo de sabedoria conhecida como “astúcia”. Desde uma tenra idade ele já era um grande trapaceiro, e por isso era chamado de “Loki Ardiloso-como-Veneno”.

Assim que teve idade para tal, Loki partiu para Asgard para encontrar Odin e tornar-se seu fiel servidor. Não importava o que fizesse, Odin sempre se pronunciava de acordo com os conselhos de Loki. Claro que o rei também lhe dava tarefas difíceis, mas o astuto conselheiro as cumpria melhor que o esperado. Ele sabia de quase tudo o que acontecia, e o que soubesse ele sempre contava a Odin.

Agora é dito que Loki tomou conhecimento do colar de Freya – como ela o ganhara, e como pagara por ele – e contou a Odin. Quando o rei ficou sabendo, ordenou a Loki que roubasse o colar e o trouxesse a ele. Isso não era possível, respondeu o trapaceiro, já que homem algum pode adentrar o quarto de Freya sem que ela o deixasse; mas Odin lhe disse que não voltasse enquanto não conseguisse o colar. Loki então se esgueirou para fora, uivando de desgosto. A maioria das pessoas sorria quando o patife se dava mal.

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Ele foi até os aposentos de Freya e encontrou-os trancados; tentou entrar, mas não conseguiu. O tempo lá fora estava congelando, e Loki começou a sentir muito frio. Ele se transformou em uma mosca e começou a voar ao redor de todas as travas e trancas, mas não encontrou espaço algum por onde pudesse passar, exceto por um, bem no vão da porta; mesmo assim, era tão pequeno que apenas uma agulha passaria ali. Mas ele também conseguiu passar, e quando entrou no quarto estava de olhos bem abertos, perguntando-se se haveria alguém acordado, mas pôde ver que todos15 dormiam. Ele se aproximou da cama de Freya e viu que ela tinha o colar ao redor de seu pescoço, mas com o fecho por baixo; então ele se transformou em uma pulga e mordeu-lhe a bochecha, fazendo-a acordar, virar-se na cama, e voltar a dormir. Loki então abandonou a forma de pulga, tirou gentilmente o colar de Freya, destrancou o quarto e retornou a Odin.

Naquela manhã, Freya acordou e viu que a porta de seu quarto estava aberta mas ainda intacta, e também que seu belo colar se fora. Ela acreditava saber que artimanhas haviam se sucedido; apressou-se até o salão assim que terminou de se aprontar e foi ter com o rei Odin, dizendo-lhe que ele havia feito um grande mal ao ordenar que seu precioso tesouro fosse roubado, e pediu sua joia de volta.

Odin replicou que ela jamais recuperaria seu colar, não depois do jeito que o conseguira. – A menos que faças com que dois reis, ambos servidos por vinte reis, batalhem sob tal encantamento que mesmo os guerreiros golpeados de morte se levantarão e continuarão a lutar; e assim será para todo o sempre, a menos que um homem batizado tenha o coração tão valente, e seu senhor tenha tal poder e ascendência, que ele ousará intervir na batalha e golpeará esses homens com armas. Somente então o tormento desses guerreiros chegará ao fim, quem quer que seja o senhor a quem recairá libertá-los da sina de seus terríveis feitos.

Freya concordou, e recebeu seu colar de volta.

15 “Todos” refere-se a Freya e suas aias.

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III. Sobre Sorli, o viking

Naqueles tempos, vinte e quatro anos desde a morte de Frodi-da-Paz,16 reinava sobre as Terras Altas na Noruega17 um rei chamado Erling. Ele tinha uma rainha e dois filhos: Sorli o Forte era o mais velho, e Erlend o mais novo. Ambos eram homens promissores, mas Sorli era o mais forte dos dois; assim que tiveram idade para tal, eles saíram em expedições de saque. Nos Recifes dos Elfos,18 enfrentaram Sindri o Viking, filho de Sveigir, filho de Haki o Rei do Mar, e lá Sindri caiu junto com seus homens; mas Erlend, filho de Erling, também caiu naquela batalha. Depois disso, Sorli navegou até a costa leste do Mar Báltico, e lá fez tantos saques e tantas ações valorosas que seria preciso muito tempo para escrevê-las todas.

IV. Sobre Sorli e o rei Hogni

Halfdan era outro rei, que reinava sobre a Dinamarca de seu trono em Roskilde.19 Ele era casado com Hvedna a Anciã, e seus filhos eram Hogni e Hakon; eram homens excepcionais em força, estatura e toda sorte de aptidões, e saíram em expedições assim que tornaram-se homens.

Agora a história segue que Sorli navegou até a Dinamarca certo outono. O rei Halfdan, que já estava bastante avançado em anos quando esses eventos aconteceram, pensava então em ir a uma assembleia de reis. Ele tinha um navio-dragão20 tão bom que não havia outro tão firme ou bem-feito em todas as terras do Norte. O barco estava aportado, mas o rei Halfdan estava em terra oferecendo um banquete de despedida, para o qual muitos foram convidados. Mas quando Sorli viu o navio, uma grande cobiça inundou seu coração, de tal modo que ele queria tomá-lo para si a qualquer custo – e

16 Referência ao lendário rei dinamarquês e ao período de paz que ele teria trazido.

17 Na época, a região que hoje é conhecida como “Noruega” era dividida em vários pequenos reinos. As

Terras Altas são uma região específica da Noruega, de terreno montanhoso; daí o nome.

18

Um grupo de recifes de localização indeterminada na costa escandinava.

19 Uma cidade na Dinamarca.

20 Referência às famosas embarcações dos nórdicos medievais (popularmente conhecidas como

“dracares”, embora o termo seja anacrônico), navios longos capazes de navegar tanto sobre águas profundas quanto rasas e que tinham cabeças de dragões esculpidas nas proas.

(19)

realmente, como a maioria admite, nunca houve um navio-dragão melhor que aquele em todo o Norte, com exceção de Ellida21, Gnod22 e Serpente Longa23.

Ele então falou a seus homens, ordenando que se preparassem para a batalha, – Pois mataremos o rei Halfdan e tomaremos seu navio!

Um homem chamado Saevar, o segundo em comando tanto em terra quanto em mar de Sorli, respondeu: – É uma má ideia, meu senhor – ele disse, – pois Halfdan é um senhor poderoso e de grande renome, e também tem dois filhos que certamente buscarão vingança, já que ambos são conhecidos e respeitados.

- Que sejam mais valentes que os próprios deuses – respondeu Sorli, – lutarei com eles do mesmo jeito!

E assim eles se prepararam para o combate.

Quando o rei Halfdan tomou conhecimento do que acontecia, imediatamente partiu para seus navios com seus guerreiros, também eles preparando-se para o confronto. Algumas pessoas foram ter com o rei e disseram-lhe que não seria sábio lutar, que seria melhor fugir, por causa da grande diferença numérica em relação ao inimigo; mas Halfdan respondeu que seus mortos ficariam empilhados uns sobres os outros antes que isso acontecesse.

Os dois lados então se prepararam para o combate; e após uma dura batalha, no final o rei Halfdan e seus homens todos morreram, e Sorli tomou o navio-dragão e tudo o que havia de valioso nele.

Sorli então soube que Hogni havia retornado de seus ataques e aportado em Odinsey.24 Ele velejou até lá, e assim que se encontrou com Sorli, contou-lhe sobre a morte de seu pai e ofereceu-lhe compensação, deixando que ditasse os termos; até mesmo se ofereceu para ser seu irmão de juramento. Mas Hogni recusou todas as ofertas, e então eles lutaram, como dito na “Canção de Sorli”.25

Hakon avançou com

21 Um navio-dragão mítico que teria sido dado de presente pelo deus Aegir (deus dos mares e oceanos) ao

lendário herói Viking.

22 Não se conhece o navio-dragão mencionado.

23 O navio-dragão do rei norueguês Olaf Tryggvason, ao menos de acordo com as sagas. 24

Em uma tradução livre, “ilha de Odin”. Uma cidade costeira na Dinamarca.

(20)

grande coragem e matou Saevar, o porta-estandarte e segundo em comando de Sorli, então Sorli matou Hakon, e depois Hogni matou o rei Erling, pai de Sorli.26

Por fim, Hogni e Sorli, ambos lutaram um contra o outro, e Sorli caiu perante o filho de Hakon devido ao cansaço e aos ferimentos; mas Hogni poupou-o e deixou que fosse tratado, e então eles fizeram um juramento de irmandade, ao qual respeitaram e seguiram enquanto os dois viveram. Sorli foi o primeiro a morrer, lutando nos mares do Leste contra outros vikings, novamente como diz a “Canção de Sorli”; e aqui se diz:

O glorioso guerreiro, da batalha amante Primeiro da hoste com a espada cantante Caiu, lutando, em mares distantes De aço morde-armadura na mão No conforto da cobra, o quente verão Contra piratas beligerantes27

Quando Hogni soube da morte de Sorli, ele foi saquear no Leste naquele mesmo verão, conquistou vitórias por onde passou e foi coroado rei; e também, ou assim o dizem, vinte reis tornaram-se seus vassalos e passaram a pagar-lhe tributo. Hogni tornou-se tão famoso por seus feitos e seus saques que seu nome passou a ser conhecido de Finnabu28 a Paris, e em todos os lugares entre esses.

V. Hedin fica sabendo do rei Hogni

Havia um rei chamado Hjarrandi que reinava sobre Serkland;29 ele tinha esposa e um filho, chamado Hedin. Hedin logo tornou-se um homem excepcional em força, estatura e habilidades de todos os tipos. Em sua juventude, entregou-se à rapina com

26 Não há explicação no texto original para as aparições súbitas de Hakon, irmão de Hogni, e Erling, pai

de Sorli.

27 Ao traduzir o poema, não houve preocupação em manter a métrica ou a forma rigorosa das palavras

originais, mas sim o seu sentido. “Conforto da cobra” era uma metáfora poética usada pelos nórdicos para se referir ao verão.

28 Uma cidade na Noruega.

29 Em uma tradução livre, “terra dos vestidos” ou “terra das camisas”. Serkland era como os nórdicos

medievais chamavam as terras dos sarracenos, principalmente a região norte da África, mas também a Espanha (então dominada pelos mouros) e o Oriente Médio.

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gosto e tornou-se um rei dos mares, saqueando extensivamente na Espanha, Grécia e terras próximas, de tal forma que ele forçou vinte reis a se submeterem a ele, pagando tributo e prestando obediência.

Hedin passou o inverno em casa, em Serkland. Diz-se que certa vez ele saiu para caçar com seus acompanhantes, mas acabou por se ver sozinho em uma clareira, onde viu uma mulher, alta e agradável aos olhos, sentada em uma cadeira. Ela o cumprimentou com cortesia; ele perguntou seu nome, ao que ela respondeu ser Gondul; depois disso, eles conversaram. Ela quis saber sobre seus feitos, e ele ficou feliz em recontá-los todos, e então perguntou a ela se conhecia algum rei tão valente e forte quanto ele, ou tão famoso e bem-sucedido. Ela respondeu que sim, um rei que em tudo lhe era igual, e vinte outros reis serviam a ele:

– Nenhum a menos do que a ti próprio.

Ela disse ainda que esse rei chamava-se Hogni, e que ele vivia ao norte, na Dinamarca.

– Disso eu sei: que devemos testar quem de nós é o melhor – disse Hedin. – É hora de voltares aos teus homens – disse Gondul. – Eles já o procuram. Depois disso, eles se despediram. Hedin voltou aos seus homens, mas Gondul continuou onde estava.

Assim que a primavera chegou, Hedin preparou-se para a partida com um navio-dragão e trezentos guerreiros.30 Ele então velejou até as terras do norte por todo o verão e inverno, e por fim alcançou a Dinamarca quando novamente era primavera.

VI. Hedin e Hogni testam suas habilidades

O rei Hogni estava em seu lar quando soube que um rei famoso havia chegado às suas terras, e convidou-o para um grande banquete; Hedin aceitou. Enquanto bebiam à mesa, Hogni quis saber o que poderia ter trazido seu convidado tão longe ao norte. Hedin contou-lhe seus propósitos, que ambos deveriam pôr sua coragem, resistência,

30

Esse número, à semelhança do que Homero faz na Ilíada, é uma licença poética dos autores; nenhuma embarcação nórdica teria espaço para tantos guerreiros.

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perícia e todas as habilidades à prova um contra o outro; e Hogni respondeu que estava pronto para tal.

Bem cedo no dia seguinte eles foram nadar e atirar em alvos, e competiram em justas31 e duelos de espadas, e também em várias atividades atléticas, e estavam tão equiparados em tudo que ninguém podia enxergar diferença entre eles, ou dizer quem era o melhor. Depois disso, eles fizeram um juramento de irmandade e concordaram em dividir tudo entre si.

Hedin era jovem e solteiro, ao passo que Hogni era um pouco mais velho e casado com Hervor, filha de Hjorvard, filho de Heidrek Pele-de-Lobo. Hogni também tinha uma filha, a quem ele amava muito, chamada Hild, a mais bela e mais sábia de todas as mulheres; ele não tinha outros filhos.

VII. Hedin enganado

Diz-se que pouco tempo depois Hogni saiu em expedições de saque, enquanto Hedin ficou para trás para proteger seu reino. Certo dia, Hedin saiu para cavalgar pela floresta por prazer, aproveitando o bom tempo. Novamente aconteceu de ele se separar de seus acompanhantes e chegar a uma clareira. Lá ele viu a mesma mulher que encontrara antes em Serkland, novamente sentada em uma cadeira, e ela lhe pareceu ainda mais bela agora.

Uma vez mais ela se dirigiu a ele primeiro, cumprimentando-o amavelmente, e o coração do rei encheu-se de desejo por ela. Ela estendeu-lhe um chifre com tampa32 e convidou-o a beber, e Hedin, que de repente sentiu-se com muito calor, aceitou a bebida; mas após beber, uma estranha mudança operou-se nele, e agora ele já não se lembrava mais de nada do que ocorrera antes de beber.

Eles se sentaram juntos e conversaram, e ela perguntou se a força e a perícia de Hogni eram exatamente como havia dito. Hedin respondeu que era verdade: – Pois não houve nenhuma habilidade em que nos testamos na qual ele fosse inferior a mim, e por isso nos consideramos iguais!

31 Um duelo entre guerreiros a cavalo armados com lanças de pontas rombudas, no qual o objetivo é

derrubar o oponente de sua montaria. Os nórdicos medievais não praticavam a justa, no entanto; tal referência é um anacronismo por parte dos autores.

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– Mas vós não sois iguais – ela respondeu. – E por que pensais isso?

– Por causa disto: Hogni tem uma rainha de alta linhagem, mas tu não tens sequer esposa.

Ao que ele respondeu: – Hogni me daria sua filha se eu o pedisse, e então não terei uma união menos distinta que a dele.

– Mas então tua glória será menor, se tiveres de pedir para juntar-te à família dele por casamento. Seria melhor – se, como dizes, não lhe faltam rijeza e valentia – se capturasses Hild e matasses a rainha da seguinte maneira: amarrando-a em frente à proa de teu barco, e então deixá-lo cortá-la em dois quando te lançares ao mar.

Hedin, que estava aprisionado pelo mal e pelo esquecimento graças à cerveja33 que bebera, que nem sequer cogitou tomar outro curso de ação; tampouco se lembrou de que ele e Hogni eram irmãos de juramento. Hedin e Gondul despediram-se, e ele voltou aos seus homens.

Quando o verão já estava quase acabando, Hedin ordenou a seus homens que preparassem o navio para partir, dizendo que queria voltar a Serkland. Quando isso havia sido concluído, ele foi até o salão do rei e então levou Hild e a rainha Hervor consigo para fora, uma em cada braço, enquanto seus guerreiros roubavam as roupas e os tesouros da princesa. Ninguém no reino ousou desafiá-los, de tão feroz a aparência de Hedin.

Hild perguntou a Hedin o que ele pretendia fazer, e ele contou-lhe tudo. Ela implorou que não o fizesse: – Pois basta pedires, e meu pai me dará a ti em casamento!

– Mas não quero fazê-lo – ele respondeu, – pedir por ti.

– Se mesmo assim não te dissuadires de me raptar – ela continuou, – meu pai ainda perdoará a ti, contanto que não faças algo tão perverso e covarde quanto matar minha mãe, pois então meu pai jamais te perdoará. E isso se passou em meus sonhos: que ambos lutarão entre si e matarão um ao outro. Mas coisas ainda mais sombrias ocorrerão, e me trará grande sofrimento ver meu pai sujeito a tais malefícios e sortilégios; também me entristeço de ver-te sob o fardo de tamanha maldade.

33

No original, ale, um tipo específico de cerveja feita de cevada maltada. O termo não possui um equivalente direto em português.

(24)

Hedin respondeu que não importasse o que pudesse acontecer, ainda assim ele faria exatamente o que dissera.

– Já não podes fazer mais nada quanto a isso – Hild lamentou, – pois não estás sob teu próprio controle.

Então Hedin foi até a margem, forçou Hervor diante da proa de seu navio, e ordenou que a embarcação fosse lançada ao mar; e lá a rainha perdeu sua vida.

Assim que chegaram em Serkland, Hedin desembarcou sozinho, ansioso por voltar àquela mesma clareira onde estivera antes. E lá encontrou Gondul sentada em sua cadeira. Eles se cumprimentaram amigavelmente, e Hedin contou-lhe seus feitos, que a deixaram muito satisfeita. Ela ofereceu-lhe o mesmo chifre que usara antes, e também dessa vez o rei bebeu dele; e quando terminou, foi tomado pelo sono e adormeceu no colo dela. Enquanto ele dormia profundamente, ela saiu debaixo dele e disse: – E agora, com meu poder eu o forço a obedecer a todos os termos e condições decretados por Odin, amaldiçoando-o com esses feitiços, a ti e a Hogni, e todos os seus homens também.

E com isso Hedin acordou, e ainda conseguiu enxergar um vislumbre de Gondul antes de ela sumir, e agora ela lhe pareceu grande e sombria, como um espectro. Ele agora se lembrava de tudo, e seu infortúnio era grande; estava determinado a desaparecer no mundo para não ouvir continuamente recriminações por seus atos malignos. Ele voltou ao seu navio, desamarrou-o do ancoradouro, e navegou para longe levando Hild consigo, aproveitando o vento bom que soprava para o mar.

VIII. A batalha dos Hjadnings

Agora o rei Hogni voltou para casa e descobriu a verdade, que Hedin roubou sua filha e seu navio-dragão, o Presente de Halfdan, deixando para trás sua rainha morta. Hogni ficou furioso com essas notícias e ordenou aos seus homens que imediatamente preparassem sua partida, pois ele perseguiria Hedin. Eles o fazem, e então o rei e sua tripulação tiveram a brisa perfeita para levá-los, e eles sempre alcançavam à noite o porto que Hedin e seus homens haviam abandonado pela manhã.

Mas um dia, quando adentravam o ancoradouro, Hogni e sua tripulação viram as velas de Hedin ao longe, no mar, e imediatamente foram atrás dele. Mas então, é

(25)

estranho mas é verdade, um forte vento começou a soprar contra Hedin, enquanto o melhor dos ventos soprava a favor de Hogni, de tal forma que o rei de Serkland foi forçado a aportar na ilha de Hoy.34

Hogni logo foi ter com ele, e quando se encontraram Hedin disse, gentil e respeitosamente: – Tenho que contar a ti, meu irmão de juramento, que tais infortúnios caíram sobre mim que ninguém além de ti pode me perdoar por eles. Roubei tua filha e teu navio e causei a morte de tua rainha, não por crueldade minha, mas sim por causa de profecias malévolas e feitiços ruins; agora quero que decidas os termos para que possa haver paz entre nós. Mas ofereço desde já retornar a ti tanto Hild quanto teu navio, e também meus homens e meus tesouros, e ir para terras tão distantes neste mundo que jamais voltarei ao Norte, ou mesmo às tuas vistas, enquanto viver.

E Hogni respondeu: – Eu teria dado Hild a ti em casamento se tivesses pedido. E mesmo depois de teres sequestrado a ela, ainda poderíamos ter feito as pazes. Mas agora que fizeste tal mal e te comportaste de forma tão vergonhosa com minha rainha, há poucas chances de eu aceitar qualquer acordo. Iremos agora mesmo descobrir quem de nós golpeia mais forte.

E Hedin respondeu: – Se não aceitares nada menos que a batalha, então sugiro que resolvamos este assunto apenas nós dois, pois tua disputa não é com ninguém mais aqui, e não é certo que inocentes paguem por meus crimes e malfeitos.

Mas os seguidores de ambos juraram a uma só voz que primeiro cairiam mortos uns aos pés dos outros antes que os dois pudessem se enfrentar. Quando Hedin viu que Hogni não aceitaria nada além do combate, ordenou que seus homens também desembarcassem. – Não fugirei mais de Hogni, nem me ausentarei desta batalha. E que cada um se fie em sua própria coragem.

Eles vão até terra e lutam. Hogni está louco de fúria, ao passo que Hedin é ágil e golpeia com força. Mas, e isso é estranho de se dizer mas é verdade, tão grande era o mal e os feitiços que serviam essa maldição que apesar de eles se fenderem até os ombros, ainda assim se levantavam como se nada houvesse ocorrido e continuavam a lutar, enquanto Hild permanecia sentada em um bosque, vendo aquele espetáculo odioso.

(26)

Eles continuaram sob essa servidão maligna, sem um momento de descanso, desde que a batalha começou até Olaf Tryggvason35 ascender ao trono da Noruega. Diz-se que passaram 143 anos até que fosDiz-se a hora de um dos Diz-servidores daquele grande homem, o rei Olaf, libertá-los de sua triste sina e amargo sofrimento.

IX. O fim da batalha

No primeiro ano do reino de Olaf Tryggvason, diz-se que ele foi até a ilha de Hoy e aportou lá por uma noite. Era normal que nessa ilha os vigias sumissem toda noite, de forma que ninguém sabia o que acontecera com eles.

Aquela noite, coube a Ivar o Luminoso ficar de vigília durante a noite. E quando todos a bordo já haviam ido dormir, Ivar pegou de sua espada – que pertencera ao Escudo de Ferro, mas que Thorstein, seu filho, dera a Ivar36 –, vestiu sua armadura e desceu à terra.

Lá, ele viu um homem aproximar-se dele, um homem alto e coberto de sangue, com o rosto muito sério. Ivar perguntou seu nome, e ele respondeu que era Hedin, filho de Hjarrandi, nascido em Serkland.

– Contarei a verdade a ti: se vigias têm desaparecido aqui, deves culpar a mim e a Hogni, filho de Halfdan, pois somos obrigados a lutar dia e noite por feitiços e pragas que escravizam a nós e a nossos homens, e tem sido assim há muitas gerações, enquanto a filha de Hogni, Hild, nos assiste à distância. Mas Odin nos pôs este destino, e nada pode libertar-nos até que um homem batizado lute conosco; e aqueles que ele derrubar não mais se levantarão, e então estaremos livres desta maldição. Agora quero pedir a ti que lute conosco, pois sei que és um bom cristão, e também que o rei a quem serves é um homem de grande fortuna; por isso, penso que conseguiremos boas coisas dele e de seus homens.

Ivar concordou em lutar contra ele. Hedin alegrou-se e disse: – Deves tomar cuidado em não ficar face-a-face com Hogni, e também em não me matares antes de ele mesmo cair. Não há homem mortal que possa encarar Hogni e matá-lo se eu já estiver

35 O primeiro rei a conseguir trazer o Cristianismo à Noruega e ajudá-lo a fincar raízes, muitas vezes

usando de métodos violentos de conversão religiosa.

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morto, pois ele tem o elmo do terror37 em seus olhos, e disso ninguém pode se proteger; portanto, a única coisa a ser feita é que eu devo enfrentá-lo, enquanto tu desferes o golpe final por trás, pois terás pouco trabalho para matar-me, mesmo que eu seja o único ainda vivo.

Então eles entraram na batalha, e Ivar viu que tudo o que Hedin lhe contara era verdade: ele se pôs atrás de Hogni e fendeu-lhe da cabeça aos ombros, e o rei dinamarquês caiu morto e nunca mais se levantou. O guerreiro norueguês então matou todos os homens que estavam presentes ao combate, e por fim Hedin, que foi fácil de matar.

Depois disso ele voltou aos navios, e o dia estava começando a raiar.38 Ele foi ter com o rei e contou-lhe tudo o que acontecera; Olaf sentiu grande prazer com os acontecimentos da noite, e comentou que ele tivera uma grande sorte. No dia seguinte, eles voltaram ao local da batalha, mas não havia mais prova ou traço algum do que acontecera, exceto pelo sangue na lâmina de Ivar; e mais nenhum vigia desapareceu depois daquilo.

E então o rei voltou para seu reino.39

7. A LINGUÍSTICA TEXTUAL E A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO

A Linguística Textual (campo teórico que se desenvolveu a partir dos estudos de autores da década de sessenta, como Harald Weinrich, que consideravam o texto como uma unidade legítima para estudos linguísticos) vai além dos limites sintáticos e

37 No original, aegishjálm. Hedin quer dizer que os olhos de Hogni causam um terror sobrenatural em

quem encará-lo. Duas traduções para o inglês traduziram o termo como “Elmo-Égide”, ou “elmo protetor”; no entanto, aegis é o genitivo de aegir, ou “terror”. O vocábulo hjálm (elmo) usado em referência a atos de feitiçaria pode ser visto também em outras sagas, como na saga de Bosi e Herraud

(Bósa saga ok Herrauds;

http://www.germanicmythology.com/FORNALDARSAGAS/BosaSagaHardman.html), na qual o feiticeiro Smid coloca “um elmo” sobre o navio para torná-lo invisível.

38 No original, não há referência alguma ao destino final de Hild. A tradução de Magnusson e Morris diz

que quando Ivar voltou-se para ela, a moça já havia desaparecido.

39 Tradução para o português feita com base no texto original em nórdico antigo (escrito no séc. XIV) e

três traduções para o inglês: a de William Morris e Eiríkr Magnusson (feita em 1875), a de Nora Kershaw (feita em 1920), e a de Peter Tunstall (feita em 2005). Ver QUINTANA, Tiago. A saga de Hedin e Hogni.

Revista Litteris, v. 7, p. 39, 2011. Edição eletrônica no site

<http://revistaliter.dominiotemporario.com/doc/A_saga_de_Hedin_e_Hogni_Tiago_Quintana.pdf>, acesso em 08/06/2013.

(28)

semânticos do texto e o estuda do ponto de vista do processo de comunicação entre autor, leitor e texto em um contexto específico. Dentro desse campo teórico-metodológico, o texto deve ser estudado dentro de seu contexto de produção e entendido como um processo, não como um produto acabado; a finalização da obra virá de sua recepção por parte do leitor. A produção textual é, necessariamente, uma atividade de interação.

Dentro da Linguística Textual, existem os conceitos de “construção de sentidos” e “intencionalidade”. A construção de sentidos é feita por meio da coesão e da coerência textuais (respectivamente, a relação gramatical entre as palavras do texto, e a relação lógica entre as ideias ou eventos expressos no texto), de tal modo que as mensagens e argumentos presentes no texto (estejam eles ocultos ou não) são veiculados pela linguagem; a isso se chama “intencionalidade”, a maneira como o emissor usa o texto (conscientemente ou não) em prol de suas intenções. Para se estudar a intenção do texto, primeiro deve-se construir seu sentido.

A Análise Crítica do Discurso é um método de análise do discurso baseado em teorias e conceitos de Linguística e Ciências Sociais. Segundo este método, o discurso encontra-se situado em seu contexto sócio-histórico; ele é criado e moldado pela estrutura social vigente, mas também cria e molda identidades sociais dentro dessa estrutura. Há uma relação direta entre o texto (prática textual) e a construção da sociedade (prática social), um círculo vicioso no qual não se pode definir começo e fim – pois se a sociedade constrói o texto, também o texto constrói a sociedade, e o intermediário nessa relação é o discurso (prática discursiva). O discurso é o intermediário entre a língua e a sociedade. Outro foco importante da Análise Crítica do Discurso é o estudo de como as formas de exercício de poder se manifestam por meio do discurso, de como a prática discursiva serve de campo de batalha no conflito entre ideologias para se alcançar hegemonia, isto é, o domínio de uma ideologia sobre as outras.

De acordo com a Análise Crítica do Discurso, ao se analisar a prática discursiva, deve-se fazer três perguntas: em que contexto o texto foi produzido? Quem o produziu? Para quem ele foi produzido (isto é, quem é seu público-alvo)? Ao se analisar a prática social, deve-se fazer duas perguntas: existe uma ideologia, oculta ou evidente, presente no texto? E tal ideologia apoia o contexto ideológico (ou político, ou econômico, ou cultural) predominante (isto é, a hegemonia preexistente), ou o enfrenta?

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Como se vê, há muitas semelhanças entre a Linguística Textual e a Análise Crítica do Discurso ao se estudar os conceitos de intencionalidade e ideologia. A construção de sentidos, tal como vista pela Linguística Textual, faz parte da prática textual dentro da Análise Crítica do Discurso, enquanto que o estudo da intencionalidade faz parte da prática social.

8. IDEOLOGIA E INTENCIONALIDADE EM A SAGA DE HEDIN E

HOGNI

“A menos que faça com que dois reis, ambos servidos por vinte reis, batalhem sob tal encantamento que mesmo os guerreiros golpeados de morte se levantarão e continuarão a lutar; e assim será para todo o sempre, a menos que um homem batizado tenha o coração tão valente, e seu senhor tenha tal poder e ascendência, que ele ousará intervir na batalha e golpeará esses homens com armas. Somente então o tormento desses guerreiros chegará ao fim, quem quer que seja o senhor a quem recairá libertá-los da sina de seus terríveis feitos.”40

Com esta ordem a Freya, Odin coloca em movimento a série de acontecimentos trágicos que levarão à batalha sem fim entre os reis Hogni e Hedin. O interesse ao analisar o trecho mencionado é o modo como Odin se expressa: “(...)a menos que um homem batizado tenha o coração tão valente, e seu senhor tenha tal poder e ascendência(...)”. Dizer que apenas um homem batizado é capaz de quebrar o encanto é dizer, implicitamente, que o poder do deus cristão é superior ao poder de Odin. No contexto da narrativa, Odin é o rei de Asiaheim e um poderoso feiticeiro; mas no contexto sócio-histórico da Islândia cristianizada, os estudiosos das narrativas de origem pagã dos nórdicos medievais concebiam Odin e os outros deuses nórdicos como reis e feiticeiros que foram adorados como deuses por seus ancestrais por estes desconhecerem a palavra de Cristo.41 Logo, quando Odin dá a entender que o poder do deus cristão é superior ao seu próprio, é como se ele dissesse que a religião cristã é superior à religião pagã.

40 “Unless forsooth thou bring to pass, that two kings, each served of twenty kings, fall to strife, and fight

under such weird and spell, that they no sooner fall adown than they stand up again and fight on: always unless some christened man be so bold of heart, and the fate and fortune of his lord be so great, that he shall dare go into the battle, and smite with weapons these men: and so first shall their toil come to an end, to whatsoever lord it shall befall to loose them from the pine and trouble of their fell deeds.” (MAGNUSSON e MORRIS, 2000: 3-4)

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Também é notável a menção ao “senhor de tal poder e ascendência”. Sabemos pela própria narrativa que o senhor de Ivar é Olaf Tryggvason, o rei que difundiu violentamente o cristianismo na Noruega e enviou missionários à Islândia; ele é “o senhor de tal poder e ascendência (...) a quem recairá libertá-los da sina de seus terríveis feitos” – estabelecendo, desse modo, a superioridade do rei cristão sobre a feitiçaria pagã.

O capítulo introdutório da saga já destitui os deuses nórdicos de sua divindade; mas Odin em particular é rebaixado de senhor dos aesires, temido e respeitado (ainda que não amado), ao papel narratológico de amante traído, uma ferida à dignidade tanto do homem cristão quanto do homem pagão. Do mesmo modo, Freya era uma divindade muito adorada devido à sua associação com a fertilidade e prosperidade, e seu culto sobreviveu na forma de lendas e superstições por muito tempo ainda mesmo após a conversão completa dos povos nórdicos ao cristianismo. Ao remover essa caracterização e reduzi-la ao papel narratológico de mera feiticeira e amante de Odin, o enredo também impugna a importância da deusa na religião nórdica.

Além disso, para conseguir o colar Brisingamen, Freya consente em passar uma noite com cada um dos quatro anões que o forjaram, uma atitude reprovável não apenas do ponto de vista cristão, mas também pagão: na Lokasenna, a deusa Gefion é reprovada por Loki por dormir com um garoto para conseguir o Brisingamen, isto é, por rebaixar-se a oferecer favores sexuais em troca de um colar. Embora outras histórias, como a Húsdrápa,42 digam que o Brisingamen era propriedade de Freya (e é possível também que Gefion seja um outro nome para Freya), essas histórias não mencionam como ela conseguiu o colar. Então novamente o conto impugna a importância da deusa, desta vez ao associá-la especificamente a um ato que tanto a moral cristã quanto a pagã repudiariam – oferecer a si própria a anões, tradicionalmente caracterizados como seres vis, cobiçosos e traiçoeiros, em troca de um colar.

Para recuperar esse mesmo colar, Freya realiza um feitiço que desafia a ordem natural de ambos os universos – cristão e pagão – ao forçar os mortos a se levantarem e continuarem a lutar. Embora a feitiçaria esteja dentro de seu domínio como deusa pagã, Freya deveria levar os que morreram em batalha (ou pelo menos metade deles) para o além-vida, não forçá-los a lutar eternamente. Além disso, o morto inquieto é uma

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Poema skaldico de autoria anônima, preservado parcialmente na Snorra Edda (ver nota 43), que descreve diversos episódios da mitologia nórdica.

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