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CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS REFLEXÕES

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

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CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS

SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS

NO SUL: ALGUMAS REFLEXÕES

Amanda E. Scherer

DLCL-PPGL Laboratório Corpus UFSM

Caroline Schneiders

Laboratório Corpus DOCFIX-FAPERGS-CAPES UFSM

Taís S. Martins

DLCL PPGL Laboratório Corpus UFSM

Resumo: No presente artigo, buscamos compreender os processos de institucionalização e disciplinarização da Linguística no Sul do Brasil, procurando refletir sobre como cada época tem suas convenções, valores, visões do mundo, que possibilitam a formação de um certo universo linguístico acadêmico, cujos elementos mantêm entre si relações associativas e funcionais, em constante processo de mudança. Partimos do fato de que são as condições de produção de cada época que vão afetar e determinar a institucionalização da Linguística no contexto em questão.

Abstract:

In this article we aim to understand the processes of institutionalization and disciplining of Linguistics in southern Brazil in order to reflect on how each time has its conventions, values and world views, which allow the creation of a particular academic linguistic universe, whose elements establish associative and functional relationships among themselves in a constant process of change. We start from the fact that the conditions of production of each time affect and determine the institutionalization of Linguistics in the context studied.

Situando nossa problemática:

Porque é limitado todo o ato de saber possui, por definição uma espessura temporal, um horizonte de retrospecção, assim como

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um horizonte de projeção. O saber (as instâncias que o fazem trabalhar) não destrói seu passado como se crê erroneamente com frequência, ele o organiza, o escolhe, o esquece, o imagina ou o idealiza, do mesmo modo que antecipa seu futuro sonhando-o enquanto constrói. Sem memória e sem projeto, simplesmente não há saber (AUROUX, 1992, p. 11).

Nos estudos que vimos desenvolvendo, buscamos compreender os processos de institucionalização e disciplinarização da Linguística no Brasil, procurando refletir sobre como cada época tem suas convenções, valores, visões do mundo, que possibilitam a formação de um certo universo linguístico acadêmico, cujos elementos mantêm entre si relações associativas e funcionais, em constante processo de mudança. Diante disso, partimos do fato de que são as condições de produção de cada época que vão afetar e determinar a institucionalização da Linguística nas universidades brasileiras.

Para esta reflexão, destacamos algumas considerações acerca desses processos no Rio Grande do Sul, tendo em vista a relação com os estudos saussurianos, os quais estiveram presentes em todas as grades curriculares dos programas dos Cursos de Letras do Rio Grande do Sul desde que esses passaram a ofertar a Linguística, enquanto disciplina obrigatória, no início dos anos de 1960. Cabe ressaltar que a “presença” de Saussure na disciplinarização da Linguística no Sul foi acentuada, principalmente, depois da publicação da tradução do Curso de Linguística Geral em Língua Portuguesa, no ano de 1970. Assim, nosso trabalho versa sobre as primeiras sistematizações disciplinares desse domínio de saber, levando em conta os conceitos privilegiados, no sentido dos mais enfaticamente designados, as disciplinas e as suas nomeações.

Nosso objetivo principal é o de compreender como os estudos saussurianos delinearam a disciplinarização da Linguística em nosso estado, determinando uma formação letrada, a partir de uma representação sobre a língua e a linguagem, em uma época fecunda que foi determinante para as décadas posteriores, bem como para a criação dos primeiros programas de Pós-Graduação no estado. Para tanto, os ementários, programas e grades curriculares dos primeiros Cursos de Letras em instituições de ensino superior no interior do RS são o nosso foco de estudo e análise. Nossos primeiros gestos de

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leitura possibilitam dizer que são os estudos sobre Saussure, e não a obra e o autor em si, que determinam a constituição da Linguística no período por nós considerado.

1. Questões sobre a disciplinarização:

Nos últimos tempos, a partir do projeto intitulado “Linguística no Sul: estudo das ideias e organização da memória”, temos procurado historicizar a institucionalização dos estudos linguísticos no sul do país, principalmente nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Quando estamos tratando de historicização, estamos pensando, aqui, nos modos como a Linguística foi firmando-se enquanto disciplina, com vistas a entender o que levou tal estabelecimento à institucionalização da formação de pesquisadores e também da pesquisa em nossa região.

Com esta reflexão, entenderemos, também, o processo que envolve a constituição da Pós-Graduação, por meio do disciplinar da Linguística nos cursos de graduação, a fim de compreender o que temos hoje no que se refere às linhas de pesquisa, formação de doutores, produção acadêmica e elaboração de instrumentos linguísticos (tais como os primeiros livros sobre Introdução à Linguística, por exemplo, entre outros), que possibilitam a visibilidade que esse domínio de saber possui no âmbito acadêmico.

Para tanto, reunimos uma série de documentos que vão desde as primeiras Revistas Acadêmicas, documentos oficiais que determinam e dão base para a criação dos Cursos de Graduação em Letras e dos Programas de Pós-Graduação, bem como ementários, programas, cadernos de chamadas, manuscritos e rascunhos de cursos etc. Tais documentos constituem, em nosso entendimento, um arquivo consideravelmente importante para que possamos, neste momento, apresentar uma parte dos resultados de nosso trabalho de pesquisa.

O que nos interessa, diante disso, é especialmente a história disciplinar contemporânea a partir da problemática levantada pelo projeto que foi coordenado pela Profª. Eni Orlandi e que apontou como referência o que conhecemos hoje no Brasil como História das Ideias Linguísticas e sua relação com a Análise de Discurso; ou seja, procuramos identificar e interpretar como tais documentos podem também dar sustentação ao que poderíamos designar como Linguística

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um conteúdo da ciência se disciplinariza e se estabelece através de sua institucionalização. Visamos, pois, a entender como a designação disciplina, um princípio de especialização/singularização da pesquisa, quer, por sua vez, ser “lógica” – pela sua referência a uma teoria “unificada” de inteligibilidade – e funcional, pelos seus princípios de

organização da diversidade de conhecimentos (BOUTIER;

PASSERON; REVEL, 2006, p.07), para então cobrir um dado conjunto dito como “natural” das Ciências da Linguagem, justificando-se como uma certa concepção enciclopédica.

Diante disso, objetivamos explicitar a maneira pela qual se constrói/se constitui a significação de uma certa nomenclatura, nós diríamos “comunicacional científica”, e a repartição dos saberes de referência em uma classificação que se quer “racional” (racionalidade científica X racionalidade disciplinar). Nesse viés, para nós, é preciso explicitar a maneira como o(s) saberes(s) constitue(m)-se e configura(m)-se em relação a um certo domínio discursivo, considerando os seus desdobramentos. A nossa questão fundamental diz respeito a um trajeto discursivo: como um saber científico e um certo conteúdo que se repete e que se singulariza sob forma de um saber acadêmico pode se transformar em um conteúdo disciplinar. Portanto, da reflexão e da produção do conhecimento, temos um movimento nunca contínuo e muito menos linear em que o conhecimento, ao se instar na transmissão, se coloca como um saber acadêmico pedagogizado no intuito de tornar “mais racional” e didático um saber que está em outro lugar e espaço temporal. Representamos esse movimento, ainda que de forma embrionária, da seguinte forma:

saber científico saber acadêmico saber pedagógico saber escolar

Esse entendimento leva-nos a propor e considerar o fato de que disciplina e ciência poderiam se equivaler para designar um conjunto de relações entre os objetos e as pessoas que fazem a especificidade de

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um domínio de saber ou de “um programa de pesquisa”. Isto é, pelo disciplinar, poderíamos apreender os graus de cristalização e, portanto, de estabilização que fazem parte da historicização de uma prática científica.

Isso nos leva ao seguinte questionamento: o que entendemos por disciplina? Para nós, a noção de disciplina serve para designar um corpo de saber entendido como articulação de um objeto, de um método e de um programa de um lado e, de outro, como o modo de ocupação reconhecível em uma configuração maior.

Dizendo de outro modo, falar de disciplina é designar a atividade científica como uma forma particular da divisão do trabalho de leitura no mundo social acadêmico. Porque o sistema disciplinar é um modo de organização funcional da pesquisa contemporânea e está muito ligado ao ensino superior no seu caráter institucional (a descrição das revistas, a fundação e criação das associações acadêmicas e científicas, as transformações dos departamentos, a criação de laboratórios, de grupos de pesquisa) e também no seu caráter teórico: o aparelho conceitual e metodológico, a natureza das questões colocadas em jogo, as tradições de pesquisa, ou seja, aquilo que constituiria a sua matriz disciplinar.

Portanto, a noção de disciplina é tanto intelectual quanto sociológica. Ela vai “testemunhar” em todas as suas definições, limites, fronteiras, um esforço de uniformização, porque ela não é apenas um dado de “matérias de ensino”, já que além das divisões burocráticas ela “tem seu valor” – sua jurisdição epistemológica, uma jurisdição institucional e pedagógica.

2. Questões sobre institucionalização e disciplinarização:

No Brasil (no período compreendido entre as décadas de 1960 e 1980), no âmbito dos estudos da linguagem, abrem-se novas perspectivas, como, por exemplo, no ano de 1962, quando a Linguística passa a fazer parte, como disciplina obrigatória, do Currículo Mínimo dos Cursos de Letras. Tão logo isso ocorre, no ano de 1963, essa disciplina já é ministrada nos Cursos de Graduação do interior do RS, como podemos observar ao perscrutarmos os arquivos das instituições acadêmicas gaúchas para constituir o corpus de nossa pesquisa.

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Chiss & Puech (1999), em seus estudos, apontam para a importância do olhar retrospectivo, a partir do qual se pode estabelecer, pelo(s) lugar(es) de memória que ele atesta, o modo como determinado campo de saber apresenta uma “consciência disciplinar”. Segundo os autores, um campo de saber instaura-se na medida em que configura um efeito integrador e esse efeito resulta do fato de o saber ser entendido como uma unidade articulada, pela qual se pode verificar a construção de uma espécie de campo homogêneo, constituído por uma ontologia que se apresenta de modo mais ou menos implícito.

A configuração de uma disciplina vincula-se ao seu horizonte de retrospecção, pois, por meio dos resquícios-vestígios de uma memória em funcionamento, pode-se entender uma temporalidade que é própria à disciplina e, assim, compreender os saberes que organizam a memória disciplinar de determinado domínio de saber (cf. ibid.). Chiss & Puech (1999), partindo do que Auroux (2008) propõe sobre o horizonte de retrospecção e projeção, ressaltam que a temporalidade interna ao domínio disciplinar decorre tanto da sua relação com o passado quanto com o futuro. A retrospecção permite a relação com a memória, apresentando uma função legitimadora; já a projeção apresenta uma relação com o devir, tendo, por conseguinte, uma função instauradora. Por meio dos horizontes de retrospecção e projeção, podemos observar o que Chiss & Puech (1999) denominam de “horizonte disciplinar”.

Além da temporalidade que envolve a constituição do disciplinar, Chiss & Puech (1995) destacam a importância da institucionalização.

Fazendo referência ao processo de disciplinarização e

institucionalização da Linguística (pensando esta enquanto domínio científico), os autores consideram que:

L'institutionnalisation de la discipline semble donc résulter d'un double mouvement relativement contradictoire. D'une part, la science du langage est socialement utile: elle permet la conservation de langues appelées à disparaître, reconstruit celles qui ont déjà disparu, prend pour objet les activités linguistiques qui constituent la plus grande partie de notre vie sociale, doit permettre d'accomplir des progrès indispensables dans le domaine de l'enseignement des langues, etc. De l'autre,

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aucun des résultats qu'elle propose n'est directement accessible au sens commun: ni la réalité du changement linguistique continué, ni la dignité des langues sans écriture, ni la secondarité de l'écriture par rapport à la langue parlée... ne sont des “truisms”. La disciplinarisation de la science (son institutionnalisation visible) est donc à la fois un devoir et une

stratégie quasi défensive1 (CHISS; PUECH, 1995, p.108, grifos

dos autores).

Compreendemos, assim, que pensar o disciplinar é também pensar o processo de institucionalização, por meio do qual certo domínio ganha visibilidade e possibilita/resulta na disciplinarização de determinados saberes em condições sócio-históricas e ideológicas específicas. Para os autores (1995), o disciplinar pode estar ancorado em três grandes modalidades referentes à representação da unidade e das fundações da disciplina: (i) a filiação empírica, pela qual se busca a continuidade, seja de uma tradição nacional, seja de uma escola de pensamento, etc; (ii) a divisão, ou demarcação disciplinar, seja em relação ao tempo ou sincronicamente, a qual permite à disciplina estar calcada em certa parte do real e em certa “família” de disciplinas; e (iii) a refundação conceitual, onde a figura do antecessor não é mais considerada como predecessor empírico, mas como um fundador que legitima uma refundação por reapropriação/reação. Essa última modalidade, para os autores, possibilita entender que a disciplina está situada na ordem da legitimação, mais próxima da definição do objeto e, na maior parte do tempo, do horizonte de projeção da disciplina, no que deveria/poderia ser (CHISS; PUECH, 1995, p.106).

Para Chiss & Puech (1999), quando se adota um ponto de vista disciplinar, há uma maior atenção no que diz respeito às considerações que envolvem o objeto da ciência, permitindo analisar, por estratificações e delimitações, o modo como o discurso está em relação a outros discursos precedentes, adjacentes, distintos, mas que, no entanto, não são estranhos à(s) disciplina(s) em questão. Diante disso, os autores consideram que as representações disciplinares estão associadas ao processo de constituição dos conhecimentos e é a disciplinarização que organiza a relação entre o nível da continuidade e da descoberta, bem como a herança na perspectiva da inovação (CHISS; PUECH, 1995, p.122).

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Pela relação com a temporalidade, é possível verificar que há um

continuum de discursos disciplinares, como apontam Chiss & Puech

(1999, p.10). Contudo, é importante ressaltar que tal continuidade refere-se à articulação de determinado domínio de saber com o horizonte de retrospecção. Além disso, toda retomada de saberes não implica necessariamente a retomada dos mesmos sentidos, e é a partir desse pressuposto que podemos pensar a questão da (re)fundação proposta por Chiss & Puech (1995). Para os autores, do ponto de vista disciplinar, “la nouveauté n'est mesurable que sur le fond d'une compacité qui est celle de la discipline même: la fondation est

nécessairement une re-fondation”2 (CHISS; PUECH, 1995, p.107).

Tal processo que envolve o disciplinar é decorrente, portanto, de sua relação com a temporalidade, com o horizonte de retrospecção, que estabelece qual domínio de memória constitui determinado campo de saber e permite compreender que “la discipline est moins un état de

fait qu’un processus toujours déja commencé et recommencé”3

(CHISS; PUECH, 1999, p. 19). Para tanto, Chiss & Puech (1995) destacam a necessidade da figura do predecessor para a constituição de um campo disciplinar, figura essa que:

[...] dans l'ordre empirique de la succession, se confond donc avec celle du «précurseur»/fondateur, pour donner lieu à une appréhension unifiée, homogène du champ de la discipline saisie dans la variété de ses domaines, de ses branches et de ses

intérêts4 (CHISS; PUECH, 1995, p.112).

No caso da constituição disciplinar da Linguística, os autores, após uma retomada de diversos estudos de linguistas do século XX acerca da contribuição do saussurianismo, destacam o Cours de linguistique

générale, de Ferdinand de Saussure, como sendo um “texto fundador”

capaz de fornecer uma referência retrospectiva que configura um domínio de memória, por estabelecer relações de gêneses, de filiações, de continuidade e descontinuidade, assim como um domínio de

pesquisas5.

Se tomarmos, por exemplo, um dos autores citados nos programas de disciplinas em análise, como é o caso de Coseriu (1999), ele em seu livro intitulado Lecciones de Lingüística General apresenta-nos uma história da continuidade, perscrutando no passado, os pontos

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mais importantes apresentados no Curso de Linguística Geral de Saussure (doravante CLG). Para o autor:

[...] hay que tener em cuenta que ‘El curso de lingüística geral’ no constituye solo um punto de partida sino también um punto de llegada y encuentro de tesis e intuiciones anteriores y que justamente por ello representa um momento essencial en la

historia de la lingüística6 (COSERIU, 1999, p.129).

Com isso, podemos inferir que Coseriu (1999) afirma que devemos considerar que há alguns conceitos e noções presentes no CLG que já são pensadas e discutidas desde a antiguidade, havendo outros que são pensados por meio de influências recíprocas entre Saussure e seus contemporâneos. Mesmo fazendo as devidas objeções e ressalvas, o autor coloca ainda que “La lingüística europea actual debe mucho a

Saussure7” (COSERIU, 1999, p.74).

Já para Benveniste (1988, p.34), não há um só linguista que hoje não lhe deva algo, pois Saussure é “em primeiro lugar e sempre o homem dos fundamentos” (p. 34). Benveniste (1988) afirma também que Saussure, ao afastar-se de sua época, estava aos poucos se tornando senhor de sua verdade, gradativamente estava transformando a ciência da linguagem “[...] à medida que adianta sua reflexão, vai à procura de dados elementares que constituem a linguagem, desviando-se pouco a pouco da ciência do desviando-seu tempo, em que não vê desviando-senão ‘arbitrariedade e incerteza’” (BENVENISTE, 1988, p.36).

Segundo o autor, a Linguística que temos hoje, que se tornou uma ciência importante, tem sua origem em Saussure, pois é “em Saussure que ela se reconhece e se reúne” (BENVENISTE, 1988, p.49). Ao considerar que Saussure busca garantir os fundamentos da linguística, Benveniste afirma: “estranho destino esse das ideias, e como parecem às vezes viver pela sua própria vida, revelando ou desmentindo ou recriando a figura de seu criador” (BENVENISTE, 1988, p.48).

No contexto brasileiro, por exemplo, temos um grande estudioso também problematizando tal relação histórica, como é o caso de Guimarães (2008, p.09) quando enfatiza que “a história da linguística tem centrado sua atenção, de um ou de outro modo, no corte, decisivo sob muitos aspectos, do CLG”. A maioria dos estudos linguísticos realizados no século XX e XXI (pelo menos no tocante ao mundo

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ocidental) é afetada de alguma maneira pela obra do mestre de Genebra.

Embora saibamos que “o pensamento moderno sobre a linguagem instala-se a partir do século XIX, com a linguística comparativa” (GUIMARÃES, 2002, p.116), é a partir da “ruptura fundante” de Saussure que realmente a Linguística moderna se instaura, ruptura que se dá por meio da sistematização dos estudos da linguagem. Neste sentido, Arrivé (2010, p.20), aponta que “Saussure não fundou a linguística, que já possuía um longo passado científico quando ele nasceu. Mas sua obra está na origem de uma mutação considerável na evolução da disciplina”, fato que torna possível falarmos em um corte saussuriano.

O destaque para essa discussão em torno do disciplinar reitera o fato de o discurso manter uma dupla relação com a história, sendo “histórico, porque se produz em condições determinadas e projeta-se no ‘futuro’, mas também é histórico porque cria tradição, passado, e influencia novos acontecimentos” (ORLANDI, 1990, p.35). A determinação histórica e a relação com o devir são fundamentais, em

nosso entendimento, por permitir explicitar que tanto a

disciplinarização quanto a institucionalização constituem-se como processos vinculados um ao outro que contribuem para a historicização de determinados saberes e sentidos em condições sócio-históricas e ideológicas específicas.

3. As reflexões que propomos:

Cabe ressaltar que o corpus de nosso trabalho é constituído por documentos relativos a programas da disciplina de Linguística (dos anos de 60-70-80) e por relatórios anuais dos cursos de graduação de instituições universitárias (do início dos anos 60). Documentos que nos possibilitam a compreensão do processo de disciplinarização da Linguística no Sul e seu desenvolvimento. Processo que possui forte influência dos estudos saussurianos, principalmente nos anos 70, após a publicação do CLG em Língua Portuguesa.

Essa influência a que nos referimos diz respeito à relação do processo discursivo com determinado horizonte de retrospecção, uma vez que o modo de historicização, conforme destaca Auroux (2008, p.152), “depende largamente da constituição e da estrutura do horizonte de retrospecção na sua relação com o funcionamento do

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domínio de objetos”. Para nós, o processo de disciplinarização deve ser pensado em articulação com o domínio da ciência, em nosso caso, o das Ciências da Linguagem em geral, constituindo-se, assim, enquanto um processo afetado histórica e ideologicamente. Vamos colocar aqui tal processo discursivo em três grandes movimentos e que poderão elucidar melhor como estamos tratando tal problemática.

3.1. Um primeiro movimento: a disciplinarização antes da tradução do CLG - sobre Saussure

Considerando a Linguística ministrada no Sul, logo após o decreto que postula sua obrigatoriedade, entendemos que se tratava de uma disciplina marcadamente identificada aos estudos da Língua Portuguesa em suas condições externas e internas. Como podemos observar nos programas disciplinares que fazem parte do corpus de nossa pesquisa, ao descreverem a disciplina de Linguística, ministrada

no ano de 1963 em instituições de nosso Estado8, muitas informações

se repetem. Nesses programas disciplinares, encontramos, na descrição dos conteúdos a serem ministrados, por exemplo: Semântica

Descritiva; Categorias Gramaticais; Progresso Linguístico; Gramaticalização; Quadro das Categorias; Gênero; Categoria de Tempo, de aspecto; Classificação dos Vocábulos; Pronomes; Advérbios; Frase e Estilo; Frase-Estrutura; Frases Nominais e Verbais; Gênese da Frase Impessoal; Vozes do Verbo; Voz Passiva; Tipos de Frase Passiva; Estrutura; Frase Ergativa; Evolução Empréstimo; Caráter da Evolução; Causas da Evolução; Campos da Evolução; Evolução Fonética; Atitude Fonêmica. Estrutura Social. Aspectos da Evolução fonética; Tipos de Evolução Fonética; Mudanças Combinatórias, Mutações; Analogia.

Dois anos depois, em 1965, observamos uma mudança no

programa de disciplina Linguística, que continua com a mesma nomeação, mas sofre alterações na sua designação, por meio de uma reconfiguração interna na seleção dos tópicos a serem trabalhados. Assim sendo, como no ano de 1963, ainda temos um Curso anual que possui uma disciplina nomeada Linguística, mas ela é designada de forma diferente. Podemos trazer um grande clássico para nos auxiliar a sustentar o que desejamos, pois para nós, segundo Bréal (2008), não há dúvida de que linguagem designa as coisas de modo incompleto, inexato. Com isso, acreditamos que as designações são apresentadas

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na trama de suas re+escriturações, isto é, no reaparecimento, nas substituições, nas retomadas, que, em vez de fixarem a referência, produzem sua deriva.

Vejamos, por exemplo, os programas disciplinares do ano de 1965, que dividem o programa da disciplina nomeada Linguística em duas partes específicas, configurando-a da seguinte maneira: uma 1ª parte designada como Introdução que apresenta o desenvolvimento da

linguística; um breve histórico; a linguística no Brasil; Língua e Cultura; Conceito de Língua; Natureza da Linguagem; Língua e Sociedade; Língua e espaço; O atlas linguístico; Natureza da linguagem. Língua e tempo; Fonética; Divisões da Linguística; Objeto da Linguística; Método Linguístico; posteriormente,

referenciam-se conteúdos relativos à fonética (inclusive apresentando o estudo do IPA – International phonetic alphabet); e uma 2ª parte dedicada a estudos da Morfologia da Língua Portuguesa e Fonética do Português, do Francês e do Inglês, além de introduzir estudos de Sintaxe (a frase e sua estrutura).

Esses programas não alteram a nomeação da disciplina, mas a fazem significar de maneira diferente dos programas anteriores por meio de uma reconfiguração que a designa de forma diversa. Cabe destacar que entendemos também que diferentes designações podem estar carregadas com um mesmo sentido ou com sentidos diferentes, o que não modifica o objeto e sim as formas de apresentação (e de

representação) desse objeto, compreendemos então que,

independentemente de ser nomeada de maneira x ou y, independentemente de ser designada de modo a ou b, a Linguística apresentada nos programas disciplinares por nós analisados, a partir do ano de 1965 é, sobretudo, uma Linguística que tem como ponto de partida os estudos saussurianos. E, conforme Benveniste (1988, p. 34), “não há uma só teoria geral que não mencione seu nome”, independentemente de aceitar ou negar os conceitos por ele postulados no CLG.

No ano de 1967, observamos uma referência mais enfática à Linguística saussuriana no final da listagem dos conteúdos, como podemos observar: Linguística: Métodos e definições; A Semiótica:

Conceitos; Caracteres dos Sinais; Classificação filosófica dos objetos; A divisão da Semiótica; A articulação; Os níveis de articulação; Linguagem; O sinal Linguístico; O caráter arbitrário do

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sinal; As formas motivadas; As formas de linguagem: o discurso; As formas de linguagem: o dialeto, a norma, o sistema; A classificação dos elementos linguísticos e formas de linguagem. A ciência da linguagem: sincronia.

O ano de 1969 apresenta uma divisão mais próxima do que conhecemos como uma Linguística saussuriana, trazendo elementos do CLG, como as dicotomias saussurianas, e também estudos do linguista Martinet, e uma Linguística pré-saussuriana. Neste ano, os

programas da disciplina são divididos em duas partes: a primeira

corresponde à Introdução à Linguística Geral, tendo o seguinte

conteúdo programático: “Língua, conceito, funções; Langue e Parole;

Sincronia e Diacronia; Língua como grupo e sons elementos da segunda articulação; Língua como um grupo simbólico (elem. da 1ª articulação); Os símbolos linguísticos são arbitrários; Língua como forma de comportamento social; Língua e cultura; A língua é sistema-paradigma e sintagma; As mudanças linguísticas; Correção linguística; Níveis do discurso; Dialetos”; e a segunda parte é

destinada à História da Linguística, com os seguintes tópicos: “Os

hindus; Os gregos; Os latinos; A Idade Média; A Linguística comparativa; Os neo-gramáticos; A linguística como ciência Ferdinand de Saussure; Escolas Post-Saussurianas”.

Neste período, importantes eventos relativos aos estudos linguísticos ocorriam em nosso estado, dentre os quais destacamos o I

Instituto Brasileiro de Linguística, que se realizou no ano de 1968, em

Porto Alegre, sob a responsabilidade acadêmica do Setor de Linguística do Museu Nacional, por meio da figura do importante linguista e pesquisador de línguas indígenas Aryon Dall'Igna Rodrigues. De acordo com Scherer (2005, p.21):

[...] destaques do sul em tal evento são os professores Adelino Martins e Leonor Scliar Cabral, cujas falas apresentavam títulos que já anunciavam um discurso fundador do lugar de uma linguística mais voltada ao ensino do que propriamente teórica. Vejamos os títulos dessas conferências: As bases linguísticas para o aprendizado de língua materna e os princípios da Linguística e sua aplicação ao ensino de língua portuguesa.

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Nesse importante evento, inúmeros professores de diversas instituições do estado estavam presentes, o que certamente influenciou a Linguística desenvolvida naquele período. Também podemos ressaltar o importante lugar conferido à PUCRS no que se refere à formação de profissionais para atuarem na área de Linguística, entre 1968 e 1969, de modo que passaram 568 professores por um programa de formação continuada em Linguística na instituição.

Já no âmbito regional das instituições que fazem parte do corpus de nosso trabalho, destacamos, no ano de 1969, a realização do “I

Seminário Santa-Mariense de Orientação Linguística” que foi

ministrado pelos professores Eurico Back, Regis Berthi e Celso Luft. A presença desses pesquisadores que, de certa maneira, estão voltados a questões de Linguística, ensino e Língua Portuguesa (questões que também podem ser observadas nos programas daquela época), a nosso ver, repercutem o modo como a Linguística também foi disciplinarizada no Sul, pois podemos afirmar que:

[...] enquanto disciplina de caráter acadêmico é, durante esse

período, uma disciplina ainda emergente, cujos

desenvolvimentos parciais em cada um de seus domínios (a relação curricular pelo seu ementário, programa e bibliografia) são muito desiguais, embora relativamente autônomos, cada um na sua ordem discursiva (SCHERER, 2005, p.23).

Isso nos permite compreender a determinação histórica que afeta a constituição dos programas em análise, além do fato de que não há uma regularidade com relação ao conteúdo a ser ministrado.

3.2. Um segundo movimento: a publicação do CLG – e a configuração de um disciplinar institucional

Os anos da década de 1970 apresentam um novo cenário aos estudos linguísticos, marcado especialmente pela publicação em Língua Portuguesa do CLG, como afirma Salum no prefácio à edição brasileira, com “apenas 54 anos de atraso” (SAUSSURE, 2006, p.XVIII). Se pensarmos na conjuntura de sua edição, podemos dizer que ela é resultante de uma série de questões, tendo em vista atender às demandas intelectuais que se instalavam no Brasil e às demandas

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das universidades, pois, naquela década, a Linguística começou a ter uma difusão maior junto aos Cursos de Letras.

Além disso, entendemos que essa publicação afetou o processo de disciplinarização da Linguística, alterando a designação e a nomeação da disciplina para que esta se “moldasse” de maneira a representar capítulos do CLG. Encontramos, em meados da década de 70, no Rio Grande do Sul, disciplinas intituladas, por exemplo, como Linguística

I, Linguística II, nas quais temos respectivamente uma linguística

introdutória e uma linguística saussuriana. Como podemos observar em nossos arquivos, naquele período, a Linguística passou a estar fortemente atrelada ao CLG e organizada conforme seu sumário. Uma Linguística que traz em seu conteúdo programático - Introdução do

CLG, a primeira parte do CLG (Cap. I – Natureza do Signo Linguístico e cap. II - Imutabilidade e Mutabilidade do Signo) e a 2º parte do CLG (cap. IV – O valor linguístico e Cap. V - Relações sintagmáticas e relações associativas). E, na sequência, em disciplina

intitulada Linguística III, constam conteúdos como: Glossemática; A

linguística Americana Moderna; Contribuições da Psicologia e filosofia nos estudos da língua; 4º parte do CLG (Cap. III – Causas da Diversidade Geográfica); 5º parte do CLG (Conclusão de Saussure; Cap. II – A língua mais antiga e o protótipo, Cap. III As reconstruções, Cap. IV O testemunho da língua em Antropologia e em Pré-História e Cap. V – Famílias de Línguas e tipos linguísticos).

A nosso ver, essas modificações nos programas, resultantes da publicação em Língua Portuguesa do CLG, vinculam-se ao caráter fundador que essa obra possui, já que é considerada um marco para o estabelecimento do domínio de memória da Ciência Linguística. Inclusive apoiamo-nos em Chiss & Puech (1994) para considerar que o CLG configura-se como um texto fundador, uma vez que:

Saussure a fonctionné comme «carrefour» dans un champ plus largement différencié encore. En effet, les lectures de «l'événement discursif» qu'a été l'édition du C.L.G. ont contribué à élaborer la mémoire et l'horizon disciplinaire des sciences du langage. Mais on sait bien qu'au-delà de la communauté savante, c'est aussi dans la transmission pédagogique et dans le domaine des «idées générales» et des

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transferts de connaissances que s'opère cette élaboration9

(CHISS; PUECH, 1994, p.42).

Isso nos permite dizer que o CLG configura-se como um ponto de ancoragem para outros discursos – em nosso caso, os programas da disciplina de Linguística –, os quais, ao retomar tal postulado, constituem-se tendo em vista certa filiação de sentidos e determinação histórica. Desse modo, entendemos que as alterações compreendidas na formulação dos programas decorrem, conforme Scherer e Petri (2008), em razão de o campo disciplinar de uma ciência ser afetado pela formação ideológica em que está inserido, afetando a história dos conceitos e a história cultural do disciplinar.

Para entender o processo de constituição de um campo disciplinar, devemos, pois, atentar à determinação ideológica e histórica que afeta a conjuntura em que tal campo se insere, pois “cada época tem suas convenções, valores, visões do mundo, formando um certo universo linguístico-acadêmico, cujos elementos interdependentes mantêm entre si relações associativas e funcionais, em constante processo de mudança” (SCHERER, 2005, p.10). Isso se torna necessário na medida em que devemos compreender e considerar, tanto a História das Ideias quanto a história das instituições que ajudaram a constituir dado campo científico ou dada disciplina.

3.3. Um terceiro movimento: a disciplina e seu movimento de reconfiguração

Nos anos de 1980, os programas por nós analisados, continuam com as mesmas nomeações de disciplina da década de 70, a saber, Linguística I, Linguística II e Linguística III, porém com outra configuração, designando essas disciplinas de maneira diferente. A Linguística presente nos programas é reconfigurada, o que alterna/altera é a designação, uma vez que a disciplina de Linguística I passa a ter como objetivos: “Descrever a língua como um conjunto de

símbolos organizados para a comunicação humana” e subdividir seu

programa nas seguintes unidades: I) Visão geral da Linguística antes

de Saussure; II) História da Linguística na antiguidade; III) A linguagem articulada; IV) As ideias de Ferdinand Saussure; V) O Signo Linguístico; VI) Linguística e Gramática; VII) História da

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Grafia; VIII) A Dupla Articulação da Linguagem segundo Martinet; IX) As Três Gramáticas.

A disciplina de Linguística II objetivava que o aluno fosse capaz de identificar as variações articulatórias dos sons da fala e as unidades mínimas distintivas que operam na língua, quais sejam: I) Fonética Histórica e Descritiva; II) Dupla Articulação; III) Confronto Fonético

das Línguas; IV) Transcrição Fonética Internacional; V) Fonética Articulatória e Acústica. Já a Linguística III contemplava, na unidade

I, As três gramáticas, e, na unidade II, Apresentação das novas

tendências da linguística, enfocando linguística e psicologia; a linguística e as ciências sociais; a linguística e a filosofia.

Tal efeito em que alterna/altera os programas de Linguística da década de 80 aponta para a (re)configuração em torno da designação que envolve essa discursividade, movimento esse que é, para nós, uma condição necessária para o processo de disciplinarização, uma vez que as representações disciplinares estão associadas ao processo de produção do conhecimento e é a disciplinarização que organiza a relação entre o nível da continuidade e da descoberta, bem como a herança na perspectiva da inovação (CHISS; PUECH, 1995, p. 122).

Além disso, tal (re)configuração indica o fato de inscrever-se na constituição dos programas uma identificação com determinados saberes/dizeres, por meio dos quais se visa à consolidação e a (de)marcação de dado domínio/teoria, que se configura a partir de

condições sócio-históricas e ideológicas específicas. Esse

funcionamento em torno dos programas está relacionado, a nosso ver, à produção do conhecimento, pois envolve, igualmente, como enfatiza Scherer (2008):

[...] um trabalho permanente de demarcação de lugar, trabalho que envolve um policiamento incessante de fronteiras e uma vigilância epistemológica ímpar de domínios, a fim de que possamos manter as rédeas de nossa sujeição nos possíveis deslizamentos de sentido na constituição do campo de saber em que estamos postos (SCHERER, 2008, p.133).

Podemos entender também, por meio da constituição dos programas selecionados, um processo de filiação teórica e de sentidos. Para Orlandi (2002, p. 156), “quando os autores se filiam a uma teoria

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e não outra, e quando fazem um recorte do objeto de conhecimento, estão produzindo uma política de ciência com conseqüências para uma política social”. A nosso ver, a partir do momento em que certos saberes/dizeres passam a constituir determinado processo discursivo, pode-se considerar que os mesmos estão (de)marcando um lugar em certas condições de produção.

Entendemos que é, sobretudo, a filiação que permite aos saberes se institucionalizarem e circularem em dada conjuntura sócio-histórica e ideológica. Sobre essa reflexão em torno da filiação, retomamos Chiss & Puech (1999), para os quais:

[…] proclamer des filiations ou des affiliations, c’est organiser un champ de savoir homogène par un certain agencement de la mémoire. Définir un objet propre dans ce champ homogène, c’est indexer, identifier, décrire les principaux domaines de la discipline où l’objet trouve sa place légitime. Fixer des tâches programmatiques, c’est compléter, par la dimension projective, la cohérence rétrospective et synchronique de la discipline. Le point de vue disciplinaire, par quelque côté qu’on l’envisage, nous confronte donc à la dimension temporelle (retrospection, délimitation synchronique, projection) d’une représentation du

savoir10 (CHISS; PUECH, 1999, p.16).

Segundo estamos considerando, quando pensamos na

institucionalização e disciplinarização de determinado domínio de saber, devemos levar em conta, sobretudo, a relação com o horizonte de retrospecção, a partir do qual se pode compreender a maneira como determinado campo disciplinar historiciza-se ao longo do tempo.

Cabe ressaltar ainda que, apesar de diferentes

(re)configurações, (re)nomeações, designações, presentes nos

programas disciplinares por nós analisados, independentemente da orientação teórica predominante em diferentes momentos históricos “Saussure é, sem dúvida – e não apenas na França, na Suiça e na Europa –, o linguista mais lido, mais citado e mais comentado: os livros consagrados a eles são dezenas, os artigos, milhares (ARRIVÉ, 2010, p.20).

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Para encerrar:

Há uma constante reconfiguração nos programas e ementas da disciplina de Linguística que altera/alterna a sua designação, o que, para nós, vem configurando um outro olhar para a constituição disciplinar da Linguística e produzindo outros sentidos para essas nomeações, assim como percebemos por meio da instituição da

Linguística I, Linguística II e Linguística III. A designação pode até

mesmo levar à alteração da nomeação e à subdivisão do campo disciplinar, como ocorreu da passagem de Linguística para Linguística I, II e III, ou – em outros momentos não abordados aqui – para Linguística Geral e Introdução aos Estudos Linguísticos.

Entendemos que a constante alternância-alteração nos programas e ementas, além da reconfiguração dos conteúdos a serem trabalhados, é decorrente do “processo de disciplinarização”, pois “o discurso do conhecimento, como qualquer outro, está em movimento e não se deixa enclausurar, desenhando seus meandros no fluxo do saber” (ORLANDI, 2002, p.62). Essas alternâncias-alterações nos programas são determinadas historicamente, ou seja, as ideias vigentes sobre os estudos da linguagem estão diretamente ligadas aos discursos que tratam do saber sobre a língua, pois a produção do discurso disciplinar está enredada, encravada, à ideologia, a qual se materializa através do discurso e aponta para a sua historicidade, bem como para seus efeitos de sentido.

Logo, refletir sobre a constituição e a formulação dos programas referentes à disciplina de Linguística é relevante na medida em que nos possibilita compreender o processo de institucionalização e desenvolvimento desse domínio de saber em determinada conjuntura sócio-histórica e ideológica. Tal compreensão nos conduz, especialmente, aos movimentos de sentidos que se tem de uma época para outra, bem como às ideias que circulam em determinada conjuntura e que acabam voltando em espaços e momentos outros por meio de outros sujeitos e instituições.

Se Saussure é uma espécie de “metabolização”, no dizer de Puech (2013) do Curso e se esse acabou se tornando um objeto histórico investido de valores culturais e políticos os mais variados, e instituídos disciplinarmente, podemos inferir então que são os modos de re-apropriação do saber do linguista e de suas aulas que irão ser determinantes para o que Puech (2013) vai chamar de uma

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“consciência disciplinar”. No contexto aqui analisado, mesmo que sob uma forma quase que des-materializada, porque vamos encontrar aí uma espécie de matriz disciplinar que pode ser re-investida, transformada, estendida e re-inventada quando da criação dos primeiros programas de pós-graduação no RS e na formação do pesquisador. Tema para um próximo artigo.

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Palavras-chave : Linguística, Disciplinarização, Institucionalização Key-words: Linguistics, Disciplining, Institutionalization

Notas

________________________

1 Tradução nossa: “A institucionalização da disciplina parece, pois, resultar de um

duplo movimento relativamente contraditório. De um lado, a ciência da linguagem é socialmente útil: ela permite a conservação das línguas chamadas a desaparecer; reconstrói aquelas que já estão desaparecidas; coloca como objeto as atividades

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linguísticas que constituem a maior parte de nossa vida social; e deve permitir os progressos indispensáveis no domínio de ensino das línguas, etc. De outro lado, nenhum dos resultados que ela propõe é diretamente acessível ao senso comum: nem a realidade da mudança linguística continuada; nem a dignidade das línguas sem escritura; nem a secundariedade da escritura em relação à língua falada...não são ‘truísmos’. A disciplinarização da ciência (sua institucionalização visível) é, pois, ao mesmo tempo, um dever e uma estratégia quase defensiva”.

2 Tradução nossa: “a novidade é somente mensurável sobre o fundo de uma

compacidade que é aquela da disciplina em si: a fundação é necessariamente uma refundação”.

3 Tradução nossa: “a disciplina é menos um estado de coisas que um processo sempre

já começado e recomeçado”.

4 Tradução nossa: “[...] na ordem empírica da sucessão, confunde-se com aquela do

‘precursor’/fundador, por dar lugar a uma apreensão unificada, homogênea do campo da disciplina colocada na variedade de seus domínios, de seus ramos e de seus interesses”.

5Tal domínio refere-se às pesquisas atuais que envolvem o discurso saussuriano,

sobretudo, a partir de seus manuscritos.

6 Tradução nossa: Temos que considerar que o “CLG” não constitui somente um

ponto de partida, mas também um ponto de chegada e encontro de teses e intuições anteriores e que justamente por isso representa um momento essencial na história da linguística.

7 Tradução nossa: A linguística europeia atual deve muito a Saussure.

8 Não vamos entrar aqui em tudo o que cada recorte implica na própria história do

fazer e na constituição do disciplinar na Linguística no Sul; nem tão pouco estudar todas as entradas dos fatos históricos e das influências que se avolumam quando instamos uma interpretação mais apurada de tudo o que compõe tal historicidade.

9 Tradução nossa: “Saussure funcionou como um ‘cruzamento’ em um campo ainda

mais amplamente diferenciado. Com efeito, as leituras de ‘acontecimento discursivo’ que teve a edição do C.L.G. contribuíram para elaborar a memória e o horizonte disciplinar das ciências da linguagem. Mas sabemos bem que, para além da comunidade científica, é também na transmissão pedagógica e no domínio das ‘ideias gerais’ e das transferências de conhecimentos que se opera essa elaboração”.

10 Tradução nossa: “proclamar as filiações ou as afiliações, é organizar um campo de

saber homogêneo por um certo agenciamento da memória. Definir um objeto próprio nesse campo homogêneo é indexar, identificar, descrever os principais domínios da disciplina onde o objeto encontra seu lugar legítimo. Fixar as tarefas programáticas é completar, pela dimensão projetiva, a coerência retrospectiva e sincrônica da disciplina. O ponto de vista disciplinar, por qualquer lado que consideramos, confronta-nos, pois, a uma dimensão temporal (retrospectiva, delimitação sincrônica, projeção) de uma representação do saber”.

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