Estrutura mínima
de um projeto de
pesquisa clínica
Álvaro Nagib Atallah
Medicina Baseada em Evidências
m dos principais problemas para alguém que se inicia em pesquisa clínica é saber por onde começar. Entendemos que toda pesquisa deve ser motivada por uma curiosidade científica, que é o elemento principal que irá gerar uma pergunta (research question).
Definida a pergunta a ser respondida, se o pes-quisador ainda a considerar “suficientemente atraente para casar-se com ela”, deverá preparar um projeto que mais se adeqüe à solução daquele problema.
Por exemplo, o objetivo geral de uma pesqui-sa pode ser o de reduzir a incidência de eclâmpsia na gestação. O objetivo específico é saber se sulfato de magnésio é mais efetivo do que o placebo para esse mesmo fim. A hipótese de nulidade do estudo, en-tão, será: o uso de sulfato de magnésio não é mais efetivo do que o placebo para a prevenção da convul-são em pacientes com pré-eclâmpsia e eclâmpsia. O pesquisador irá em busca dos dados para refutar a hipótese de nulidade. A pergunta específica da pes-quisa será: o uso de sulfato de magnésio em paciente com pré-eclâmpsia grave, comparado com solução fisiológica, reduz a incidência de convulsões (que ca-racterizam a eclâmpsia)?
Nessa situação, como a pergunta é sobre con-duta, no caso terapêutica, o modelo de estudo pri-mário mais adequado é o ensaio clínico rando-mizado. As condições do estudo dirão se é possível e ético que nem o pesquisador nem a paciente sai-bam qual o tratamento está sendo administrado, o estudo será classificado como duplo cego.
Se a pergunta clínica for: “pacientes com pré-eclâmpsia evoluem para pré-eclâmpsia, convulsionam, por que têm maior hemoconcentração?” Em ou-tras palavras, hemoconcentração é um fator de ris-co para o desenvolvimento de eclâmpsia? Bem, nesse
caso, pode-se fazer uma espécie de triagem inicial para identificação de fatores de risco para o desen-volvimento de convulsões e incluir o estudo de fa-tores que tanto possam aumentar quanto diminuir o risco de convulsão.
Nesse ponto, o desenho inicial mais adequado é o de casos e controles, onde são pareados um grupo de pacientes com eclâmpsia (casos) e um grupo de gestantes semelhantes, que não tiveram eclâmpsia. A vantagem desse modelo é que se podem testar muitas hipóteses ao mesmo tempo (fatores de risco).
Uma grande desvantagem é a dificuldade de definir claramente se um paciente foi realmente ex-posto a determinado fator de risco ou não. Por exem-plo, pode-se concluir que pacientes que tiveram eclâmpsia apresentaram maior proporção de hematócritos altos (medida indireta de hemocon-centração), havendo, portanto, uma associação en-tre hemoconcentração e desenvolvimento de eclâmpsia. Porém, é possível também que um eletrólito presente no plasma cause a convulsão e sua presença a predisponha. Deve-se descartar, por-tanto, a possibilidade de existência de fatores de con-fusão como esse. Um modelo mais preciso para o estudo de efeito de um fator de risco é o estudo prospectivo ou de coorte. Coorte, do latim, quer di-zer batalhão. Nesse caso, então, acompanham-se dois grupos (batalhões) de pacientes, um exposto a um fator de risco, por exemplo, fumo, e o outro, não.
Ao final, calcula-se o risco relativo atribuível ao ato de fumar, comparado-o com o grupo de não-fumantes, no que concerne ao desenvolvimento da eclâmpsia. Nesse modelo coorte, a avaliação do ris-co é muito mais ris-confiável e, além da precisão, se a vantagem de se poder estudar, ao mesmo tem-po, vários tipos de complicações atribuídas ao fator
de risco. No caso do tabagismo, pode-se estudar em duas coortes as incidências de infarto do miocárdio, câncer do pulmão, acidente vascular cerebral, pneumonias, entre outras, e compará-las. Como desvantagem, o modelo apresenta o fato de ser caro e geralmente demorado de ser realizado.
Ainda em relação a eclâmpsia, pode-se que-rer saber se os reflexos osteotendíneos exacerbados são preditivos de convulsão. Para tal, é necessário demonstrar se a chance de acertar “quem desenvol-verá eclâmpsia”, utilizando-se esses dados de exa-me físico, é maior do que o esperado pelo acaso. Nessa situação, tem-se que utilizar um modelo de estudo para avaliação de utilidade dos reflexos osteotendíneos para predição de quem terá ou não eclâmpsia e calcular sua sensibilidade, especificidade e os valores preditivos.
Quando se quer fazer uma revisão sobre te-rapêutica, da mesma forma, tem-se que definir uma revisão sistemática da literatura.
Em resumo, fazem-se as seguintes adequações
de perguntas aos desenhos de pesquisa.
• Fator de risco, em doenças raras: estudo de casos e controles.
História natural de determinada doença ou de doenças decorrentes de uma determinada expo-sição: estudo prospectivo de coortes ou ainda evo-luções clínicas de pacientes tratados clinicamente ou operados.
Conduta terapêutica clínica, cirúrgica, pre-ventiva ou diagnóstica: estudo controlado randô-mico cego.
Para focalizar melhor a pergunta e responder de maneira conclusiva sobre o efeito de determinadas condutas, tomando-se como base as melhores evidên-cias disponíveis: revisão sistemática da literatura.
Local do estudo
É fundamental que se descreva onde o estu-do será realizaestu-do. Será em ambulatório? Em servi-ços de saúde secundários? Em serviservi-ços terciários? No campo?
Todas essas informações são fundamentais para que se tenha uma idéia da viabilidade do es-tudo na prática, do tipo de população que fornece-rá a amostragem para o estudo e para que tipo de população as conclusões poderão ser aplicadas.
Critérios de inclusão e exclusão
São fundamentais para que se defina mais precisamente a população a ser estudada e para que tipo de pacientes os resultados poderão ser aplica-dos (validade externa). Por exemplo, quando se es-colhe estudar apenas pacientes de raça negra com menos de 15 anos, tem-se grupos bem homogêneos, mas os resultados serão razoavelmente mais aplicá-veis a pacientes negros com menos de 15 anos.
Definição de desfecho
Deve ser de simples avaliação. Por exemplo, no caso de pacientes com infarto do miocárdio fine-se infarto apenas quando a coronariografia de-monstrar obstrução total de coronária? Definir infarto como dor precordial acompanhada de si-nais de lesão no eletrocardiograma e alterações enzimáticas já torna as coisas mais fáceis. Essa pe-quena dúvida foi suficiente para que estudos milio-nários sobre o tema caíssem por terra.
Deve-se definir as variáveis a partir da per-gunta escolhida e o modelo de estudo adequado e estabelecer claramente as variáveis independentes pertinentes ao caso: sexo, idade, raça, o que é ser fumante, ingestão de álcool, tempo de exposição, dose de medicamento, critérios diagnósticos da afecção a ser estudada etc., além de quais serão os efeitos através dos quais serão feitas as análises dos resultados para responder a pergunta. No caso da eclâmpsia, a ocorrência de convulsões atribuíveis à doença hipertensiva específica da gestação é um des-fecho adequado. No caso do infarto, estar vivo após um mês já é uma boa opção para estudo da sobrevida. Em relação ao tratamento de infarto, os cri-térios de exclusão permitem excluir casos que pos-sam confundir a análise, mas principalmente per-mitem excluir aqueles cuja participação no estudo depõe contra a ética.
Definição das variáveis dependentes e independentes
Essa seção é fundamental em qualquer estu-do clínico. Erros nessas definições podem ser fa-tais. No exemplo inicial, uma variável dependente é a ocorrência de eclâmpsia, mas o que será consi-derado caso com eclâmpsia? Isso requer uma revi-são especial da literatura e definição de critérios que não deixem dúvidas entre colegas e revisores das revistas em que se tenta publicar o artigo final. Como definir o efeito do tratamento com
estreptoquinase para o infarto do miocárdio? A melhor definição é clínica, associada a exames não-invasivos? Ou se deve escolher a desobstrução da coronária como definição de benefício? Ou a sobrevida do paciente, após um mês do evento?
Os desfechos acima têm graus de dificulda-de dificulda-de comprovação completamente diferentes. Não há dúvidas de que sobrevida é mais relevante clini-camente do que patência da coronária, além de ser de verificação mais simples.
Em uma análise mais cotidiana, há que se admitir que, ao colocarmos em gráficos os resulta-dos, teremos nas abcissas as variáveis independen-tes (tempo, por exemplo) e, nas ordenadas, as pro-porções dos desfechos (eventos). Se as definições das variáveis não forem rigorosas, as figuras que aparecerão no gráfico para se tirar conclusões po-derão ser desde uma reta até o desenho de uma face asinina ou o perfil de um camelo, ou seja, qual-quer figura poderá se formar.
O cálculo do tamanho amostral
É fundamental que em qualquer estudo clí-nico se tenha uma idéia razoável sobre o número de casos que serão necessários para que se possa res-ponder à pergunta do estudo.
Para cada modelo de projeto de pesquisa, há um cálculo, baseado nas fórmulas dos intervalos de confiança. Não se precisa necessariamente fazer gran-des cálculos para, pelo menos, ter uma idéia sobre o quão próximo ou distante se está da realidade.
Supondo que se queira saber se sulfato de magnésio administrado a pacientes com pré-eclâmpsia previne a convulsão. Sabe-se que aproximadamente uma em cada 100 pacientes com pré-clâmpsia evolui para eclâmpsia (incidência esperada ou prevalência observada). Assim, quando se estudam apenas 100 casos, tem-se 50 no grupo controle e 50 no tratado. Como o número de casos de eclâmpsia esperado no grupo controle é um em 100, com 50 pacientes, pode ocorrer nenhum caso; e se for observado um ou dois ou três no grupo tratado, ou vice-versa, não será pos-sível tirar qualquer conclusão.
Mesmo estudando-se 1.000 casos em cada grupo, o número de eventos esperado no grupo con-trole é de 10 casos de eclâmpsia (1/100), ocorrendo quatro ou cinco casos a menos no grupo tratado, o resultado não será muito diferente do esperado pelo acaso. Porém, se estudarmos 10.000 casos em cada grupo, o número de desfechos esperado no grupo controle será 100 casos e se o sulfato de magnésio reduzir 50% dos eventos teremos cerca de 50 casos
no grupo tratado. Esse resultado terá boas probabi-lidades de ter, além da significância clínica, também significância estatística.
Por outro lado, supondo que o interesse seja de estudar uma doença grave com mortalidade es-perada de 80% e a hipótese seja de que uma nova droga possa reduzir a mortalidade pela metade (ba-seado na literatura). Nesse caso, o número de mor-tes esperado para o grupo controle será de aproxi-madamente 80 em 100 casos estudados e 40 no grupo tratado. Nessa situação com 200 casos, ha-verá boas perspectivas de se obter a resposta para a pergunta. Obviamente que, também nesse caso, serão necessárias considerações éticas a dirigirem o processo. Uma delas é a análise intermediária inde-pendente, que orienta o pesquisador se é eticamente necessário parar ou continuar o estudo.
É possível calcular a amostra matematicamen-te, de maneira mais precisa. Para tal, deve-se defi-nir o valor da probabilidade de erro de uma pri-meira espécie, alfa de 0,05, 0,01, 0,001 etc., o seu complemento será o intervalo de confiança.
Definir o valor de βββββ (probabilidade de erro de segunda espécie), 10%, 20%, 30%.
Seu complemento será o poder estatístico do estudo, ou seja, a probabilidade de detectar a dife-rença de proporção que considera clinicamente útil a ser tratada.
Definir, em seguida, a proporção esperada dos desfechos no grupo controle e qual o nível de redução esperado na mesma proporção no grupo experimental; calcular o tamanho da amostra com a fórmula requerida para cada modelo de estudo.
Descrever em detalhes como os dados serão colhidos. Por exemplo, quando se está estudando um teste diagnóstico, quem verificará se o paciente tem ou não o atributo predito não deve saber o resultado do teste feito antes. O ideal é que o pro-fissional que verifica se os desfechos estão presentes ou ausentes não saiba a que grupo o paciente per-tence, como também que ignore qual a hipótese que está sendo testada. Ele deve ser apenas
treina-ααααα Intervalo de confiança 0,05 95% 0,01 99% βββββ Poder estatístico 10% 90% 20% 80%
do para identificar os eventos procurados e ser to-talmente aderente às definições. Casos de dúvidas deverão ser resolvidos por consenso de dois ou mais especialistas, que ignorem a que grupo estudado o paciente pertence.
É importante salientar que perda de seguimen-to de casos significa perda de qualidade de estudo.
Em geral, na literatura, não se admite perda maior do que 20% dos casos a serem seguidos. Nós entendemos que não se deve perder mais que a pro-porção dos eventos esperados em relação ao total de cada grupo, sendo sempre menor do que 20% do total dos casos estudados.
Análise estatística
A análise já deve ser definida a priori, afinal os dados serão obtidos para responder à pergunta e, portanto, o pesquisador deve estar preparado para saber o que fazer com eles. Deve-se consultar um estatístico antes de começar o estudo e enten-der como a análise será realizada, descrevendo, com nossas próprias palavras e submetendo o texto a ele até ter certeza de que ele entendeu o projeto. Defi-nir o alfa, o beta, o intervalo de confiança e o poder estatístico.
Como regra fundamental é necessário esco-lher a prioridade e qual a redução ou aumento de riscos que se quer ser capaz de detectar. Daí ser sempre necessário o cálculo do tamanho da amos-tra. Além disso, em pesquisa clínica deve-se dar ênfase às proporções de eventos em vez de dife-renças de médias. É muito mais relevante saber qual a proporção de pacientes diabéticos que tive-ram suas glicemias adequadamente controladas no grupo tratado em relação ao controle do que sa-ber se as médias das glicemias foram menores no grupo tratado do que no controle. É mais impor-tante saber se um determinado tratamento para o infarto do miocárdio aumentou a proporção de indivíduos que sobreviveram do que se a média da fração de ejeção é maior em um grupo do que no outro (desfecho intermediário). Portanto, é im-portante que todas as variáveis sejam definidas no protocolo do estudo e que a análise estatística se ajuste à pergunta, e que se levem em conta todos os casos estudados.
Um erro freqüente é subdividir os casos até se encontrar um subgrupo em que há uma de-terminada significância estatística. “Torturar” os dados até que eles “confessem” um resultado significante. Esse tipo de análise é tão correta quanto cortar um bolo que esteja enfeitado com
uma cereja, incluí-la em seu pedaço, e dizer esse é um bolo de cerejas.
O projeto é exeqüível?
Deve-se apresentar no protocolo argumen-tos de que o projeto tem boas probabilidades de ser conduzido e concluído com qualidade e tempo adequado. Se há apenas 100 casos por ano na insti-tuição e são necessários 400, é melhor desistir ou tentar um estudo colaborativo.
Problemas potencialmente esperados
Descrever como será mantida a qualidade do estudo, enquanto ele é conduzido. Como se evita-rão contaminações, como se evitará perda de segui-mento dos pacientes. E se a medicação acabar? E se houver greve? Como será verificada a aderência dos colaboradores e dos pacientes do protocolo? Como se manterá o entusiasmo?
Considerações éticas são fundamentais
Hoje, no país, qualquer pesquisa necessita passar pela Comissão Interna de Ética e Comisão de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saú-de. Mas nada é mais antiético do que submeter indefinidamente pacientes a tratamento quando não se sabe se fazem mais bem do que mal, ou submetê-los a riscos de pesquisas que serão inúteis porque as metodologias são deficientes e não têm qualidade a ponto de dar credibilidade aos resultados.
Recursos e custos estimados
Deve-se planejar e calcular quanto será ne-cessário para que o estudo seja conduzido adequa-damente. Quanto custarão os telefonemas, as car-tas, os medicamentos, transporte, exames subsidiá-rios, aparelhos, impressão dos protocolos, funcio-nários e o tempo de trabalho. Não se deve pedir recursos desnecessários: se o dinheiro é público ou privado, todos pagam a conta.
Conclusão e convicções
É recomendável fazer um resumo do projeto e incluir as convicções que o tornam relevante e viável. Demonstrar, principalmente, que o pesqui-sador está sinceramente confiante a ponto de se sacrificar por ele, em todas as suas etapas, princi-palmente na hora de publicá-lo.
Informações
Endereço para correspondência: Álvaro Nagib AtallahUniversidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina Disciplina de Medicina de Urgência
Rua Pedro de Toledo, 598 São Paulo/SP - CEP 04039-001 Tel./Fax: (11) 5575.2970 E-mail: atallahmbe@uol.com.br URL: www.centrocochranedobrasil.org
Incluir as referências
Para tal é essencial que sejam feitas revisões estruturadas, baseadas nas melhores evidências cien-tíficas existentes sobre o assunto, antes e depois de completar o estudo.
Considerações finais
Uma pesquisa clínica de boa qualidade é uma das maiores contribuições que um médico pode oferecer à humanidade. É demorada e requer am-plo planejamento, como o de um edifício, para que não desabe sobre sua cabeça e de outrem.
Requer entusiasmo e perseverança para que não se desista nunca e, para tal, é preciso estar “sincera-mente entusiasmado” com a pergunta. E é preciso muito apego ao método que será como o cimento de
um monumento à verdade, cuja solidez o fará durar através dos tempos, honrar aqueles que o fizeram e beneficiar de fato aos que dela se servirem.
Álvaro Nagib Atallah. Professor livre docente, chefe da Disciplina de Medicina de Urgência da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina, Diretor do Centro Cochrane do Brasil.