tite de lamare
© 2021 Tite de Lamare
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da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.
Coordenação Editorial Isadora Travassos Produção Editorial João Saboya Julia Neves Julia Roveri Rodrigo Fontoura Sofia Vaz Valeska Torres Foto de capa Maritza Caneca 2021
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Lamare, Tite de
O que não cabe na boca / Tite de Lamare. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7 Letras, 2021.
isbn 978-65-5905-010-9 1. Poesia brasileira. I. Título.
21-68601 cdd: 869.1
cdu: 82-1(81)
Sumário
i
a um palmo dessas ondas 15 o que uma cama de dossel pode fazer pelo cérebro 19 no néon azul da garrafa de água salutaris 24 foram aqueles sapos 27 no estranho familiar onde colocar o peixe 30 assim como as tulipas de gesso 34 a distância angular dos meteoros 37 o que não cabe na boca 43
cama de gato 45
um zumbido de mosca em torno do abajur 47 com a saliva na boca 51 campos sintéticos em disfunção 54 onde a razão se há coelhos no telhado 57 nem sempre as ostras no gelo 61 no vapor os grilos 63
três cartas 65
nas entrelinhas 71
ii
as mãos 77
glow in the dark 79
sob radiações cósmicas de fundo 81
na contramão 83
um peixe é um peixe já os quanta... 86
objet trouvé 88
depois do frio os brotos congelados 90 o botão do manto de ulisses 92
você onde? 94
não sabemos fazer chorar os cães 96 já sobre o abacateiro se faz um hiato 98 se comparar você com o soneto n. 18
de shakespeare sei que vai perder 100 na pista de gelo com hierofante 102 dez observações à margem de um texto 103
9
Algumas palavras
Valéria Campos
O que não cabe na boca?
e se este habitat fosse trocado por uma caverna paredes iluminadas por um lume
desenhos rupestres à procura de sinais luminosos nos reflexos nem paraíso nem inferno
só a dúvida
O gesto da impressão de mãos em negativo realizado nas paredes das cavernas na era paleolítica testemunha, segundo Marie-José Mondzain, uma operação complexa: o gesto que aproxima o corpo da superfície da pedra, o sopro que projeta o pigmento e demarca o contorno das mãos, e, por fim, o gesto de afastar as mãos da superfície. Intricada operação onde o que se dá a ver, o que se mostra é a laboração da imagem pela ausência.
No limiar entre presença e ausência, limiar do cognoscível, do indizível, o livro O que não cabe na boca, de Tite de Lamare, produz senso de urgência e, ao mesmo tempo, o seu antídoto. Poemas que resistem à sedução de sentidos, dos sentidos, e que perturbam a leitura ao trazer a experiência radical do real, a sua opacidade.
... enquanto a ponte balançar
não vai ser possível alcançar suas mãos
chegar a você seria como se a morte tivesse palavras que não tem.
dizer que eles chegam é pouco que transbordam nas fronteiras
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E nos gestos de aproximação e afastamento da matéria- corpo-poema, os atos de resistência às formas bem-acabadas e conhecíveis transbordam em enquadramentos impossíveis, em novas perspectivas.
já sobre o abacateiro se faz um hiato/pelo apalpar de suas folhas perenes
por suas nervuras bem marcadas imagino que o abacateiro saiba defender a integridade de
sua trama
acaricio assim a coroa de porcelana que se desprendeu da gengiva
o esmalte branco
& os guardo na trouxinha de kleenex amuletos
à medida que o toque se aprofunda na matéria me dou conta que não levo carne podre na mão
e sim uma fibra clara/ uma concha em miniatura que não é a concha cinza do corredor
ou de meu corpo agregado em curvatura sobre curvatura entre paredes
mas um dente solto perdido e volátil
Recusa de fechamento ou conclusão. Trabalho pulsante de escrita que se realiza na matéria informe, indefinida, em fluxo, vertigem, no surgir e desaparecer das imagens, do contorno do lustro ao osso, do que sobra, do que se desprende, no que se desfaz e refaz.
em cada parede onde alguém se encostou um rodapé de estórias escondidas
nascem ali palavras por onde chegar a um estado de calma extinção
E nos aproximamos de Prigent para dizer que não há poesia sem que algo passe, atravesse, lance a sua força desfiguradora, hesitante, infixado – o que não cabe na boca.
“... o pensamento não nasce na boca Nasce no coração do coração”
i
“ e o fim de todas as nossas explorações será chegar ao lugar de onde saímos
e conhecê-lo pela primeira vez.” t. s. eliot
15
a um palmo dessas ondas
“Então a um palmo dessas ondas, surge o país Que tantas vezes acreditamos Levar sobre os ombros: branco como um navio,
Brilhando contra o sol e contra os poetas.” herberto padilha
porque disseram — todos — é hora de voltar e quando você obedece desde cedo
fica esta segunda pele o enxerto que dá certo
porque todos disseram que os três coelhos ainda estavam no terraço
que tofu o gato
só aceitava as rações de pato com cranberry e de peixe com molho de laranja
que fred continua com medo dos outros cachorros na rua e se não fosse o crescer dos fios brancos na barba de joca tudo estaria como antes
assim as coisas não estavam como antes você me disse
porque as unhas do dedão do pé estavam mais encravadas que tinha medo de voltar à podóloga bipolar que da última vez ligou o secador de cabelo
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para mostrar a você a maneira como abafava as vozes das clientes da loja de sandálias
que tinha medo de ela ter um surto com o alicate na mão sobre os dedos de seus pés
assim
entregues a ela
que apesar disso as unhas se metiam na pele e sentia dor quando colocava o sapato
o fuso horário voltando ao lugar de origem não fosse o fundo musical da podóloga bipolar
tocando por quarenta minutos ininterruptos a ave maria de gounod
assim o pé entregue a ela e você que tropeça nas pedras onde soterrou orações
e que perdida não sabe como teriam sido as coisas antes do big bang
se fosse o nada a ausência de tudo até chegar à ausência do nada
frio na espinha eu também sinto
se havia matéria antes da matéria
o continuum de einstein sem zero à vista o silêncio sem a explosão inaugural a vida a ser cantada
a ferida da consciência imortal