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26ª Reunião Brasileira de Antropologia (26ª RBA) Porto Seguro 1 a 4 de junho de 2008

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26ª Reunião Brasileira de Antropologia (26ª RBA) Porto Seguro

1 a 4 de junho de 2008

Fórum de Pesquisa

FP 02 - O Islã na Contemporaneidade: perspectivas identitárias/alteridade, migratórias e percepções do sensível

Notas sobre uma história de adesão coletiva ao Islã na África do Oeste. Percursos de uma localidade Dogon - Songho1

Denise Dias Barros¬ Mustafa Abdalla¬¬

Resumo. O século XX marcou a história da comunidade de Songho localidade de cerca dois mil habitantes do Planalto Dogon, República do Mali. A passagem ao Islã em Songho, inicialmente gradual, teve um período de ruptura. Em meados da década de 30, as novas gerações iriam redefinir as bases das relações sociais e optar pelas vias do Islã, proibindo e perseguindo toda manifestação contrária. A passagem coletiva ao Islã parece evidenciar a escolha de uma população no bojo de relações de trocas sociais, culturais e econômicas. Extroversão que alimenta mudanças, negociações, conflitos e coexistências de práticas históricas diferentes. Nas últimas décadas o turismo e a migração sazonal para as cidades (sobretudo para a capital, Bamako), têm gerado novos processos e dinâmicas de mudanças aceleradas com implicações relevantes para a vida religiosa e a memória social.

Palavras Chave: Islã, África do oeste, Dogon

v Introdução

Durante séculos o Saara foi espaço de relações culturais e comerciais entre o mediterrâneo e o Nilo, entre o norte, o Sael e as regiões mais ao sul do continente africano. Acostumamos com o colonialismo a negar o circuito internacional que as populações saarianas e saelianas desenvolveram. Entretanto, a historiografia ensina eram intensas os intercâmbios entre Agadez (capital do atual Níger), Fezzan (atual Líbia) e Egito; entre os estados Houssa e Touat, Fezzan e Trípoli (Aboubacar, 2005, p.6). Cabe lembrar aqui que as fontes históricas mais importantes sobre a África do oeste são árabes, persas ou africanas, sendo, muitas vezes expressas em árabe uma vez que esta era a língua da administração, da diplomacia e da cultura.

1 Trabalho apresentado na 26ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil.

¬ Universidade de São Paulo – contato: ddbarros@ usp.br

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O texto que se segue corresponde a uma reflexão sobre a história e as dinâmicas de práticas sociais vinculadas ao Islã na aldeia de Songho, República do Mali. Trata-se de formulações iniciais que resultam de processo de pesquisa em curso com dados de campo coletados pelos autores. Situamos o contexto histórico para adentrar nos processos específicos da passagem coletiva ao Islã no século XX. Os ritos islâmicos ganharam espaço em inúmeros planos da vida coletiva e familiar e passaram a dar o ritmo da vida em Songho. Mas, se eles oferecem uma dimensão visível e audível das transformações, é possível observar também, formas de sobrevivências do imaginário e das práticas históricas ancestrais, assim como mediações e negociações entre tais diferentes práticas sociais.

Nas últimas décadas, somam-se ao Islã outros fatores de transformação - como a migração sazonal -, os quais têm criado descontinuidades na experiência familiar que vê seus membros migrarem, passando longos anos sem vida cotidiana compartilhada. Em Songho nos meses entre novembro e maio, a população fica drasticamente reduzida a velhos e crianças. Esse movimento de migração sazonal favorece o surgimento de mecanismos diferenciados e complexos, observa-se tanto o fortalecimento do Islã (pelo convívio na capital com a religiosidade da capital) quanto maior adesão a valores seculares igualmente presentes em Bamako.

v Notas sobre o Islã na região Dogon (África do Oeste)

Pelas caravanas árabes e berberes o Islã chegou à região vindo do Marrocos, do norte do continente africano e do Egito. O Islã praticado em grande parte por estrangeiros do Magrebe, por comerciantes e por alguns nobres e príncipes, convivia com as práticas históricas do império do Gana2, cuja capital – Koumbi Saleh – possuia doze mesquitas em um bairro mulçulmano. A partir do século XIV houve uma assimilação progressiva e o Sudão abrigou vários centros Islâmicos. As viagens e trocas eram importantes e múltiplas: sábios muçulmanos do Marrocos, Andaluzia e Egito foram convidados por diversos soberandos para veverem no Oeste da África e estudantes enviados para o Marrocos e o Egito (Aboubacar, 2005).

O apogeu do Islã na África do Oeste ocorreu entre 1250 e 1550 segundo Aboubacar (2005). Mansa (rei) Mousa e Mansa Souleymane do Império do Mali3, assim como Askia Mohamad e Askia Daoud (reis sonrai) contribuíram para a difusão do Islã. Entre 1324 e 1325

2 Primeiro grande império do Sudão Ocidental cuja base econômica foi o comércio do ouro, teria sido fundado entre os séculos II e VII, teve seu apogeu no século X. Sucumbe às forças Almorávidas em 1076, foi dominado pelos Sosso e pelo Mali a partir de 1240.

3 Fundado na região do Mande (com diversas organizações clânicas além de e confrarias e pequenos reinos) no século XIII após o Império do Gana, o Mali foi um dos mais vastos impérios africanos. Além da tradição oral, os relatos de viagem (rihlat) como de Abu‘Abdallah ibn Battuta, que viajou pelo Mali entre 1352 e 1353, são fontes importantes.

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o Mansa Kankou Moussa do Mali (reinado de 1312 a 1337) realizou renomada perigrinação à Meca. Esta iniciativa teve cosequências importantes para a história do oeste do continente africano tanto pela intesificação do comércio transaariano como pelo favorecimento cultural. Amante das letras e das artes, ele adquiriu livros e fez de cidades do Sudão espaços de ciência e de cultura além de centros islâmicos, caso de Tumbuctu, Gao, Djenné, Agadez, Katsina, Kano e Borno (Aboubacar, 2005, p.19). Mansa Moussa manteve com o Magrebe e com Egito releções diplomáticas e intensa correspondência.

A pelegrinação exerceu impacto na vida social e contribuiu para reforçar relações etre os países do Sudão e os árabes. Talvez a mais famosa foi a de Mansa Kankou Mousa (com grande número de acompanhantes). Ele passou por Oualata, Touat, Fez, Tlemce, Tunis e Cairo onde foi acolhido pelo Rei. Em seu retorno levaria de volta consigo diversos comerciantes egípcios e marroquinos e realizaria reformas importantes. Ele mandou construir mesquitas, criou um exército regular e dirigiu expedições contra os Mossi a título de Jihad.

No final do século XVI confrarias sufis como a Tidjaniyya e a Muridiyya assim como eruditos passaram a fazer pressão. No início do século XV, Maga Dialo fundou no Macina o chamado Império Peul do Macina que foi depois anexado ao Império Sonrai (1496). Os Fula4 parecem ter desempenhado um papel relevante na islamização de vastas regiões do atual Mali e a partir do século XVIII - conduzidos por chefes muçulmanos - fundaram os Estados teocráticos e seviciaram os agricultores autóctones animistas (Impérios de Fouta-Djalon e de Sokoto, Reinado do Macina). Por outro lado, promoveram perídos importantes de prosperidade. No Delta do rio Níger, a Dina (Estado teocrático Fula) criou estruturas e organizações a fim de favorecer a agricultura e criação de animais e a circulação de tanto de homens quanto de mercadorias.

Em 1818, o Marabu5 de origem Fula, Sekou Ahmadou Bari (1775 - 1844) fez de Hamdallaye (no Macina) a capital de seu reino, depois de vencer o Rei Bambara de Segou. Ele libertou os Fula da dominação bambara e, sobre princípios islâmicos fundou um Estado centralizado e belicoso nas imediações da área de ocupação dogon. A população da localidade de Songho – cujo processo de islamização apresentaremos detalhadamente - sofreria com suas incursões no planalto.

Em 1863, Hamdallaye foi destruída com a invasão dos Tuculor (Fula de Futa Toro). O forte ressentimento acumulado contra os Fula de Hamdallaye seria utilizado pelos Tuculor,

4 Os Fula dividiram-se ao longo dos séculos em dois sub-grupos: um sedentário, urbano, muçulmanos proselitistas e fundadores de sociedades de Estados hierarquizados; um outro grupo, formado por pastores nômades com uma organização social de tipo segmentar e embora convertidos ao Islã, mas praticantes de ritos ancestrais.

5 O termo Marabu ou Marabuto (do árabe marabût, asceta ou murabit, encarregado) designa um líder religioso e/ou pessoa que se consagra à prática e ensino do Islã na África do oeste e no Magrebe. Pode ser pessoa dotada de virtudes (baraka) particulares (benéficas ou maléficas).

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chefiados por Tidjani Tall, para conseguir uma aliança com os dogon do planalto e este é o caso da aliança com os habitantes de Songho. Os Tuculor instalaram-se em Bandiagara e a transformou em sua capital. De 1866 até a chegada dos franceses, em 1893, Tidjani Tall controlou todo o planalto.

O aumento do poder Fula inscreve-se num movimento de renovação do Islã durante os séculos XVII e XIX (Kane, 2000), envolvendo as sociedades Fula e Tuculor. Os conflitos foram intensos, assim como as combinações e soluções encontradas. Se de um lado a nova ordem se insurge contra as autoridades locais de maneira rigorosa (sobretudo, frente ao que chamavam de idolatria), procurando ganhar maior penetração e legitimidade ao direito canônico muçulmano (Sharia), na experiência da África do o Oeste o Islã desenvolveu formas de co-habitação e coexistência. Afirma Paulo Farias (2004) que no século 19, houve Jihad vitoriosa na Nigéria, no Mali e em outras regiões em que a argumentação em favor do Islã se fez apoiada em produção literária intensa. Sua disseminação ocorreu pela mediação da oralidade e, também, da escrita (panfletos e livros).

Data também deste período (entre 1820 e 1862), as primeiras conversões de dogon ao Islã conseqüência de um acordo que Sekou Ahmadou Bari estabeleceu com os dogon que habitavam próximos a Hamdallaye6, devido a seu interesse pelo trabalho dos ferreiros, alguns dos quais teriam se convertido ao Islã. O início da islamização da região do Pinhari (onde habitam os Kolun) data, portanto, de um século.

Apesar das ações militares, os dogon resistem à Jihad dos Fulas e depois dos Tuculor, e a difusão do Islã parece ter se restringido à zona oeste do planalto, região do Pinha (ou Pinhari). O Islã ganharia espaço pouco a pouco durante o século XX, constituindo, por sua vez, um dos fatores importantes de mudança da sociedade dogon atual.

Os desdobramentos ligados a um período de paz relativamente prolongado, com aumento das atividades comerciais, preocupação sistemática das áreas planas, abandono de lugares eminentemente defensivos, altos e sobre rochas, contribuem para que se estabeleça um período de mudanças sociais intensas. Além destes, concorrem para a difusão do Islã neste último século a migração temporária dos jovens para centros urbanos e a emigração para a planície. Com o fim da presença francesa, o Mali juntamente com Senegal, Guiné, Nigéria, e Níger formam um conjunto de Estados islâmicos. Atualmente, o Islã integra as estruturas de poder no Mali e é a religião das elites. A população dogon associa com frequência o Islã às atividades comerciais e, também, a uma idéia de civilização que se opõe ao mundo selvagem,

6 Gallais (1975) explica que teriam sido recebidos amigavelmente pelo fato de o pai de Sekou Ahmadou ter passado pelo lugar várias vezes e, também, para escapar do domínio Bambara.

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conceito incorporado (Csordas, 1990) a partir de valores que emergem nas relações de alteridade e da dinâmica de relações de poder marcadamente desiguais.

Acreditam diversos autores que consciência de unidade política dogon7 tenha se constituído entre os séculos XVI e XVIII, período em que seus habitantes sofreram com guerras e saques provocados pelos Estados centralizados que se sobrepunham naquele espaço (Huet, 1994; Gallais, Huysecon & Mayor, 1995).

O primeiro Estado que a população das montanhas enfrentou foi o dos Mossi, fundado em meados do século XV por cavaleiros conquistadores que usavam a razia como estratégia de combate, procurando obter animais e escravos os quais seriam usados na agricultura ou como auxiliares em suas infantarias. Na metade daquele século, os dogon sofreram também com a expansão do Império Sonrai, sobretudo nas campanhas de Sonni Ali entre 1467 e 1484, período provável da instalação Sonrai na região de Hombori (Gallais, Huysecon & Mayor, 1995:33).

Os séculos XVII e XVIII foram marcados pelas invasões marroquinas na região da Bacia do Níger, e em 1647 os Sonrai empreendem ação contra os Dogon. Ainda no século XVII, duas novas potências se fortalecem: os Bambara de Segu e os Tamacheque. Desta forma o planalto transforma-se em zona de pilhagem para os Bambara (até o início do século XIX), e ao norte, na região de Gourma (composto de sete maciços) são os Tamacheque que exercem pressão. A primeira migração de pastores fulas chegou à planície dogon (Gondo) no início do século XVII e foi ampliada em meados daquele século com os Dialoube. Novas migrações ocorrem no século XVIII, chegando à região de Gourma.

v História da passagem coletiva ao Islã. Singularidades da islamização de Songho Dere wo dere, Songo é o nome por meio do qual os habitantes fazem referência ao local onde seus ancestrais se instalaram após os ritos necessários de pacto com a terra. O povoado está imerso em meio a uma formação rochosa do planalto dogon, e entre enormes rochedos vemos surgir suas casas e celeiros perfeitamente mimetizados. Songho (ou Songo) situa-se a 5 km da estrada que liga Mopti a Bandiagara e a 15 km da capital administrativa da região.

Vivem em Songho linhagens dos clãs Yanoge, Karambe, Degoga, Guindo e Seiba. A terra encontra-se dividida a partir de um ponto que corta imaginariamente o povoado entre dois grupos que são os mestres da terra, os Yanoge ao sul e os Karambe ao norte. Certa supremacia parece ter sido exercida pelos Yanoge (cuja presença é exigida em toda reunião em Songho). A purificação da terra é feita por cada uma das famílias nas terras onde são considerados

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como os primeiros a chegar, ou seja, como yalu banga (lugar, proprietário) ou ainda yalu bélén (lugar, gente). Os Karambe são os mestres da água, ainda que os Yanoge, antes da aliança com os Karambe, conhecessem um curso d'água di-bóló.

A instalação atual de Songho é deste século, mas sua fundação havia sido feita no topo de uma montanha, que hoje está abandonada, onde o povoado era chamado de Songo-Kolo. Seus habitantes relatam diferentes versões da instalação do povoado, mas concordam que foi com base num pacto entre os Yanoge (e seus aliados Degoga e Seiba) e os Karambe (e seus aliados Guindo) que Songo-Kolo foi fundada.

Atualmente, uma combinação de diferentes formas de poder organiza a vida em Songho. Por um lado, existe uma estrutura baseada na gerontocracia, mas transformada pela presença do Islã e do fato administrativo ligado à colonização e posteriormente ao Estado. Por outro lado uma força importante emana dos grupos de idades, notadamente dos homens adultos (entre 40-55 anos). Uma ideologia coletivista domina as decisões maiores do lugar.

O poder vindo da aliança dos Karambe com os Tuculor e depois com os franceses, somado à islamização crescente faz diminuir a força e transformar o papel do hogon, alguns consideram que o último hogon Yanoge foi Goro. Ainda que os Karambe fossem guerreiros e possuíssem seus chefes (cada segmento com seu chefe, hogon), mas todos eles mantinham certa subordinação ao hogon Yanoge moticado por uma anterioridade histórica na chegada. Desde a chegada dos Tuculor à Bandiagara um poder político não sacralizado, amiru (do clã Karambe), foi se afirmando de forma que a figura do hogon (do clã Yanoge) foi perdendo seu papel religioso e político. Pouco resta de seu poder que se conferia anteriormente ao hogon. Atualmente, cabe a ele ou a seu delegado presidir as discussões relativas à terra, sendo igualmente presença obrigatória para iniciar todo tipo de reunião em Songho (o último hogon foi Kalilu Yanoge. Em 2008, para o mais velho Brahima Yanoge, não se usa mais a denomiação hogon). O amiru Karambe (ou seu representante) deve abrir a reunião e apresentar a questão a ser discutida, mas ele deve passar a palavra ao mais velho dos Yanoge e este abençoa os presentes e os trabalhos a serem feitos (o mesmo ocorre em todas as reuniões mesmo de jovens).

Um discurso de repartição de poder é reivindicado com frequência: aos Karambe e Yanoge, a terra; aos Guindo a faca da circuncisão e o controle da chuva, os Seiba eram considerados pessoas que trabalhavam muito a terra, receberam uma parte das terras dos Yanoge, mas era insuficiente, compraram uma parte e outras receberam em empréstimos dos Karambe. Este empréstimo deve ser renovado por ocasião da morte do mais velho da família. Atualmente, a supremacia dos Karambe é notória seja em número seja nos processos decisórios.

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A história recente de Songho foi marcada por uma transformação acelerada percorrida no século XX em seu processo de absorção de valores e práticas islâmicas. Até este período, encontrava-se no alto de uma montanha rochosa, lugar adequado à proteção contra os invasores que no século XIX, realizam freqüentes ataques.

Depois da aliança com os Tuculor e o fim dos saques fulas, os habitantes de Songho terminariam transferindo sua moradia para o pé da montanha onde estavam instalados. As transformações que ocorreram com a adesão ao Islã são profundas e marcam toda vida de Songho desde sua mudança para o pé da montanha.

A passagem ao Islã em Songho foi inicialmente lenta e gradual, sobretudo no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Entretanto, houve um momento de ruptura, de conflito e disputas declaradas que assumiu os contornos de conflito de geração. No início dos anos 1930, ocorreram ações contra os jovens de então consideraram ser sinais contrários à unicidade divina, fruto do atraso de práticas ancestrais hereges: a sociedade dos homens (awa), o culto aos ancestrais históricos, o culto ao binu8, o recolhimento das mulheres em um espaço coletivo e não restrito ao ambiente doméstico – a casa das mulheres, os ritos funerários, o culto aos ancestrais e os rituais de cura entre outros.

As novas gerações iriam definir novamente as bases das relações sociais e optar pelas vias do Islã, não apenas aderindo individualmente, mas proibindo e perseguindo toda manifestação contrária. Houve reforço da coesão entre as cinco unidades político-familiares (Karambe, Yanoge, Guindo, Seiba e Degoga) com supremacia Karambe. Uma série de rituais foi abolida e outros ritos foram introduzidos ou transformados.

Pudemos distinguir três momentos desse processo: um período de adesões isoladas, um período de conflito aberto e confronto declarado contra as práticas ancestrais que chegou a levar às armas com pais e filhos em lados oposto no início da década de 30 do século XX. A decisão de um grupo de jovens de recusarem a iniciação às máscaras criou uma oposição entre a tradição, representada pela sociedade iniciática dos homens (awa) e as idéias e a organização religiosa das novas gerações que passaram a combater abertamente as práticas ancestrais.

Um terceiro período foi caracterizado por negociações, dispersão dos jovens diretamente envolvidos no conflito. Nele desenvolve-se a instalação e a transformação do conjunto da vida ritual e, portanto da organização e das relações sociais em Songho.

Após os conflitos mais dramáticos da década de trinta, muitos e diferentes processos ocorreram até que a configuração atual fosse conseguida.

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Ainda habitando em Songho-Kolo (no alto da montanha), Kakiglimon Guindo teria sido, o primeiro a assumir sua adesão ao Islã, não exerceu, entretanto, grande influência sobre a população. Ele aprendera algumas suras no período que passou em Casablanca durante a primeira guerra mundial. Este primeiro momento da islamização de Songho está, também, vinculado às incursões dos Fula do Macina (período de El Hadj Oumar). Durante este período ocorreram numerosas incursões para recrutar pessoas na região em nome de Sekou Amadou para fazer escola corânica. Muitas delas seriam vendidas como escravos. Alguns foram vendidos na região de Burugu, Kounaré, Kon’na (são os atuais Karambé destas regiões, eles eram chamados Pudunlunge – dizem que vinham a cavalo e eram pegos: gunda: escravo gunda kalma – foi posto como escravo; pundulum punduluge eun songe - foram levados pelos Pulun; gundan kalma yiege – vieram como escravos).

Tornar-se-iam importantes as conversões de algumas pessoas como N’dógó Guindo, Anssamba-bain Karambe e Ali Amborko Karambe. N’dógó havia sido iniciado por Kakiglimon. Mais tarde substituiria o mestre. N’dógó foi, em Songho, o anfitrião de Sekou Saala cujos seguidores continuam a hospedar-se na casa dos descendentes de N’dógó (bairro de Ingéduló tóndó). Foram Imãs: Kakiglimon, N’dógó Ali Amborko Karambe, Bokary Kunja Karambe, Ali Oumar Karambe. Este dois últimos são descendentes de Ali Amborko.

Entretanto, foi Ali Amborko Karambe (dito Ali Buni, 1904-1975) o primeiro a receber o conhecimento do Alcorão. Ele era filho mais novo do então chefe Amborko Bain Karambe (primeiro chefe, amiru, escolhido pelos Tuculor e, depois, mantido pelos franceses). Ao nascer os adivinhos advertiram que o filho superaria o pai, afirmam nossos interlocutores. Ali era bonito e inteligente, seu pai teve medo de ser rapidamente superado pelo filho e entregou Ali Buni para um Marabu de Pinha onde viveu 15 anos. Ali retornaria a Songho com cerca de 30 anos. E é precisamente com a volta de Ali Amborko Karambe que se inicia a segunda fase de islamização de Songho, período marcado por ações e por adesões grupais. Depois de seu regresso a Songho, Ali Buni Amborko Karambe, teve muitos alunos que posteriormente completaram seus estudos com Sekou Saala (considerado o primeiro grande muçulmano dogon), originário de Banjugu (região Kolun).

Apoiado por seu grupo de idade, ele travou uma luta importante contra considerava ser "o atraso representado pela tradição, a oralidade, a sociedade de máscaras", afirma Laya Karambe. Eles reuniam os jovens para ensinar a religião. Allaye Karambé foi seu primeiro aluno conta Laya que seu pai foi o primeiro aluno de Ali Buni (um dos mais importantes colaboradores deste estudo). Segundo ele, Ali dizia que a tradição era coisa do passado e que a religião traria a paz e os levariam ao paraíso.

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Por volta de 1933 e 1935 a tensão intensificou-se e passou a ter também, os contornos de conflito entre gerações. Após a volta de Ali Buni Amborko, dois grupos de idade, um de iniciandos e outro de recém ingressados à sociedade dos homens, awa, confrontariam as gerações anteriores. Depois de voltarem de uma peregrinação de três meses de duração, esse grupo de jovens iniciou um trabalho intenso de convencimento. Havia naquele momento imensas dificuldades em Songho: desgaste de poder e revolta de parte a população contra o chefe Tingere Karambe (filho mais velho de Amborko Bain Karambe e irmão mais velho de Ali Buni) e enorme crise de água. A insatisfação com o poder e com os conhecimentos que não resolviam a crise abria caminhos para novas adesões. Três anos depois, os jovens (jovens dos grupos de idade de Amadou Seiba apoiados pelo grupo de Patton Karambe e de Amabagana Yanoge) promoveram a queima e destruição de lugares e objetos sagrados e de proteção familiares e pessoais. No ano seguinte, O grupo de Amadou Seiba e de Allaye Karambe, que vinha imediatamente após a classe de idade de Patton, liderou a destruição dos materiais e objetos sagrados e da casa das mulheres menstruadas (yo puna debu). Ou seja, um ataque frontal contra as práticas ancestrais da sociedade dogon. Um ano após, foi proibida a fabricação de cerveja (de milhete ou sorgo).

Outra ação do grupo muçulmano foi dirigida contra a sociedade das máscaras. Ali Assamba-bai pegou as máscaras, sem que os velhos soubessem, e as queimou, destruindo também seus objetos e materiais. A classe de idade de Patton9 (Ambagana Yanoge, Yaya Karambe e Nandigiun Guindo) foi a última fazer a iniciação na sociedade de máscaras (Nasugó tórige). Alguns deles ao aderirem ao movimento de transformação foram de grande importância, pois conheciam onde estavam os objetos sagrados. Diz-se que pegaram uma parte dos objetos para levar para mata e queimar, mas quando voltaram, os outros materiais teriam sido escondidos por Antimbe Sagula Karambe (e seus camaradas)10 que também era muito forte: toda a força da resistência estava com ele, afirma nosso informante. Ele teria guardado a parte mais importante em Songho mesmo, mas estes materiais seriam em parte destruídos depois pelo grupo de Amadou Seiba. Como dito anteriormente, naqueles anos o povoado atravessava uma forte crise de água. Ali seguindo orientação de N’d< g< , passou a enterrar as palavras sagradas do Alcorão (daua-min) no poço que secava, fazendo crer que poderiam rever o quadro. Isto teria auxiliado na adesão de alguns que confiaram no maior poder de equacionamento dos sofrimentos vividos pela religião muçulmana, afirma Laya Karambe. Novamente Antimbé Sagula Karambe, que havia sido chefe de máscaras e liderava a resistência, reage desenterrando tudo. Ali Buni e seu grupo procuraram, então, aproximar-se

9 Patton viveu aproximadamente entre 1907 e 1976 e chefiou Songho entre 1931 e 1975.

10 Na defesa da sociedade de máscaras estavam, também, Anl& b& Guindo, que era seu responsável (mul&n), e Dombo Guindo, o sibala, seu braço direito (aquele que aplicava suas deliberações).

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dele e o próprio Antimbé Sagula foi convertido. Desde então, ele “sentou-se ao pé do Imã” e solicitou que lhe ensinasse algumas suras.

Segundo Mamadou Seiba, quando os objetos que compunham o lugar que marcava o pacto de fundação de Songho, o dugu-pegu11, foi queimado “ele deu um grito e este grito instalou-se na montanha (chamada koge sugu pegó), por isto aquela montanha não é boa” (entrevista, 16/05/96). Mas, o altar mais poderoso que se encontrava na mata teve que ser destruído aos poucos, juntamente com o crescimento de novos convertidos que os tornaram cada vez mais fortes e influentes. Para isto, eles trouxeram Braima, um Marabu de renome originário Buy (Goundaka) que dedicou grandes esforços neste sentido, escrevia as palavras do Alcorão e despositava os pedaços de papel com a escritura sagrada nos diferentes pontos cardias e em diferentes pontos importantes de Songho, principalmente, próximo aos poços. Progressivamente foi sensibilizando mais e mais pessoas. Brahima propôs a construção de uma mesquita e afirmou que para garantir a ventura no povoado, deveriam oferecer a cada ano um cavalo a um estrangeiro ou a um Marabu que não fosse do local. O sacrifício do cavalo continua a ser feito anualmente.

Foi ainda o problema da água que em 1968 levou uma delegação de Songho procurar um vidente, Issa de Tumunkoro (perto de Sofara). O adivinho revelou que havia um lugar em Songho Kolo (local da instalação anterior) onde poderiam encontrar objetos valiosos; eles poderiam vendê-los para solucionar o problema, desde fosse de comum acordo. O Marabu Issa convocava os moradores de Songho à fé e insistia que deveriam ter paciência, pois como o grande Sekou Saala havia dito em seu tempo, eles ainda obteriam água de alguma maneira.

A previsão que os adivinhos dogon haviam feito no nascimento de Ali Buni, acabou se realizando, ninguém teve o mesmo poder dentro de Songho: “sempre a cavalo, Ali Buni era muito belo e rico” diz Mamadou Seiba. Diz-se que Ali nunca trabalhou, eram os jovens de seu grupo de idade que realizavam, até sua morte, todos os trabalhos para ele. Os jovens cultivavam seu campo, faziam plantação de algodão, enfim realizavam todo o trabalho para ele e sua família. Ele comprou animais e era considerado muito rico, chegou a possuir cerca de 200 vacas. Entretanto, depois dos eventos em Songho, ele acabou transferindo-se para Wau lugar em que criou seus filhos. Durante cerca de 10 anos, ele iria a Songho para fazer a oração de sexta-feira. Foi sucedido por Bokari Karambe.

Em 1960, o Mali declarou sua independência da França, permitindo maior mobilidade à população além de por fim aos trabalhos forçados. Mesmo que o problema de água só fosse

11 Diz Mamadou Seiba que as pessoas de vários povoados (Songho, Kori-Kori, Tile, Tugume, Sogolo, Golo,) vinham confiar-se a ele.

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relativamente equacionado décadas mais tarde12, a vida em Songho foi transformando-se também com a migração que se tornou prática obrigatória para todos os jovens. Estes ao voltarem, perceberam que o Islã facilitava a integração e aumentava as oportunidades de trabalho, havia igualmente compreendido a importância de expressar-se em bamanam e francês. Assim, desenvolveram novas regras para compatibilizar migrações e casamentos, adequando o dote e os serviços a serem prestados pelos meninos à família de sua futura esposa, adequando práticas sociais anteriores e Islã. Estes fatores entre inúmeras necessidades ligadas ao consumo de novas mercadorias e serviços foram remodelando as relações familiares e políticas.

Os jovens de então eram os homens que dirigiam (os mais velhos) os destinos da localidade. Trata-se do grupo de Allaye Karambe e Amadou Seiba. Quanto ao grupo de Patton que havia começado a iniciação à sociedade de máscaras, estavam quase todos mortos, exceto Ambagana Yanoge que, no entanto, faleceu em 1997.

Songho é atualmente considerada uma das localidades mais islamizadas do planalto dogon. Ao narrar sua história, percebe-se que houve um enorme esforço no sentido de recontar sua história e suas referências, de redefinir os elementos sociais, simbólicos e econômicos para garantir a coesão e o entendimento numa localidade com cerca de dois mil onde co-habitam cinco linhagens.

v Songho islâmico de nossos dias

Em Songho existem três mesquitas (saandi gundo), a primeira fica no bairro Ingléduló tóndó e foi construída entre 1945 e 1946, quarenta anos depois (1984/5), foi a vez da mesquita de tóndó Blanga, e, entre 1991 e 1992 construíram a mesquita do bairro dos Yanoge chamado Tangu tóndó.

A grande mesquita (saandi gundo bain) foi construída sobre o lugar onde estava a debu-bain (casa de fundação/do patriarca dos Karambe). Lá estavam guardados os objetos sagrados da linhagem. Estes objetos foram roubados e vendidos, houve muita discussão e os Karambe dividiram-se em dois segmentos de linhagem. Os ladrões foram denunciados e um deles ficou preso em nome de todos (hoje vive em Songho). Embora as autoridades coloniais tenham encontrado os objetos, estes não foram devolvidos aos proprietários. O lugar ficou vazio e abandonado e alguns começaram a guardar ali os animais do bairro, depois decidiram construir uma mesquita naquele lugar. Conta-se que os Guindo amaldiçoaram os ladrões e no mesmo ano um raio caiu, matando os animais do culpado.

12 Apenas em 1998 e 90, o problema da água começaria encontrar algum equilíbrio com a construção de dois poços artesianos pela Missão católica em 1989 e em 1990. Atualmente são 5 poços que fornecem água potável, mas não permite o cultivo de hortaliças como em localidades que conseguiram construir barragens.

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A pequena mesquita (tóndó bilanga saandi gundo) foi construída sobre um espaço que era um lugar público destinado aos jovens. E, finalmente a terceira mesquita foi erguida ao lado de uma árvore sob a qual havia dormindo Sekou Saala.

Existem quatro escolas corânicas (uma por bairro), com cerca de 20 crianças cada, a maioria meninos, que a freqüentam dos sete anos até a circuncisão. Depois disto a maior parte começa a migrar no período da seca para Bamako e distancia-se dos ensinamentos do Alcorão. Três dos sete Marabus (Modibo) peregrinam com as crianças pelo planalto e planície dogon durante a seca.

O ritmo cotidiano é marcado pelas cinco orações, um dos cinco pilares do Islã: no amanhecer (no fim da noite escura), ao meio dia, no meio da tarde, ao crepúsculo (após o pôr-do-sol) e à noite. As orações, recitadas em árabe, a língua da Revelação. Em Songho, é a oração do meio do dia a que maior empenho existe para ser realizada coletivamente. Assim, no início da tarde, às 13h:35min uma pessoa designada vai à casa do Imã e o acompanha à mesquita; às 13h:45min ele lê uma sura, volta-se para o leste (direção de Kaaba) e faz uma súplica, às 14h termina, e um grupo de seus talibes (alunos, representantes por bairro), acompanha de volta o Imã até sua casa. Lá eles fazem reuniões sobre todas as questões concernentes aos interesses da localidade.

Somam-se às atividades diárias aquelas que respeitam os meses do ano, o calendário anual de Songho tornou-se muito diverso daqueles das localidades vizinhas não islamizadas. Dos doze meses soli-lunares13 do ano islâmico (cada mês inicia numa lua nova), quatro são sagrados: Muharram, Rajab, Sha‘aban e Ramadan. As principais festas do calendário islâmico são: o Eid Al-Adha (também Eid el-Kebir, a grande festa, Tabaski na África do Oeste), celebrada a disposição do profeta Ibrahim (Abrãao) em sacrificar o seu filho Ismael. A celebração ocorre no encerramento da peregrinação (hajj) com orações (salat) e troca de presentes entre as comunidades islâmicas; e o Eid Al-Fitr - festa do fim do jejum ritual -, marca o final de Ramadã na qual uma série de prescrições deve ser rigorosamente seguida. É o mês do jejum e da purificação, nele o Alcorão foi anunciado, Allah iniciou seus ensinamentos orais a Mohamed. Os primeiros dez dias do Ramadã são associados à misericórdia; os segundos dez dias, ao perdão de Allah, e os últimos, à libertação do Inferno para os que crêem.

A purificação possui lugar central na construção da pessoa e o jejum é o princípio da purificação espiritual. Para a oração recomenda-se a limpeza e a pureza diante de Allah. Esta dimensão da purificação e da limpeza está presente nos ritos cotidianos e é a razão da

13 1o. Muharram, 2o. Safar, 3o. Rabi' al-awwal, 4o. Rabi' al-thani, 5o.Jumada al-awwal, 6o.Jumada al-thani, 7o. Rajab, 8o. Sha‘aban, 9o.Ramadan, 10o. Shawwal, 11o. Dhu al-Qi'dah e 12o. Dhu al-Hijjah.

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importância atribuída às abluções que precedem as preces diárias. Mas, os grandes momentos de purificação são o jejum e as prescrições do mês do Ramadã, mês da lua do Modibo (Marabu) e do jejum (saum no árabe; korka no Mali).

Quando o ano termina, fazem waia udile, para saber o que vai ser feito para que o ano próximo seja um bom ano, qual sura e os sacrifícios a serem realizados. No mês de maio, escolhem uma data para se reunir para organizar uma peregrinação à Macina-Orobubu. Recolhem as doações de Songho (10 sacos de milhete e 100 mil francos CFA) e antes da data de partida fazem reuniões em Bandiagara e levam as doações. Para Songho são destinados 20 lugares para a peregrinação a cada ano e alguns velhos organizam um carro para buscá-los em Songho, pagando para seu transporte pessoal. Um grupo parte de Bamako para encontra-se em Macina-Orobubu. De Songho, duas pessoas delegadas vão dois dias antes do grupo de Bandiagara, para advertir Sekou Boubakar (filho de Sekou Saala) sobre as necessidades específicas.

É possível que do ponto de vista coletivo, essas transformações tenham respondido a questões fundamentais de agregação e consolidação de redes sociais (alianças entre famílias e de linhagens) diante da relação com a pressão que se exerceu na região desde o século XX pelos Fula e pelos Tuculor; como reação ao colonialismo e posteriormente, influencia dos deslocamentos e pelo Estado do Mali.

v Processos rituais: sinais de mudança

Os rituais entendidos como espaço de manifestação de linguagens e relações, isto é, enquanto sistema de signos que articula matrizes de linguagem atualiza constantemente os sentidos sociais no interior dos desafios cruciais da cada momento particular da história. Compreender as mudanças da vida ritual em Songho é fundamental para compreender a construção e reformulação da memória social e, do mesmo modo, as dinâmicas de suas mudanças sociais e culturais. A transformação ritual significa a transformação da própria definição e elaboração de quem somos.

Dentre os sinais de ausência referidos com insistência pelos moradores de Songho, seja por um dogon de outra localidade estão a cerveja de milheto cuja fabricação e consumo permanece proibição maior, a ausência de objetos e lugares rituais comumente encontrado nos povoados dogon (pegu de fundação, de culto ao binu e ao lébé) que integravam as bases das práticas históricas até o evento da islamização. Assinalamos aqui que Songho era a sede do

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sétimo ano do Sigi14, cerimônia de renovação da sociedade dogon que ocorre a cada 60 anos. O último ciclo foi de 1967 a 1973. Em 1973, foi a primeira vez que a população de Songho negou-se a dar continuidade a este importante ritual de unicidade dogon. Neste período estavam em pleno poder os grupos de idade que realizaram a opção pelo Islã e o declarou a religião oficial a ser seguida por todos os moradores, sobretudo homens. No entanto, permanece e com grande força, os ritos ligados à circuncisão (anteriormente integrante da sociedade iniciática dos homens, awa).

Diversos são os sinais de mudança vinculados ao Islã. Na vida individual, desde o nascimento, passando pela educação, casamento e morte e na vida coletiva. Observa-se o ritmo cotidiano marcado pela salat, as cinco preces diárias, o calendário ritual que introduziu o mês do jejum e de ritos muçulmanos, a leis da Sharia e a presença do Imã como guia de comportamento a ser adotado em situações de dúvida.

Ressaltamos que a adesão de homens e mulheres ao Islã é desigual, a adesão das mulheres tem sido muito mais lenta e sinuosa. Contudo, as regras que gerem as relações (casamentos, batizados, morte) são comuns a todos. O Islã permanece uma exigência aos homens adultos, sobretudo quando seus grupos de idade iniciam uma participação política ativa – isto ocorre dificilmente antes dos trinta e cinco anos.

São as mulheres, aliás, as primeiras a sugerir que se busque um adivinho e um terapeuta tradicionistas dogon quando algum infortúnio perturba seus familiares. Elas integram o mundo islâmico de forma indireta e, também, por meio das atividades vinculadas ao ciclo de vida individual como batizados, socialização das meninas e meninos, excisão (justificada como prática islâmica), circuncisão e casamentos.

As práticas ancestrais continuam a fornecer sentido e manifestam-se de diferentes formas e em diversas oportunidades. Certos temores (encontro com seres não visíveis) ou doenças (vinculada a transgressões ou recusa de manutenção de práticas ancestrais) desencadeiam itinerários de busca de sentido e de cura que imbricam práticas culturais diferencias. Assim, adivinhos e a terapeutas são chaves importantes para a compreensão das lógicas complexas de tradução dos eventos graves de vida, sobretudo daqueles ligados aos infortúnios e às doenças. Diante de situações de fragilidades mais íntimas as pessoas e suas famílias têm buscado, muitas vezes, recursos nos conhecimentos ancestrais.

Os ritos terapêuticos tiveram transformações, mas muitos mantiveram aspectos significativos das práticas ancestrais. É, sobretudo, ao percorrer os itinerários individuais que emergem sinais de fragilização de relações e de rupturas simbólicas. Nos relatos de percursos

14 O sigi é composto por sete ciclos rituais organizados em homenagem ao primeiro ancestral que conheceu a morte, assumindo a forma de serpente. A cerimônia, que se repete a cada 60 anos, inicia-se em Yugó (falésia) e finalizava, no sétimo ano, em Songho.

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pessoais aparecem - entre as pessoas da segunda e da terceira geração após a adesão coletiva ao Islã - sentimentos de desproteção. Sentimentos que se traduzem, freqüentemente, em queixas diante da impossibilidade de obter uma fórmula de proteção ou um medicamento que só seria possível pó meio daqueles saberes renegados anteriormente. Há manifestação de insatisfação quando ocorrem situações de adoecimento em que o Islã (por meio dos Marabus) e mesmo a biomedicina não são percebidos como eficientes ou suficientes e/ou acessíveis. Exemplos vinculados ao sofrimento psíquico podem ser encontrados em Itinerários da Loucura em território Dogon (Barros, 2004).

Mais de 50 anos nos separam daqueles primeiros momentos deixando sinais de mudanças, de continuidades e de sobrevivência do antigo no interior do novo. Hoje, é possível para as novas gerações viver o Islã como “aquilo que encontramos”. O Islã já não constitui uma linguagem identificada com uma geração, é parte da herança social e cultural que receberam de pais e avós.

v Considerações finais

A passagem coletiva ao Islã parece ligada à escolha de sociedade ativamente aberta às trocas sociais e econômicas. Essa extroversão (Bayart, 200) foi impulsionada posteriormente pelo desenvolvimento do turismo e pelo grande crescimento da migração sazonal para as cidades, sobretudo, para a capital Bamako.

Além do calendário ritual religioso, os ritos de socialização ligados à formação da pessoa sofreram grandes mudanças: nascimento, batizado, casamento e, sobretudo, os ritos funerários. Nenhum processo de mudança se faz sem conflitos coletivos e de sofrimentos pessoais. Houve certa ortodoxia na implantação do Islã, acreditou-se que seria possível conquistar uma adesão tão plena ao novo ideário islâmico a ponto de produzir um esquecimento da cultura ancestral que havia, até então, sido recebido. As negociações dos conflitos ocorrem na dimensão política da organização social. Entretanto as angústias, medos e fragilidades mais íntimas das pessoas e suas famílias tiveram que ser equacionados, muitas vezes, no silêncio e nas margens de uma nova ordem de pensar e agir na qual a manifestação mesma de certos temores poderia ser interpretada como sinal negativo - sinal de sobrevivência daquilo que já deveria ter sido ultrapassado. Há dificuldades em transitar entre uma pluralidade de códigos e valores culturais que os cercam.

Os indivíduos necessitam de capacidade para se guiar em labirintos de valores e afetos às vezes paradoxais, sobretudo, em momentos de grande mudança social. Precisam compor linguagens complexas que transitam entre oralidade, visualidade e ritualidade. Estas constituem modalidades de transmissão de saber, de compreensão e de organização do mundo

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que modelam as interpretações sobre a experiência religiosa que, por sua vez, pode ser apreendida enquanto forma de linguagem por meio da qual as relações pessoais e inter-societais se tecem.

É possível que tenha ocorrido uma fragilização de mediações presentes na cosmologia (e na dialética identidade/alteridade), criando campos de bloqueio de linguagem, de expressão afetiva e ritual. Fragilização que parece ter sido compensada por uma forte estruturação coletiva baseada na unidade religiosa, pela noção de pertencimento e origem comuns, pela coesão advinda dos grupos de idade e pelo exercício de distribuição de poder permanentemente negociado entre as diferentes linhagens.

Até nossos dias Songho tem conseguido renovar a opção pelo Islã a cada geração, criando estratégias de passagens entre a história local e a regional; construindo formas de colocar-se e interagir com o mundo muçulmano por meio de constantes envios de jovens (homens) para escolas corânicas de prestígio na região. Há igualmente uma forte porosidade que permite acomodações singulares com as práticas ancestrais (adivinhação, práticas de cura) e com as mudanças de valores advindas tanto da migração sazonal como da crescente passagem de turistas. Há modelagens multiformes e cotidianas geradoras de espaços e capital simbólico de negociações, estes são diferenciam para os homens adultos, os jovens e as mulheres. Aqui interessamo-nos ressaltar a importância de abordagem fenomenológica das estratégias de coexistência entre práticas sociais diferenciadas e das mudanças internas de percepção e interpretação do mundo em situações como em Songho em que é mantido o elo com o território de produção de significação. Trata-se de um Islã enraizado e percebido como capaz de fornecer orientação diante de desafios contemporâneos em meio a relações sociais que exigem revisões e negociações permanentes.

Referências Bibliográficas

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Bouju, J. “Qu’est-ce que l’ethnie Dogon? ” Cahiers des sciences humaines, vol.31, n.2, p.221-241, 1995.

Bouju, J. La culture Dogon : de l’ethnologie coloniale à l’anthropologie réciproque

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Moraes Farias, P.F "Pilgrimages to 'Pagan' Mecca". In Karin Barber and P.F. de Moraes Farias (eds), Discourse and its disguises: the interpretation of african oral texts. Birmingham, Birmingham University, CWAS (African Studies Series 1), 1989, 152-170.

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Gallais. J.; Huysecom, J.;Mayor, A. “Archéologie, histoire et traditions orales: trois clés pour découvrir le passé dogon”. In: Erza, K. (Org.) Die kunst der Dogon. Zürich: Museum

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