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Palavras-chave: "Judaísmo"; "Além Celestial"; "Período Helenístico"; "Circularidade Cultural".

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“E SERÃO COMO AS ESTRELAS, POR TODA A ETERNIDADE” (DANIEL 12:3): O ALÉM CELESTIAL COMO DESTINO DOS MORTOS FIÉIS NO JUDAÍSMO

HELENÍSTICO

Alaína Garcia Margiotti (UEL)

Resumo: Desde o início da dominação helenística, uma perspectiva favorável ao pós-vida começou a emergir em textos judaicos, em contraste à antiga imagem do Sheol como túmulo comum a todos. Nestes escritos, os céus deixaram de ser a morada exclusiva de Deus, inacessível aos humanos, e passaram a se apresentar como uma promessa aos sábios e justos após sua morte. Esta ideia ganhou força após o levante dos Macabeus, quando a vida eterna se tornou a recompensa principalmente dos mártires que perderam suas vidas em defesa da fé. Mas a associação do paraíso com os céus e as estrelas não é algo característico apenas do judaísmo helenístico, estando presente também no âmbito não-judaico. Comum no zoroastrismo persa e na cultura grega que remonta às tradições órfico-pitagórica e platônica, bem como na imortalização dos heróis elevados à categoria de constelações, a relação dos mortos com o céu e/ou com as estrelas foi apropriada em textos judaicos, durante os governos selêucida e asmoneu. Sem a pretensão de buscar as origens desta associação, este artigo propõe uma análise de exemplos de textos judaicos que incorporaram o paraíso celestial em seus discursos, de modo a dimensionar a forma que o judaísmo ressignificou suas representações sobre o destino após a morte ao longo do período helenístico. Com o auxílio do conceito de circularidade cultural de Carlo Ginzburg, observaremos como o culto judaico, em processo de dominação pela cultura helenística, não desapareceu diante destas influências, mas se transformou e também as influenciou, em um processo de circularidade.

Palavras-chave: "Judaísmo"; "Além Celestial"; "Período Helenístico"; "Circularidade Cultural".

Introdução/justificativa

A anedota contada às crianças que quando um ente querido falece, se torna uma estrela, possui um largo alcance de longa duração histórica, que remonta à Antiguidade. Na realidade, se as fontes escritas já são um tanto quanto antigas, sua dimensão oral seria ainda mais difícil de se situar no tempo.

Todavia, buscar origens não é a nossa pretensão neste artigo. Em linhas gerais, nosso enfoque estaria em investigar fontes que testemunhem a crença da imortalidade astral no mundo antigo, mais especificamente no âmbito do judaísmo do período helenístico. Através da análise de alguns exemplos, pretendemos

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correlacionar fontes judaicas que representem a circularidade do imaginário estelar em relação à vida além túmulo em um mesmo contexto, a fim de dimensionar, de forma análoga, as influências mútuas que transitam entre os âmbitos judaico e não judaico.

Como destaca Soares (2006, p.31-2), a vida após a morte parece não ser uma preocupação dos israelitas do Judaísmo do Primeiro Templo (960-587 a.C.), ou até mesmo do contexto pós-exílico – pelo menos de acordo com os textos mais antigos da Bíblia Hebraica, que ou a desdenham, ou simplesmente não a mencionam. Práticas como a consulta aos mortos para adivinhações ou sacrifícios em sua honra são duramente repreendidas em textos como Levítico 19:31, Deuteronômio 18:11 e 26:14, e Salmo 106:28. De acordo com a autora, a crença na imortalidade, comum entre os vizinhos e dominadores politeístas, teria sido caracterizada como idolatria, sendo repelida por ser vista como uma ameaça estrangeira. Para os israelitas do período, aos mortos estaria reservado um destino comum e infalível: a sepultura, ou em hebraico, o Sheol.

O Sheol, localizado no subterrâneo da Terra, se apresenta como o destino irreversível de todos os mortos – e isso tanto em passagens mais antigas, como Jó 7:6-9 e 10:20-22, quanto em outras mais recentes, já do período helenístico, como Eclesiástico 14:17; 17:26-29 e Eclesiastes 3:19, 6:6; 7:16 e 9:2-5. Já os céus seriam a morada de Deus, inacessível aos humanos, que deveriam se contentar com uma boa vida na Terra Prometida, até envelhecerem, rodeados de abundância e de descendentes. Este cenário se verifica em 2Crônicas 6:21 e nos Salmos 11:4, 103:19 e, principalmente, no Salmo 115.

Segundo aquele padrão cosmológico apresentado pelo Salmo 115 e refletido ao longo da maior parte da Bíblia Hebraica, o lugar formal do ser humano é o reino do meio, ou seja, a terra. O esquema pensado para os mortos, segundo o qual eles não podem voltar à terra, pode ser aplicado em relação a mortais e o reino celeste. O céu é por excelência o espaço do divino e trata com o que é imortal, de modo que o fato de um mortal ter conseguido chegar ali seria tido não somente como extraordinário, mas como uma invasão do mundo divino (SOARES, 2006, p.96).

No entanto, uma visão diferente começa a aparecer, ainda timidamente, em alguns textos judaicos no período helenístico, que hoje são caracterizados como

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pseudepígrafos.1 Analisaremos dois fragmentos de texto encontrados na literatura enóquica,2 1Enoque e Similitudes. Porém, este interesse na vida além-túmulo se intensifica a partir do Levante dos Macabeus, que resultou em martírios que deixaram marcas na concepção judaica de vida após a morte. Os impactos deste episódio motivaram outros dois textos que também recorrem ao além estelar – Daniel e 4Macabeus.

Objetivos

Como já destacamos, esta pesquisa não busca pelas origens da associação entre os céus e o paraíso na cultura judaica, mas objetiva dimensionar a relação entre variados enunciados que coexistem num mesmo contexto, ou seja, quando a cultura judaica era dominada pela helenística.

Neste período, o conceito de imortalidade astral, comum entre os gentios, passou a circular entre os judeus. Em nossa interpretação, a incorporação desses conceitos evidencia não uma, mas diferentes respostas dadas à situação de dominação, quando os judeus, diante de tal exigência, passaram a negar ou passaram a se apropriar desses conceitos, transformando suas antigas estruturas de pensamento.

Nesta época, a crença na vida após a morte passou por intensas transformações, como podemos observar em alguns textos. Já a imortalidade astral se apresenta ressignificada em alguns deles, se constituindo em um conceito que circula entre a cultura dominante e a dominada. Este trânsito, portanto, não evidencia uma cópia ou deformação da cultura dominante pela dominada, mas, nas palavras de Carlo Ginzburg, trata-se de “[...] circularidade, influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica” (GINZBURG, 1987, p.20). Desse modo, aspectos

1 Segundo Nascimento (2018, p.632-33), tratam-se dos textos escritos entre 200 a.C. e 100 d.C., atribuídos a um personagem de prestígio da cultura judaica.

2 Como informa Collins (2010, p.75), o arrebatamento do patriarca Enoque por Deus, mencionado em Gênesis 4:17-18 e 5:18-24, fomentou uma extensa literatura de cunho apocalíptico produzida do século III a.C. até meados do século I d.C. Os livros, produzidos em diferentes locais e épocas, foram divididos pela academia em cinco composições: O Livro dos Vigilantes (1En 1-36), as Similitudes ou Livro das Parábolas (1En 37-71), o Livro Astronômico (1En 72-82), o Livro dos Sonhos (1En 83-90), a Epístola de Enoque (1En 91-108) e o Apocalipse das Semanas (1En 93,1-10; 91,11-17), que estaria dentro da epístola, como uma unidade distinta.

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da cultura judaica também teriam sido percebidos pelos não judeus, que conviviam com os primeiros na Palestina bem como nas comunidades da diáspora.

Ainda assim, os judeus, por se constituírem em uma comunidade étnica, não costumavam impor sua cultura aos não judeus, uma vez que, como salienta Dunn (2017, p.178), o judaísmo não tinha um propósito missionário, embora acolhesse prosélitos. No entanto, mesmo com seus aspectos identitários separatistas, os judeus precisavam se integrar ao helenismo, que se impunha por meio das lideranças elitizadas que governavam o império.

Porém, mesmo que a cultura judaica estivesse sob dominação helenística, não podemos homogeneizar os judeus de nossas fontes em um único “extrato social”. A população judaica se constituía em uma massa de populares, mas também era composta por lideranças sacerdotais letradas e, por vezes, pertencentes a uma elite. Ainda assim, olhamos para nosso objeto de estudo em termos de circularidade – entre uma cultura dominante, que impunha crenças e comportamentos que muitas vezes feriam, por assim dizer, o modo de vida judaico, que em meio a ameaças e punições, se encontrava em tensão constante com seus governantes políticos.

Resultados

O período helenístico – situado entre a morte de Alexandre, no final do terceiro século de nossa era, ao ano de 146 a.C., quando a península grega foi anexada por Roma –, se caracterizou pela difusão da cultura grega no vasto território conquistado pelo rei macedônico. Como destaca Eliade (2011, p.181), o território foi herdado por três dinastias que passaram a governar após sua morte: os Selêucidas dominaram a maior extensão, no continente asiático, enquanto os Ptolomeus se estabeleceram no Egito e os Antigônidas, na Macedônia.

Os chamados “reinos helenísticos” adotaram uma postura universalizante em prol de um ideal de unificação identitária em seus respectivos territórios. De acordo com Guarinello (2009, p.158), a cultura dos povos dominados não foi suprimida pelos dominadores, que segundo o autor, teriam promovido uma integração parcial das crenças locais com a cultura dominante, resultando em práticas como as associações das divindades locais ao panteão grego, a construção de templos e teatros e a utilização do grego comum (koinè) como língua oficial.

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No entanto, desde o início da dominação helenística, a fé judaica se deparou com problemas diante desta política universalizante. O helenismo impunha comportamentos que destoavam do modo de vida judaico, como, principalmente, a adoração aos seus deuses – o que para os judeus se tratava de idolatria. Com costumes específicos como a guarda do sábado, a não ingestão de carne de porco e a recusa em participar de banquetes e outras cerimônias em honra aos deuses, os judeus resistiam à tendência universalizante helenística, o que chegou ao limite no final do século II a.C, quando estourou, na Judeia dominada pelos Selêucidas, o Levante dos Macabeus.

Em 166 a.C., judeus da Judeia resistentes à helenização, liderados por Matatias, da família dos Asmoneus, pegaram em armas para lutar contra as ações do governante Antíoco IV Epifâneo, que após perder Alexandria dos Ptolomeus, intensificou sua influência nos santuários locais para fortalecer a helenização de seus súditos, a fim de garantir apoio e também suporte financeiro. O monarca então dedicou o templo de Jerusalém a Zeus Olímpio, relacionando-o ao deus fenício Baal, almejando identificá-lo também ao deus dos judeus. Além disso, ficaram proibidas as práticas distintivas dos judeus, como a observância do sábado e das festas, a circuncisão e a posse de livros judaicos (ELIADE, 2011, p.232). Porém, os revoltosos acabaram vencendo a guerra em 164 a.C., sob a liderança de Judas Macabeu, não apenas recuperando o Templo e restabelecendo os cultos tradicionais, mas também adquirindo independência política da já instável administração selêucida. De acordo com Koester (2005, p.217), o governo da família dos Asmoneus, inaugurado em 153 a.C., perduraria até a conquista romana, em 63 a.C.

Contudo, o governo Asmoneu, de acordo com Momigliano (1991, p.101), não se portava contrário à influência grega, o que ocasionou disputas internas entre aqueles que concordavam ou não com a helenização. Em relação às crenças na vida além-túmulo, esta dicotomia também pôde ser verificada. Como destaca o autor, em textos produzidos por judeus ligados à Jerusalém, marcados pelo levante, o “martírio era de fato o novo valor da época” (MOMIGLIANO, 1991, p.92), sendo a ressurreição corpórea uma recompensa aos corpos dos mártires torturados.

O conceito de ressurreição corpórea já era conhecido pelos persas, ex-dominadores e agora companheiros de dominação dos judeus, que também criam em recompensas e punições para os mortos e juízo final. Na crença zoroastriana, as

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almas que se dedicaram a uma vida de bons pensamentos, palavras e ações seriam elevadas ao paraíso associado aos astros, após seu julgamento individual, e teriam seus corpos ressuscitados corporalmente após o juízo final.

Como destaca Cohn (1996, p.290), estes conceitos persas foram bem aceitos para uma parcela dos judeus. Segundo o autor, a falta de objeções em textos judaicos ao domínio persa, em contraste aos babilônicos e ao helenismo, seria devido à postura não tão incisiva dos persas durante sua dominação, somada ao fato de que, em princípios da era helenística, ambos passariam a estar, igualmente, dominados. Nesta mesma vertente de pensamento, Segal (2004, p.394) complementa que a ressurreição dos corpos agradava sobretudo às massas, que viam no conceito uma subversão ao domínio simbólico que a crença na imortalidade exercia neste contexto.

Todavia, nem todos os judeus compactuavam com os revoltosos, como o caso os mesopotâmios, e nem todos também atribuiriam tanto valor aos corpos martirizados, o que deu origem a diferentes discursos que desmistificam a ideia de que o judaísmo produziu uma vertente única e universal a respeito do destino do morto. Por outro lado, os judeus não terem se levantado contra seus dominadores políticos até o século I de nossa era não significa que estes negaram suas crenças e adotaram os hábitos gentios, como o culto a outros deuses, ou os banhos públicos, por exemplo, ou abandonaram seus costumes tradicionais.

Ainda assim, ideias helenizadas de um além celestial adentraram em textos judaicos produzidos não somente após o fatídico levante, mas também em princípios da era helenística, quando observamos influências gregas em alguns escritos. Como destaca Segal (2004, p.204), os gregos dispunham de diferentes discursos sobre o pós-vida, variando das sombras sem vida do Hades homérico às expectativas de recompensas e punições de acordo com critérios pré-estabelecidos. Dentre estes, destacamos os preceitos do orfismo,3 do pitagorismo e do platonismo, que se destacaram no período helenístico quando o assunto é a crença no pós-vida.

Segundo Eliade (2011, p.178), o além estelar foi popularizado no mundo grego pelos adeptos do orfismo e, sobretudo, pelos discípulos de Pitágoras, que utilizando-se das recentes descobertas astronômicas de que a terra era redonda, transformaram

3 Trata-se do movimento iniciatório em torno do mito de Orfeu, que prometia aos seus membros superar o ciclo de reencarnações que as almas estariam fadadas a seguir, se livrando da prisão do corpo e se tornando, assim como os deuses, substância divina e incorpórea a habitar o paraíso celeste pela eternidade.

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a mitogeografia terrestre, que antes situava as “Ilhas dos Bem-Aventurados” nas extremidades do Ocidente, para os céus dos astros e estrelas.

Já o platonismo, que também se apropriou do orfismo, também almejava a escapar das reencarnações e das limitações da vida corpórea. No entanto, diferentemente destes, os platônicos ligavam essa superação a um ato mental, a anamnese (rememoração). Em poucas palavras, os adeptos do platonismo recorriam ao esforço filosófico para acessar a partícula divina que cada ser humano teria dentro de si, que o guiaria a uma vida ética, pautada pela razão. Na morte, o verdadeiro filósofo “se lembraria” do mundo ideal, seu lugar de origem, e escaparia do Lete, o rio do esquecimento, do qual as demais almas beberiam para então reencarnarem novamente. Mas, antes de reencarnarem, as almas seriam destinadas a passar um longo período em “[...] prisões subterrâneas, de onde expiam suas penas e outras que, elevadas pela justiça a algum lugar celestial, levam uma vida tão digna quanto a que viviam quando estavam em forma humana” (Fedro, 249a, tradução nossa).4

Em síntese, podemos ressaltar que as ideias de transmigração da alma, do corpo enquanto prisão e da diferenciação do destino das almas em um lugar de punições ou recompensas (sendo estas associadas a um paraíso celeste), foram espalhadas, no mundo helenístico, por meio de adeptos do zoroastrismo persa, do orfismo, do pitagorismo e do platonismo, e também por meio de muitas outras crenças, filosofias ou práticas que ora nos escapam.

No mais, além da expectativa celeste para a pessoa comum, Segal (2004, p.219) salienta a elevação dos personagens mais ilustres da cultura grega aos astros dos céus. Como destaca o autor, os gregos tinham seus heróis imortalizados nas constelações astrais, como Hércules, Órion, Perseu e muitos outros, de onde jamais seriam esquecidos pelos vivos.

Estas são apenas algumas referências do mundo não-judeu que contemplavam um discurso sobre o além celestial, que de acordo com algumas fontes, teriam influenciado no pensamento judaico. Uma delas é o livro de Daniel, que embora recorra ao vocabulário estelar, se utiliza também da ressurreição dos corpos. Produzido no contexto do Levante dos Macabeus, o livro defende que a morte dos mártires não teria sido em vão, ao prometer-lhes a ressurreição:

4 “[...] prisiones subterráneas, donde expían su pena y otras hay que, elevadas por la justicia a algún lugar celeste, llevan una vida tan digna como la que vivieron cuando tenían forma humana.”

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E muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão, com o resplendor do firmamento; e os que ensinam a muitos a justiça serão como as estrelas, por toda a eternidade. (Daniel 12:2-3).

De acordo com Collins (2010, p.171), o texto não parece inferir que a ressurreição seria apenas privilégio dos que perderam seus corpos no martírio, sendo também possível aos sábios e justos. Já para Cohn (1996, p.229), a utilização do “muitos”, ao invés de “todos”, indicaria a exclusividade da ressurreição para apenas alguns – de um lado, os mártires, que levantariam para receber suas recompensas e, do outro, os que ficaram ao lado de Antíoco, para uma ressurreição de punições.

Como destaca Collins (2010, p.160), além do paraíso estelar, Daniel dimensiona um universo de dois níveis: o que se passava na terra era um reflexo do que ocorria nos céus. A luta dos judeus contra o exército de Antíoco teria uma correspondência celeste, pois seres sobrenaturais também estariam em conflito. O livro prevê que, no fim, os judeus triunfariam, e então herdariam, junto aos seres sobrenaturais que lutaram ao seu lado, terra e céu. Entretanto, Daniel não parece prever um paraíso terreno após o juízo final, mas deposita suas esperanças em recompensas celestes – os ressuscitados (para a vida eterna) se assemelhariam aos anjos, brilhando para sempre como as estrelas do céu.

Outro texto ligado ao levante se trata de 4Macabeus. Composto em meados do primeiro século antes da nossa era, o texto não prevê a ressurreição aos corpos dos mártires, mas lhes garante recompensas celestes. Ao recontar a história da mãe que foi martirizada junto aos seus sete filhos por se recusarem a comer carne de porco, o autor do livro garante que a família já estaria junto a Deus, partilhando das alegrias da vida eterna: “A lua no céu e as estrelas não são tão incríveis quanto vós. Depois de iluminar o caminho da piedade para suas sete estrelas meninos, estais honrada diante de Deus, firmemente estabelecida no paraíso com eles.” (4Macabeus, 17:5, tradução nossa).5

Mas não foram apenas textos ligados ao levante que se preocuparam com a vida além-túmulo. Dois textos da literatura de enóquica chamam a atenção por prometerem um paraíso celestial. A Epístola de Enoque (1En 91-108) teria sido

5 “The moon in heaven with the stars is not so awesome as you. After lighting the path to piety for your seven starlike boys, you stand honored before God, firmly set in heaven with them.”

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produzida na Palestina, mas antes da revolta macabeia (COLLINS, 2010, p.105-106). O texto prevê um local de espera, onde as almas aguardariam, em castigos ou em beatitude, o dia do julgamento final, quando os justos eliminariam os malignos para sempre da terra, ressuscitando para um paraíso celeste – ao que tudo indica, apenas espiritualmente: “Esperança, pois no início vocês foram desgraçados no mal e na necessidade, mas agora vocês brilharão como as luminárias do céu, e serão vistos, e as portas do céu se abrirão para vocês” (1En 104:2, tradução nossa).6

Outro texto do legado de Enoque também enfatiza o além celestial, ao qual os justos seriam chamados a adentrar:

E novamente eu vi luzes e as estrelas do céu, e vi como ele as chamava por seus nomes, e elas o ouviam. E vi que foram pesados na balança da justiça, de acordo com sua luz, de acordo com a amplidão de seus lugares e o dia de sua aparição, e eles caminharam; um relâmpago produziu outro, e seu curso de acordo com o número de anjos, e sua fidelidade preservam entre si. (1En 43:1, tradução nossa).7

Este fragmento pertence às Similitudes de Enoque (1En 37-71), datado do século I a.C. Como resume Collins (2010, p.262-264), o texto promete aos justos, sejam eles judeus ou gentios – traço distintivo das Similitudes –, repouso celestial com os anjos (1En 41:2; 51:4), mas também concebe a transformação da terra (1En 45:5). Já os maus seriam destinados a castigos no Sheol (1En 63:10).

Considerações Finais

Como vimos, o além estelar se manifestou de diferentes formas em textos judaicos produzidos no período helenístico. Trata-se de um fenômeno plural presente em diferentes discursos que se cruzaram neste período de intenso trânsito cultural. Para pensarmos as influências mútuas desta crença em um mesmo contexto, falamos em circularidade, ou seja, não concebemos uma separação abrupta e total entre uma cultura e outra, mas “[...] um relacionamento circular, feito de influências recíprocas,

6 “Hope, for at first ye were disgraced in evil and need, but now ye will shine like the luminaries of heaven, and will be seen, and the portals of heaven will be opened to you.”

7 “And again I saw ligthtening, and the stars of heaven, and I saw how he called them all by their names, and they heard him. And I saw that they were weighed on the scales of justice, according to their light, according to the width of their places, and the day of their appearence, and they course; one flash of lightning produces another, and their course according to the number of angels, and their fidelity they preserves among themselves.”

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que se movia debaixo para cima bem como de cima para baixo” (GINZBURG, 1987, p.12). Neste sentido, muitos judeus parecem ter se apropriado de preceitos típicos do mundo gentio, como a imortalidade astral. Em diversos casos, a vida após a morte é associada à ressurreição dos corpos, aparentemente incomum entre os helênicos, mas que, mediante influências persas, passou a se consolidar em parte da cultura judaica ao longo do período helenístico, chegando com força na época romana.

Compreendemos, portanto, que a crença na imortalidade celestial é algo que circulou tanto na cultura erudita quanto na popular, entre cultura dominante e dominada. Como resistência, os judeus não adotaram completamente as influências recebidas, mas se apropriaram delas, transformando-as, introduzindo noções de ressurreição e juízo final, por exemplo.

Em meio às resistências e adaptações, o judaísmo, termo cunhado, como destaca Silva (2011, p.270), em 2Macabeus 2:21 em oposição ao helenismo, evidencia a existência de duas realidades etnopolíticas distintas, ao demarcar uma identidade avessa ao estrangeiro, visto como ameaça a todo um modo de vida específico que era o “ser judeu”.

Referências

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Referências

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