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Análise do julgamento da ADPF 54 pelo Supremo Tribunal Federal: principais argumentos e a questão da adequação social

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Análise do julgamento da ADPF 54 pelo Supremo Tribunal Federal:

principais argumentos e a questão da adequação social

Por Caroline de Lima Rodrigues e Priscilla Tardelli Tollini

Resumo: O artigo analisa a questão gerada em torno da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, julgada em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal, apresentando e discutindo os diversos pontos de vista – jurídico, científico e religioso – sobre a antecipação terapêutica do parto em caso de gestações de fetos anencefálicos. O artigo foca na necessidade da constante transformação jurídica para possibilitar maior adequação social do Direito. Além disso, examina os votos dos juízes e as suas argumentações, de forma a esclarecer o porquê de votarem contra ou a favor da descriminalização da antecipação terapêutica do parto. O presente artigo também possui um enfoque mais concreto que apresenta documentários que relatam histórias verídicas de gestantes que tiveram uma gravidez traumática de feto anencefálico, seguida de danos psicológicos e emocionais pós-parto. Averigua-se se o direito deveria ser algo estático ou dinâmico. Verifica-se também as diversas convergências valorativas que a sociedade possui e até que ponto esses fatores podem ser obstáculos à evolução e ao dinamismo do direito.

1. Introdução

De 2004 a 2012, o Supremo Tribunal Federal analisou a questão da legalidade da antecipação terapêutica do parto em caso de fetos anencefálicos. Devido às divergências em relação à interpretação da Constituição, o referente assunto tornou-se demasiadamente polêmico, suscitando debates ideológicos entre as diferentes visões acerca do tema. Diversas opiniões foram apresentadas ao longo do processo, dentre elas a questão do anacronismo da Constituição, a discordância com o Código Penal, a visão religiosa e a visão científica.

Em 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), representada pelo advogado Luís Roberto Barroso, apresentou ao STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que defendia que a interrupção da gravidez em casos de fetos com anencefalia não poderia ser considerada aborto, visto que não há possibilidade de vida extra-uterina. No mesmo ano, o Ministro Marco Aurélio de Mello, relator do caso, assinou uma liminar que permitia a antecipação terapêutica do parto em caso de gestação de feto anencefálico. No entanto, após quatro meses a liminar foi derrubada e as gestantes que quisessem realizar o procedimento teriam que entrar com pedido na justiça. Porém, devido ao demorado processo burocrático judicial, muitos desses

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pedidos não recebiam uma resposta a tempo, fazendo com que a gestante tivesse que arcar com o sofrimento de uma gestação conturbada.

Esses casos de sofrimento levantam um questionamento acerca da adequação social do Direito, visto que um dos maiores motivos para a antecipação terapêutica do parto ter sido considerada aborto foi o fato de não existir tecnologia suficiente para diagnosticar a anencefalia quando o legislador formulou o Código Penal. Contudo, com o desenvolvimento da ciência e os avanços tecnológicos, surgem novas problemáticas e situações não previstas anteriormente, mas que exigem regulamentação adequada e constante transformação do direito para que este corresponda à realidade social.

O Direito já foi entendido como algo estático e imutável, completo e suficiente em si mesmo. Entretanto, hoje compreende-se que esta é uma visão obsoleta e ultrapassada. O direito regula a sociedade e, portanto, deve estar de acordo com a vida social, interrelacionando-se com outros campos do conhecimento a fim de tornar-se completo. Para isso, é necessário que o direito esteja em constante construção, incorporando novos fatos e problemáticas a fim de enriquecer o processo jurídico e possibilitar maior adequação social.

2. Os Argumentos

“A anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico. Conhecida vulgarmente como “ausência de cérebro”, a anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central – responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, efetividade e emotividade.” (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA SAÚDE, ADPF nº54, 2004.)

A patologia é fatal em 100% dos casos, não havendo a possibilidade de vida extra-uterina, nem intervenção cirúrgica capaz de reverter o situação. Além disso, em 65% das ocorrências de anencefalia, há a morte intra-uterina do feto, representando diversas complicações para a saúde da gestante. A probabilidade de um falso diagnóstico por meio da ecografia é praticamente nula, conferindo ao médico segurança para efetuar o procedimento. (CNTS, 2004. p.4 e 5). É importante ressaltar que na época em que a Constituição foi elaborada não existia tecnologia suficiente para diagnosticar com tamanha eficiência a anencefalia fetal ainda no período gestacional. No entanto, com os avanços na área médica e a possibilidade de diagnóstico seguro de anencefalia, o Direito deve se

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transformar a fim de se adequar à nova realidade, regulamentando o caso da forma mais adequada possível e respondendo às demandas sociais de modo eficaz.

A proibição da antecipação terapêutica do parto feria princípios previstos na Constituição, como, por exemplo, o princípio da dignidade humana, o direito à saúde das gestantes, a autonomia de vontade e liberdade. Sendo assim, além da possibilidade de trazer danos psicológicos e físicos à gestante, a proibição terapêutica traía os direitos da mãe. Vale ressaltar que a Constituição já legalizava o aborto em caso de estupro, levando em conta a autonomia da gestante e os aspectos emocionais que envolvem a situação, mas no caso da anencefalia o que mais se discute é o direito do feto à vida. Isso seria uma hipocrisia, visto que o feto que nasceria de uma gestação em caso de estupro poderia ser perfeitamente saudável, enquanto o feto anencefálico não tem possibilidade de vida extra-uterina.

Muitos grupos consideram o aborto de fetos anencefálicos um procedimento nocivo, principalmente ao feto, que não tem como se defender ou advogar a favor de sua vida. Esse é um dos principais argumentos de alguns religiosos, representados pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que, atidos a valores tradicionais e conservadores, consideram a antecipação terapêutica do parto uma violação ao direito de cada um ao bem maior, a vida. A CNBB também afirmou que, apesar de o Estado ser laico, a maioria da sociedade não é, e que a vontade dessa parcela da sociedade deve ser levada em consideração. (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, ADPF nº54, 2004, item 5.)

No entanto, o feto não tem como se defender da morte, não por ela ser causada pela antecipação do parto, mas por ela ser causada por uma patologia, a anencefalia. Esse é inclusive o motivo pelo qual a antecipação terapêutica do parto não pode ser considerada aborto, pois a interrupção da vida não se dá por causa do procedimento médico e sim pela doença do feto.

Se é possível diagnosticar a inviabilidade da vida extra-uterina, não se pode falar em aborto, já que a medida não tem por objetivo suprimir a vida do nascituro, mas o de antecipar os efeitos da gestação, sabidamente infrutífera, e de preservar a integridade física (posto que a gestação de anencefálicos representa risco de vida) e psíquica (evitando-se o desgaste emocional de se levar adiante a gestação) da mãe. (GODINHO, Adriano. Aborto, antecipação terapêutica do parto e o Judiciário: entre a proteção da integridade psicofísica da gestante e os direitos do nascituro. 2011)

Outro ponto importante, bem abordado por Naise Costalonga Neves, em seu artigo

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pecado, e que seu agente esteja sujeito à punição espiritual, o Estado, por ser laico, não pode utilizar princípios religiosos para prescrever leis. O direito se aplica a todos enquanto a religião é restrita a um grupo de simpatizantes. (NEVES, 2010)

Em 2005, foi filmado o documentário “Uma História Severina”, que retrata a sofrida gestação de uma pobre agricultora pernambucana, Severina Ferreira. No dia em que iria realizar a sua antecipação terapêutica do parto, os ministros do STF derrubaram a liminar que permitia o aborto nesses casos. Com isso, Severina teve que esperar a gestação completar para poder executar o parto. A angústia que acompanhou a gestante durante todos os meses tornou-se ainda mais grave na hora do parto, em que descobriu-se que o filho já estava morto. A história de Severina, dentre várias outras, mostra os danos psicológicos e os traumas gerados por uma gravidez sofrida e angustiante.

Em 2006, foi filmado outro documentário, “Quem são elas?”, que mostra a história de quatro mulheres que também tiveram gestações de fetos anencefálicos e conseguiram realizar a antecipação terapêutica do parto no período em que a liminar ainda não tinha sido cassada. O documentário, de Débora Diniz, narra brevemente a vida de cada uma durante dois anos, mostrando como que a gestação interrompida afetou as suas vidas, além das consequências emocionais.

Em consonância com os dados apresentados acima, pode-se entender que há a necessidade de avaliar os aspectos emocionais que envolvem tais situações. Tal pesquisa, feita a fim de analisar o estado psicológico das gestantes de fetos com malformação fetal letal, foi abordada por médicas e psicólogas da USP no artigo Interrupção da gestação

após o diagnóstico de malformação fetal letal: aspectos emocionais.

A interpretação das respostas relacionadas aos sentimentos vivenciados durante a decisão da interrupção foi categorizada em: aspectos negativos, segurança e desorientação. A categoria de sentimentos negativos relacionou-se às respostas que indicavam choque, angústia, tristeza, resignação, destruição de planos, revolta, medo, vergonha, inutilidade, choro, incapacidade de ser mãe, indignação e insegurança como mulher. Nos casos categorizados como sentimentos de segurança as respostas apresentavam conteúdo indicando racionalidade da pessoa, imediatismo, conformação com a letalidade da anomalia fetal, inevitabilidade da letalidade, certeza na tomada de decisão pela interrupção, alívio com a opção, possibilidade de encurtar o tempo de sofrimento com a interrupção e decisão consciente. As respostas que foram categorizadas como sentimentos de desorientação envolviam relatos de não-aceitação do diagnóstico, de descrença, vontade de se enganar, dúvidas na tomada de decisões, dúvidas sobre os sentimentos do feto, dificuldade em permanecer com a gravidez e sinais de incerteza. (BENUTE et al., 2006)

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O início do voto do Ministro Luiz Fux também retrata muito bem o que devem sentir algumas dessas mulheres.

Primavera de 1980. Jovens casais aguardam na fila do Hospital São José, Rio de Janeiro, o momento sublime do parto. Ali, sonhos se multiplicam na imaginação das mulheres que estão prestes a dar à luz. A figura do filho amado crescendo, se desenvolvendo e preenchendo a vida daqueles que o esperam é o que certamente ocorre àquelas gestantes. Em contraste, chamava a atenção de todos uma jovem moça, que também aguardava na mesma fila, em copioso pranto, juntamente com o seu marido. A comoção se justificava: no lugar de sonhos cultivados, esta gestante assistiu durante nove meses ao funeral de seu filho. O pequeno caixão branco por ela encomendado era o símbolo de um ritual tão triste quanto severo com uma mulher que, em verdade, jamais conseguirá ser mãe do filho que gestava. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº54. Fux, 2012. p.1).

3. O Julgamento

A votação da ADPF 54 ocorreu apenas em 2012 e somente dez Ministros proferiram seus votos, visto que Dias Toffoli se absteve da votação, por se considerar impedido, devido ao fato de que já tinha participado do processo como Advogado da União e tinha sido favorável à antecipação terapêutica do parto em caso de feto anencefálico.

O Ministro Gilmar Mendes julgou a ADPF 54 procedente, e, embora, tenha enquadrado a antecipação terapêutica do parto como aborto, o Ministro considerou que o caso corresponde a uma excludente de ilicitude do Código Penal, já que a gestação de feto anencefálico comprovadamente coloca em risco a vida da gestante. Essa excludente não consta no Código Penal porque, em 1940, quando a matéria foi regulamentada, não existia tecnologia suficiente para diagnosticar com tanta precisão a anencefalia. No entanto, com o desenvolvimento da tecnologia e os avanços da ciência, esse diagnóstico é possível e, portanto, não incluir o aborto de fetos anencefálicos como excludente de ilicitude constituiria omissão legislativa.

A questão da omissão legislativa é muito importante, visto que pode impedir o direito de acompanhar as mudanças da sociedade. E de que vale um direito que não corresponde às demandas sociais? O direito deve dialogar com os outros segmentos do conhecimento para possibilitar a heterointegracão jurídica. No caso da anencefalia, o direito devia se adequar à nova realidade da medicina, uma realidade amparada por técnicas e aparelhos modernos que possibilitam diagnósticos e procedimentos, antes impensáveis. Apenas um direito aberto cognitivamente pode ser considerado justo.

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A vedação do aborto nesses casos fere o direito à saúde da gestante, já que a gestação representa riscos tanto físicos quanto psíquicos para a mulher. Além disso, opõe-se aos princípios de dignidade da pessoa humana, liberdade e autonomia da vontade da gestante ao impedir que seja dela a escolha de dar continuidade à gestação ou não, como ocorre no caso de estupro, segundo Gilmar. O Ministro, contudo, faz uma ressalva à legalização da antecipação terapêutica em caso de feto anencefálico. Ele acredita ser necessária a criação de normas de procedimento para garantir segurança e confiabilidade no diagnóstico da anencefalia. Gilmar Mendes também enfatizou a necessidade e a importância de mediadas preventivas à anencefalia. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº54. Mendes, 2012)

O voto do Ministro Ayres Britto também foi a favor da legalização da antecipação terapêutica do parto. Para o Ministro, a proibição da antecipação do parto de feto anencefálico chega a ser ilógica, pois é incoerente com a própria “locução ‘dar à luz’. Dar à luz é dar à vida e não dar à morte”. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº54. Britto, 2012). O Ministro afirma também que obrigar uma mulher a dar continuidade à gestação de um feto que ela sabe que não vai poder carregar nos braços, corresponde à tortura. Segundo ele “ninguém pode impor a outrem que se assuma enquanto mártir. O martírio é voluntário”. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº54. Britto, 2012). Tal posição vai diretamente contra uma parte do voto do Ministro Cezar Peluso, na qual ele afirma que “o sofrimento em si não é alguma coisa que degrade a dignidade humana” (PELUSO, 2004, p.12 apud DINIZ, Débora; VÉLEZ, Ana Cristina Gonzalez. Aborto na Suprema Corte: o caso da anencefalia no Brasil, 2008). Britto enfatizou que a legalização do procedimento constitui-se numa alternativa para gestante, e não numa obrigação.

Segundo o relator do caso, Ministro Marco Aurélio de Mello, há distinção entre aborto e antecipação terapêutica do parto. Além disso, ele afirma que o conflito apresenta-se entre o direito à autonomia da mulher e a vontade de parte da sociedade. O Ministro conclui que a tipificação da antecipação terapêutica como crime é inconstitucional e não segue preceitos da Constituição como “o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde”. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº54. Mello, 2012)

Rosa Weber também julgou a ADPF procedente, pois, assim como o relator, o Ministro Marco Aurélio, não considerou a antecipação terapêutica do parto um crime contra a vida. A Ministra considerou em seu voto que a discussão se dava em relação aos direitos da mãe e não em relação ao direito à vida do feto. Diante da falta de atividade

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cerebral, embora pudesse não nascer morto, nunca desenvolveria atividades físicas, psíquicas ou afetivas inerentes ao ser humano. Para sustentar seu voto, a Ministra se baseou na Resolução nº 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, que determina como parâmetro para diagnosticar a morte de um indivíduo a ausência de atividade cerebral. Apesar disso, a Ministra salientou ter utilizado critérios jurídicos, e não científicos.

Rosa Weber também levou em consideração em seu voto o direito à autonomia de vontade da mulher e o princípio da dignidade humana para sustentar que deve ser da gestante o direito de decidir pela antecipação do parto ou pela continuidade da gestação. Diante do que foi apresentado, a Ministra votou pela exclusão da antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico como crime de aborto, ou seja, não propriamente pela descriminalização da antecipação do parto, a qual, por ser um caso atípico, não constituiria aborto. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº54. Weber, 2012)

A Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha também foi favorável à descriminalização do aborto em casos de gestações com fetos anencéfalos. No entanto, a Ministra fez questão de ressaltar em seu voto que o STF não está legitimando a prática do aborto em geral, muito menos o aborto nos casos em que o feto tem alguma deformação. Cármen Lúcia considera que essa questão seja de interpretação do Código Penal para avaliar se a antecipação terapêutica do parto, em casos de fetos com anencefalia, é crime ou não. Com isso, a Ministra analisou diversos aspectos relevantes ao caso, como o direito à saúde, o direito à vida, e toda a questão emocional e psicológica por qual a gestante é obrigada a passar. “Todas as opções, mesmo essa interrupção, são de dor. A escolha é qual a menor dor, não é de não doer porque a dor do viver já aconteceu, a dor do morrer também.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº54. Rocha, 2012).

O Ministro Celso de Mello julgou procedente a ADPF 54, garantindo o direito da gestante de interromper a gravidez sem necessidade de autorização judicial. Entretanto, o Ministro afirmou a necessidade de ter um diagnóstico preciso, feito por profissional médico legalmente habilitado. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº54. Mello, 2012. Relembrou, ainda, que, caso o STF decidisse pela descriminalização do aborto em casos de anencefalia, nada seria imposto às gestantes, visto que a Corte estava apenas reconhecendo o direito da mulher de decidir por encerrar ou conduzir a gravidez até o fim. Dentre os Ministros, Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski foram os únicos que julgaram a ação improcedente, posicionando-se contra a legalização do aborto em fetos anencefálicos. Peluso afirmou que o feto anencefálico estava sendo reduzido à condição de lixo e de coisa imprestável e alegou que seus direitos e sua dignidade não estavam sendo

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levados em conta. O Ministro afirmou que o caso é claramente uma discriminação, no qual os direitos da mãe são considerados superiores aos do feto e que ainda este é condenado à pena de morte sem ter ao menos a mínima chance de se defender. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº54. Peluso, 2012).

O voto de Peluso parece, contudo, equivocado e demasiadamente passional. Conforme apresentado pelo Ministro Celso de Mello, a morte do feto anencefálico não é decorrente da antecipação terapêutica do parto e sim da patologia, sendo assim o procedimento não poderia ser tipificado como aborto. E, ainda que fosse considerado aborto, corresponderia às exceções do Código Penal, principalmente por analogia ao aborto sentimental no caso de estupro.

O outro Ministro a se posicionar contra a antecipação terapêutica do parto foi Ricardo Lewandowski, que afirmou em seu voto que

não é lícito ao mais alto órgão judicante do País, a pretexto de empreender interpretação conforme a Constituição, envergar as vestes de legislador positivo, criando normas legais, ex novo, mediante decisão pretoriana. Em outros termos, não é dado aos integrantes do Poder Judiciário, que carecem da unção legitimadora do voto popular, promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos fossem. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº54. Lewandowski, 2012).

O voto de Lewandowski mostra a grande burocracia que envolve essa decisão. A inflexível divisão dos três poderes - Legislativo, Executivo e Judiciário - muitas vezes prejudica a adequação das normas à realidade social, como nesse caso em que o Judiciário cumpriu a função do Legislativo. Não raramente o Legislativo é omisso à sua tarefa, limitando a autonomia da sociedade e do próprio Direito.

O voto do Ministro Lewandowski permite uma reflexão importante: a adesão demasiadamente rígida à regra escrita impede interpretações flexíveis e soluções mais adequadas ao caso. Essa rigidez das organizações burocráticas impede o dinamismo do direito, como no caso da anencefalia, em que a ADPF 54 demorou cerca de oito anos para ser julgada.

Luiz Fux, outro Ministro do STF que participou do julgamento, abordou a parte física do feto, que não teria consciência nem sentidos, e também o lado emocional da mãe que, caso fosse impedida de realizar a antecipação terapêutica do parto, levaria consigo um sofrimento duradouro que equivaleria à tortura. Fux apresentou dados de pesquisas concretas realizadas por médicos envolvidos nessa área e narrou casos verídicos.

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Lastimavelmente, são poucos os casos em que o infante anencefálico sobrevive por um considerável período fora do útero materno. Estudos feitos a partir de dados coligidos entre agosto de 2000 e julho de 2010 no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM/Unicamp) indicaram que 94% dos recém-nascidos com essa deformidade (já excluídos os que sequer sobreviveram até o parto) faleceram nas primeiras 24 horas após o nascimento; destes, 67% morreram na primeira hora. [...] Além disso, deve-se considerar que, infaustamente, a anencefalia é uma doença irreversível no atual estágio da humanidade. Todos os estudos médicos sobre a doença a apontam como uma anomalia fatal para o feto, fulminando qualquer perspectiva de cura. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº54. Fux, 2012).

Além disso, o Ministro ressaltou também que o grande número de casos e liminares concedidas para a autorização do procedimento mostravam a necessidade de uma decisão definitiva para a questão. A mudança de pensamento, a menor religiosidade e os avanços na área médica exigiam uma legislação mais atual e adequada. Não é possível ater-se rigidamente a um regulamento desatualizado que não corresponde à situação corrente e às demandas da sociedade.

4. Conclusão

Apesar de a religião estar bastante presente, ela não abrange a sociedade como um todo, e existem diversos grupos laicos que devem ter seus direitos respeitados. O Direito não pode regular baseado em princípios religiosos. Apesar de a religião ser importante dentro da sociedade, ela não pode fazer com que as normas jurídicas favoreçam os simpatizantes religiosos em detrimento dos outros cidadãos. A liberdade e autonomia de vontade devem prevalecer.

A antecipação terapêutica do parto não corresponde ao crime de aborto, visto que a morte do feto não é decorrente do procedimento médico e sim da patologia da qual o feto é portador. A descriminalização da prática é pertinente não só pelo fato da gravidez representar riscos para gestante pela possibilidade de morte intra-uterina do feto (65% dos casos), mas também por possibilitar analogia com o aborto emocional em caso de estupro (CNTS, ADPF nº54, 2004). Os danos causados a gestante não são apenas de ordem física, mas também psíquica e emocional. Sofrimento de tal porte não pode ser imposto a ninguém, pois corresponderia à tortura, tal como afirmou o Ministro Ayres Britto.

Muitas das críticas feitas alegavam que a legalização seria na verdade uma imposição de aborto às gestantes de feto anencefálico. No entanto, essas críticas não tinham fundamento, visto que o objetivo era conceder uma alternativa às gestantes, conforme garantem os preceitos fundamentais de dignidade da pessoa humana e autonomia

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da vontade. Nesse contexto, entende-se que a legalização da antecipação terapêutica do parto de feto com anencefalia era necessária para adequar as normas jurídicas à situação corrente e para possibilitar evolução jurídica, garantindo o direito de escolha à gestante. Com isso, não há a imposição do aborto, há apenas a proteção dos direitos de um segmento da sociedade. A legalização desse tipo de procedimento promoveu uma possibilidade para a gestante que se encontra em tal situação, uma possibilidade de escolha e não uma obrigação, fazendo com que essa lei não fira valores da sociedade, como os da comunidade religiosa, mas sim abranja todos os diversos valores que aquela possui.

Além disso, todo o processo – desde o diagnóstico até a possível antecipação terapêutica do parto – envolve questões emocionais e psicológicas, tanto da família (gestante, pai e parentes) quanto dos profissionais de saúde.

Portanto, no Brasil, não havendo respaldo legal que autorize o aborto nos casos de malformação fetal letal, o casal que enfrenta este diagnóstico se vê angustiado na busca de soluções para o problema. O acompanhamento psicológico deve necessariamente ser oferecido a esses casais. Ao gerar um filho malformado, os pais, muitas vezes, sentem que o que eles tem de pior foi passado ao filho e agora estão expostos para a sociedade todos os seus erros, todos os seus defeitos. (DALLAIRE, L et al. Parental reaction and adaptability to the prenatal diagnosis of fetal defect or genetic disease leading to pregnancy interruption, 1995. apud BENUTE et al. Interrupção da gestação após o diagnóstico de malformação fetal letal: aspectos emocionais. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia. 2006).

A realidade atual claramente pedia uma legislação mais adequada. Os avanços na área médica, a modernização e maior laicidade do pensamento deveriam ser acompanhados de nova e mais condizente interpretação do sistema normativo. A legalização da antecipação terapêutica do parto é reflexo da heterointegração jurídica e possibilita a existência de um Direito mais justo e eficaz. Para o direito ser completo, ele precisa dialogar com outros segmentos da sociedade e se reconstruir constantemente, a própria autorreprodução do direito pressupõe esse diálogo. É necessária a comunicação entre o mundo jurídico e o mundo social para que as normas correspondam à situação vigente e para que os casos sejam resolvidos de acordo com os princípios que regem determinada sociedade. O direito deve ser algo que em constante movimentação, se adequando às demandas e às modificações que ocorrem na sociedade e não algo estático, alheio ao mundo real.

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BENUTE, Gláucia Rosana Guerra; NOMURA, Roseli Mieko Yamamoto; LUCIA, Mara Cristina Souza de e ZUGAIB, Marcelo. Interrupção da gestação após o diagnóstico de malformação fetal letal: aspectos emocionais. Rev. Bras. Ginecol. Obstet, 2006. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-72032006000100003&lng=en&nrm=iso> , acesso em 06 de novembro de 2012.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decano vota pela descriminalização da interrupção

de gravidez de feto anencefálico. Disponível em:

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Mendes. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=204863&caixaBusca =N> Acesso em: 04 de novembro de 2012.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Direto do Plenário: ministro Gilmar Mendes vota

pela procedência da ADPF 54. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=204847&caixaBusca =N> Acesso em: 06 de novembro de 2012

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Direto do Plenário: ministro Ayres Britto profere sexto voto favorável à procedência da ADPF 54. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=204831&caixaBusca =N> Acesso em: 06 de novembro de 2012

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ministros Rosa Weber e Joaquim Barbosa seguem o relator e julgam procedente a ADPF 54. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=204755&caixaBusca =N > Acesso em: 06 de novembro de 2012

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Direto do Plenário: Ministros Joaquim Barbosa e

Rosa Weber acompanham relator. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=204702&caixaBusca =N> Acesso em: 06 de novembro de 2012

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