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O Auto de São Lourenço

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Academic year: 2021

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Revista Eutomia Ano I – Nº 01 (312-318)

O Auto de São Lourenço

Glacy Magda de Souza Machado* Resumo:

Considerando que o teatro do padre José de Anchieta foi todo concebido dentro dos objetivos da Contra-Reforma, neste ensaio procuramos estabelecer uma relação entre os Autos de Catequese desse padre e as representações religiosas e de moralidade da Idade Média. A retomada desses valores se justifica como meio de difundir a fé católica, utilizando-se do princípio horaciano de “deleitar” e “instruir”, tão caro aos jesuítas. No Auto de São Lourenço, especificamente, notamos alguns pontos de convergência com o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, notadamente quanto ao tema religioso e à personificação de valores morais. Porém, enquanto Gil Vicente tece algumas ironias no que diz respeito ao Clero, Anchieta ridiculariza as práticas indígenas aqui encontradas, recorrendo às representações concretas do teatro para impor ao colonizado a cultura do dominador e incutir-lhe na alma o horror ao “pecado”.

Abstract:

Considering that José de Anchieta’s theater was conceived by the principles of movement named Counter-Reformation, in this essay we try to establish a relationship between the catechesis dramas written by that priest and religious representations of Middle Ages. At that time, trying to spread the catholic faith, the Jesuit used funny representations in theater to teach religious and moral values to people. In O Auto de São Lourenço, we see some similarities with O Auto da Barca do Inferno, written by Gil Vicente, specifically by the choices of religious themes and the personification of moral values. However, while Gil Vicente is ironic with the clergy, Anchieta makes joke with the Indians’ practices he found here and uses the concrete representations of his theater to impose the dominant culture to colonized people, putting in their soul the horror of sin.

Palavras- chaves: teatro medieval, cultura, índio, fé, jesuítas. Key-words: Middle Ages theater, culture, Indian, faith, Jesuits.

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Glacy Magda de Souza Machado

objetivo deste ensaio é estabelecer um diálogo entre o teatro do padre José de Anchieta, em especial o Auto de São Lourenço, e o teatro medieval. Para tanto, buscaremos alguns pontos de convergência entre essa obra do jesuíta e os autos representativos da Idade Média, analisando o contexto histórico e social da época de sua escritura. Procuraremos mostrar como os valores difundidos pela Contra-Reforma fazem com que sejam retomados os elementos medievais que são determinantes na composição do teatro no período colonial brasileiro. Buscaremos ainda identificar alguns aspectos da obra de Gil Vicente, dramaturgo português do período de transição entre as Idades Média e Moderna, na obra do padre, notadamente quanto aos temas de moralidade.

O

Em 1533, ainda muito jovem, o padre José de Anchieta veio para o Brasil, dedicando-se aqui à catequese dos nativos. Anchieta, observador do gosto indígena pelas festas, dança e rituais, procurou, por meio do teatro, unir estas tendências naturais à moral e aos dogmas católicos, escrevendo peças simples, de caráter doutrinário e didático, os chamados Autos de Catequese, com a intenção de converter principalmente o índio ao catolicismo. Considerando, ainda, que o público que assistia às suas representações era formado, além do nativo, por pequenos comerciantes e marujos, Anchieta escreveu em tupi, espanhol e português. Com isso procurava garantir um maior alcance de seus ensinamentos, numa ampla imposição da cultura do dominador (o português) ao “inculto”, ou colonizado.

O teatro de Anchieta foi todo concebido dentro dos objetivos da Contra-Reforma, ou seja, o de popularizar as artes como forma de difundir a fé católica, num claro compromisso com os fins religiosos de catequese. Com esse fim, as representações medievais religiosas e de moralidade são por ele retomadas e delas podemos destacar inúmeras características, como os temas bíblicos e o conflito entre o bem e mal, ou seja, a queda e a redenção da humanidade, tidos

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O Auto de São Lourenço

como princípio universal. Seguindo esta linha, O Auto de São Lourenço foi escrito e representado em ano próximo ao de 1583.

Cabe aqui destacar a influência do teatro português de Gil Vicente, em especial o Auto da Barca do Inferno, no que se refere ao tema e à personificação de valores morais, como se pode ver pela representação de figuras não individualizadas pelos personagens dessa peça vicentina, a exemplo do parvo, que personifica todos os desvalidos, e do judeu, mostrado como representante dos perseguidores de Jesus. No Auto de são Lourenço também estão presentes personificações desses valores, nas personagens do Anjo, do Amor de Deus e do temor de Deus. No entanto, não se pode dizer que essa peça contenha algumas das ironias apresentadas em Gil Vicente, como a ridicularização do Clero, com o intuito de comprovar o ditado popular de que “o hábito não faz o monge”.

Fazendo um retrocesso no tempo, Carlson (1997, p.33) afirma que o “o surgimento de uma poderosa tradição dramática no seio da Igreja da Idade Média tardia parece paradoxal à luz das suspeitas que os antigos padres nutriam em relação à arte; entretanto, os pontos de vista novo e velho partilhavam uma teoria comum: a do drama como instrução”. O crítico ainda aponta os elementos dramáticos contidos na missa como fatores decisivos para o desenvolvimento do teatro religioso como forma de enfatizar o elemento didático. Desta forma, acrescenta, as representações tornavam as histórias bíblicas, “não apenas mais vívidas e contundentes, mas também mais divertidas (p. 33)”. Portanto, ainda segundo este estudioso, o drama medieval, harmonizava-se com o princípio horaciano de “deleitar e instruir”. O que se pode deduzir é que esses elementos, que tão bem serviram ao teatro medieval, revelam-se também úteis ao teatro de Anchieta como expressão do espírito de dualidade e contradição do barroco e que a Companhia de Jesus, aliada à Contra-Reforma, soube muito bem implantar na mentalidade dos jesuítas.

Bosi (1992, p.68) afirma que, “como os tupis não prestavam culto organizado a deuses e heróis, foi relativamente fácil aos jesuítas inferir que eles

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Glacy Magda de Souza Machado

não tivessem religião alguma”. O ritual que o indígena dedicava aos mortos constituía-se de cerimônias de canto e dança, com o uso de bebidas, como o cauim, e do fumo, além de transes presididos pelo pajé. O hábito da antropofagia, esclarece Bosi (1992), significava para o silvícola o aumento de forças recebidas pela absorção do corpo e da alma do inimigo que era morto de forma honrosa em combate. Assim, devido à perseguição implacável a toda forma de magia, comum à Contra-Reforma, Anchieta acreditava que toda cerimônia que abrisse caminho para a volta dos mortos deveria ser extirpada e combatida.

Como o regime de encontro de culturas foi desde sempre no Brasil o de dominação pelo colonizador, essas práticas indígenas foram vistas como bárbaras e, no entender dos jesuítas, representavam um processo de demonização. Nos autos de Anchieta, afirma Bosi (1992), o mal vem de fora das criaturas e pode fazê-las praticar atos perversos. Ele está espalhado pelos matos, mas o perigo maior é quando penetra na alma do homem. Esse mal advém do cauim, que provoca a luxúria e a brutalidade, do fumo, que permite o transe aos pajés, e da carne crua dos inimigos, o mais bárbaro dos costumes. O fragmento abaixo é uma fala do demônio Guaixará, retirada do Auto de São Lourenço, que ilustra bem esta idéia, além de ridicularizar a figura do indígena.

Boa medida é beber cauim até vomitar. Isto é jeito de gozar a vida, e se recomenda a quem queira aproveitar. Que bom costume é bailar! Adornar-se, andar pintado, tingir pernas, empenado fumar e curandeirar, andar de negro pintado.

Andar matando de fúria, Amancebar-se, comer um ao outro, e ainda ser espião, prender Tapuia,

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O Auto de São Lourenço

No Auto de São Lourenço, é importante, ainda, ressaltar a animalização da figura do diabo. Os espíritos infernais se autodesignam com nomes de animais peçonhentos ou indomáveis. Portanto, tudo o que no reino animal metia medo ou nojo ao europeu é aproveitado na peça como signo dúbio de entidades funestas, tanto no plano natural como no sobrenatural, já que a intenção é a de identificar o índio a essas entidades. Os trechos abaixo são exemplos claros desta situação:

Guaixará

Sou Guaixará embriagado sou boicininga, jaguar, antropófogo, agressor, andira-guaçu alado,

sou demônio matador. (Anchieta, 1997, p.59) Aimbirê

Sou jibóia, sou socó, o grande Aimbirê tamoio. Sucuri, gavião malhado, sou tamanduá desgrenhado,

sou luminoso demônio. (Anchieta, 1997, p.60)

A esse respeito cumpre ressaltar que Guaixará, rei dos diabos, é o nome de um herói tamoio de Cabo Frio que por duas vezes atacou os portugueses em São Sebastião, Rio de Janeiro. Aimbirê, criado de Guaixará e também demônio, é o nome de outro chefe tamoio. Tudo o que Guaixará nomeia como obra sua na peça teatral representa os elementos presentes nos rituais dos Tupis, enquanto que o colonizador é apresentando como virtuoso, num claro contraste com a condição de pecador atribuída ao índio, evidente nas falas dos demônios:

Guaixará

“Esta virtude estrangeira me irrita sobremaneira Quem a teria trazido, com seus hábitos polidos

estragando a terra inteira? (Anchieta, 1997, p.47) Aimbirê

Conosco vivem em paz

pois se entregam aos desmandos ...

E nem sequer raciocinam que é o inferno que cultuam.

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Glacy Magda de Souza Machado

(Anchieta, 1997, p. 65-66)

Pelo exposto, é notória a necessidade que os jesuítas tinham em combater as práticas indígenas. Assim, o teatro se presta ao fim de instaurar o medo e o horror, já presente no índio, aos espíritos malignos e estendê-lo a todas as entidades que se manifestam nos transes, diabolizando-as.

No quinto e último ato do Auto, doze meninos dançam na procissão de São Lourenço, que é reconhecido como mártir e santo protetor dos índios. Além do louvor ao santo, o epílogo legitima a profissão de fé cristã. São Lourenço é o exemplo dessa fé e representa o discurso bíblico do primeiro e segundo mandamentos, como se pode ver pelos fragmentos abaixo:

E contigo aprenderemos a amar a Deus no mais fundo do nosso ser, e no mundo

longa vida gozaremos.

Em tuas mãos depositamos nosso destino também. Em teu amor confiamos

e uns aos outros nos amamos

para todo o sempre. Amém.

(Anchieta, 1997, p. 110, grifo nosso)

Em face destas considerações, pode-se concluir que a arte dos jesuítas constituiu-se, sobretudo, em tocar os corações, principalmente dos indígenas, recorrendo para isto ao concreto das representações e dispensando os raciocínios abstratos. E o Auto de São Lourenço, ao lado de outras obras de Anchieta, cumpre com maestria esse papel. Como bem explica Bosi ( 1992, p.84), não se pode esquecer que Anchieta, assim como os outros jesuítas de seu tempo, é discípulo direto de Inácio de Loyola, o fundador da companhia de Jesus, o que justifica sua

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O Auto de São Lourenço

procura em incutir na alma do fiel, no caso o índio, o horror ao pecado, com visões aterradoras do além.

Referências:

ANCHIETA, José de. O Auto de São Lourenço. Introdução, tradução e adaptação de Walmir Ayala. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.( Coleção Prestígio).

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CARLSON, Marvin. Teorias do teatro. Estudo histórico-crítico dos gregos à atualidade. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Ed. da Unesp, 1997.(Prismas).

VICENTE, Gil. Três autos. Da alma, da barca do inferno, de Mofina Mendes. Adaptação de Walmir Ayalla. Rio de Janeiro: Ediouro, 1962. (Coleção Prestígio).

Notas:

* Glacy Magda de Souza Machado é graduada em Letras, pela Universidade Federal de Goiás e

mestranda em Estudos Literários, nesta mesma universidade.

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