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PALAVRA CHAVE: CANDOMBLÉ DE NAÇÃO ANGOLA; TERRITÓRIO-TERREIRO; LUGARES SAGRADOS; AFRORELIGIOSIDADE.

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A Tradição Bantu no Candomblé de Nação Angola: os ancestrais e o sentido dos lugares sagrados

Emerson Melo1 Geraldo André da Silva2

RESUMO

Este artigo tem como objetivo compreender a relação existente entre os N’Kisi (ancestrais) cultuado nos terreiros de candomblé de nação Angola com os espaços sagrados presentes na paisagem do terreiro, que se desdobram sob a forma de lugares específicos de culto com características particulares que estão em constante interação entre o mundo dos homens e dos ancestrais e noutros momentos expressos sob a forma de símbolos e signos - fetiche - que remetem a uma natureza, materializada por meio de valores mágico-religiosos alicerçados sob mitos e ritos que são transmitidos por meio da oralidade e invocados pelos sacerdotes e sacerdotisas responsáveis pelo culto. Para tanto, foi necessário recorrer à pesquisa bibliográfica e a pesquisa de campo com base em observação participante realizada no terreiro de candomblé de nação angola, Casa de Cultura Lodé Apara localizado em Santa Luzia – Minas Gerais.

PALAVRA CHAVE: CANDOMBLÉ DE NAÇÃO ANGOLA; TERRITÓRIO-TERREIRO;

LUGARES SAGRADOS; AFRORELIGIOSIDADE.

1 Geógrafo (2007 - PUC/SP), mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia do IGC/UFMG. Ogan do Ile Alaketu Ijóba Axé Airá - São Paulo. E-mail: meloemersonc@gmail.com

2 Administrador de Empresas (2008 – UnB), Especialista em gestão de pequenas e médias empresas (2009 –

FGV). Tat’etu Jalabo/ Tata dia Nkisi, zelador da Casa de Cultura e Resistência Afrobrasileira Lodé Apara em Santa Luzia – MG.E-mail: zfandre@hotmail.com

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Introdução

De certa maneira, a literatura científica sobre a formação dos terreiros de candomblé estão apoiados sob estudos comparativos e etnográficos que visavam à distinção entre os povos africanos na busca pela África no Brasil, Verger (2003) e Bastide (1978), que se obtiveram a “encontrar” nos terreiros de candomblé de origem jeje-nagô (Fon e Ioruba) uma “África em miniatura” e de reconhecerem a Bahia como a “Roma negra” lugar de “sobrevivência” e “capital” tradições de tais povos no Novo Mundo. E assim, seguiram muitos outros, que ao estabelecer a cultura de origem jeje-nagô como referência primeira em modelo de organização afroreligiosa, desconsideraram as tradições dos povos bantu deixando espaços de pesquisas que se considera aqui relevante para serem analisados. Primeiramente, por terem sido os Bantu, os primeiros povos centro-africanos escravizados no Brasil, durante cerca de trezentos anos, o que contribuiu inquestionavelmente para a formação econômica do Brasil e posteriormente por comporem as bases das inúmeras tradições afro-brasileiras típicas do sudeste brasileiro, local onde se concentrou o contingente de africanos deportados das regiões de Angola e Kongo rumo as Minas Gerais. Neste sentido, o texto proposto aborda as dinâmicas de organização dos terreiros de candomblé de nação angola como espaços específicos de resistência afroreligiosa com traços particulares de tradição dos povos Bantu. Mesmo embora, haja marcas de resultados sincréticos, entre culturas africanas e católicas, peculiar ao europeu, o foco central desta observação permeia a concepção mágico-religiosa e ancestral, percebida pelos seus membros, devotos em tal crença, na organização dos territórios terreiros de candomblé.

Ia Ngola Kubata ia kateta: a fundação do território-terreiro de candomblé

A manifestação do sagrado, a hierofania3, apresenta-se como uma quebra na homogeneidade do espaço caótico e profano vivido pelos homens. Este rompimento caracteriza a formação de um novo espaço, revelando novas práticas territoriais que diferem das do cotidiano, pois estão relacionadas às práticas do sagrado. Desta forma, para que um terreiro de candomblé4 possa se consolidar, o espaço escolhido deve passar por uma série de

3 Termo proposto por Mircea Eliade (1962) para designar a manifestação do sagrado em objetos ou pessoas. 4

Etimologicamente o termo candomblé é de origem banto e pode ser traduzido como: culto, louvor, reza ou invocação.

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preceitos religiosos para se tornar sagrado, o que o tornará diferente do espaço profano, constituindo-se num território religioso, que, uma vez sacralizado a sua utilização passa a ser restrita aos não iniciados.

A descoberta – ou seja, a revelação – do espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso; porque nada pode começar, nada se pode fazer sem uma orientação prévia – e toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo. É por essa razão que o homem religioso sempre se esforçou por estabelecer-se no ”Centro do Mundo”. Para viver no Mundo é preciso fundá-lo – e nenhum mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade da relatividade do espaço profano. A descoberta ou a projeção de um ponto fixo – o “Centro” – equivale à Criação do Mundo (Eliade, 1992, p. 26).

Neste sentido, o espaço selecionado para a constituição do terreiro nunca é escolhido de forma independente, este é sempre revelado. Na maior parte das vezes, é o próprio Nkisi, ou ainda o Nkisi-nsi, isto é o dono da terra, chefe – sacerdote - recebe seu poder. É, ele que revela este lugar quase sempre através dos sonhos dos Kadenge (meninos); quando isso não acontece os sacerdotes recorrem ao jogo de búzios5 para garantir a legitimidade da escolha. Não é a sua ou o seu dirigente que escolhe o espaço onde irá instalar suas dependências, mas sim, o espaço que a escolhe por meio de seu N’kisi. Nada é feito sem sua anuência, esta é a regra e o motivo de oferendas feitas ao chão. Na realidade, está se considerando o respeito ao local, invariavelmente morada de “espíritos”, os ancestrais do grupo, os Senhores da Terra, e a eles devem ser feitas às reverências.

Vale ressaltar que, quando se trata de religiões de tradição oral o mito exerce o papel de elemento legitimador de atos rituais que exprimem a lógica de comportamento da comunidade e sua relação com o espaço de culto, pois, “o mito revela a sacralidade absoluta porque relata a atividade criadora dos deuses, desvenda a sacralidade da obra deles. Em outras palavras, o mito descreve as diversas e às vezes dramáticas irrupções do sagrado no mundo” (Eliade, 1992, p. 86).

A cerimônia do Ia Ngola Kubata ia kateta, sacralização do território-terreiro recebe o nome, plantar o axé – Ngunzu - ou de dar de comer a cumeeira (mastro litúrgico). É assim chamada, pois, neste local – Sambilè - é edificada uma coluna, um pequeno pilar de concreto – Angomi Duilo -, localizado no centro do barracão onde ocorrem às festas. Muitas das vezes não chegam até o teto, pois, não exerce função de escora, mas sim, de uma representação simbólica que significa a união entre o mundo dos homens e o mundo

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Erindilogun ou Merindilogun - jogo dos 16 búzios como é conhecido no Brasil. Trata-se de um sistema oracular, divinatório que emprega 16 búzios para fazer as previsões. Erin = 4 merin, di = menos e logun = vinte.

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transcendental” dos ancestrais, os N’kisi. Para os membros religiosos de tal tradição o Angomi Duilo é parte sagrada mais importante do Sambilè, em razão de ali estar concentrada a energia geradora de toda a forca do Inzo – barracão principal, onde ocorre às festividades -, energia chamada de Kalla ou Muki, que pode ser dividida em duas partes: o infinito, a parte superior, acima de todas as cabeças, e o ixi, oxi ou intolu, o chão da casa, onde reside o Lamburu, energias dos ancestrais donos daquele espaço território-terreiro, ou seja, os senhores da terra. É ao redor deste “poste” que circulam os diversos tipos de danças votivas, que estreitam as relações entre os devotos e as divindades, o que garante a vida do indivíduo e o bem estar da comunidade.

Neste local, é aberto um buraco, no ato de fundação do terreiro, no qual recebe oferendas, que variam desde o fetiche ritual - representações simbólicas dos ancestrais -, comidas votivas e sacrifício animal, efetivando a cerimônia do Ngunzu. O sentido de se realizar as oferendas ao chão, corresponde à tomada do território, sob sentido religioso específico, que reverenciam os ancestrais míticos do grupo - Nkisi. Tornando-se, desta forma o território-terreiro, numa representação mágico-religiosa, resumo do território africano de onde se originam os ancestrais do grupo religioso.

Após os atos da cerimonia do Ngunzu, ou seja, de fundação do território-terreiro, presencia-se a revelação do espaço sagrado – território religioso -, ponto fixo, que possibilita a orientação de uma comunidade religiosa que está longe da homogeneidade do caos da sociedade que está ao seu entorno, o mundo profano. Seus limites apresentam-se como a separação entre os dois espaços e ao mesmo tempo a passagem de um para o outro. Permitindo em seu interior a transgressão dos limites visíveis e invisíveis do mundo profano, que será interrompido por meio de práticas rituais inerentes as características de seus agentes, os membros do terreiro. Pois, seguindo as observações de Eliade (1992), “não se faz “nosso” um território se não “criando-o” de novo, quer dizer consagrando-o. É importante compreender que a cosmização dos territórios desconhecidos é sempre uma consagração: organizando um espaço, reitera-se a obra exemplar dos deuses” (p. 34-35), o que irá permitir a construção da identidade religiosa e ao mesmo tempo o sentimento de pertencimento do grupo ao lugar.

Segundo SACK (1986), para o espaço ser um território faz-se necessário, a existência de um limite territorial, mesmo que este seja simbólico, sinalizado por gestos, palavras, vestimentas, adereços, afetos e narrativas míticas. De acordo com esta perspectiva, no momento em que significações são atribuídas ao espaço, criando uma identidade entre os indivíduos e as coisas que este contém, materializa-se um limite territorial que permitirá

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sinalizar os que pertencem ou não pertencem ao território em questão. Assim, o território é concebido aqui, como um espaço dinâmico com características particulares de determinado grupo, que estabeleceu historicamente vínculos míticos e ancestrais específicos com a terra e com o lugar onde está inserido. Neste local, foram estabelecidas relações sociais necessárias a sua administração abrigando num mesmo universo, questões políticas, econômicas, sociais e culturais com limites (fronteiras) visíveis ou não. Assim sendo, o território aqui é caracterizado efetivamente como sinônimo de apropriação e subjetividade, conjunto de representações que desdobram pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos e cognitivos. Pode-se considerar este espaço como um local de aglutinação cultural que possui elementos simbólicos produtores de identidades, uma vez que as marcas das tradições e costumes dos povos que o habitam estão impressos na paisagem local.

Ainda assim, considera-se aqui, a fundação do território-terreiro não só, como, um rompimento na ordem homogênea do caos do espaço profano, mas sim, a criação de um novo cosmo, a constituição de um território sagrado. Desta forma, são estabelecidas as dimensões espaciais do sagrado no território-terreiro. No entanto, faz-se necessário edificar a estrutura interna do espaço sagrado, o arranjo espacial, que irá abrigar os símbolos e signos mítico-religiosos dotados de preceitos que irão compor a paisagem ou a estética e destes lugares. Neste sentido, os lugares sagrados do terreiro são caracterizados como geossímbolos: “lugares específicos, que por razões religiosas, assumem uma dimensão simbólica que os fortalecem em sua identidade” (BONNEMAISON, 2002, p. 109), elementos que contribuem para a formação da identidade afro-religiosa no interior dos terreiros de candomblé. São representados sob a forma de signos, símbolos, linhas imaginárias de movimento e interdição, capazes de estabelecer regras e valores, uma vez que transcendem a relação espaço tempo. Lugares específicos que correspondam às características particulares de cada divindade.

Segundo Elbein do Santos (1976) e Pessoa de Barros (1993), os terreiros estão divididos em duas diferentes áreas com características e funções específicas vinculadas ao universo de atuação das divindades, que mesmo fazendo referencias ao modelo de organização do candomblé de nação jeje-nagô, podem ser notadas na divisão organizacional dos terreiros de candomblé de nação angola. Deste modo, os territórios-terreiros estão divididos em espaço urbano6 (área edificada ou construída) e espaço mato (área verde).

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Não é correto utilizar esta classificação, pois o conceito de urbano utilizado por estes autores refere-se apenas a questão da construção (área edificada do terreiro). Sabe-se que o conceito de urbano está diretamente

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A área edificada corresponde as seguintes instalações: kanzua dia Pambujila: espaço do terreiro dedicada ao Pambunjila do zelador e de todos dos filhos, divindade dona dos caminhos, alocada sempre na porta do Kanzua. É a ela que se pede para cuidar dos caminhos daqueles que necessitam de cuidados. No inzo Pambunjila se assentam os Mavambo de trabalho (uma modalidade ou “qualidade” de Pambunjila que cuida dos negócios), sempre assentado a esquerda do portão de entrada do Barracão; Lembaci - quarto destinado aos santos principais do dono da casa; Indemburo - espaço sacralizado do terreiro onde são realizadas as obrigações de mutue (cabeça); Kanzua dia Yombeta (casa dos mortos) – espaço que abriga os bengue (assentamentos) dos Numbi (antepassados, ou seja, os mortos da família). Recebe tratamento específico das mãos do Tata Numbi. Deve ser tratado por homens, de preferência filhos de Kavungu ou Kaiangu (divindade ligada às doenças, nomeadamente a varíola, a febre, as contagiosas. É a Ele que se recorre quando há doença em família); kanzua Kalungome ou kalungombe – quarto destinado aos santos dos zeladores; kanzua muzambu ou apejo (casa do adivinho) - quarto destinado ao jogo de búzios, a vidência e ao jogo de ngombo; pepele – espaço sagrado no interior do inzo, que abriga o conjunto de três atabaques privativo dos Kixikarangombe ou Kambondu (tocadores de couro de boi), principalmente os Tata Ngoma; por fim, pagodo ou katuji – banheiro.

A área verde, espaço mato, corresponde à mata onde podem ser encontradas as ervas, plantas e folhas de uso litúrgico, assim como, a instalação de alguns assentamentos e fetiches de algumas divindades que tem como domínio as florestas ou o os caminhos, como Nkosi, Ktembo entre outros. Vale ressaltar que, mesmo diante de espaços específicos para se abrigar as divindades no interior do território-terreiro, a “força” que derivada dos N’kisi, está presente tanto nas diversas formas de manifestação da natureza como nas características peculiares de cada ser humano. Neste sentido, o corpo físico, é uma das materialidades da divindade, fundamentada no princípio básico de vida e morte, alimentada pelos mais diversos sentimentos: amor, ódio, raiva, tristeza alegria etc.

Mesmo diante a necessidade de espaços específicos de uso ritual, a divisão espacial do terreiro não apresenta uma única forma de ser representada, pois, cada terreiro possui uma divisão particular que está diretamente ligada a sua proporção espacial e a viabilidade dos fluxos de atividades que são realizadas no seu interior. Desta forma, pode-se afirmar que cada terreiro é e está organizado de acordo com o que é mais viável para a sua comunidade e funcionamento, territorializando suas nuances espaciais de acordo com sua realidade e ao

relacionado ao desenvolvimento técnico industrial e econômico das cidades e ao processo de mecanização do campo. Nota do autor.

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mesmo tempo respeitando as características e preceitos do sentido mágico-religioso previsto para o culto, no qual explicita em sua paisagem as marcas do sagrado no mosaico das edificações. Sendo perceptíveis aos olhares mais desatentos as relações estabelecidas entre a edificação dos lugares sagrados no terreiro e as divindades, assim como a relação dos membros da comunidade com estes lugares, dotadas de signos e símbolos presentes na estética religiosa.

Assim sendo, a divisão territorial do terreiro obedece a uma distribuição espacial que está diretamente ligada às características próprias de cada Nkisi. Isto faz com que dentro deste, tenha-se outros espaços com características individuais que se relacionam com os membros da comunidade, podendo ser definido como representação do mundo dos ancestrais. Vale ressaltar que, os povos centro-africanos que ocupavam e ocupam as regiões que correspondem hoje a Angola e Kongo cultuavam e cultuam seus ancestrais e demais divindades em vilarejos distintos, com particularidades próprias típicas de cada um de seus povos, mas que de certa maneira, estão diretamente relacionadas ou ligadas a um mesmo deus, neste caso, N’zambi7.

Assim, o fato de possuir ou descenderem de um mesmo deus criador e de possuírem uma língua comum – bantu - como referência, permitiu aos povos centro-africanos e seus descendentes no Brasil, a organização de um espaço comum, locus de reprodução e ressignificação de tradições, território-terreiro, microcosmo mítico-religioso, que abriga em seu interior às características particulares de diferentes deuses num mesmo espaço. Deste modo, nos terreiros de candomblé o que eram vilarejos e florestas sagradas foram reduzidas a espaços específicos, mas que se mantém vivos através de mitos e cânticos, o que estabelece uma identidade particular com cada iniciado. Ainda assim, concorda-se com a afirmação de Rosendahl (2002), que destaca que, “os espaços são demarcados pelo poder da mente de extrapolar muito além do percebido; os homens não apenas criam espaços sagrados, como também procuram materializar seus sentimentos, imagens e pensamentos neles” (p. 32).

Cada espaço possui elementos que indicam a soberania da divindade que ali está representada. Tomaremos como exemplo N’kosi, divindade do ferro - o Senhor da guerra e da agricultura, características atribuídas ao seu papel mitológico. No bengue de Nkosi, uma espécie de altar, estão colocadas diversos tipos de fetiches rituais, entre eles a madeira e o ferro. Uma representação simbólica mítico-ritual da materialidade de Nkosi. Sabe-se que

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Nkosi não é a madeira ou o ferro em si, mas a madeira e o ferro fazem parte do universo mágico-religioso de invocação para se reverenciá-lo.

Esta breve descrição sobre Nkosi possibilita compreender as relações estabelecidas entre os iniciados e os lugares sagrados. Pois, não podemos compreender o espaço sagrado como uma estrutura fixa independente, moldada sob uma estética e sub-estética, pois possui forma aparente e elementos que o ligam a comunidade afirmando a identidade religiosa.

O espaço sagrado possui uma relação íntima com o grupo religioso que o frequenta. As imagens espaciais desempenham um papel importante na memória coletiva, porque cada aspecto, cada detalhe deste lugar possui um sentido que é inteligível para os membros do grupo, pois todas as partes do espaço que ele ocupa correspondem a um certo número de aspectos diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade (ROSENDAHL, 2002, p. 34).

Os terreiros de candomblé de origem Ketu8 mantiveram a língua yorubá como referência a sua ancestralidade (BASTIDE, 1978; VERGER, 2003). A narrativa de mitos e cânticos são aprendidos e transmitidos a fim de conservar vivas suas tradições. Tal fenômeno também pode ser observado nos terreiros de candomblé de nação angola, tanto nos cânticos, como no ingorossi9.

Não se trata apenas de relembrar, mas de buscar na sua ancestralidade ou no seu passado mitológico as essências para sua organização. Esta é uma forma de resgatar elementos simbólicos e transcendentais que exprimem a necessidade de um viver em um mundo organizado. Com isso pode-se observar que, os membros da comunidade estabelecem vínculos com os lugares sagrados, não apenas pelo fato de estar ou ver este lugar, mas, porque este espaço é revivido e transmitido através dos tempos por meio de experiências mítico-religiosas que apresentam respostas ao seu viver cotidiano.

Esses conjuntos imaginários, mitológicos de revelação do sagrado, direcionam o comportamento religioso dos homens e permitem manter a santidade no mundo. Esse conjunto mitológico é a própria memória da religião. Toda religião tem sua história, ou seja, uma memória religiosa feita de tradições que remontam a acontecimentos distantes,

8 Quando se fala na organização dos terreiros de candomblé nos remetemos diretamente a história dos yorubás,

mas especificamente as nações Òyó e Ketu. A cidade de Òyó foi importante pela leva de escravos para aqui trazidos e que formou o contingente yorubá originando os atuais candomblés da nação Ketu. Sobre a nação Ketu (África) revela a história de que era muita bem fortificada e meio de proteção para todos os seus habitantes. Sua construção era muita bem feita com paredes de barro misturado com óleo de dendê em vez de água. Diante disso os primeiros candomblés da Bahia se intitularam como de nação Ketu, como uma forma de reverenciar as grandezas de seus ancestrais na África e de se colorem como forma de resistência no Brasil (BENISTE, 2003).

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frequentemente no passado, e que ocorreram em lugares determinados (ROSENDAHL, 2002, p. 35).

Avaliando a relação existente entre os membros da comunidade e o espaço sagrado, chega-se a outro ponto pertinente desta discussão, a questão da identidade. A identidade religiosa, ou melhor, afroreligiosidade brasileira, o que nos possibilita analisar a materialidade das relações estabelecidas entre a comunidade e o terreiro. Sabe-se que, não existe neutralidade na produção de um discurso, pois o sujeito nunca é imparcial ao objeto, até mesmo se fosse comprovado o “real” sentido do discurso de neutralidade, o neutro nunca se manifestaria a favor ou contra, mas sempre apareceria como uma terceira hipótese. Sob este sentido observa-se que a identidade religiosa está presente nos membros das comunidades e manifesta-se tanto dentro como fora dos limites do sagrado, pois, é continua e transita em todos os espaços, uma vez, que está imbricada ou vinculada ao modo de vida do sujeito religioso em sua percepção de mundo.

A construção da identidade está diretamente ligada ao reconhecimento do indivíduo enquanto membro participante de um determinado grupo, pois atribui para si, todos os valores religiosos assumidos por estes. Valores que são transmitidos através de mitos, imagens, objetos que estão de certa maneira relacionados ao espaço sagrado. “Nos espaços sagrados, a distribuição e disposição das imagens correspondem às necessidades do culto e se inspiram em tradições e sentimentos do próprio grupo religioso” (ROSENDAHL, 2002, p. 33). “Todavia, ao destacarmos a identidade religiosa, também estamos diante de uma construção que remete a materialidade histórica, à memória coletiva, à espacialidade da própria revelação religiosa processada sob determinada cultura” (GIL FILHO; CORRÊA GIL, 2001, p. 48). Assim sendo, vale ressaltar que, ao mesmo tempo em que se apresentam alguns dos elementos que contribuem para a formação da identidade afroreligiosa, existe um indivíduo religioso que está à procura de respostas para explicar o seu princípio de existência perante a sociedade. Características que expressem o sentido de seu comportamento e que promovam um êxtase transcendental. Neste sentido, temos o espaço sagrado como referência na construção da identidade religiosa e em seus reflexos comportamentais na sociedade profana. Práticas que permitem a organização de territorialidades particulares do sujeito religioso.

Naturalmente, o sistema de práticas e o discurso religioso, ao atribuírem um sentido norteador transcendental da vida, imprimem uma nova lógica à realidade, tornando-se uma representação, um conjunto de conceitos e explicações geradas no dia-a-dia da experiência do sagrado (GIL FILHO; CORRÊA GIL, 2001, p. 40).

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Esta breve discussão sobre as relações existentes entre o espaço sagrado e os membros da comunidade, assim como, a materialidade destas na constituição da identidade religiosa, apresenta-se como apoio para entender a composição e administração hierárquica dos terreiros. Pois se tem aqui, um sistema hierárquico com seu poder e seu status social legitimado através de seu conhecimento mítico-religioso.

Para compreender melhor este sistema, faz-se necessário recorrer ao modelo das sociedades negro-africana e a sua organização familiar. Já que, na África, o chefe ou o rei exerce todo o papel de liderança, que está atrelado não apenas a questões políticas, mas a referência de guardião da sociedade. Ele atua como o juiz estabelecendo as leis que garantem a ordem do grupo e é responsável pelos sacrifícios religiosos.

O motivo por que o rei acumula todas estas diferentes funções é que não há uma demarcação clara entre política, religião, lei e moral. Cada uma dessas formas é parte do princípio – o costume – sobre o qual aquela sociedade tribal está construída. O rei é o guardião do cotidiano desses preceitos; ele personifica o contato com os antepassados, com a tradição. É também o representante dos deuses na terra, bem como porta-voz dos homens perante os deuses (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2005, p. 99).

Desta forma, o rei ou o chefe é a referência figurativa do sagrado, pois, é o escolhido, aquele que possui as respostas para a prosperidade do grupo.

Nos terreiros de candomblé encontra-se a figura da Mam'etu e/ou Tat'etu (Mama = mãe e Tata = pai, etu = todos), zeladores das divindades, titulo conhecido popularmente como Pai ou Mãe de santo. Refere-se ao grau mais alto da hierarquia sacerdotal. Ambos são responsáveis pelo processo de iniciação dos membros da comunidade junto da Ialaxé, a transmissora do axé, poder de realização e efetivação do ato ritual (SANTOS, 1976).

Quando um indivíduo é iniciado na religião ele passa por uma série de preceitos que lhe são intermediados pelo Pai ou Mãe de santo. Estes estão ao seu lado até o momento da cerimonia do nome, quando o neófito receberá o nome religioso. Neste momento o Pai ou Mãe de santo apresenta o filho a comunidade terreiro, ou seja, mais uma pessoa nascida na religião por suas mãos e esta lhe deve o respeito de filho por lhe ter concedido o acesso a vida religiosa no culto aos ancestrais. Neste sentido, pode-se afirmar que, as Mam'etu e os Tat'etu exercem toda autoridade sobre os membros da comunidade, independente de sua ocupação hierárquica, assim como os reis africanos. São responsáveis por todas as atividades do terreiro; a organização das festas em homenagem as divindades que ocorrem ao longo do ano, dos ritos privados, da disciplina dos iniciados, da economia do terreiro, fora o atendimento

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espiritual e material prestado aos seus filhos. Ou seja, exerce o poder absoluto sobre o terreiro e os membros da comunidade. Ambos têm como papel principal atuar como interpretes das divindades, ditando regras, advertências oportunas ou apontando uma punição justa para um determinado fato. Estes são fatores que legitimam sua autoridade perante o grupo.

Os laços criados no candomblé através da iniciação no santo não são apenas uma série aceitos dentro de uma regra mais ou menos estrita, como nas ordens monásticas e fraternidades laicas, iniciáticas ou não; são laços muito mais amplos no plano das obrigações recíprocas e muito mais densos no âmbito psicológico das emoções e do sentimento: são efetivamente familiares. De obediência e disciplina; de proteção e assistência; de gratificação e sanções; de tensões e atritos – que tudo isto existe no candomblé (COSTA LIMA, 1998, p. 57).

Como se podem observar os sacerdotes são responsáveis pela mediação, entre os iniciados e as divindades, uma vez que exercem o papel de intermediário entre ambos.

Embora participem de todas as atividades e detenham o controle total da comunidade, os zeladores das divindades deliberam postos – títulos - a membros da comunidade que já passaram pelos ritos de iniciação e que atingiram o status de mais velho na hierarquia religiosa. Os títulos ou postos distribuídos estão diretamente relacionados aos N’kisi e ao seu espaço de culto. Estes atuam como conselheiros auxiliando na administração dos lugares sagrados, observando os problemas para que juntos de seus dirigentes possam solucioná-los. Assim como, nos terreiros de candomblé de origem ioruba, onde “para cada Orixá há um conjunto de pessoas encarregadas de seu culto e que são responsáveis pela organização das festas. Elas decidem a ornamentação, a comida que será servida ao público, os convites, as roupas e a coleta de dinheiro para as despesas” (BENISTE, 2003, p. 72).

Os postos ocupam lugares específicos na hierarquia dos terreiros e seu titulo deve ser respeitado por todos os membros da comunidade. Pois o poder deste foi atribuído pelo reconhecimento da Mam'etu ou do Tat'etu enquanto merecedores do mesmo e confirmado perante o aos deuses.

A estrutura hierárquica dos terreiros de candomblé, refere-se à organização de um corpo sacerdotal, responsável por um conjunto de atitudes e sentimentos que remontam a manifestações religiosas de uma comunidade. Estes são detentores de conhecimentos mítico-religiosos e práticos que transcendem ao sagrado. Notadamente o corpo sacerdotal referenda o controle de um conhecimento hermético, também é raro, sendo que seu monopólio garante o poder institucional. Todavia, este mesmo corpo é legitimado e consagrado nos ritos de

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instituição. Sem esta unção não poderia exercer (legitimamente) o poder. Assim sendo, “o interesse religioso revalida a necessidade de legitimação da experiência do sagrado. O ato de legitimar uma ação institucional de controle do sagrado. Ou seja, o discurso religioso e a gestão do espaço sagrado obedecem a uma hierarquia institucional consagrada" (GIL FILHO; CORRÊA GIL, 2001, p. 42).

Os mais novos na religião, iniciados ou não, aprendem desde cedo a lidar com o respeito aos mais velhos, pois reconhecem seu lugar na hierarquia religiosa. Seguem a tal modelo, pois se encontram em fase inicial de seus preceitos, onde dependem do auxilio de membros mais velhos, com maior tempo de iniciação para cumprir com o seguimento correto de suas praticas rituais. Desta forma, tais sujeitos exercem certa passividade diante dos agentes mediadores da experiência religiosa, para realizar atos rituais que promovam o bem estar do grupo. O que nos permite afirmar, que diante da complexa estrutura hierárquica do candomblé, assim como, de suas regras sociais e comportamentais, ou ainda, independente do tempo de iniciação, todos os membros devem respeito a Mam'etu e ao Tat'etu, pois será através destes que o conhecimento e o segredo das formulas mágico-religiosas que transcendem aos limites do mundo dos homens e dos ancestrais serão repassados.

Conclusões

Pode-se considerar que a organização dos territórios-terreiros de candomblé, obedece a uma lógica de organização particular, estruturada a partir de valores míticos ditados pelas diversas divindades e pelo corpo de ancestrais que compõem o universo mágico-religioso que implica o seu sentido de existir, enquanto fenômeno de fundação do terreiro. Neste sentido, não há separação entre o mundo dos deuses e os homens, e sim, uma ruptura com a lógica caótica do mundo profano, habitado pela irregularidade das ações humanas, o que justifica a necessidade de fundação do mundo sagrado. Que está rodeado pelo caos do profano, mas, “puro” em sua essência para servir de base para o corpo de divindades ali representadas.

Sendo um espaço revelado a partir de referencias “mágicos”, no interior do território-terreiro os mitos atuam como elementos estruturais das comunidades, pois, justificam qualquer teoria ou qualquer prática ritual e revive a mentalidade primordial que se funda a identidade religiosa de cada membro, arquétipos míticos que passam a fazer parte do sujeito religioso e invocados em inúmeras situações para explicar mundo. Neste sentido, para tais religiosos o mito desempenha função indispensável, pois, exprime, enaltece e codifica a crença, revela e impõem princípios morais, garante a eficácia dos rituais e oferece regras e

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práticas para a orientação humana. São capazes de criar espaços, lugares específicos, que rememoram os ancestrais mais distantes, N’kisi, mas que expressão a forças das divindades em seus aspectos mais abstratos de natureza bruta. Elementos que estão presentes nos diversos bengues das divindades cultuados no interior dos territórios-terreiros.

Referências

BARROS, Jose Flavio P. O Segredo das Folhas: Sistema de Classificação de Vegetais no Candomblé Jêje-Nagô do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas e UERJ, 1993.

BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: Rito Nagô. São Paulo: Edusp, 1978.

BENISTE, José. As Águas de Oxalá: Àwon Omi Òsàlá. 2a ed, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

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Referências

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