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RENATO FLEURY ( ) E A PROPOSTA DO MÉTODO MISTO PARA O ENSINO DA LEITURA EM ESCOLAS RURAIS

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RENATO FLEURY (1890-1985) E A PROPOSTA DO MÉTODO “MISTO” PARA O ENSINO DA LEITURA EM ESCOLAS RURAIS

Cyntia Grizzo Messenberg FFC-Unesp-Marília Resumo

Com o objetivo contribuir para a compreensão de um importante momento na história do ensino da leitura no Brasil, focaliza-se, neste texto, a proposta para esse ensino apresentada por Renato Fleury (1895-1980), na cartilha Na roça: cartilha rural para alfabetização rápida, destinada, especialmente, a alunos da zona rural e publicada pela Editora Melhoramentos, com 1ª. edição, em 1935, e a última, a 133ª., em 1958. Mediante abordagem histórica centrada em pesquisa documental e bibliográfica, desenvolvida por meio de procedimentos de localização, recuperação, reunião, seleção, ordenação e análise de fontes documentais e de leitura da bibliografia especializada sobre o tema, analisou-se a configuração textual da cartilha mencionada, para compreender os aspectos constitutivos do seu sentido. Por meio dessa análise, foi possível constatar que nela estão contidas as principais características do método “misto” para o ensino inicial da leitura, que passou a ser considerado o mais rápido e eficiente, a partir daquele momento histórico.

Palavras-chave: Método misto. Renato Fleury. Ensino da leitura. Ensino rural. História da educação.

Introdução

A pesquisa sobre a história da alfabetização, no Brasil, vem aumentando nos últimos anos e isso tem contribuído para a compreensão de significativos aspectos relacionados ao ensino inicial da leitura. A constatação do aumento do número dessas pesquisas pode ser ressaltada, comparando-se com os resultados das pesquisas que vem sendo apresentadas em eventos científicos de história da educação e em artigos e periódicos nessa temática1.

A história dos métodos de ensino, especificamente, também ganhou destaque e alguns pesquisadores vêm contribuindo para que inúmeros aspectos da história do ensino da leitura, no Brasil, sejam compreendidos, possibilitando, dessa forma, pensar em soluções para os problemas desse ensino, no presente. Considerando a relevância e pertinência dessa temática, apresento, neste texto, breves resultados de pesquisa com o objetivo de contribuir para a compreensão de um importante momento da história da alfabetização no Brasil.

1

O estudo mais recente, que pude localizar, foi de Oriani (2008), que focaliza a abordagem histórica na produção acadêmica sobre alfabetização no Brasil entre 1979 e 2007.

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Nas décadas iniciais do século XX, no Estado de São Paulo, ocorriam disputas em torno do método mais adequado para o ensino da leitura e escrita, em que estavam sendo questionados, além de aspectos didáticos, aspectos políticos. A partir da segunda década do século XX, principalmente, a ênfase das discussões relativas a esse ensino, transfere-se dos aspectos lingüísticos e pedagógicos para os aspectos psicológicos, e dessa maneira, esses dois processos são atrelados e denominados alfabetização. Em decorrência, houve uma relativização dos métodos de ensino e o método “misto” ou “eclético” para o ensino da leitura e escrita passou a ser utilizado nas cartilhas de alfabetização e livros de leitura propostos pelos educadores desse momento histórico, por ser considerado o mais rápido e eficiente.

Dentre esses educadores está o professor paulista Renato Sêneca Fleury (1895-1980), que contribuiu com a propagação desse método de ensino dedicando parte de sua produção ao ensino rural. Compreender o seu lugar na história, considerando como propôs o método misto para o ensino inicial da leitura aos alunos das escolas rurais, relacionando-o com o momento histórico da alfabetização no Brasil, é um dos objetivos neste texto.

Como primeira etapa da pesquisa, elaborarei um instrumento de pesquisa por meio da utilização de procedimentos de localização, recuperação, reunião, seleção e ordenação de referências de textos escritos por Renato Fleury e de textos escritos por outros autores com menções a Fleury, sua atuação profissional ou produção escrita e/ou citações de textos seus. A partir disso, selecionei a cartilha Na roça: cartilha rural para alfabetização rápida, para analisar a configuração textual e compreender os aspectos constitutivos do seu sentido

Apresento, portanto, os principais resultados da análise da configuração textual dessa cartilha, que teve sua primeira edição publicada, em 1935, a partir de uma encomenda da Companhia Melhoramentos de São Paulo (Weiszflog Irmãos Incorporada) – atualmente Editora Melhoramentos – ao professor Renato Fleury, juntamente com uma série de leitura que foi publicada um ano depois e destinada aos alunos da zona rural.

Em texto introdutório da 25ª. edição da cartilha analisada2, Fleury ([194?], p. 5) alerta que

2

Destaco que localizei cinco referências de edições diferentes da cartilha Na roça, a fim de compreender a proposta inicial do autor, optei por analisar o exemplar de edição mais próxima da primeira.

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[...] graças a conjugação da análise e da síntese, por um processo misto que abrange, a um tempo, a sentenciação, a palavração, a silabação e a deletreação, chegamos a um sistema que oferece reais vantagens com proporcionar resultados rápidos e seguros.

Diante dessa afirmação do autor e após breve análise das cartilhas que o antecederam ou que lhe são contemporâneas3, pude observar que a cartilha Na roça, apesar de ser destinada às crianças da zona rural, dialoga, de certo modo, com o método de ensino apresentado nas cartilhas sintéticas e nas cartilhas analíticas que circularam no estado de São Paulo em épocas anteriores.

Passo a apresentar, a seguir, os principais resultados da análise da configuração textual da cartilha Na roça, que consistiu em enfocar os diferentes aspectos constitutivos do seu sentido, a saber: formação e atuação profissional do autor; momento histórico e lugar em que foi produzida a cartilha; aspectos estruturais-formais e temático-conteudísticos nela expressos; aspectos da utilização prevista para a cartilha; objetivos e necessidades a que respondia; e sua relação com o método misto proposto por educadores da época que foi publicada, principalmente destinada à população rural.

Para esclarecer alguns conceitos fundamentais que abordarei neste texto, apresento a definição para métodos de ensino que Rafael Grisi propôs, em 1946, em artigo intitulado O ensino da leitura: o método e a cartilha:

Método sintético – Considerado historicamente como o primeiro – é o que consiste no ensino ou aprendizado da leitura e da escrita segundo a ordem de complexidade crescente do material gráfico, a partir dos “elementos” alfabéticos. [...] Método analítico – É o que consiste no ensino ou aprendizado da leitura e da escrita segundo a ordem de decomposição progressiva do material, a partir portanto de “todos” gráficos, isto é, sentenças ou palavras. [...] Método misto ou analítico-sintético – [...] tende a reunir as simpatias gerais. Teoricamente, duas são as suas modalidades: a primeira consiste no ensino prévio das letras ou silabas4, seguido imediatamente de suas combinações em palavras e sentenças; a segunda, na apresentação de frases e vocábulos que são imediatamente decompostos em silabas e letras. (GRISI, 1946, p. 3-4, grifos do autor).

3

Refiro-me aqui, em especial, às seguintes cartilhas: Cartilha do povo - para ler rapidamente (1928) e

Upa, cavalinho! (1957), ambas de autoria de M. B. Lourenço Filho (1897-1970); Cartilha analytica,

escrita pelo professor paulista Arnaldo de Oliveira Barreto (1869-1925); Meu livro: primeiras leituras de accôrdo com o methodo analytico, escrita pelo professor paulista Theodoro de Moraes (1877-1956);

Cartilha Proença, escrita pelo professor paulista Antonio Firmino de Proença (1880-1946); Nova cartilha analytico-synthética, escrita pelo professor paulista Mariano de Oliveira (1869-19--); e, Cartilha da infância, escrita pelo professor paulista Thomaz Galhardo (1855-1904).

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Por se tratar de pesquisa histórica, nesta e nas demais citações e títulos de livros manterei a ortografia de época.

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Ressalto que a opção em apresentar a definição de Grisi para métodos de ensino se deve, principalmente, pelo fato dele ter sido um pioneiro a sistematizá-los, conforme a utilização naquele momento histórico; e as definições que o sucederam compartilham com a sua definição.

1. Apresentação de Renato Sêneca Fleury5

A contribuição de Renato Fleury para a educação no Brasil associa-se à sua intensa atuação no magistério paulista e à sua extensa produção em diversas áreas do conhecimento, com destaque para os livros de literatura infantil e juvenil e as cartilhas destinadas à alfabetização de crianças.

Nascido em 22 de setembro de 1895, na cidade de Sorocaba, interior paulista, Renato Fleury iniciou as suas atividades aos nove anos, quando fundou O Ypiranga, um pequeno jornal escrito à mão. Diplomou-se, em 1912, pela Escola Normal da Praça da República, na cidade de São Paulo-SP, e, um ano depois, exerceu o cargo de professor de escola isolada em Piracaia-SP, onde dirigia grupos escolares e recomendava o método misto para a alfabetização, antes mesmo de ter qualquer texto seu publicado. Exerceu cargos diferentes no magistério paulista, entre 1913 e 1943 (ano em que se aposentou), dentre esses: inspetor de escolas normais; professor na escola de formação de professores primários, em Sorocaba; diretor de ginásios estaduais em Itu, São Carlos e Ribeirão Preto; e, delegado de ensino, em Araraquara.

Em decorrência da experiência como professor, Fleury destinou grande parte de sua produção às biografias de brasileiros reconhecidos na história do Brasil, os quais foram adaptadas e destinadas ao público infantil e juvenil. Vale ressaltar que, no ano de 1929, Fleury foi empossado como membro da Academia Brasileira de Literatura Infantil e, no ano de 1959, recebeu o primeiro prêmio Jabuti de literatura infantil, com o livro Proezas na Roça, livro publicado quando? Além dessa produção destinada às crianças e aos jovens, Fleury foi um dos fundadores da revista de educação ABC6, e escreveu: artigos e colunas para jornais, cartilhas, livros de leitura, ensaios, entre outros.

2. Apresentação de Na roça: cartilha rural para alfabetização rápida

5

As informações deste tópico foram extraídas, principalmente, de Grohmann (2008) e Melo (1954). 6

A Revista ABC... foi uma revista literária local que circulou apenas por seis meses, em Sorocaba-SP. Foi editada, em 1914, pela Typographia Werneck e teve como redatores: o fundador da tipografia Braulio Werneck, o jornalista F. Camargo César e os professores Luiz Fleury, Renato Fleury e Luiz do Amaral Wagner. Para maiores informações sobre essa revista e a sua circulação conferir, especialmente, Pinto Junior (2003).

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Entre 1935 e 1958, Na roça foi editada 133 vezes, totalizando 278 mil exemplares, distribuídos em vários estados do país.

Analiso um exemplar da 25ª edição da cartilha Na roça que, apesar de não constar a data de edição, pude presumir, por meio de uma análise comparativa entre as diferentes referências que localizei, que foi publicada na década de 40 do século XX. Por esse motivo, toda vez que me referir à data provável de edição desse exemplar, utilizarei [194?].

Em texto introdutório da cartilha destinado aos professores, Fleury explica que a cartilha é destinada “[...] ao ensino intensivo da leitura nas escolas rurais, visando abreviar o aprendizado, sem exigir grande esfôrço da criança.” (FLEURY, [194?], p.5) e apresenta sugestões de como utilizá-la na sala de aula:

As cinco primeiras lições demandam preparo no quadro negro. Escreverá o professor uma ou duas sentenças das mais típicas, levando os meninos a um trabalho de análise e síntese semelhante ao da cartilha. Da sexta em diante, o preparo pode ser feito assim: leia o professor pausadamente, com clareza e expressão, a página toda (na parte analítico-sintética a leitura será por colunas), devendo as crianças acompanhar a leitura em seus livros. Lerá mais de uma vez, se lhe parecer necessário. Chame o aluno mais ativo para ler, ajudado pelos colegas e o professor, sempre que preciso. Depois é que os alunos lerão. Cada palavra mal sabida será escrita no quadro negro para ficar bem conhecida. (FLEURY, [194?], p. 5).

2.1 As sentenças7 e as lições

No texto introdutório da cartilha, destinado aos professores, o autor explica que, por se tratar do “método misto” de alfabetização, as lições são compostas por duas partes que estão inter-relacionadas e não devem ser trabalhadas separadamente. Não há indicação, porém, do início e do término de cada lição.

Pude constatar que há variações do número de sentenças nas lições, cujas quantidades de frases e palavras vão aumentando gradativamente. Têm-se quatro sentenças na primeira lição, e 34 na última, que é um poema. Algumas lições não são compostas por sentenças, mas por colunas com famílias silábicas das letras apresentadas nas lições anteriores; essas famílias silábicas retomam o conteúdo das lições anteriores e, de acordo com as orientações do autor, essa é a parte analítico-sintética. No total de 58 lições, 12 são compostas desse modo.

7

No texto introdutório destinado aos professores, Fleury explica que: “As sentenças não devem ser

decoradas, mas entendidas. Sentenças são meros veículos de palavras; estas, veículos de sílabas, que

ensejam, em grande parte espontâneamente, o domínio das letras.” (FLEURY, [194?], p. 6, grifos do autor).

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A maioria das sentenças se relaciona entre si, porém, por serem sentenças curtas, também têm sentido independente das demais. Optei por considerar cada conjunto de sentenças como uma “historieta”, considerando a semelhança entre cada conjunto dessas sentenças e o conjunto de sentenças proposto para se iniciar o ensino da leitura pelo método analítico, no documento Instrucçoes praticas para o ensino da leitura pelo Methodo Analytico, publicado em 1915 e assinado por Ramon Roca Dordal, Mariano de Oliveira e Arnaldo Barreto.

Nesse documento, os autores explicam que o “primeiro passo” para o ensino é:

[...] provocar, em palestras, a observação dos alumnos de preferencia sobre um objecto ou qualquer estampa, levando-os a enunciarem sentenças (cinco, ou seis, nas primeiras lições) relacionadas umas com outras, de modo que o objecto logico de uma seja empregado como sujeito da sentença imediata. O todo formará uma pequena historia descriptiva do objeto ou da estampa que serviu de assumpto à lição. As sentenças devem corresponder à natural vivacidade do espirito infantil. (DIRECTORIA GERAL DA INSTRUCÇAO PUBLICA, 1915, p. 5).

As “historietas” tratam de temas que remetem a aspectos da vida na zona rural e a animais que nela vivem, tais como: boi, galinha e tico-tico. Algumas “historietas”, especificamente das lições finais, têm como tema central ensinamentos gerais, tais como: o nome dos dedos das mãos, os meses do ano e as datas comemorativas brasileiras e a bandeira do Brasil.

O elemento central do tema de todas as lições, porém, é escolhido pelo autor, de acordo com a letra a ser estudada na lição. Como exemplo, o animal apresentado na primeira lição é o boi, o tema da historieta está relacionado ao boi, e a letra estudada na lição é “b”.

3. Momento histórico de produção e a proposição do método misto

Na década que antecedeu a publicação da cartilha Na roça, o método analítico havia sido institucionalizado em contraposição ao método sintético e, os defensores do método analítico começaram a disputar a melhor maneira de processar esse método: a palavração, a silabação ou a “historieta”. Ou seja, diante do significativo número de analfabetos, haviam aqueles que buscavam sempre propor um novo método para o ensino da leitura e da escrita que proporcionasse resultados mais rápidos e imediatos em relação aos "métodos tradicionais".

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Ocorre, então, uma dispersão das disputas em torno dos métodos de alfabetização e a ênfase dada ao método mais eficiente para o ensino da leitura e escrita vai sendo secundarizada, enquanto que à alfabetização são atribuídas novas bases, fundamentações teóricas e novos fins, pautados, principalmente, nos ideais psicológicos disseminados por Manuel Bergström Lourenço Filho8, que “institucionalizou” sua proposta no livro Teste ABC: para verificação a maturidade necessária ao aprendizado da leitura e escrita (1934).

A partir disso, outros métodos de alfabetização passam a ser propostos, entre eles, o método “analítico-sintético”, ou “misto”, ou “eclético”, que proporciona um aprendizado rápido e satisfatório.

Fleury explicita a sua opção pelo método misto, em nota introdutória da cartilha, justificando, inclusive, que a opção em misturar a síntese e a análise está relacionada com a maneira de compreender a complementaridade entre elas:

Como a análise e a síntese são correlatas, a uma seguindo-se outra imediatamente – sem o que a operação do espírito é incompleta – ensejam-se frequentes análises e sínteses, de modo que o aprendiz, em regra, analisa, sintetiza, analisa de novo para ainda uma vez sintetizar.

(FLEURY, [194?], p.5)

Observa-se que para propor o método misto para o ensino da leitura o autor considera a exeqüibilidade dos métodos de ensino propostos e utilizados nos momentos anteriores, inclusive pelo fato dele ter utilizado, por mais de 20 anos, enquanto professor de escola isolada. Ele orienta aos professores que “Cada lição, partindo de sentenças e atingindo, pela análise, uma letra predominante, apóia-se principalmente nas sílabas. A prática já demonstrou que esse apoio é essencial.” (FLEURY, [194?], p.5); e alerta que;

As lições podem parecer extensas. Sê-lo-iam, realmente, se esta cartilha fosse exclusivamente analítica. Entretanto, podem elas desdobrar-se, pois constam, nitidamente, de duas partes, intimamente relacionadas, mas perfeitamente distintas.

Não aconselhamos, contudo, o desdobramento. É preferível maior detença em cada lição, recapitulando-a como discreta insistência, enquanto possa interessar aos pequenos. Em vindo o desinteresse, urge passar a nova lição. (FLEURY, [194?], p.5)

8

Manuel Bergström Lourenço Filho nasceu no dia 10 de março de 1897, em Porto Ferreira, São Paulo. “Fêz os estudos preliminares em sua cidade natal [...] Formado, em 1914, pela Escola Normal de Piraçununga; em 1917, pela Escola Normal Secundária da Capital e, em 1929, pela faculdade de Direito de S. Paulo. Freqüentou durante dois anos a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Exerceu o magistério de 1920 a 1930.” (MELO, 1954, p. 320). Além do magistério exerceu diferentes funções no meio acadêmico de sua época, como: chefe de gabinete, diretor, redator de textos publicados em revistas e jornais, entre outros. Para maiores informações sobre a vida e atuação profissional desse educador, ver, especialmente, Bertoletti (1997 e 2006).

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Constata-se que as lições da cartilha são divididas e intercaladas entre partes que envolvem a análise e outras que envolvem a síntese. Apesar de a maioria iniciar com uma historieta e conter características mais semelhantes às cartilhas analíticas, o autor ressalta que ela não é exclusivamente analítica, propondo, portanto, que o conteúdo da lição não seja desdobrado.

Pelo exposto, pode-se considerar que Na roça foi elaborada seguindo os princípios do método “misto”, debatido e consentido pelos professores da época, a fim de responder a urgências sociais e políticas do país.

3.1 Na roça e a ruralização do ensino

De acordo com Nagle (1974, p. 12), a década de 30 é constituída pela “[...] fase de instalação do capitalismo no Brasil, e, portanto, se define como período intermediário entre o sistema agrário-comercial e o urbano-industrial, os dois grandes ciclos da vida econômica brasileira.”.

A economia cafeeira dominava o setor econômico no Brasil especificamente em dois estados brasileiros, São Paulo e Minas Gerais. Essa produção de café era significativa e sustentava a economia do país, inclusive com a exportação. Eram praticamente inexistentes outras atividades econômicas e o Brasil se mostrava bastante dependente dessa. Mas, de acordo com Nagle (1974, p. 14), “[...] certos elementos da estrutura colonial de produção provocaram a introdução de mudanças no processo econômico, atingindo a estrutura social.”.

Tais mudanças estavam ligadas aos interesses daqueles que ansiavam que o país ampliasse sua atividade econômica para além da cafeeira.

Algum esforço marcante, como se nota, já havia sido feito no sentido de diversificar o sistema produtivo. A industrialização, na década dos anos vinte, será outro componente do setor econômico a influenciar os quadros da sociedade brasileira. Já então começa a se definir a passagem do sistema: baseado na agricultura de exportação, orienta-se no sentido de uma sociedade semi-industrial. (NAGLE, 1974, p. 15).

Com isso, houve um significativo aumento do número de pessoas que saiam do campo em busca de melhores condições de vida nos grandes centros urbanos, e, dessa forma, alguns reagiram, defendendo que “Não é possível o progresso dos centros urbanos sem o desenvolvimento paralello da zona rural.” (FLEURY, [193-?], p. 5).

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Tendo, então, o objetivo de “romper a tradição e adaptar a educação”, “[...] a ruralização do ensino significou [...] a colaboração da escola na tarefa de formar a mentalidade de acordo com as características da ideologia do ‘Brasil-país-essencialmente-agrícola’.” (NAGLE, 1974, 234).

De acordo com Silva (1957, p. 15), a educação rural “[...] consiste em orientar as populações das zonas rurais no sentido da formação adequada ou conveniente às mesmas, vinculando-as ao meio e levando-as a reagir de modo eficiente sôbre este.”.

[...] a escola primária de zona rural, na qualidade de primária tem, necessariamente, as mesmas finalidades de nossa escola comum desse grau, sendo sua função precípua, a educação integral. Cabe-lhe, outrossim, oferecer ensino que responda às necessidades e às características da vida regional, a fim de adaptar o indivíduo às realidades locais e fixá-lo ao meio, capacitando-o a reagir vigorosamente sobre o mesmo. (SILVA, 1957, p. 32).

As escolas rurais passaram, então, a ser meios de propagar o sentimento nacionalista do país, uma vez que na década de 1920

[...] começa a se operar uma mudança que deve ser ressaltada: a tendência é substituir o conteúdo ‘patriótico’, puramente sentimental e de teor idealista de nacionalismo por um outro conteúdo que se baseia mais no ‘conhecimento’ que se deve ter da terra e da gente brasileira.

(NAGLE, 1974, 232).

Com o passar dos anos, a ruralização do ensino é difundida no país, inclusive no estado de São Paulo.

E embora na reforma paulista a regionalização do ensino não apareça de forma assim tão marcante, será no Estado de São Paulo que, sintomaticamente, aparecerá a mais perfeita obra comprometida com o processo de ruralização do ensino [...] (NAGLE, 1974, p. 234-235). A cartilha Na roça traz algumas características pontuais dessa ruralização do ensino. Como informei, o autor apresenta na cartilha lições, cujos temas são característicos da vida rural. Além disso, a partir da terceira parte da cartilha são apresentadas lições de caráter explicitamente nacionalista, como, por exemplo: as datas comemorativas do país (Descobrimento, Independência, proclamação da República); e uma lição intitulada “Nossa terra”, que traz sentenças que qualificam o país e informa como cooperar para seu desenvolvimento.

Para ser possível uma visualização do que aponto, optei por transcrever, abaixo, o texto dessa lição, por ser que considero ilustrativo desse movimento significativo do Brasil.

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Nossa terra

Nossa terra é o Brasil. Somos todos brasileiros.

O Brasil é um dos maiores países do mundo. É um país grande e próspero.

Os estrangeiros que vivem aquí, gostam muito do Brasil; e dizem que já são brasileiros também.

Nossa pátria, o Brasil, para ser mais bela, mais forte e melhor, precisa de todos nós. Precisa de nosso trabalho.

Por isso devemos aprender muito, trabalhar bastante e respeitar a lei. Quando formos grandes, tudo havemos de fazer pelo bem de nossa terra.

O melhor modo de ser útil à pátria é cultivar os campos.

O lavrador e o criador são os homens mais úteis ao Brasil.

(FLEURY, [194?], p. 63).

Por meio da leitura desse texto, é possível constatar a ênfase que é dada aos trabalhadores do campo, à terra e ao cultivo da terra pelo povo brasileiro. Além disso, o texto faz menção aos imigrantes que estavam chegando ao nosso país e à importância do trabalho coletivo.

Utilizei o texto acima como um representativo das idéias do movimento ruralista presentes na cartilha analisada. Esse movimento estava ocorrendo, como já informei, em um momento que no país estavam sendo instaladas indústrias e aumentando a produção mecanizada, apesar da resistência de uma parcela significativa da população.

Porém, segundo Silva, em seu livro editado 22 anos após a publicação da cartilha Na roça:

[...] só teremos a verdadeira escola rural quando ela fôr capaz de se tornar o centro da irradiação de cultura na zona em que atuar quando for capaz de modificar o ambiente humano, melhorando-o; quando puder, enfim, contribuir para o aproveitamento integral das possibilidades da zona rural, através do conhecimento e da exploração inteligente da terra, bem como da elevação do nível de vida de nossas populações rurícolas; quando ensinar o homem do campo a vencer as endemias, a sub nutrição e a não devastar as reservas naturais, pelo desconhecimento total dêste problema; quando contribuir para a recuperação dessa grande massa de população do País – o anônimo e desassistido trabalhador rural que, assim mesmo, ainda fornece os elementos básicos de nossa subsistência e, verdade histórica, tem mantido em equilíbrio a situação econômica de nossa terra. (SILVA, 1957, p. 35).

Considerações finais

Por meio dos resultados da análise da configuração textual, apresentados neste texto, é possível concluir que Na roça: cartilha rural para alfabetização rápida

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representa a proposição do método misto, em que Renato Fleury possibilita, aos professores da zona rural, a obtenção de resultados rápidos e eficientes quanto ao ensino inicial da leitura. Essa proposta do autor foi significativamente importante naquele momento histórico, considerando que a disputa sobre os métodos de alfabetização tinha sido secundarizada e que eram poucos os educadores que se dedicavam a publicar livros destinados ao ensino da população rural, tendo em vista a precária valorização que lhes era concedida

Além disso, foi possível constatar que Na roça representa uma das contribuições do autor para a propagação dos ideais defendidos pelo movimento de ruralização do ensino, que “agitou” o país, principalmente em meados da década de 20 do século XX.

Esses resultados possibilitam confirmar a relevância e pertinência das pesquisas históricas em educação, inclusive dessa que venho desenvolvendo, pois possibilita a aproximação de um remoto momento histórico que continua influenciando e permeando as discussões do presente.

Referências

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______. Lourenço Filho e a alfabetização: um estudo de Cartilha do Povo e da cartilha Upa, cavalinho! São Paulo: Editora Unesp, 2006.

DIRECTORIA GERAL DA INSTRUÇÃO PUBLICA. Instruções praticas para o ensino da leitura pelo methodo analytico –modelo de lições. São Paulo: Typographia do “Diario Official”, 1915. (Pelos professores Arnaldo de Oliveira Barreto, Ramon Rocca Dordal e Mariano de Oliveira).

FLEURY, Renato Sêneca. Na roça: cartilha rural para alfabetização rápida. 25. ed. São Paulo: Melhoramentos, [194?].

______. FLEURY, Renato Sêneca. Educação rural: ensaio. São Paulo: Companhia Melhoramentos, [193-?].

GRISI, Rafael. O ensino da leitura: o método e a cartilha. Educação, São Paulo, v.32, 36-90, 1946. (Separata da revista Educação)

GROHMANN, Marta Miquelina. Informações sobre Renato Sêneca Fleury [mensagem pessoal]. Mensagem recebida em 5 ago. 2008.

LOURENÇO FILHO, Manoel Bergström. Testes ABC: para a verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e escrita. São Paulo: Melhoramentos, 1934.

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MELO, Luis Correia de. Dicionário de autores paulistas. São Paulo: Irmão Andriolis, 1954. (Comissão do VI Centenário da cidade de São Paulo).

NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda. (EPU); Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Material Escolar, 1974.

ORIANI, Angélica Pall. A abordagem histórica na produção acadêmica sobre

alfabetização no Brasil (1979-2007): um instrumento de pesquisa. Revista de iniciação científica da FFC. Marília, v.8, n.2, p. 163-173, 2008. Disponível em:

<http://www.portalppgci.marilia.unesp.br/ric/viewarticle.php?id=165&layout=abstract> Acesso em 2 fev. 2009.

PINTO JUNIOR, Arnaldo. A invenção de “Manchester Paulista”: embates culturais em Sorocaba (1903-1914). 2003. 206 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Campinas, São Paulo, 2003. Disponível em: < http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000311541>. Acesso em 05 de jun. 2008, às 15h30.

SILVA, Ruth Ivoty Torres da. A escola primária rural. 2. ed. Rio de Janeiro; Porto Alegre; São Paulo: Editora Globo, 1957. Biblioteca vida e educação. vol. 10.

Referências

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