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TUDO O QUE É FEITO PELOS NEGROS E NEGRAS DO BRASIL É HISTÓRIA DA ÁFRICA? ALGUMAS QUESTÕES SOBRE OS PROBLEMAS DE MÉTODO E CONFUSÕES EPISTEMOLÓGICAS.

Ivaldo Marciano de França Lima. 1

ivaldomarciano@yahoo.com.br Resumo: As práticas e os costumes dos negros e negras do Brasil podem ser descritas como parte da história da África? É possível afirmar que o uso do conceito “diáspora” é feito sem maiores problemas para os mais diversos povos do continente africano? Tais questões estão bem resolvidas na bibliografia recente, escrita por africanistas no período pós - lei 10639/2003? Este trabalho tem como objetivo discutir estas e outras questões, enfatizando os problemas de paradigma e de perspectiva existentes na História da África entre os africanistas brasileiros, enfatizando que as dificuldades são pertinentes a uma grande confusão entre a cultura negra brasileira e as religiões de divindades com a História da África, como se todos os negros fossem africanos. Para este trabalho foram utilizados e discutidos de forma crítica as recentes publicações de historiadores africanistas brasileiros, além da bibliografia clássica produzida pelos historiadores africanos.

Palavras chaves: História da África, cultura negra, lei 10639/2003, África, Brasil. Faz-se necessário desde já estabelecer uma questão para que os leitores e as leitoras não percam tempo tentando descobrir meus pontos de vistas expressos no texto: compartilho da ideia de que a História da África não é feita pelos aspectos relacionados com as práticas e os costumes dos negros e negras deste país. A meu ver, A história da cultura negra brasileira, bem como das religiões de terreiros existentes ao longo do país não devem ser tomadas como parte dos feitos diretamente vinculados aos diversos povos do continente africano. Creio não ser possível a relação entre os negros e as negras deste país como uma continuidade natural do continente africano. Tal perspectiva se constitui numa biologização da história, naturalizando-a. Este aspecto,

1 Professor adjunto do Departamento de Educação/ Colegiado de História da Universidade do Estado da Bahia, campus II (Alagoinhas).

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por sinal, deve servir como objeto de estudo para os africanistas brasileiros preocupados com o estudo das questões relacionadas com a história da África e os seus desdobramentos em nosso país. Será que esta biologização da história dos negros e negras deste país, tomando-os como africanos ou descendentes destes, não os remete a uma situação de estrangeiros na própria terra? Esta é uma questão que merece maiores reflexões, entretanto, tal aspecto cria, sem dúvidas, problemas diversos no que diz respeito aos estudos sobre o continente africano em nosso país, assim como gera uma bibliografia que agrega confusões e mitos (no sentido coloquial!) para o conhecimento da História, a começar pela ideia de que o estudo do maracatu ou candomblé é parte da história da África.

Tenho que estabelecer outra discussão, antes de prosseguir com as reflexões que neste momento estou entabulando. Em relação ao conceito de diáspora, bastante usado por diferentes estudiosos sobre o continente africano, faz-se necessário destacar alguns problemas que tornam seu uso para lá de complexo. Ao que me parece, a analogia estabelecida entre os judeus e os africanos, questão que justifica o uso deste conceito para os indivíduos que foram arrancados da África e levados para outras partes do mundo, só pode ser feita se tomarmos ambos como sinônimos. Assim sendo, os africanos são aqui entendidos como um povo, e que, conforme os judeus foram espalhados pelo mundo em situações diversas. Não estou aqui negando que as situações diferem em relação aos contextos.

Há comunidades de negros e negras em diferentes partes do mundo que criaram laços e vínculos entre si, dispondo de poucos liames com as sociedades maiores que os cercam. Tais realidades, entretanto, não podem ser tomadas com regra, e o paradigma para nortear nossos estudos não pode ser baseado na cor da pele, ou mesmo na perspectiva racial. Por mais que entenda como válido o uso do conceito de raça, não podemos tomar como verdade, ou algo dado, a ideia de que os negros e negras de diferentes partes do mundo são pura e simplesmente descendentes dos africanos. O conceito de diáspora, nesse sentido, precisa sofrer novas reflexões, de modo que

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tenhamos êxito em superar as influências do pan-africanismo, que ainda norteia a maior parte dos estudos sobre o continente africano, bem como dos negros e negras das Américas.

No que tange aos problemas decorrentes da confusão existente no seio dos estudiosos, que misturam a História da África com a cultura negra, ou mesmo com o grande conjunto de práticas e costumes dos negros e negras do Brasil, insisto em afirnar que tal questão emerge das relações que foram constituídas ao longo dos anos pelos movimentos negros brasileiros com diferentes intelectuais e estudiosos. Grande parte daqueles e daquelas que insistem em seguir tais perspectivas, embasados na compreensão de que todos os negros e negras são descendentes de africanos, terminam por enveredar (ou mesmo reabilitar) na ideia das sobrevivências, ou permanências, questão cara para estudiosos da primeira e segunda metade do século XX, ao exemplo de Roger Bastide, que afirmava em seus trabalhos teses polêmicas, como a compreensão de que os terreiros de candomblé baianos nada mais eram do que ilhas de África no

Brasil. 2 Outros estudiosos do período, a exemplo de Arthur Ramos, Herkovits, e

mesmo Pierre Verger, viam no que era feito por negros e negras deste país uma espécie de continuidade natural do que era feito pelos homens e mulheres do continente

africano. 3 Tanto a metáfora de ilha, bem como a compreensão de uma prática religiosa

cristalizada no tempo e no espaço, atribui ao candomblé o sentido mais “atrasado” que se pode ter de uma religião dinâmica e em permanente diálogo com a sociedade em que

2 BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil – contribuição a uma Sociologia das

interpenetrações das Civilizações. São Paulo: Pioneira/USP, 1971; BASTIDE, Roger. Estudos

afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1973; BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste místico em branco e

preto. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1945; BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

3 RAMOS, Arthur. As culturas negras no novo mundo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, 4ª edição; RAMOS, Arthur. O folk-lore negro do Brasil – demopsychologia e psycanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935; RAMOS, Arthur. O negro Brasileiro. Recife: Fundaj / Massangana, 1988 [1934]; LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967; CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. São Paulo: Martins Fontes, 2008; CARNEIRO, Edison.

Negros Bantus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937; CARNEIRO, Edison. Os Cultos de Origem

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está imersa, bem como com o tempo presente. Nada é mais atual do que o candomblé, e

os recentes estudos sobre o tema falam por si. 4

A lei 10639/2003 também traz em seu seio as influências do pan-africanismo, de entender que os negros e negras se constituem em descendentes naturais do continente africano. Não se pode negar os aspectos positivos da lei, mas é preciso ressaltar que as formas como esta estabelece os liames entre negros e africanos é para lá de confusa, e em alguns casos os define como sinônimos, como se ambos fossem uma só entidade. O mesmo argumento serve também para a relação estabelecida entre a história do continente africano e a história da “cultura afro-brasileira”. Eis por que grande parte dos cursos de especialização lato sensu espalhados pelo país possuem matrizes curriculares confusas, mesclando temas da cultura negra brasileira e das religiões de divindades e de entidades, como se fossem parte da história da África.

Os negros e negras deste país devem ser vistos como cidadãos e cidadãs em seu sentido mais pleno, assim como a história da cultura negra (maracatus, afoxés e etc) e das religiões de divindades e de entidades (candomblé, xangô, batuque, tambor de mina e etc) devem ser entendidas como parte da história do Brasil, mesmo que tragam consigo diálogos com as práticas e costumes de alguns povos do continente africano.

Tais diálogos, entretanto, devem e não podem estabelecer estas histórias como dotadas de continuidades naturais. História do Brasil, com todo respeito, não é história da África! Isto não me permite, sob hipótese alguma, negar a possibilidade de recorrer à segunda para tentar entender aspectos e questões circunstanciais da primeira. Assim como, em alguns momentos, deve-se recorrer à mesma para buscar razões e significados existentes nas religiões de divindades, bem como diversas práticas e costumes existentes no Brasil. Mas, é preciso dispor de tal possibilidade com bastante precaução, dimensionando o caráter e grau das ressignificações existentes em tais práticas e costumes. Procurei buscar esta compreensão nos maracatus pernambucanos, sempre

4 CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé. Tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas/Contracapa, 2004.

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entendendo que se tratava de construções operadas por brasileiros, e como tal, para

entendê-los não se fazia necessário recorrer à História do continente africano. 5 História

da África não é História do candomblé ou do maracatu!

O mais grave deste problema pertinente à confusão entre a história da cultura “afro-brasileira” e a história da África relaciona-se com algumas publicações recentemente lançadas, especialmente a obra Áfricas no Brasil, voltada para os alunos e alunas do ensino médio. O título da obra, publicada pela Editora Scipione, já indica as pistas da confusão, contribuindo para que mais névoas sejam jogadas à história do continente africano. 6 Aliás, o título em questão nos remete para a ideia de que as práticas e costumes de negros e negras, nascidos em solo brasileiro há muitos anos, ainda se constituem em heranças “puras” do continente africano no Brasil. Mais do que nunca, o paradigma das sobrevivências, caro à Antropologia evolucionista, continua

atual. 7 O livro História da África e afro-brasileira, publicada pela Editora Selo Negro,

traz consigo os equívocos da mistura entre a história do continente africano e da cultura

produzida pelos negros e negras do Brasil. 8 A obra tem como agravante a ideia de que

entre um tema e outro existe a relação consubstanciada na busca pelas origens, como se o fato de ser negro fosse algo diretamente relacionado com sua descendência ao continente africano, naturalizando e essencializando a questão da cor da pele, dando a esta um caráter racial típico do racialismo científico.

Outra obra, que tem como título História e cultura afro-brasileira, publicado no

ano de 2007 pela Editora Contexto, também corrobora com esta confusão. 9 Este

trabalho está focado no cumprimento, ao pé da letra, da lei 10639. A primeira parte do livro referido traz a história das sociedades da África ocidental, oriental e

5 LIMA, Ivaldo Marciano de França. Maracatus e maracatuzeiros: desconstruindo certezas, batendo

afayas e fazendo histórias. Recife, 1930-1945. Recife: Edições Bagaço, 2008; LIMA, Ivaldo Marciano de França. Identidade negra no Recife: maracatus e afoxés. Recife: Bagaço, 2009.

6 ARAÚJO, Kelly Cristina. Áfricas no Brasil. São Paulo: Scipione, 2004.

7 CASTRO, Celso. Evolucionismo cultural. Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.

8 BRAGA, Luciano; MELO, Elisabete. História da África e afro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. 9 MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2007.

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ocidental, além de episódios da escravidão na África subsaariana. A segunda parte enfoca o tráfico de escravos e os africanos no Brasil, destacando as diferentes formas do comércio negreiro e as resistências movidas contra o sistema, a exemplo de quilombos e dos suicídios. A terceira parte traz a discussão sobre a “cultura afro-brasileira”, e ai a autora escorrega com termos e conceitos inapropriados, a exemplo de “religiosidade”, como se esta palavra fosse suficiente para se referir às religiões de terreiro existentes no Brasil.

O percurso da obra, traduzido no plano de divisão dos capítulos, é suficiente para percebermos que a autora entende os negros e negras da contemporaneidade como descendentes diretos do continente africano. A visão simplista, nesse sentido, é fácil de ser traduzida para o esquema já consagrado em alguns trabalhos: África – escravos – negros. Eis uma relação que até mesmo os movimentos sociais negros recusam, ao afirmarem que não são descendentes de escravos. A autora também aborda questões a respeito do maracatu, e mais uma vez incorre no erro ao remeter esta manifestação para o lugar de uma prática originada no continente africano, como se a mesma fosse uma transposição trazida de lá para o Brasil. Creio que para se referir às práticas e costumes existentes no Brasil, ou mesmo em qualquer lugar da suposta “diáspora”, a África não serve como fonte de explicação, uma vez que tudo relacionado com seres humanos diz respeito a permanentes processos de invenção e construção. As ressignificações servem como melhor ferramenta para entendermos esse processo.

Outros problemas: o reforço dos mitos científicos.

Creio que a discussão bibliográfica a que me propus, no início deste trabalho, não poderá ser feita da forma desejada, devido à exiguidade do espaço. Entretanto, faz-se necessário discorrer sobre alguns problemas dos livros de História da África recentemente publicados em português e que foram disponibilizados sob o afã de contribuir para o cumprimento da lei 10639/2003. Tais obras, no que pesem os

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problemas existentes nas mesmas, devem ser entendidas como esforços para estabelecer a compreensão do continente africano, e de sua história em nosso país.

A primeira obra sobre a qual me deterei, intitulado História da África Negra, foi publicada no ano de 2001, sendo, portanto, anterior ao período da lei já referida. Traz consigo usos de conceitos para lá de estranhos aos historiadores já afeitos à história da África, a exemplo da aplicação da ideia do jacobinismo, ou da comparação com a revolução francesa para designar algumas passagens da história do continente africano. Trata-se de um manual com conceitos e analogias discutíveis. O autor aborda, na primeira parte, a história do Reino do Congo e o contato deste com os portugueses, passando pelos povos da costa oriental, golfo da Guiné e costa Atlântica.

Na segunda parte, o autor se utiliza de conceitos relacionados com a periodização consagrada pelos historiadores, a exemplo de idade antiga e idade média, percorre os reinos que existiram antes do século XV, a exemplo de Gana, dentre outros. Na terceira parte, o autor aborda o processo da colonização e descolonização. Discute o sistema colonial, a resistência às potências europeias e as independências. Não deve ser enquadrado como uma obra que confunde, no sentido estrito do termo, as histórias da África e do Brasil. Entretanto, diante do exposto, nem por isso deixa de ser problemática devido ao uso dos conceitos já referidos. A obra em questão, de modo implícito, nos faz acreditar que a história da África não tem sentido em si mesma, e que

para ser entendida é imprescindível recorrer á história do continente europeu. 10

Outra obra em questão, Breve história da África, com 176 páginas, foi publicada no ano de 2007, já no período posterior a lei 10639/2003. Propõe-se a ser um pequeno manual. Discute a África “pré-colonial”, o tema da conquista do continente africano pelas potências europeias, a história de alguns missionários e viajantes, o contexto da África independente em meio à guerra fria, e a atual conjuntura da África contemporânea: globalização, marginalização, AIDS e etc. O maior problema desta obra diz respeito ao uso de conceitos inapropriados, como o de África pré-colonial, ou

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mesmo a ideia de “balcanização”, para se referir de forma negativa ao processo de emancipação dos países africanos. Os autores deste livro se colocam claramente favoráveis a ideia de que os países recém emancipados deveriam ter formado federações

comuns as línguas dos antigos colonizadores. 11

Há também que considerar outro aspecto bastante negativo na obra em questão. Refiro-me a afirmação de que o continente africano se encontra dividido em duas partes, sendo o deserto do Saara o grande responsável por esta divisão. Ki-Zerbo, ao discutir sobre os problemas relacionados à História da África, referiu-se, sob a metáfora, a barragem de mitos, que seria, segundo ele, obstáculos para o curso do rio, no caso, o

conhecimento do continente africano em sua plenitude. 12 Ora, a afirmação de que a

África foi dividida em duas partes (o norte, intitulado África branca, e o sul, abaixo do Saara, denominado África negra) e que estas não possuíam comunicação e contatos só tem sentido se pensarmos nas diversas tentativas de alguns estudiosos insidiosos do século XIX em querer retirar o Egito do contexto civilizatório africano. 13 Em outras palavras, o não reconhecimento da civilização egípcia como parte integrante do contexto civilizatório africano deve ser entendido como grave erro. O trecho da obra a que me refiro, ilustrará melhor a questão:

Algumas regiões escaparam a essas limitações, como, por exemplo, o norte da África, embora submetido ao isolamento

em relação ao restante do continente pelo Saara. 14

11 VISENTINI, Paulo G Fagundes; RIBEIRO, Luiz Dario Teixeira; PEREIRA, Analúcia Danilevicz. Breve história da África. Porto Alegre: Editora Leitura XXI, 2007.

12 KI-ZERBO, Joseph. História da África negra. Vol. I. Mem Martins (Portugal): Biblioteca Universitária, 2002.

13 M´BOKOLO, Elikia. África negra. História e civilizações – Tomo I (até o século XVIII). Salvador/ São Paulo: EDUFBA/ Casa das Áfricas, 2009.

14 VISENTINI, Paulo G Fagundes; RIBEIRO, Luiz Dario Teixeira; PEREIRA, Analúcia Danilevicz. Breve história da África. Porto Alegre: Editora Leitura XXI, 2007, p. 12. Os grifos são de minha inteira responsabilidade.

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Outro grave problema, em meu ponto de vista, diz respeito ao uso de conceitos que remetem à África para o lugar da homogeneidade, como se tudo fosse passível de ser capturado por um só conceito. Há uma tendência de alguns autores, influenciados pela ideia da África homogênea, a discorrerem sobre temas difíceis de serem abordados no singular, a exemplo das religiões, tipos de sociedade e visões de mundo existentes neste continente. Como exemplo, destaco a obra Memória da África. A temática africana em sala de aula, com 327 páginas. 15 Trata-se de um grande manual da história do continente africano, com alguns enfoques bastante esclarecedores, a exemplo das realidades geográficas tratadas com olhar estereotipado, bem como erros grosseiros seja pelo senso comum, seja por outras obras. Uma das maiores contribuições deste livro diz respeito ao esclarecimento de que o continente africano não deve ser visto como sinônimo de uma grande selva, repleta de leões e elefantes, além da desconstrução da ideia de que os desertos constituem espaços vazios, despovoados e homogêneos. A obra mostra que a paisagem predominante no continente africano é a savana, o espaço em que vivem os leões e os elefantes, que não são animais das selvas ou florestas.

Infelizmente, no entanto, os autores deste livro enveredaram pelo caminho de tratar as sociedades, religiões e visões de mundo como sinônimos de homogeneidades, chegando ao cúmulo de afirmar que existe uma visão, ponto de vista e cosmogonia africanas. Hampãtê Bá, em seu livro sobre suas memórias, afirma a inexistência de uma tradição africana no singular. E o faz por entender que no continente em questão coexistem diversos povos, falantes de um sem número de línguas, dotados de diferentes costumes e hábitos. Não há como afirmar nada que seja universal no continente africano

em relação às práticas e costumes culturais. 16

Tal questão, por sinal, é também objeto de discussão por parte de Kwame Appiah, que mostra o continente africano como uma realidade marcada pelas

15 SERRANO, Carlos; WALDMAN, Maurício. Memória da África. A temática africana em sala de aula. São Paulo: Cortez, 2007.

16 BÂ, Amadou Hampate. Amkouell, o menino fula. São Paulo: Palas Athena/Casa das Áfricas, 2003, p. 14.

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diferenças, impossíveis de serem homogeneizados. 17 Aliás, em alguns momentos Appiah recusa até o uso do conceito “africano” como forma para se referir aos povos deste continente, preferindo a utilização dos adjetivos pátrios dos países em questão, ou os nomes dos grupos étnicos mais apropriados. Serrano e Waldman exageram na busca das homogeneidades, e a meu ver, reforçam, em alguns momentos, a estereotipia de que na África só existem “africanos”, ou seja, negros!

No geral estas obras trazem consigo problemas pontuais, que poderiam ser objeto de análises diversas, conforme discorri no início desse trabalho. Tais questões, em alguns aspectos, aludem à ideia de que o continente africano é povoado por pessoas que não dispõem de si para a resolução dos seus problemas, como se não fossem protagonistas da História. Por fim, creio que o mais grave problema existente em relação à História da África em nosso país diz respeito à pequena quantidade de títulos sobre a temática existente em língua portuguesa, brasileira, ressalte-se, posto que haja quantidade significativa traduzidas para o português, especialmente as relacionadas com a chamada África lusófona. Segundo Alberto da Costa e Silva, os títulos disponíveis em português não chegam a uma centena, e destas, eu reforço, há alguns com graves problemas.

História da África: usos de conceitos da historiografia tradicional e eurocêntrica, e os “mitos científicos”.

Há que se estabelecer alguns paralelos entre a História da África e a que foi consagrada nos livros didáticos existentes em nosso país. Antes de tudo, faz-se necessário mostrar que a discussão conceitual a respeito da ideia de História deve ser feita como forma de entender certas especificidades. Não é possível entender a História da África tendo a periodização que é usada com recorrência, consubstanciada nas idades

17 APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

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antiga, média, moderna e contemporânea. Destas, destaque-se que duas nada dizem respeito para a África, a exemplo da idade média e moderna. Tal periodização pode ser perfeitamente substituída por outra que foi proposta pelos historiadores africanos e africanistas, agrupados na Coleção História Geral da África, que reúne especialistas das

diferentes áreas de investigação sobre o continente africano. 18 Além da periodização,

deve-se também estabelecer um olhar crítico para a divisão tradicional entre História e Pré-História, nos termos e moldes existentes nos livros a que estamos acostumados a ler. No tocante a esta divisão tradicional, Ki-Zerbo propõe outros olhares, baseando-se

em forte argumentação construída em aspectos diversos. 19 Conforme este autor, as

expressões “idade média” e “renascimento”, por exemplo, não possuem o mesmo sentido para a histórica da África. Por mais que a História seja universal, não o são os seus sentidos e significados.

É preciso rever os conceitos, assentados nos pressupostos e opiniões de uma historiografia eurocêntrica, que consagrou uma periodização que quase nada diz respeito à história do continente africano. Refiro-me a grande divisão entre História e Pré-História, a periodização acima referida, bem como a tese da impossibilidade de se fazer História devido à ausência de fontes. A África as possui, mas tal questão, dado os

limites deste trabalho, deve ser remetida para as obras que tratam deste tema. 20 Além

de tais aspectos, acima expostos, faz-se necessário desconstruir o que Ki-Zerbo denominou por “Barragem de mitos”. É preciso relativizar a relação visceral existente

18 KI-ZERBO, Joseph (org). História Geral da África, Vol. I – Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO/ MEC, 2010; MOKHTAR, Gamal (Org). História Geral da África, Vol. II - A África

antiga. Brasília: UNESCO/ MEC, 2010; FASI, El Mohammed; HRBEK, Ivan (Org). História Geral da

África, Vol. III - África do século VII ao XI. Brasília: UNESCO/ MEC, 2010; MAZRUI, Ali A.; NIANE, D. T. (Coord.). História Geral da África, vol. IV – A África do século XII ao século XVI. Brasília: UNESCO/ MEC, 2010; OGOT, B. A. (Org). História Geral da África, Vol. V – África do século XVI ao XVIII. Brasília: UNESCO/ MEC, 2010; AJAYI, J. F. Ade (Org). História Geral da África, vol. VI - África do século XIX à década de 1880. Brasília: UNESCO/ MEC, 2010; BOAHEN, Albert Adu (Org). História Geral da África, vol VII - África sob dominação colonial, 1880-1935. Brasília: UNESCO/ MEC, 2010; WONDJI, C. (Orgs). História Geral da África, vol VIII – África desde 1935. Brasília: UNESCO/ MEC, 2010.

19 KI-ZERBO, Joseph. História da África negra. Vol. I. op cit.

20 Sobre esta questão, ver: KI-ZERBO, Joseph (org). História Geral da África, Vol. I – Metodologia e

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entre História e escrita, indicando que há diversos registros possíveis de serem utilizados, a exemplo de vestígios para a reconstrução das aproximações do passado, que será sempre uma aproximação do que realmente foi. Para Ki-Zerbo, é preciso desconstruir o conceito de pré-história, afirmando outro: História sem texto. Mas, História é realmente sinônimo de escrita? Só é possível existir história com a escrita?

Estas perguntas são feitas por Joseph Ki-Zerbo, afirmando que as sociedades de tradição oral possuem mecanismos próprios de aferição da autenticidade, a exemplo dos mossis que ainda hoje assistem as cerimônias em que são recitados por funcionários responsáveis por tal fim. 21 Para Ki-Zerbo existem outras fontes além da escrita, a exemplo dos restos de comida, desenhos, cantos, vestígios materiais, e etc. Ki-Zerbo recusa com veemência a ideia de que para a África só resta a etno-história, questão em que é acompanhado de perto por Kwame Appiah.

Conclusão: entender a África a partir de sua própria História.

O estabelecimento dos limites entre a História da África e a História do Brasil, bem como os contornos das especificidades de ambas se constituem em questão fundamental para o avanço dos estudos em nosso país. É imprescindível romper com os paradigmas aferrados à dicotomias presas ao século XIX, que dizem respeito a outros contextos, diferentes do que vivemos no tempo presente. Penso que tal questão está diretamente relacionada com a superação dos “mitos científicos”, na genial formulação de Elikia M´Bokolo ao se referir aos problemas de ordem epistemológica que ainda hoje dizem respeito ao “travo” imposto para a História da África. Ideias de que a África não tem História, dado a ausência de fontes escritas, ou de que o continente africano foi dividido em duas partes incomunicáveis, ou mesmo de que todo o conhecimento e

21 Sobre tais questões, ver além das obras de M´Bokolo e Ki-Zerbo, já citadas, ver também: M´BOKOLO, Elikia. África negra. História e civilizações - do século XIX aos nossos dias. Lisboa: Edições Colibri, 2007; KI-ZERBO, Joseph. História da África negra. Vol. II. Mem Martins (Portugal): Biblioteca Universitária, 2002; KI-ZERBO, Joseph. Para quando África? Entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro: Ed. Pallas, 2006.

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inovações se constituem em aspectos exógenos aos povos de África não se sustentam mais mediante qualquer análise feita sobre a História atual.

Enfim, mais do que nunca, é preciso superar aquilo que foi imposto aos povos do continente africano, a começar pela ideia de que todos os povos podem ser resumidos sob o conceito de que são negros. Há inúmeros problemas a serem transpostos. Creio que estamos apenas começando a resolver alguns destes.

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Referências

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