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Tapuias, entre cronistas e hommes de lettres: análise comparativa da historiografia brasileira nos séculos XVI e XIX

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Academic year: 2021

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Tapuias, entre cronistas e hommes

de lettres: análise comparativa da

historiografia brasileira nos séculos

XVI e XIX

Sonielson Juvino Silva*

sonielsonsilva@uol.com.br

*Mestrando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Católica de Pernambuco (PPGH-UNICAP).

Resumo

O artigo se propõe discutir os distintos significados que o termo indígena Tapuia assumiu ao longo do tempo no Brasil, tendo por base a análise comparativa de dois momentos específicos: o final do século XVI, com os primeiros cronistas, e a se-gunda metade do século XIX, com os hommes de lettres e os literatos românticos. A abordagem tem como suporte teórico os conceitos de “espaço de experiência" e “horizonte de expectativa”, propostos por Reinhart Koselleck para se entender os diferentes tempos históricos. O estudo perpassa, também, pela visão dualista com que o índio brasileiro é percebido pela historiografia tradicional.

Palavras-chave

História; Brasil; Século XVI; Índios; Tapuia; Linguagem.

Abstract

The article aims to discuss the different meanings that the indigenous term Tapuia assumed over time in Brazil, based on the comparative analysis of two specific mo-ments: the end of the sixteenth century, with the first chroniclers, and the second half of the nineteenth century, with thehommes de lettres and the romantic literati. The approach has as theoretical support the concepts of "space of experience" and "horizon of expectation", proposed by Reinhart Koselleck to understand the different historical times. The study also pass through the dualistic view with which the Bra-zilian Indian is perceived by traditional historiography.

Keywords

History; Brazil; 16th Century; Indians; Tapuia; Language

Tapuias, between chroniclers and hommes de lettres: comparative analysis of

Brazilian historiography in the 16th and 19th centuries

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Introdução

“O passado é um país estrangeiro: lá, as coisas são feitas de maneira diferente”. Esta frase, que inicia um romance do escritor inglês L. P. Hartley (2002, p. 7), tornou-se preciosa para a historiografia recente, vin-do a ser utilizada até como título de livro de um histori-ador conhecido1. Isso porque, com relação ao passado, um lugar estranho e afastado no tempo, só podemos fazer interpretações e, mesmo assim, a partir do mo-mento atual, uma vez que o presente é a única duração que o historiador conhece (REIS, 2012, p. 45.).

De acordo com Koselleck (2006, p. 305-313), ao se embrenhar nos difíceis caminhos do não vivido, o historiador se move inevitavelmente por meio de duas categorias históricas, relacionadas ao seu próprio espa-ço-tempo, que são a “experiência” e a “expectativa”. Para o autor, o contato com os vestígios históricos en-volvem não apenas questões racionais, mas também dimensões inconscientes, como recordações, desejos, esperanças e inquietações. Dessa forma, existiria entre o “espaço de experiência”, as vivências e lembranças do historiador, e o “horizonte de expectativas”, a reela-boração que ele faz das fontes estudadas para produzir uma espera possível, uma relação de desigualdade de cuja tensão resultaria o “tempo histórico”. Dito de outra maneira: esse embate, reconfigurado a cada momento, provoca o surgimento de novas respostas e novas solu-ções.

É ainda Koselleck (2006, p. 11) que informa que o termo “História”, com inicial maiúscula e no sin-gular, só se destacou das “histórias”, narrativas particu-lares e desconectadas entre si, em meados do século XVIII. A História, então, assumia o significado não

apenas da sequência dos acontecimentos, mas também do seu relato. Surge daí a pergunta: escritos históricos anteriores constituiriam também obras historiográficas? Cordeiro (2015, p. 3-4) entende que sim, pelo menos se forem considerados alguns eruditos europeus, a partir do século XVI, cuja preocupação com a objeti-vidade e o cuidado com as fontes, elementos caros à tradição moderna e cientificista inaugurada com a Re-volução Francesa, já apareciam. Dessa forma, diversos registros textuais do período estariam incluídos dentro da abordagem historiográfica sem maiores problemas.

No Brasil, defende a autora, a situação não seria diferente, ainda mais porque o surgimento tardio dos cursos de história, que somente ocorreu na década de 1930, fez com que não houvesse objeção em tratar co-mo trabalho histórico toda a produção meco-morialística anterior, inclusive aquela dos chamados períodos colo-nial e império.

Entretanto, Hartog (2003, p. 11-12) alerta que, do ponto de vista da historiografia, não se pode confun-dir “época” com “regime de historicidade”, sendo o pri-meiro um corte linear no tempo e o segundo uma se-quência de estruturas que organizam o passado de uma forma específica. Assim, os confrontos entre as experi-ências e as expectativas inseridas no regime de histori-cidade do século XVI, por exemplo, não seriam os mes-mos presentes no século XIX.

De fato, não obstante os cuidados dos eruditos com as fontes e a objetividade citados, Koselleck (2006, p. 58) identifica outros fatores que provocaram profundas mudanças no “fazer história” a partir do pro-jeto iluminista, iniciado em fins do século XVIII com a Revolução Francesa. A história, antes ancorada no exemplo dos antigos e na tradição grego-cristã, sendo

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considerada a “mestra da vida”, fortaleceu-se com o discurso científico e voltou-se para o porvir, não poden-do “mais esperar conselho a partir poden-do passapoden-do, mas sim apenas de um futuro que está por se constituir”.

Percebe-se que dois momentos de importante produção historiográfica no Brasil estão exatamente separados por essa mudança de regime historiográfico: o final do século XVI, quando cronistas – missionários, colonos ou viajantes – se preocupavam em retratar a ocupação das novas terras conquistadas pelo Império Português, e meados do século XIX, quando os chama-dos hommes de lettres2, os intelectuais que publicaram notadamente por meio da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)3, buscavam construir um modelo de pensar a história para o novo Estado Na-cional que se consolidava.

A escolha desses dois recortes temporais se deu em razão de o relato dos primeiros cronistas procurar registrar o estranhamento diante de um mundo novo em construção e, no outro extremo, os hommes de lettres buscarem um modelo historiográfico que possibilitasse sintetizar a nova identidade brasileira, não esquecendo o grupo de intelectuais, agrupados sobre a denominação genérica de “românticos”, que reagiram à estratégia do IHGB.

Cabe ressaltar que, de acordo com De Certeau (2013, p. 47), toda obra “historiográfica se articula com um lugar de produção socioeconômico, político e cultu-ral”. Portanto, se temos, de um lado, eruditos ligados à Igreja ou à Corte, do outro, lidamos com intelectuais a serviço do Império, lugares sociais a partir dos quais foram escritas as tentativas de conceituação e diferenci-ação dos inúmeros grupos étnicos nativos, os quais

aca-baram tornando-se todos “índios” na classificação esta-belecida, divididos genericamente em dois grandes blo-cos monolítiblo-cos: os aliados e os inimigos (ALMEIDA, 2010, p. 25 e 68).

Em síntese, propomos analisar comparativamen-te, a partir de autores dos dois tempos históricos, um constructo em especial, cuja origem etnológica ainda não é clara e que historicamente assumiu distintos sig-nificados: a palavra Tapuia, comumente associada aos índios hostis aos conquistadores.

Dessa forma, o entendimento do termo Tapuia presente em narrativas como as de Padre Anchieta, Fer-não Cardim, Gabriel Soares de Souza e Pero de Maga-lhães de Gândavo, os dois primeiros religiosos e os ou-tros laicos, será comparado com o sentido proposto por Francisco Adolfo Varnhagen, responsável por levar adiante o projeto do IHGB, sem prejuízo da utilização de discursos de outros estudiosos que se contrapuseram ao projeto, como o do romancista José de Alencar. Será verificado, ainda, como essas definições se relacionam com o regime historiográfico de cada tempo histórico.

Para isso, dividimos o trabalho em três partes: “Os Outros dos Outros”, onde será feita uma apresenta-ção do termo Tapuia, sua origem Tupi, e sua adoapresenta-ção pelos portugueses; “Os ‘bárbaros’ que falam a ‘não-língua’”, quando se discutirá o conceito atribuído ao termo pelos primeiros cronistas, destacando a preocu-pação em segregar os nativos em duas linhagens, e “A nação dos sem nação”, onde se mostrará que o propósi-to dos hommes de lettres era, ao contrário, relativizar a ideia da existência de nações indígenas e diluir as pos-síveis diferenças entre os povos nativos, muito embora se depare com a resistência da literatura romântica.

2Optamos pela denominação de “intelectuais” para os chamados “hommes de lettres” do século XIX, uma vez que a palavra “letrado” é utilizada também

para designar estudiosos do século XVI, o que poderia dificultar o entendimento da análise

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Uma breve conclusão discutirá até que ponto os dados levantados se adequam à conceituação de “espaço de experiência" e “horizonte de expectativa”, proposta por Koselleck.

Os Outros dos Outros

A palavra, por mais que se esforce em dizer o que se vê, jamais o que se vê se alojará no que se diz, ensina Foucault (2000, p. 12). O filósofo francês inspi-rou-se em um conto do argentino Jorge Luís Borges, no qual uma enciclopédia chinesa traz uma estranha taxo-nomia para classificar animais de um império, dividin-do-os entre aqueles pertencentes ao Imperador, os ca-chorros soltos, os embalsamados, os fabulosos, os que de longe parecem moscas, etc. (BORGES, 2007, p. 124), ou seja, que apresentam uma necessidade racional completamente alheia à nossa lógica. Jenkins (2001, p. 57) concluiu, acertadamente, que toda definição é arbi-trária e o que pode parecer estranhíssimo para uns pode fazer todo o sentido para outros.

Na época da conquista da América, momento por excelência de encontro de culturas estranhas e raci-onalidades distintas, afirma Novaes (1998, p. 8) que não havia, por parte dos europeus, preocupação em in-terpretar o que era encontrado, ao contrário, “viam o mundo tal como aparecia para eles e não tal como ele é: não viam nas coisas as próprias coisas, mas apenas as ideias delas”.

Tudo isso lembra um fato curioso contado por Todorov (1996, p. 96) envolvendo a América Central. Colombo tinha uma obsessão em (re)nomear todos os lugares que via, para, segundo ele, dar-lhes nomes “justos”, mas, na verdade, tomar posse em nome do rei. Quando os espanhóis chegaram e lançaram os primei-ros gritos, os maias responderam algo que,

sonoramen-te, pareceu-lhes “Yucatán”. Assim, ficou registrada a península de Yucatán. Sabe-se hoje que aqueles sons queriam dizer simplesmente “não estamos entendendo”. Temos hoje a península de “não estamos entendendo”.

Algumas reflexões, embora raras, também são conhecidas. No Brasil, os primeiros nativos que subi-ram à caravela de Cabral se encantasubi-ram com as contas de rosários que lhes foram apresentadas e, após coloca-rem no corpo, pediram que lhes dessem, apontando re-petidamente para os colares e para a terra. Os portugue-ses, eufóricos, imaginaram logo que eles queriam trocar as contas por ouro, que era a expectativa maior que eles traziam na mente. Caminha, porém, foi comedido o su-ficiente para concluir: “Isto tomávamos nós por assim o desejarmos” (CAMINHA, s.d. p. 3). O desejo, portanto, apresenta-se como um péssimo tradutor.

Quando esse “diálogo” aconteceu, os nativos, que vieram a ser conhecidos por Tupi e Guarani, esta-vam concluindo o domínio do litoral brasileiro, com a expulsão de outros grupos para o interior (ALMEIDA, 2010, p. 33; COUTO, 1998, p. 56; FAUSTO, 1992, p. 382). Conforme Silva (1990, p. 34), “no momento mes-mo que Cabral avistou o Monte Pascoal na Bahia, estes índios lutavam entre si pela posse dos melhores rios, os bons vales e as praias mais piscosas”.

Vainfas (1995, p. 44) acrescenta que os tupis-guaranis, na altura do século XVI, quando progressiva-mente haviam desalojados os seus contrários, “encontravam-se distribuídos pela bacia Paraná-Paraguai e o litoral, desde a lagoa dos Patos até Cana-neia, caso guarani, e pela extensa faixa litorânea desde Iguape até o Ceará, caso tupi”.

Esse contato levou os portugueses a preocupa-rem-se em classificar os índios como inimigos ou alia-dos, conforme a situação imediata, reunindo esses últi-mos em uma mesma língua. Conforme Almeida (2010, p. 32), “a considerável homogeneidade linguística e

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cultural dos tupis facilitou o conhecimento sobre eles, mas deu margem a descrições simplistas”.

Prossegue a autora que “a designação dos gru-pos étnicos é bastante problemática e controvertida, sobretudo se levarmos em conta as dificuldades dos portugueses em identificar e compreender os vocábulos indígenas” (ALMEIDA, 2010, p. 34).

A inexistência de uma língua nativa escrita, ali-ada à extrema necessidade de constituição de rápidas alianças, levou os conquistadores a construir e desen-volver determinadas características para os nativos. Conclui Almeida que,

quando os cronistas diziam que tais ín-dios eram amigos desses e inimigos da-queles, talvez não percebessem a influên-cia que eles próprios já exerinfluên-ciam sobre essas relações e, com frequência, equivo-cavam-se ao utilizar tais relações como elementos definidores de características dos grupos indígenas que procuravam identificar (ALMEIDA, 2010, p. 34). Frei Vicente Salvador (1918, p. 51-52) foi taxa-tivo ao afirmar que todos os índios eram de cor casta-nha e sem barba, se distinguindo somente por “serem uns mais bárbaros do que outros (posto que todos o são assaz)”. Esses “bárbaros dos bárbaros”, ou “outros dos outros”, deviam mesmo causar muito medo, até porque eles “moviam-se por interesses próprios, buscando ali-anças que melhor lhes servissem” (ALMEIDA, 2010, p. 68), inclusive com os inimigos franceses, e também não pareciam preocupados em distinguir a cruz da espada, ou seja, um padre de um soldado. Desde o desafortuna-do naufrágio desafortuna-do navio que carregava o bispo Sardinha, em 1556, quando quase todos os sobreviventes foram aprisionados e comidos em rituais indígenas, inclusive o religioso (SALVADOR, 1918, p. 156), passando pe-las missões de catequese no Ceará, já no começo do século XVII, quando o Padre Francisco Pinto perdeu a vida (GARCIA, 1925, p.18), percebe-se que as priori-dades, os ofícios e as hierarquias portugueses não eram

compreendidos e muito menos respeitados por esses povos.

Tapuias, Tapuyas, Taphuias, Tapiias, Tapyyias, Tapujas, Tapuzas... Essas são algumas das tentativas dos primeiros cronistas em grafar um som que ouviam dos nativos de tronco Tupi, referindo-se aos oponentes deles. Porém, se a reprodução gráfica não foi um traba-lho fácil, a definição do seu real sentido constituiu tare-fa ainda mais custosa. Substantivo? Adjetivo? Referên-cia genérica? Mero apelido? É claro que todas as pro-postas carregavam em grande escala o olhar do propo-nente, de nenhuma forma isento de interesses.

Os ‘bárbaros’ que falam a ‘não-língua’

Conforme Todorov (1996, p. 143), a visão dos europeus em relação aos habitantes do Novo Mundo não era apenas de superioridade, mas também de dife-rença: os índios estariam em algum estágio entre os hu-manos e os animais. Massacres foram tantos que, em torno de 1513, um jurista que servia no México ao rei espanhol elaborou um documento de título extenso, mas que ficou conhecido por “Requerimiento”, no qual propõe regras para serem observadas quando dos conta-tos com os nativos. Basicamente, o texto deveria ser lido previamente para os índios com informações sobre a soberania do rei e da Igreja. Se eles aceitassem a su-bordinação, teriam certos direitos. Caso contrário, se houvesse recusa ou se eles demorassem “maliciosamente para tomar uma decisão”, estaria auto-rizada “a guerra de todos os lados e de todos os modos que puder”, com a captura deles, incluindo mulheres e filhos, reduzindo todos à escravidão (RUBIOS, 1513). Naturalmente, se os índios não entendessem, a culpa era toda deles, que estavam “maliciosamente se demo-rando” a decidir.

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Esse documento serviu de referência para vários estudiosos procurarem estabelecer as bases da chamada “guerra justa”, desde o teólogo Francisco de Vitória aos dominicanos Tomaz Ortiz e Bartolomé de Las Casas. Mas foi o erudito e filósofo Gines de Sepúlveda que, focando os valores dos índios, considerados naturais, resumiu em quatro pontos os argumentos para uma guerra legítima: recusa da obediência e se não restar outro recurso; banir o crime abominável de comer carne humana; evitar que inocentes morram em lutas desne-cessárias entre eles; abrir caminho para a difusão da religião cristã e facilitar o trabalho dos missionários (TODOROV, 1996, p. 146-152).

A bula do Papa Pedro III, de 2 de junho de 1537, veio dirimir algumas dúvidas sobre o tema: todos os índios, e outros povos que no futuro se tenha notícia, sem distinção alguma, possuem alma e são capazes de abarcar a fé cristã, não devendo eles serem maltratados nem escravizados, decisão que confessava e buscava remediar o mal que estava sendo cometido4. Mas tal resolução tinha uma brecha: e para aqueles que resol-vessem não abarcar a fé cristã?

Com relação ao Brasil, as ações de captura e escravização sistemática dos nativos tiveram incremen-to a partir de dois importantes evenincremen-tos: a implantação do governo geral e a chegada das missões jesuítas, em 1549. Ou seja, estão diretamente ligadas ao modelo de ocupação adotado pelos portugueses, com base na cruz e na espada (HANSEN, 1998, p. 357-358; SANTOS, 1998, p. 145-162).

A tentativa de esclarecer as dúvidas veio por meio da Carta Régia de Dom Sebastião, em 1570, que, embora tardiamente, não deixa de seguir a bula papal

de décadas atrás. A Lei real proíbe a escravização de índios catequisados pelos jesuítas, mas permite o com-bate contra os “[...] que costumam atacar os portugue-ses ou a outros gentios para os comerem”. Como bem percebe Hansen (1998, p. 355-359), a “guerra justa” no Brasil atendia a duas funções bem definidas: “à prática catequética dos jesuítas e às práticas de escravização dos colonos”.

Mas, como separar o joio do trigo? Os colonos não pareciam preocupados em segregar as boas semen-tes das más, uma vez que o desenvolvimento da ativida-de açucareira exigia cada vez mais escravos e a escas-sez dos nativos era cada vez mais evidente, seja pelas fugas para o distante sertão ou pela ação dos inacianos. A obra de Fernão Cardim (1881, p. 333-334), cuja ela-boração acredita-se ter ocorrido na década de 1580, atesta que na Capitania de Pernambuco existia muita escravaria da Guiné, enquanto que os índios da terra já eram poucos5.

Constatam-se, nessa época, aproximações do termo Tapuia a questões que envolvem a escravidão. Padre Anchieta (1933, p. 302), por exemplo, preocupa-do com a estruturação das aldeias jesuítas, não tem dú-vida de que a palavra Tapuia quer dizer “escravos, por-que todos os por-que não são de sua nação têm por tais e com todos têm guerra”.

Explicação similar pode-se encontrar na obra do colono Gabriel Soares de Souza (SOUZA, 1851, p. 350 -351), para quem os tapuias eram tantos e tão divididos em bandos, costumes e linhagens que era difícil distin-guir. De um modo geral, tapuias seriam “os contrários de todas as outras nações do gentio”. Gente muito di-versa, mas que o autor, lançando mão dos seus próprios

4Ver fac-símile da bula papal, transcrita para o espanhol, em: <https://jorgecaceresr.files.word press.com/2010/05/breve-sublimis-deus-paulo-iii.pdf>.

Acesso em: 6 nov. 2016.

5Vainfas defende que a migração dos índios para o litoral e, após o incremento da escravização e da catequese, deste para o “sertão”, foi também

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interesses, não hesita em chamar a todos de “folgazões” porque não plantavam nem tinham roças, além de, para-doxalmente, servirem-se dos prisioneiros como escra-vos, os quais os vendem agora aos portugueses.

Com relação à língua, as abordagens são muito mais significativas, pois, conforme cita Todorov (1996, p. 120), “a língua sempre foi a companheira do impé-rio”. No caso de Portugal, essa questão é ainda mais relevante quando lembramos que o latim vulgar, falado na Galiza e na Lusitânia, acabou sendo fundamental para diferenciar a nova nação que surgia ao sul do rio Minho. Embora Ameal (1974, p.47) admita que o idio-ma não tenha sido o elemento único na foridio-mação do Estado Português, conclui que ele estaria no mesmo patamar de importância de outros fatores, como as dife-renciações geográficas e étnicas. E todos esses atributos teriam sido determinantes para os longos séculos de enfrentamento aos poderosos vizinhos. Tanto que San-tos (1998, p. 147) concorda com Agostinho Silveira, quando este afirma que “o que Portugal fez de maior no mundo não foi nem o descobrimento, nem a conquista, nem a formação de nações ultramarinas: foi ter resistido a Castela”. O fato é que o pertencimento linguístico continuaria marcando a identidade da sociedade portu-guesa em pleno século XX, a ponto de inspirar o poeta Fernando Pessoa (PESSOA, 1995, p. 358) a declarar: “minha pátria é a língua portuguesa”. Uma língua origi-nária dos romanos, do mundo civilizado, e não dos po-vos bárbaros.

Esse sentido é precioso para entendermos como o fator linguístico esteve sempre associado à definição dos índios brasileiros como “bárbaros” pelos portugue-ses.

Diz-nos Todorov (2010, p. 24-25) que a palavra “bárbaro” foi cunhada pelos gregos antigos para deter-minar os limites da influência da sua língua, denomi-nando assim os estrangeiros que não sabiam falar ou não a compreendiam direito.

Hansen (1998, p. 352) lembra que os romanos passaram a utilizar o termo para designar os germanos, os que balbuciavam uma língua não civilizada, mas que também os enfrentavam belicamente.

Na Idade Média, a influência de Aristóteles so-bre pensadores católicos, como Alberto Magnus e To-más de Aquino, fez com que a palavra “barbarus” se assemelhasse a “paganus”, servindo, séculos mais tar-de, para definir os povos ainda não convertidos (RAMINELLI, 1996, p. 54).

Porém, se esse sentido linguístico resistiu e atra-vessou o Atlântico com os conquistadores europeus, a cultura da guerra não esteve ausente dessa interpreta-ção. Para Hansen (1998, p. 352), a associação do termo Tapuia ao Bárbaro, no Brasil, resulta também da inten-sa resistência à “civilização portugueinten-sa” por parte de vários povos indígenas.

Cabe ressaltar que uma associação específica entre Tapuia e ferocidade, ou seja, que considere estes mais ferozes que os tupis, deve ser inteiramente afasta-da. Conforme Couto (1998, p. 98), a guerra era o meca-nismo de reprodução social e de manutenção do equilí-brio cosmológico indígena, de maneira que “todos os grupos locais com quem não existissem laços de aliança eram considerados inimigos”. Dentro dessa lógica, os próprios tupis aliados haviam expulsado da costa vários povos contrários que, derrotados, migraram para o inte-rior, alguns dos quais os cronistas consideraram até mais mansos6.

6Almeida propõe a desconstrução da ideia de oposição rígida entre índios mansos e selvagens, pois era tanto vaivém de alianças e confrontos com grupos

étnicos nas guerras quinhentistas, incluindo situações em que tupis e tapuias podiam agir como aliados ou inimigos, que deixavam os conquistadores, ainda sem dominar a lógica cultural dos índios, completamente perplexos. A autora defende, inclusive, o abandono da ideia “da existência de uma guerra geral dos índios bárbaros contra o império português”, o que constituiria um olhar colonizador (ALMEIDA, 2010, p. 47 e 62-64).

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Para o Padre Anchieta (1933, p. 302), os tapuias expulsos para os matos não comiam carne humana e “mostravam-se muito amigos dos Portugueses”, acres-centando que, apenas por terem uma natureza inquieta, não podendo estar muito tempo em um mesmo lugar, tornavam-se de difícil conversão. Na mesma linha, Gândavo (2004, p. 167) afirma que os tapuias não co-mem a carne de nenhum contrário e até perseguem aqueles que a costumam comer. Souza (1851, p. 18), por sua vez, garante que os tapuias são “gente branda e mais tratável e doméstica que o mais gentio que há na costa do Brasil”.

Adiante, porém, Gabriel Soares de Souza resu-me bem resu-melhor a complexidade da situação ao dizer que os

Tapuias são tantos e estão divididos em bandos, costumes e linguagem [que], para se poder dizer deles muito, era ne-cessário de propósito e de vagar tomar grandes informações de suas divisões, vida e costumes; mas pois ao presente não é possível (SOUZA, 1851, p. 350). Eis que se tratava de uma diversidade cultural tão imensa, que Fernão Cardim (CARDIM, 1881, p. 194-206), depois de relacionar 76 povos “tapuyas”, “nações bárbaras” que, de tantas, “parecia impossível poderem-se extinguir”, conclui desanimado que as úni-cas coisas que os faziam semelhantes eram “por serem muito andejos e terem muitas e diferentes línguas difi-cultosas”, o que, consequentemente, impedia a conver-são.

Em contraponto, o religioso procura valorizar e hierarquizar a língua-geral, a única que ele entende al-guma coisa, elogiando até a sua qualidade sonora, mas lamentando ainda assim as suas muitas variações:

Em toda esta província há muitas e vá-rias nações de diferentes línguas, porém uma é a principal que compreende algu-mas dez nações de índios: estes vivem na costa do mar, e em uma grande corda do sertão, porém são todos estes de uma só língua ainda que algumas palavras dis-crepem e esta é a que entendem os Portu-gueses; é fácil, e elegante, e suave, e co-piosa, a dificuldade dela está em ter mui-tas composições (CARDIM, 1881, p. 194).

Gândavo (2004, p. 135) foi bem mais prático e aplicou um modelo dual aos outros bárbaros: “A língua de que usam, por toda a costa, é uma [porém] há outra gentilidade de que nós não temos tanta notícia, que fala já outra língua diferente”.

Mais uma vez Gabriel Soares de Souza (SOUZA, 1851, p. 58-59) demora-se falando sobre os Aimorés, descendentes dos “tapuias” e que estavam exercendo uma ousada resistência na região de Porto Seguro e Ilhéus, afirmando que eles eram considerados pelos bárbaros “por mais que bárbaros”. Depois, atribu-em-lhes os mais negativos valores europeus: só descem à costa para dar assaltos; não vivem em casas ou aldeias como os outros, mas andam sem rumo e dormem no chão sobre folhas; não fazem roça nem plantam, man-tendo-se de frutos silvestre e da caça que matam, cuja carne comem crua ou mal assada; vivem de saltear toda a sorte de gentios que encontram; são traiçoeiros e não enfrentam o oponente de rosto a rosto, utilizando-se de ciladas e emboscadas; fogem cada um para sua parte se são enfrentados; ficam escondidos até que passem os que os seguem, para atirarem-lhes as flechas pelas cos-tas; por fim, comem carne humana como mantimento. Por temor deles, as fazendas e engenhos da região esta-riam quase despovoadas. E qual a origem de povo tão terrível? O cronista tem uma explicação babeliana7: por

7A associação entre acontecimentos locais e eventos bíblicos foi percebida também por Hansen (1998, p. 352) não somente nas obras dos cronistas

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terem sido expulsos da costa pelos contrários, passaram muitos anos sem verem outra gente “e os que destes descenderam vieram a perder a linguagem, e fizeram outra nova que não se entende de nenhuma outra nação do gentio de todo este estado do Brasil”.

Esta regra simplificava bastante a tarefa dos ca-tequizadores e dos escravizadores, uma vez que a “língua-geral”, ou “abanheenga”, estruturada desde a chegada do jovem José de Anchieta ao Brasil (SALVADOR, 1918, p. 143), poderia bem servir de parâmetro para a colheita de almas e de homens.

Uma profecia asteca pré-colombiana dizia: “Aqueles que não puderem compreender morrerão, os que compreenderem viverão” (TODOROV, 1996, p. 74). Creio que essa regra poderia adequar-se também aos índios brasileiros, uma vez que os “tapuias”, aque-les povos falantes da “não-língua”, ou seja, que não compreendiam a língua-geral, cabiam ser escravizados ou esquecidos, o que, afinal, constituem duas formas de perecer.

A nação dos sem nação

O IHGB foi criado no Rio de Janeiro, em 1838, sobre a proteção e financiamento do imperador e, ape-sar de teoricamente mostrar-se neutro em relação às disputas político-partidárias, seus participantes eram escolhidos por indicação, sendo que a maioria desem-penhava funções burocráticas no Estado. O projeto his-toriográfico do Instituto incluía uma releitura do passa-do que legitimasse o presente, não estanpassa-do isento, obvi-amente, de um sentido político. Nesse aspecto, estudos etnográficos, arqueológicos e linguísticos deveriam apontar para os lugares sociais dos brasileiros, inclusive o das populações indígenas.

Para os intelectuais reunidos em torno do IHGB, desenhar um rosto para a Nação brasileira não constitu-ía tarefa simples: como categorizar uma cultura hetero-gênea, formada por brancos, mulatos, pretos livres, es-cravos e índios de diferentes origens?

Conforme Guimarães (1998, p. 6-14), para uma historiografia elitista, próxima à tradição iluminista, a solução adotada foi reconhecer o Brasil monárquico como uma continuidade da civilização portuguesa e europeia. Na verdade, uma “frente avançada da civili-zação francesa dos trópicos”. Dessa forma, enquanto no plano externo “os outros” passaram a ser as repúblicas vizinhas latino-americanas decadentes, a representação da “barbárie” interna coube aos negros e índios, os quais deveriam ser simplesmente excluídos do projeto de construção nacional.

Reis (2007, p. 26) argumenta que o projeto do IHGB, no aspecto geográfico, buscava reconhecer os atributos físicos e engrandecer a natureza brasileira e, no campo histórico, procurava “eternizar os fatos me-moráveis da pátria e salvar do esquecimento os nomes dos seus melhores filhos”.

Almeida concorda com tal pensamento ao afir-mar que a intenção do IHGB era, de fato, “criar uma história do Brasil que unificasse a população do novo estado em torno de uma memória histórica comum e heroica [reservando] aos índios um lugar muito especi-al: o passado” (ALMEIDA, 2010, p. 17) .

O homme de lettres que assumiu o comando da missão de estabelecer a identidade brasileira como her-deira da civilização lusitana foi Francisco Adolfo Var-nhagen, cuja obra, História Geral do Brasil (VARNHAGEN, 1854, p. 1-12), começa justamente com um voo pela origem da civilização ocidental na Grécia antiga, passando depois pela formação das na-ções europeias, forjadas no cadinho iluminista francês,

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e, graças aos feitos dos reis e heróis portugueses, tudo isso finalmente atravessa o oceano para formar a civili-zação dos trópicos. Os índios, diferentemente dos bran-cos, “não conheciam as delícias do amor da pátria, por-que, nômades, pátria não tinham” (VARNHAGEN, 1854, p. 103).

Ao contrário de diferenciar os índios, Varnha-gen procurou unificá-los, tratando a todos com o mes-mo desprezo. Para Reis (2007, p. 35), Varnhagen via os índios como uma só raça, falando dialetos de uma só língua. Assim, Tapuia e outros tantos nomes não passa-vam de apelidos, às vezes até insultos, que os primeiros cronistas não conseguiram perceber:

Fique, pois, entendido que nenhum crédito merece todos esses catálogos de nomes bár-baros e dissonantes, com que se tem preten-dido distinguir os habitantes de um distrito pelas alcunhas, ás vezes duplas e até múlti-plas, com que já estes, já aqueles vizinhos, os apelidavam, geralmente por injúria ou vitu-pério; poucas vezes por honra ou apreço (VARNHAGEN, 1854, p. 103).

Defende Varnhagen que “Tapuy” quer dizer apenas “o estrangeiro” ou “o bárbaro”, definição que corrobora com a sua preocupação em negar qualquer estrutura social indígena que se aproximasse do concei-to de nação. Diz ele que uma ideia equivocada dos pri-meiros colonos foi levada adiante pelos escritores e na qual muitos ainda acreditam: a da existência de uma grande nação Tapuya. Para ele, o verdadeiro sentido da palavra Tupi é igualmente duvidoso, podendo significar tão somente “tio”, sem ligação com país nenhum (VARNHAGEN, 1854, p. 104).

Em nota à obra de Gabriel Soares de Souza, Varnhagen beira o desespero ao propor: “Não havia, e insistimos ainda nesta ideia, no Brasil, nação Tapuia. Esta palavra quer dizer contrário, e os indígenas a apli-cavam até aos franceses, contrários dos nossos, cha-mando-lhes Tapuytinga, isto é, Tapuia bran-co” (SOUZA, 1851, p. 406).

Para Guimarães (1998, p. 12), a busca dos que faziam o IHGB em argumentar “cientificamente” a su-perioridade branca acabou provocando um debate acir-rado no campo da literatura, na qual a imagem românti-ca do indígena era veiculada como portadora da brasili-dade. Conforme o autor, Varnhagen “viria a se posicio-nar radicalmente contra o projeto do romantismo literá-rio de transformar o indígena em representante da naci-onalidade brasileira”.

Entretanto, verifica-se que, talvez para melhor enfrentar a tentativa do IHGB de minimizar a importân-cia dos povos indígenas, reduzindo-os a um único gru-po, a literatura romântica não consegue escapar da vi-são dual das linhagens nativas inaugurada pelos primei-ros cronistas.

O romance Ubirajara, de José de Alencar (1996), é particularmente interessante porque situa a narrativa em uma época pré-cabraliana e, afora a tenta-tiva frustrada de recriar a sociedade indígena, onde os embates dos guerreiros nas selvas mais parecem saídos de um romance medieval de cavalaria, o autor elabora uma lenda criacionista para o Brasil onde “nações” em desavenças, utilizando o instrumento do matrimônio, resolvem suas diferenças e alcançam a paz. Essa pposta, apesar de fantasiosa e aderente à posição do ro-mancista na sociedade escravocrata e patriarcal do Im-pério, irrita os teóricos do IHGB, defensores do “branqueamento” da população, porque, mesmo não citando os negros, propõe o reconhecimento, ainda que equivocado, das “tradições da pátria indígena”.

No romance, Alencar tem o cuidado de constru-ir duas hipotéticas “nações” indígenas rivais, “Araguaia” e “Tocantim”, para passar uma presumida isenção de sua parte. Tal pretensão desaparece logo nas primeiras linhas, onde o herói protagonista surge na figura de um jovem caçador, candidato a guerreiro, des-tacando-se no embate com um oponente de outra tribo.

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De qualquer maneira, percebe-se que as duas “nações” envolvidas, apesar de momentaneamente não aliadas, comungam do mesmo brio e honradez, sugerindo a mesma origem Tupi. Essa constatação fica mais forte quando é o próprio guerreiro desafiante que, comuni-cando a sua disposição para a luta, diz: “Há três luas, desde que fugiram espavoridos os bárbaros tapuias, que Pojucã não combate” (ALENCAR, 1996, p. 18). É par-ticularmente curioso como Alencar termina caindo na idêntica tentação dos primeiros cronistas de hierarqui-zar e classificar como inferior uma parte dos indígenas. Nas notas explicativas, o romancista torna ainda mais clara a aproximação do seu ponto de vista com os cons-tructos elaborados no século XVI:

Tapuia: De ‘taba’ e ‘puir’ – o que foge das tabas. Davam os indígenas esse no-me a povos mais bárbaros e de língua diversa. Segundo as últimas investiga-ções etnológicas, pertenciam esses povos a uma raça diversa da tupi, e muito apro-ximada, senão congênere, do tipo mon-gólico. Entretanto, Orbigny, ‘L’homme américain’, sustenta a identidade das duas raças, tapuia e tupi (ALENCAR, 1996, p. 78).

Alencar consegue reunir para Tapuia os signifi-cados de escravo (“o que foge”), o mais bárbaro e o de língua diversa, nada diferente do que havia sido propos-to antes. Entretanpropos-to, chama a atenção o fapropos-to de ele re-correr à ciência para negar uma possível “brasilidade” desses povos, separando-os dos tupis e associando-os aos mongóis. De qualquer forma, ao final, ele deixa entreaberta a porta da hipótese das duas raças.

O historiador e poeta Baptista Caetano de Al-meida Nogueira, em nota à obra de Fernão Cardim (CARDIM, 1881, p. 267), tenta jogar um pouco de luz à questão, mas parece ter lançado muito mais sombras. Ele começa aproximando o termo Tapuia à escravidão, como os primeiros cronistas, pois a palavra seria

com-posta de “tapy-eyi”, que significaria “dos comprados, dos aprisionados, dos cativos”. Entretanto, reconhece que poderia também ter origem em coisas tão díspares como “a plebe do povo”, “cabana ou casa pequena”, ou simplesmente “folha”.

Tais interpretações atravessaram séculos e ainda influenciam a historiografia atual. Nas notas ao livro de Gândavo (2004, p. 167), Hue e Menegaz afirmam que o menosprezo dos portugueses pelos tapuias teria sido transmitido pelos povos tupis-guaranis e arriscam que tal palavra quer dizer “aqueles que falam a língua trava-da ou selvagens”, conclusão certamente retiratrava-da dos “Prolegômenos ao Livro I”, de Frei Vicente Salvador (SALVADOR, 1918, p. 9).

Por sua vez, o editor do referido livro de Gânda-vo, em edição posterior, mas em nota ao mesmo trecho da narrativa, busca um possível ponto de aproximação entre os pensamentos de Cardim e Varnhagen: “É difí-cil dizer ao certo o que designa a palavra ‘tapuia’, pois o termo indicaria apenas aqueles que não falam a mes-ma língua [...]. Parece mesmo um termo genérico para indicar ‘os outros’” (GÂNDAVO, 2008, p. 141).

O que fica de tudo isso é que os constructos pro-postos no século XVI foram ressignificados no século XIX, sendo refutados ou acatados, de maneira que mui-tos desses entendimenmui-tos tornaram-se conceimui-tos que chegaram até aos nossos dias.

Conclusões

Até meados dos anos setecentistas, as mudanças ocorriam tão lentamente que o futuro estava ligado in-teiramente ao passado, ainda mais que “a revelação bí-blica, gerenciada pela Igreja, envolvia de tal forma a tensão entre experiência e expectativa que elas não po-diam separar-se” (KOSELLECK, 2006, p. 315)8.

8A partir desse ponto, todas as referências à Koselleck estão relacionadas ao texto: “Espaço de Experiência e horizonte de expectativa: duas categorias

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Conforme constatamos no presente estudo, até os cronistas laicos do século XVI enxergavam a reali-dade através do prisma religioso. Por sua vez, as deci-sões da Igreja assumiam a condição de verdade única.

Esse suporte religioso foi decisivo na tentativa de compreensão de uma realidade histórica, por parte dos cronistas, na qual experiência e expectativa esta-vam sendo conjuntamente construídas e participaesta-vam de um mesmo processo: a captura de indígenas para a catequização ou a escravidão.

É importante perceber que, em tal circunstância, quando a leitura histórica assumia importância funda-mental no encaminhamento a ser dado às práticas de ocupação do novo território, o termo “Tapuia” ganhou autonomia e foi isolado e utilizado para a denominação genérica dos índios inimigos, tornando-se algo sem pas-sado e sem interesse no presente.

Retomando Koselleck, a modernidade, inaugu-rada no século XVIII, substituiu a profecia pelo prog-nóstico e pelo progresso. O vivido não conseguia mais responder às novas aspirações e a ciência se encarrega-va de ampliar cada vez mais o panteão de novidades. Se existia uma única história fluindo em uma única dire-ção, deveria existir também um único futuro, de manei-ra que a busca frenética por atingi-lo provocava o dis-tanciamento progressivo do passado e cujo grau de afastamento tornava-se parâmetro para a própria ação empreendida. Tudo isso ocasionou uma desvinculação da expectativa em relação à experiência, passando esta a ter menos importância que aquela.

Em nossa análise, a visão dos hommes de let-tres do IHGB, em meados do século XIX, mostrava-se, de fato, voltada para o porvir, devendo o passado ser resgatado, mas com as devidas ressalvas e críticas. Na-quele momento, em que o horizonte de expectativa se separava do espaço de experiência, o termo “Tapuia”, em sentido contrário, se fundia com outras

denomina-ções, uma vez que todas elas pertenciam a um mesmo passado, o qual deveria ser apressadamente superado. Não mais bastava distinguir estaticamente os povos en-tre superiores e inferiores, enen-tre civilizados e bárbaros, era agora necessário o contínuo progresso das civiliza-ções para que o mundo fosse aperfeiçoado e conduzido à iluminação, tudo isso mediado pela razão humana.

Uma característica desse novo tempo histórico, ainda conforme Koselleck, é justamente essa suposta graduação civilizatória dos povos, de maneira que os que estivessem “à frente” achavam-se no direito de jul-gar os demais. Varnhagen, como vimos, coloca-se não apenas em patamar de superioridade em relação aos cronistas do passado e aos seus contemporâneos român-ticos, mas também com capacidade de atestar a condi-ção superior da monarquia brasileira em comparacondi-ção aos vizinhos Estados republicanos.

Não surpreende que a literatura romântica, que reclamava justamente do progresso desenfreado promo-vido pela modernidade e que buscava um futuro não tão modificado, tivesse uma relação mais próxima com o passado a ponto de construir uma imagem idílica do índio como elemento fundador da “nação brasileira”. Com isso, o termo “Tapuia” separa-se novamente do “Tupi”, visto ter sido este último o escolhido para re-presentar o papel da “raça brasílica”.

Quando lidamos com memórias alheias, diz-nos Koselleck, passado e futuro jamais coincidem. No caso do uso do relato dos cronistas, pelos intelectuais do IHGB e pelos literatos românticos brasileiros do século XIX, tal afirmação fica bem evidente. A maneira como essas memórias foram recolhidas, revisadas e utilizadas mostrou-se diretamente associada ao horizonte de ex-pectativa específico de cada parte interessada. Confor-me resuConfor-me Hartog (2015, p. 60), trata-se de “outros tempos, outros costumes, outras histórias, outros regi-mes de historicidade”.

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Parece-nos importante concluir que, antes que tentemos entrar nas cabeças dos índios brasileiros do século XVI para decifrar o que eles queriam dizer com “Tapuia”, busquemos entender um pouco mais como os cronistas e historiadores lidaram com o termo ao longo do tempo. Para Jenkins (2001, p. 68-78), é muito mais possível estabelecermos alguma empatia com as mentes dos escrevinhadores do passado do que com as inten-ções dos personagens que eles descrevem. Tal exercí-cio, em suma, contribui para não incorrermos no erro de tomarmos memórias como a mais pura realidade.

Porém, o que significa exatamente a palavra Ta-puia? Mais uma vez Koselleck vem nos socorrer ao afirmar que “na investigação existem situações em que o abster-se de perguntas sobre a gênese histórica pode aguçar mais o olhar que se dirige à própria história”. Portanto, se por um lado a análise da palavra Tapuia contribui para desconstruir as generalizações e o dualis-mo com que foram pensados os índios brasileiros pela historiografia tradicional, por outro, apresenta-se como uma chave para melhor entendermos o tempo histórico em mutação.

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Submissão: 17/07/2017 Aceite: 07/09/2017

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