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A noção de cuidado de si e a ética do analista em situações-limite

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Academic year: 2021

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“A noção de cuidado de si e a ética do analista em situações-limite” André Avelar

O presente trabalho tem como objetivo pensar a ética do analista a partir da noção denominada por Foucault1 como “cuidado de si”, enfocando-a como um instrumento relevante para a prática psicanalítica, mais especificamente em situações-limite, nas quais o analista é convocado a assumir posições diferenciadas, muito distantes de uma prática psicanalítica ‘tradicional’. O pensamento de Foucault será cotejado com reflexões de Calligaris2, que também nos auxiliam a problematizar o lugar do analista em situações críticas, mais especificamente em situações onde há o risco iminente de uma passagem ao ato – no caso uma ameaça de suicídio.

Iniciaremos nossa exposição a partir de um fragmento clínico para em seguida promovermos as articulações teóricas.

Fragmento clínico:

Ana, (nome fictício), tem cerca de 60 anos. A conheci na internação psiquiátrica onde trabalhava como psicólogo. Ana já fora internada anteriormente em função de uma tentativa de suicídio, (já passara por muitas, desde seus 17 anos). Como das outras vezes a fizera através da ingestão de medicamentos. Na internação Ana pôde falar mais profundamente de sua história: relatou que fora criada por pais muito severos, com a agravante do alcoolismo de seu pai. Este chegava em casa frequentemente embriagado e muito agressivo.

Suas tentativas de suicídio:

Ana demonstra uma grande capacidade de lidar com a adversidade: conseguiu, em meio a um ambiente extremamente hostil, estudar, e trabalhar e, sozinha, sustentar duas filhas - uma, adolescente, ainda mora com ela. Por outro lado sinaliza uma grande dificuldade em lidar com a frustração. Suas tentativas de suicídio vêm a apontar isso: estas comumente

1 FOUCAULT, M. “Ética, sexualidade e política”, In: Ditos e escritos: Manoel Barros da Motta (Org.).

Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2004.

2 CALLIGARIS, C. “Introdução a uma clínica diferencial das psicoses”. Artes Médicas, Porto Alegre,

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ocorrem a partir de discussões em família que, aparentemente poderiam ser contornadas de outra forma. Um desentendimento maior, uma briga, quaisquer destes eventos podem redundar em mais um flerte com a morte. As situações de risco que se impunha denotam para algo da ordem do traumático, que insiste em irromper em qualquer situação que convoque sua agressividade, voltada inicialmente para dentro.

A transferência:

Ana ao longo dos anos desenvolveu uma relação de confiança comigo, mas marcada pelas vicissitudes que caracterizavam sua relação com o mundo: dificuldade em lidar com a frustração acompanhada de inúmeras passagens ao ato.

Após suas internações Ana passava a iniciar sua análise, mas não conseguia dar prosseguimento à mesma. Um tempo depois de sua interrupção, passava a viver uma situação de crise, culminando em uma tentativa de suicídio e em sua posterior reinternação. Era assim a dinâmica de seu tratamento.

Já há algum tempo sem atendê-la, conversava com pessoas próximas a mim, externalizando minha preocupação:

- Ando preocupado com Ana. Faz tempo que ela tornou a abandonar seu tratamento. Sempre que ligo me diz que está em dificuldades, e não consegue chegar ao consultório.

Em seguida meu telefone toca. Surpreendo-me: ligação de Ana. Diz que não está bem, quer voltar a se tratar comigo. Marco um horário para o dia seguinte. Ana não comparece. Agora sou eu quem liga para ela. Relata estar melhor. Após algumas evasivas, furta-se novamente a retomar a análise.

Os dias seguintes se passam minha preocupação não cessa. Certo dia, lembro-me bem, estava inquieto, tive dificuldades em pegar no sono. Logo após conseguir adormecer, fui despertado pelo telefone, já era madrugada. É Ana novamente. Relata que tornou a ingerir uma superdose de medicamentos. Com a voz já pastosa afirma:

- Desta vez não passa! Agora está tudo acabado!

Explica que tornou a discutir com familiares, desta vez com sua filha, que bateu a porta e saiu de casa. Sem conseguir acessá-la, entrou num surto de angústia e passou a tomar todas as medicações que encontrava pela frente. Num misto de torpor e preocupação peço a ela o telefone de seus parentes. No início nega, mas acaba, já com a voz entorpecida pelos remédios, cedendo e me dando os números. Sua outra filha atende a ligação. Consegue chegar até sua casa. Ana já estava em coma, ficou hospitalizada algumas semanas até se recuperar, sendo posteriormente encaminhada a um hospital psiquiátrico.

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Em sua internação o fato, mais do que abordado, foi rememorado; Ana afirmara que não fazia idéia que tinha ligado para mim:

- Para mim tinha tomado as medicações e esperava morrer. Não me lembrava mais de nada.

Algumas considerações:

Inicialmente passei a pensar sobre a posição que estava ocupando nesta relação transferencial. Parecia que estava sendo alvo de uma dupla mensagem: ao mesmo tempo em que estava sendo designado como um salvador, quase fui testemunha privilegiada – e impotente – de uma passagem ao ato, alvo de desejos ambivalentes, amorosos e hostis. Tais reflexões infelizmente não puderam ser verbalizadas à minha analisanda, pois, após sua internação, não conseguira chegar a meu consultório. Marcara seu retorno várias vezes, mas faltava seguidamente. Quando lhe telefonava, perguntando sobre sua ausência, Ana sempre dava alguma evasiva; que não comparecera devido a algum contratempo. Dizia sempre que iria voltar, fato que não ocorreu.

Teorizando sobre o caso:

Foucault, ao descrever sua noção de cuidado de si ressalta o seguinte:

“O cuidado de si constituiu, no mundo greco-romano, o modo pelo qual a liberdade individual – ou a liberdade cívica, até certo ponto – foi pensada como ética.”3

E, um pouco mais adiante, complementa:

“(...) a preocupação com a liberdade foi um problema essencial, permanente, durante os oito grandes séculos da cultura antiga. Nela temos toda uma ética que girou em torno do cuidado de si e que confere à ética

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antiga sua forma tão particular. Não digo que a ética seja o cuidado de si, mas que, na Antiguidade, a ética como prática racional da liberdade girou em torno desse imperativo fundamental: cuida-te de ti mesmo.”4

Dessa forma Foucault articula a questão do cuidado de si como a expressão de uma ética, centrada, sobretudo, em uma prática equilibrada da liberdade. Dessa forma a ética do analista aponta para uma consciência de si em relação aos seus limites e às condições do próprio processo de análise. Esta consciência de si seria um conteúdo de grande relevância, transmitido ao analisando ao longo do trabalho analítico.

Calligaris, ao pensar a questão da ética do analista, assinala que a busca pela preservação da vida de seu analisando não pode ser motivada pela percepção da vida como um bem a que deve ser preservado ‘a priori’. Este discurso, comenta, pertence ao campo do saber médico e não da psicanálise. A esse respeito comenta:

“Aliás, se há uma diferença entre psicanálise e medicina, aí está: para a psicanálise, a vida é um valor fálico como qualquer outro. Desse ponto de vista, a preservação da vida enquanto tal não dirige a éica psicanalítica.”5

Porém Calligaris afirma que é possível a sustentação de uma posição de recusa, de oposição frente a uma ameaça de passagem ao ato sem que o analista caia numa perspectiva moral:

“Contudo é importante considerar que um analista pode, perfeitamente, tentar conter ou mesmo impedir um ato

4 Idem, pg. 268.

5 CALLIGARIS, C. “Introdução a uma clínica diferencial das psicoses”. Artes Médicas, Porto Alegre,

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suicida, sem invocar a vida como um valor, mas muito mais recusando a erotização da morte.”6

Dessa forma, minha recusa em ser um telespectador daquela cena mortífera fora motivada não por um desejo de ordem moral, de salvar uma vida almejando praticar um bem em si, mas ao contrário, foi ocasionada por um desejo de não me manter numa posição de voyeur, capturado num cenário de ostentação da morte.

• A responsabilidade dos artigos assinados é dos seus autores.

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