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LEITURA E DEBATE DE TEXTOS LITERÁRIOS: UMA PRÁXIS DE HISTÓRIA EM UM ESPAÇO DE ENSINO NÃO-FORMAL.

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LEITURA E DEBATE DE TEXTOS LITERÁRIOS: UMA PRÁXIS DE HISTÓRIA EM UM ESPAÇO DE ENSINO NÃO-FORMAL.

Gabrielle de Souza Oliveira Licenciada em História pela Universidade Federal de Santa Maria gabidesouza.o@hotmail.com Taiane Anhanha Lima Mestranda pelo PPGH da Universidade Federal de Santa Maria taiane3@hotmail.com

Resumo

As oficinas intituladas “Leitura e debate de textos literários” foram uma proposta à disciplina de prática de ensino em espaços não-formais do curso de História Licenciatura da UFSM e tiveram como eixo central a temática étnico-racial e a representação de indivíduos negros em livros de literatura. Entre as questões principais que abordamos está o seguinte questionamento: por qual motivo, ao lermos livros de literatura (que não abordam a temática do racismo) não imaginamos as personagens como pessoas negras? Além disso, trabalhamos com: a) casos polêmicos de representação de personagens de literaturas na contemporaneidade; b) a presença da temática racial em produções literárias; e c) a literatura em uma perspectiva histórica, pontuando que toda produção literária é dotada de uma dupla historicidade: as características do tempo e espaço em que é produzida e do tempo e espaço em que é lida (e por quem). Tal como a defesa feita por Marc Bloch na introdução de “Apologia da História ou o ofício do historiador” (2001) acerca da importância da História, também a existência da literatura poderia se justificar porque ela entretém. Contudo, para além de entreter, compreender uma produção literária explorando as dimensões da historicidade pode ter um potencial formativo para o ensino de história bastante significativo.

Palavras-chave: História e literatura; Prática de ensino de história em espaço não-formal;

Debate étnico-racial;

Introdução

O presente trabalho trata-se de uma comunicação apresentada no XIII Encontro Estadual de História da ANPUH-PE na qual pretendemos compartilhar nossa experiência de prática de ensino de história em espaços não-formais, realizada no segundo semestre de 2019. Como bem trouxe o resumo do Simpósio Temático “Ensino e Didática da História: possibilidades frente às disputas sobre o passado”, no qual apresentamos:

Face à multiplicação da produção, do consumo e dos usos variados de narrativas sobre o passado, que circulam em suportes tradicionais, bem como em mídias virtuais, propomos um debate sobre como Historiadores e

Historiadoras, na sua práxis como professoras e professores de História,

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circulação, tanto no âmbito do ensino quanto da aprendizagem histórica, incorporando, respondendo ou problematizando (grifo nosso).

Portanto, nossa intenção vai além de um mero relato de experiência. Estamos propondo aqui uma reflexão teórica sobre a prática de ensino, relacionando-a diretamente com o ofício das historiadoras e historiadores. Ao mesmo tempo pretendemos pensar os desafios de trabalhar tendo a literatura como fonte e base para a construção de um conhecimento crítico, no qual os sujeitos se compreendem como indivíduos histórico e socialmente situados.

Sendo assim, o artigo está dividido em três momentos principais. O primeiro, em que fazemos um pequeno esforço de síntese quanto o significado de uma prática de ensino em espaço não-formal, no qual apresentamos o lugar em que se deu nossa experiência; o segundo momento, em que pensamos e tecemos relações entre história e debates sobre literatura; e, por fim, o terceiro, quando compartilhamos a experiência das quatro oficinas de leitura e debate de textos literários.

Estágio em espaços não-formais: uma práxis de ensino.

A educação formal tem objetivos claros e específicos e é representada principalmente pelas escolas e universidades. Ela depende de uma diretriz educacional centralizada como o currículo, com estruturas hierárquicas e burocráticas, determinadas em nível nacional, com órgãos fiscalizadores dos ministérios da educação. A educação não-formal é mais difusa, menos hierárquica e menos burocrática. Os programas de educação não-formal não precisam necessariamente seguir um sistema sequencial e hierárquico de “progressão”. Podem ter duração variável, e podem, ou não, conceder certificados de aprendizagem (GADOTTI, 2005, p. 2).

Conforme pontua o autor Moacir Gadotti (2005), para além de entender a educação não-formal em uma simples oposição à educação formal, convém que compreendamos e que nos detenhamos ao que lhe é inerente. Pensamos que o principal elemento que caracteriza a educação em espaços não-formais é a forma como se estrutura o espaço de ensino-aprendizagem.

Devido ao fato de não ser baseada em estruturas marcadamente institucionais, o processo de construção do conhecimento acontece quase sem que se perceba que é aquele é um espaço de ensino, porque, muitas vezes, ele não se parece com o que tradicionalmente se entende como um espaço de ensino.

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Ao falarmos em educação não formal, a intencionalidade nas ações é o que a define. Ela se localiza num campo da educação em que há produção de aprendizagens e saberes, mas estes, coletivos e em ambientes espontâneos, onde há relações sociais e estas acontecem conforme os gostos ou sentimentos de pertencimento a este ou aquele grupo (GADOTTI, 2005). Nesse contexto, encontramos novamente o professor que é muito mais que um mediador de conhecimento, sendo o aluno o próprio sujeito de sua formação. Professor e aluno imbricados neste sentido pela construção e reconstrução dos conhecimentos (SCHVINGEL; SCHNEIDER; SCHWERTNER; JASPER, 2016, p. 188).

Foi nesse sentido que as atividades de nossa prática de ensino em espaços não-formais se deram no Café da Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria, a CESMA. Segundo consta na descrição da página oficial da CESMA no Facebook:

Fundada em 1978 por um grupo de estudantes, hoje, a CESMA – Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria Ltda, ganha a notoriedade de um Centro

Cultural, pois, realiza ações de fomento a arte em Santa Maria. Hoje a

CESMA promove e apoia vários projetos culturais, o Cineclube Lanterninha Aurélio, que nasceu junto com a Cooperativa, o Santa Maria Vídeo Cinema, Cesma in Blues, Feira do Livro de Santa Maria, entre outros (grifo nosso)1

Justamente por se tratar de um espaço com essas características, por aglutinar um público variado envolvido com as atividades culturais promovidas em Santa Maria, que pensamos e escolhemos o espaço da CESMA como local em que desenvolveríamos nosso estágio.

A princípio entramos em contato com os responsáveis a fim de conseguirmos um espaço da cooperativa (sala ou auditório). Contudo nos foi informado que isso não seria possível, uma vez que se tratava de quatro encontros e que não poderíamos pagar pelo custo de uso da possível sala. O gerente da livraria disse que inclusive a realização do Cineclube Lanterninha Aurélio, que já existe a mais de 30 anos, está ameaçada devido ao custo para a manutenção da atividade. Sendo assim, o que ele nos propôs foi que realizássemos as oficinas no Café da Cooperativa, que fica no segundo andar do prédio e estaria aberto de qualquer forma. E assim o fizemos.

1 Seção “sobre” da página

CESMA no Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/cesmasantamaria/>. Acesso em: 27 nov. 2019.

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Escolhemos as segundas-feiras à tarde (16 horas) para a ocorrência de nossas atividades, numa tentativa de conseguir a participação do público do cineclube, que ocorre nas segundas às 18h. Nossa ideia era, sobretudo, que conseguíssemos ampliar o grupo com o qual estaríamos em diálogo, que houvesse, sim, a participação de pessoas da universidade, mas que não ficássemos restritos a esse público. Afinal:

a educação não formal ou informal, é demarcada pela autora “[...] como aquela que os indivíduos aprendem durante seu processo de socialização - na família, bairro, clube, amigos etc., carregada de valores e culturas próprias, de pertencimento e sentimentos herdados” (GOHN, 2006, p. 3). (SCHVINGEL; SCHNEIDER; SCHWERTNER; JASPER, 2016, p. 186).

Uma vez que nesse processo de socialização, o que cada indivíduo carrega consigo, – seu lugar social, suas visões e percepções de mundo – são elementos fundamentais e determinantes para a construção de uma aprendizagem significativa.

História e debates sobre literatura

Há uma tríade a considerar na elaboração do conhecimento histórico, composta pela escrita, o texto e a leitura. No que se refere à instância da escrita ou da produção do texto, o historiador volta-se para saber sobre quem fala, de onde fala e que linguagem usa. Já ao enfocar o texto em si, o que se fala e como se fala são questões indispensáveis. No trato da recepção, visa abordar a leitura de um determinado receptor/leitor ou de um grupo de receptores/leitores, tratando das expectativas de quem recebe o texto, de sua contemplação, ou seu enfrentamento ou resistência a ele (BORGES, 2010, p. 95).

De acordo com essa citação, percebe-se que o trabalho com a literatura, numa perspectiva da ciência histórica, não se dá separado do exercício de pensar o tempo histórico, sem que haja o esforço recorrente de se pensar também a historicidade. Portanto, todo escrito (inclusive os literários) estão carregados de significados e visões de mundo de quem os escreve. Ao mesmo tempo, no processo de leitura, leitoras e leitores imprimem suas visões de mundo e suas experiências, enquanto indivíduos, ao que leem:

No universo amplo dos bens culturais, a expressão literária pode ser tomada como uma forma de representação social e histórica, sendo testemunha excepcional de uma época, pois um produto sociocultural, um fato estético e histórico, que representa as experiências humanas, os hábitos, as atitudes, os sentimentos, as criações, os pensamentos, as práticas, as inquietações, as

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expectativas, as esperanças, os sonhos e as questões diversas que movimentam e circulam em cada sociedade e tempo histórico (BORGES, 2010, p. 98).

Sendo a literatura uma forma de ler, interpretar, dizer e representar o mundo e o tempo, possuindo regras próprias de produção e guardando modos peculiares de aproximação com o real, de criar um mundo possível por meio da narrativa, ela dialoga com a realidade a que refere de modos múltiplos, como a confirmar o que existe ou propor algo novo, a negar o real ou reafirmá-lo, a ultrapassar o que há ou mantê-lo (BORGES, 2010, p. 98).

A proposta de oficina “Leitura e debate de textos literários” que será melhor explicada no último tópico terá como eixo central a temática étnico-racial e a representação de indivíduos negros em livros de literatura. Entre uma das questões principais que pretendemos abordar (e partir da qual pretendemos dar início ao debate) está o seguinte questionamento: por qual motivo, ao lermos livros de literatura (que

não abordam a temática do racismo) não imaginamos as personagens como pessoas negras?

Além disso, pretendemos trabalhar com a) casos e exemplos polêmicos em que a caracterização/representação de determinadas personagens de algumas literaturas tiveram na contemporaneidade; b) a presença da temática racial em produções literárias; c) abordar os discursos narrativos que a mídia utiliza para criminalizar e expor jovens negros; d) as diferenças entre literatura ficcional e história de vida, quando se trata de racialização.

Sendo assim, baseamos a justificativa do conjunto de oficinas que propomos, uma vez que, ao nosso ver, e de autoras como Maria Manuela Sabino (2008), o processo de ler e imaginar as personagens das histórias literárias apenas como pessoas brancas faz parte de uma construção histórica que extrapola um livro de literatura em específico. Maria Manuela do Carmo de Sabino (2008) afirma que ler é também imaginar sem recorrer à imagem, o que representa um exercício mental mais ativo do que aquele que é suscitado pela narrativa televisiva ou cinematográfica. Regina Dalcastagnè (2005) junto com seu núcleo de pesquisa analisaram diversos livros de romance brasileiros e o resultado obtido foi o de que esse meio é um espaço pouco plural, dominado por homens da classe média que escrevem apenas sobre os dramas vividos na metrópole por seus iguais.

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A pequena presença de negros e negras entre as personagens sugere uma ausência temática na narrativa brasileira contemporânea, que o contato com as obras, dentro e fora do corpus, contos e romances, confirma: o racismo. Trata-se de um dos traços dominantes da estrutura social brasileira, que Trata-se perpetua e se atualiza desde a Colônia, mas que passa ao largo da literatura recente. Se é possível encontrar, aqui e ali, a reprodução paródica do discurso racista, com intenção crítica, ficam de fora a opressão cotidiana das populações negras e as barreiras que a discriminação impõe às suas trajetórias de vida. O mito, persistente, da “democracia racial” elimina tais questões dos discursos públicos – entre eles, como se vê, o romance (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 46). “Partindo do pressuposto de que a história como conhecimento é sempre uma representação do passado e que toda fonte documental para produzir esse conhecimento também o é” (BORGES, 2010, p. 94). Assim, como já citado, não nos é possível ignorar que toda produção literária carrega em si um elemento essencial e caro ao estudo da história: historicidade; ou seja, elementos do tempo/espaço/cultura/grupo em que ela está inserida; aos quais pertence; dos quais fala; e pelos quais é consumida. Portanto, pensando nessa relação trazida pelo autor Valdeci Borges (2010) e tendo tais ideias como embasamento, resolvemos escrever e realizar como proposta de atividade em espaços não-formais de ensino (disciplina de Prática de Ensino em História D no atual currículo de História da Universidade Federal de Santa Maria) as oficinas com a temática já mencionada. Considerando também a educação em espaços não-formais uma área de conhecimento em que o aprendizado desenvolvido parte de um processo de socialização entre as partes envolvidas, entendemos a literatura como um importante canal de conhecimento cultural e intelectual, capaz de desenvolver pensamento crítico, bem como reproduzir, solidificar ou transformar visões de mundo de quem a consome e de quem a produz. Portanto, estas são as principais bases teóricas que fundamentam nossa proposta e orientarão nossa prática nas oficinas.

Outra questão pertinente é observar que em todas as mídias ocorre a tentativa de apagar a presença de negros e negras. Isto é muito comum em outdoors, propagandas de lojas, etc. O intrigante de propor um tema como este é perceber que crianças negras, desde a infância e ao assistirem programas infantis, encontram apenas personagens brancas sendo retratadas. Tal fato, muitas vezes, dificulta a auto identificação do próprio indivíduo enquanto um sujeito negro, podendo levar, inclusive, à negação dessa identidade, afinal, não são raros os casos em que os únicos negros e negras representados são tratados

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meramente como cômicos, ocupando papéis subalternos ou são generalizados como bandidos. De que modo formar na mente das crianças negras que sua cor de pele não define quem elas serão, mesmo que a mídia insista nisso?

Depois de anos podemos identificar em programas infantis algumas mudanças. Agora há desenhos com protagonistas negras(os) e até um esforço que os desenhos tragam representados um pouco da diversidade que habita o mundo (algo até pouco tempo inexistente). Porém a mudança ainda é tímida, de forma que são muitas as gerações que formaram e ainda formem sua identidade enquanto indivíduo negro somente depois de adultos, sem poder contar com a ajuda da escola ou das mídias nesse processo.

Para serem realmente efetivas, tais mudanças precisariam ocorrer desde a indústria cinematográfica, ou seja, na definição de quem produz esses programas infantis, novelas, séries, etc. Viola Davis, uma premiada atriz estadunidense, diz em um famoso discurso seu (quando recebe um importante prêmio) que o que separa os atores e atrizes negros de estarem presentes e ganharem premiações é a oportunidade dada pelos diretores, escritores e a própria indústria.

Nosso foco não é trabalhar com a mídia e produção de filmes e séries, mas a formação da consciência de apenas ver pessoas brancas nas telas pode levar os indivíduos a imaginar somente pessoas brancas também nas personagens dos livros de literatura, mesmo quando a cor de pele da personagem não é explicitamente descrita pela(o) autor(a) do livro. Somado a isso, muitos livros de literatura acabam ganhando adaptações cinematográficas e os atores e atrizes escolhidos são, em sua maioria, brancos. Sendo assim, pensar esses porquês significa fazer um exercício imaginativo e reflexivo fundamental a fim e construir em nossos imaginários uma gama de personagens plurais, tão variadas quanto as personagens da vida real.

A experiência: “Oficinas de leitura e debate de textos literários”

Nesse tópico iremos nos deter a explicar como ocorreram as oficinas de forma prática, quais materiais usamos e quais debates levantamos com os participantes. Como já mencionado, a intenção era trabalhar com a questão étnico-racial e as representações de personagens negras na literatura, sendo que a pergunta norteadora foi: por qual

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motivo, ao lermos livros de literatura (que não abordam a temática do racismo) não imaginamos as personagens como pessoas negras?

Começaremos por dois de nossos encontros, o segundo e o quarto, em que foram, essencialmente, utilizadas obras literárias para o debate e reflexão das oficinas. Nesses, trabalhamos “O ódio que você semeia” de Angie Thomas e “Quarto de despejo: o diário de uma favelada” de Carolina Maria de Jesus, respectivamente. Para esses encontros lemos as duas obras e selecionamos trechos que julgamos importantes para abordar a temática da representação de personagens negras e os enredos dessas histórias. Portanto, nossa metodologia nesses encontros consistiu em levar esses trechos, para que, a partir deles, partíssemos para o debate junto às/aos presentes.

“O ódio que você semeia” de Angie Thomas é um livro (adaptado para filme pela 20th Century Fox) necessário e com um debate extremamente atual. Com a separação de alguns trechos, destacamos principalmente a abordagem da representação de negras e negros no discurso midiático, que é um dos pontos ao redor do qual gira o enredo da história: um jovem negro é assassinado injustamente por um policial branco e a morte dele passa a ser justificada, na mídia, pela associação dele com o tráfico. Assim, sua amiga que estava presente juntamente com ele no momento do assassinato, passa a ser a porta-voz de um movimento que denuncia as injustiças desses assassinatos e cobra para que os culpados pelo assassinato respondam pelo crime.

A dinâmica que propomos aos participantes foi perceber como eles com as seguintes descrições dadas: “Mulher; ruiva; dezenove anos; moradora de Florianópolis; presa na Itália por transportar 3,2 Kg de cocaína” e “Homem; negro; preso em Porto Alegre por portar 69g de maconha” escreveriam uma manchete de jornal. Assim, debatemos sobre como a mídia, na maioria das vezes, acaba chamando de “jovem” ou pela profissão os/as brancos/as e de “traficante” “bandido” os negros/as, contribuindo para a criminalização e criação de estereótipos sobre esses últimos. Percebendo assim, as diferentes formas com que brancos e negros são tratados e representados pela mídia.

No quarto encontro, ainda com uma obra literária, agora com o “Quarto de despejo: o diário de uma favelada” de Carolina Maria de Jesus, nós debatemos sobre sua escrita e vida com alguns trechos selecionados do seu livro. Destacando principalmente questões sobre as diferenças entre literatura ficcional e história de vida, quando se trata

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de racialização. Debatemos isso porque há alguns anos atrás houve uma certa polêmica com a obra da autora em uma cerimônia da Academia Carioca de Letras, um dos palestrantes afirmou que “Quarto e despejo: o diário de uma favelada” não poderia ser considerado literatura por se tratar de um diário com a história do seu cotidiano.

Diversas reflexões puderam ser feitas a partir disso, principalmente quando percebemos que o problema maior não é só pelo fato de ser um diário, mas também pela autora ser uma mulher negra, semianalfabeta que não fazia parte da intelectualidade reconhecida como produtora de literatura. Como dinâmica, pedimos para os/as participantes escreverem um pouco da rotina do dia deles/as e perguntamos se aquilo poderia ser considerado um texto literário e o que era literatura para as pessoas presentes. Agora, voltando ao primeiro encontro, optamos por realizar uma dinâmica com os presentes antes de comunicar a elas/eles qual era a temática que pretendíamos abordar ao longo de nosso estágio em espaços não-formais. Dessa forma conseguimos, a partir de atividades essencialmente práticas, chegar à discussão da ausência/pouca representatividade de negras/negros em representações de personagens ficcionais, bem como do privilégio da branquitude, inclusive, no processo imaginativo. Esse privilégio, apontado por nós e percebido em algumas das representações das/os participantes, nos leva a perceber que, se não está dito que uma personagem é não-branca (negra ou indígena), nós não a imaginamos como tal.

Ainda nessa primeira oficina tivemos uma conversa reflexiva sobre a caracterização ou representação que algumas personagens de literaturas tiveram na contemporaneidade. Por exemplo, personagens que antes eram representadas como brancas e recentemente, foram sendo representadas como negras; ou personagens que foram embranquecidas quando adquiriram certa importância na história. São vários casos e exemplos polêmicos que muita gente deve conhecer, como: Sereia Ariel da Disney que se encaixa no primeiro caso e a personagem Lilá Brown de Harry Potter que se encaixa no segundo.

No terceiro encontro que propomos, debatemos principalmente algumas questões: “Quem são as personagens e quais os enredos dos livros que lemos? Quais são seus livros de literatura favoritos? Quem são as personagens principais? Como elas são? Qual o

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enredo dessas histórias? Será que esses livros não são somente de uma perspectiva eurocêntrica, com somente personagens brancas, com debates superficiais?”.

Há um número muito pequeno de produções literárias que possuem personagens negras em seus enredos e quando essas personagens existem (seja na literatura, filme, novela ou série) automaticamente as representações são negativas ou a temática racial e do preconceito precisa ser foco principal. E a questão é: será que precisa mesmo? Será que a gente não pode ter personagens negras em enredos com outros problemas e dilemas que não seja somente o racismo?

Como dinâmica dessa oficina pedimos para que os/as participantes escrevessem mini enredos a partir de alguns scripts como: “Uma menina negra de 13 anos está na escola e triste, o que aconteceu com ela?” e “Uma menina branca de 15 anos está na escola e triste, o que aconteceu com ela?”. Isso com o objetivo de explorar as múltiplas situações que uma personagem branca e uma negra podem passar através de um sentimento, no caso da tristeza, em que a negra não precisa, necessariamente, estar triste porque passou por um episódio de racismo ou injúria racial.

Além disso, utilizamos como embasamento o trabalho da professora Regina Dalcastagnè realizado na Universidade de Brasília, que, com a ajuda de estudantes da graduação, analisaram cerca de 258 obras de romance, das editoras Companhia das Letras, Record e Rocco. A pesquisa atentou para questões como gênero, ocupações e cor atribuídas às personagens dos livros de literatura. Tal pesquisa aponta números alarmantes da diferenciação nas representações de personagens não-brancas e brancas, sendo que muitas das representações das personagens não-brancas estão imbricadas de estereótipos raciais e construções racistas, demonstrando aí uma história única para essas personagens.

Sendo assim, conseguimos trabalhar, muito satisfatoriamente, todos os pontos a que nos propomos inicialmente quando pensamos a proposta, que seja: a) casos e exemplos polêmicos em que a caracterização/representação de determinadas personagens de algumas literaturas tiveram na contemporaneidade (primeiro encontro); b) a presença da temática racial em produções literárias (segundo encontro); c) abordar os discursos narrativos que a mídia utiliza para criminalizar e expor jovens negros (terceiro encontro);

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d) as diferenças entre literatura ficcional e história de vida, quando se trata de racialização (quarto encontro).

Para além das literaturas já indicadas, procuramos na internet e nas redes sociais elementos que auxiliassem nas discussões, como por exemplo: reportagens e notícias envolvendo os estereótipos nas manchetes jornalísticas (terceiro encontro); textos em que se debate a questão da representatividade de atrizes e atores negros/as dando vida à personagens da ficção (primeiro encontro).

Considerações finais

Ao fim da prática de estágio, constatamos, a partir das respostas aos questionários finais de cada encontro que as/os participantes unanimemente avaliaram como positivos os encontros realizados. Sendo assim, acreditamos ter cumprido satisfatoriamente com nossos principais objetivos: a) trabalhar com a noção de representação, pensando a literatura como um exemplo da mesma; b) pensar a literatura de uma perspectiva histórica, ou seja, pontuar que toda produção literária é dotada de uma dupla historicidade: características do tempo e espaço em que é produzida e características do tempo e espaço em que está sendo lida; c) Fomentar a reflexão sobre dimensão dos privilégios que indivíduos brancos possuem, os quais se refletem, inclusive, na construção dos processos imaginativos. Podemos dizer que trabalhar tal temática e preparar os encontros, ainda que tenham demandado bastante estudo, foi a parte mais tranquila de tudo, uma vez que já possuímos certa bagagem e acúmulo teórico sobre a mesma.

No entanto, nossa principal dificuldade se deu com relação à presença de público. Talvez porque não partimos de uma consulta prévia à comunidade, talvez porque nos deslocamos do espaço acadêmico tentando angariar outro público que não o universitário e acabamos por nos afastar do único público que realmente participou dos encontros.

Infelizmente não alcançamos o objetivo de diversificar o público com o qual dialogamos de maneira mais recorrente e essa é uma autocrítica, bem como um ponto a ser pensado por nós futuramente, se nos propormos a dar continuidade a atividades a respeito dessa temática em espaços não-formais de ensino.

Para além desse porém, consideramos que fomos bastante felizes acerca dos pontos que conseguimos tratar, sobretudo quando consideramos os objetivos da prática

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docente em espaços não-formais de ensino, que seja trabalhar elementos que sejam capaz de auxiliar os indivíduos em sua formação cidadã, enquanto sujeitos ativos que compartilham suas percepções e visões de mundo com os sujeitos com os quais interagem, ao mesmo tempo em que incorporam conhecimentos acerca de vivências e experiências a partir da convivência em espaços comuns com esses outros indivíduos. Tais aspectos contribuem para as noções de emancipação social, construção de identidade e percepção acerca do outro.

Finalizamos com um trecho da reflexão feita por Chimamanda Adichie escritora nigeriana que em seu discurso na conferência TEDx2 que acabou virando livro “O perigo da história única” falou sobre esse perigo, pensando, que história e narrativas estamos construindo e consumindo? Chimamanda conta que mesmo morando na Nigéria ela lia muitos livros com personagens estrangeiras e com isso ela se convenceu de que toda as suas personagens deveriam ser daquela forma, ou seja, de uma maneira que ela não poderia se identificar. Somente depois de um contato maior com a literatura africana que ela viu que podem sim existir personagens como ela, semelhantes no modo de vestir, falar e viver. “O que a descoberta de escritores africanos fez por mim foi isto: salvou-me de ter uma história única sobre o que são os livros” (ADICHIE, Chimamanda, 2019, p. 13-14). E a gente com essa proposta foi nesse sentido, não com livros africanos propriamente, mas tentando demonstrar como a literatura em geral pode nos salvar de uma história única dos livros e também das personagens negras e negros.

Referências bibliográficas

ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BORGES, Valdeci Rezende. História e Literatura: Algumas Considerações. Revista de

Teoria da História. v. 3, n. 1, jun. 2010. Disponível em:

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ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo da história única. 2009. (18m49s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc>. Acesso em: 02 jun. 2019.

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CHAGAS, Conceição Correa das. Negro: Uma identidade em construção: dificuldades e possibilidades. 1.ed. Petrópolis: Vozes, 1996.

GADOTTI, Moacir. A questão da educação formal/não-formal. Institut international

des droits de l’enfant (IDE) Droit à l’éducation: solution à tous les problèmes ou problèmes nas solution? Sion (Suisse), 18 au 22 octobre. 2005. p.1-11.

DALCASTAGNÈ, Regina, “A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n° 26, Brasília, jul.-dez. 2005, p. 13-71. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4846066.pdf. Acesso em: 29 set. 2020.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. 9. ed. São Paulo: Ática, 2007.

MARTINS, Maria Cristina. A personagem afrodescendente no espelho publicitário de

imagem fixa. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São

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SABINO, Maria Manuela do Carmo de. Importância educacional da leitura e estratégias para a sua promoção. Revista Iberoamericana de Educación. Portugal, n. 45/5 – 25 de março de 2008.

SANTOS, Regina Maria dos. Crônica e história: realidade e ficção no discurso jornalístico. In: SERPA, Elio Cantalicio; MENEZES, Marcos Antonio (org.). Escritas da história: narrativa, arte e nação. Uberlândia: EDUFU, 2007, p.95-110.

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