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Da forma para função ou da função para forma?

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Da forma para função ou da função para forma?

Raquel Meister Ko. FREITAG59 Sebastião Carlos Leite GONÇALVES60

RESUMO: Neste artigo, lidamos com duas diretivas para estudos da mudança linguística, via gramaticalização: da forma para a função e da função para a forma. Tais opções teórico-metodológicas requerem que se reconheçam atuantes na gramaticalização dois princípios, por meio dos quais tornam viáveis estudos na interface gramaticalização e variação: o principio da estratificação, que prediz que formas que se gramaticalizam passam a coexistir, num mesmo domínio funcional, com formas antigas funcionalmente equivalentes, e o princípio da divergência, que postula que uma forma pode desenvolver múltiplas funções no curso de sua gramaticalização, uma das quais revestida de estatuto mais gramatical do que sua congênere lexical (HOPPER, 1991). Na investigação da gramaticalização de formas e de funções, torna-se fundamental a apuração das frequências token (forma) e type (função) (BYBEE, 2003). Para mostrar a viabilidade da conjugação desses diferentes critérios, reinterpretamos, neste artigo, resultados de três estudos de casos envolvendo gramaticalização de Tempo, Aspecto e Modo/Modalidade, em duas variedades do português brasileiro. Na direção forma função, apresentamos resultados do estudo da gramaticalização da perífrase ir+infinitivo (FONSECA, 2010) e, na direção função forma, resultados da gramaticalização no domínio funcional de aspecto (FERNANDES, 2010) e no domínio funcional de tempo passado (FREITAG, 2007; COAN, 1997). Os resultados mostram que a opção por uma das diretivas pode determinar a adoção de critérios mais seguros para a proposição de trajetórias de gramaticalização. PALAVRAS-CHAVE: Gramaticalização. Variação. Forma. Função. TAM.

Introdução

O ressurgimento do interesse pela gramaticalização no cenário mundial data do início da década de 1980 e, no Brasil, a temática só tomou fôlego quase dez anos mais tarde. Desde então, os estudos de gramaticalização no português do Brasil tornaram-se campo fértil de investigação. A análise empírica de fenômenos de mudança, em diferentes níveis gramaticais, tem promovido reflexões sobre o quadro teórico (ou teorias) de gramaticalização, apontando os limites e limitações do modelo e a busca de abordagens de interface. Se num primeiro momento, os estudos de gramaticalização focavam o delineamento da trajetória de mudança de um item/construção (forma), atualmente, o domínio funcional (função) tem sido elevado também a objeto de análise. O fator frequência de uso, amparado seja nas noções de token e type (BYBEE, 2003), seja nas noções de variável e variantes da abordagem variacionista (LABOV, 1972), também vem sendo incorporado de modo produtivo ao quadro da gramaticalização, conferindo-lhe maior poder explanatório.

Os estudos de gramaticalização têm evidenciado que as trajetórias de mudança pressupõem estágios de menor estabilidade do sistema, na medida em que ocorre a sobreposição de funções para uma mesma forma e/ou a sobreposição de formas para o desempenho de uma mesma função, constatações que têm propiciado interessantes correlações com a Teoria da Variação e Mudança Linguística, vertente que vem se denominando Sociofuncionalista (NARO & BRAGA, 2001; TAVARES, 2003; GORSKI & TAVARES, 2009). É sob tal vertente que, neste artigo, focamos nosso olhar para fenômenos de gramaticalização no domínio das categorias verbais do português e, considerando o fator frequência de uso, discutimos as implicações e os limites da análise de trajetórias de

59 UFS – Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas – Departamento de Letras Vernáculas. São Cristóvão/SE, 49100-000 – rkofreitag@uol.com.br /CNPq

60 UNESP – Universidade Estadual Paulista. Câmpus de São José do Rio Preto – Departamento de Estudos Linguísticos e Literários – Rua Cristóvão Colombo, 2265, Jardim Nazareth, São José do Rio Preto/SP, 15054-000 – scarlos@ibilce.unesp.br / CNPq

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90 gramaticalização em duas direções: da forma para a função e da função para a forma. Nosso objetivo é mostrar que os dois direcionais de abordagens não são excludentes e permitem, quando conjugados, maior confiabilidade de resultados, de modo a se delinear o escopo do fenômeno, especialmente em amostras sincrônicas de língua, como as de que nos valemos nesta exposição.

Para a sustentação dessa proposição, reinterpretamos, nesse artigo, resultados de três casos de mudança, os quais envolvem a gramaticalização das categorias verbais do complexo TAM (Tempo, Aspecto e Modo/Modalidade), em duas variedades do português do Brasil (PB, daqui em diante). Na direção forma função, apresentamos resultados do estudo da gramaticalização da perífrase ir+infinitivo (FONSECA, 2010) e, na direção função forma, resultados da gramaticalização no domínio funcional de aspecto (FERNANDES, 2010) e no domínio funcional de tempo passado (FREITAG, 2007; COAN, 1997). Os dados empíricos que subsidiam esses estudos de caso são provenientes de amostras de fala de dois bancos de dados constituídos nos moldes da Sociolinguística Variacionista: a amostra de Florianópolis do banco de dados do Projeto “Variação Linguística Urbana na Região Sul do Brasil” (VARSUL) e a amostra censo do banco de dados IBORUNA do Projeto “Amostra Linguística do Interior Paulista” (ALIP).

O banco de dados VARSUL, disponível em <http://varsul.cce.ufsc.br>, é resultado do projeto “Variação Linguística Urbana na Região Sul do Brasil”, cujos objetivos são o armazenamento, a disponibilização e a realização de estudos descritivos de amostras de fala de habitantes das áreas urbanas representativas de cada um dos três estados da região sul do Brasil. O VARSUL vem, desde a década de 1990, promovendo a realização de estudos sociofuncionalistas em diferentes níveis de análise (TAVARES, 1999; GIBBON, 2000; VALLE, 2001; ROST, 2002; FREITAG, 2003, 2007, entre outros). O banco de dados IBORUNA, disponível em <http://www.iboruna.ibilce.unesp.br> e constituído entre os anos de 2004 e 2007 no interior do Projeto ALIP, teve por objetivo primeiro registrar a variedade falada na região noroeste do Estado de São Paulo, nucleada pela cidade de São José do Rio Preto, de modo a também promover estudos de descrição da variedade falada no interior paulista, por recurso a amostras do censo linguístico da região e a amostras de interação social livre, gravadas secretamente. Desde então, o Projeto ALIP tem também propiciado a realização de estudos na interface variação/gramaticalização (GONÇALVES & RUBIO, 2011, FERNANDES, 2010; FONSECA, 2010; FORTILLI, 2009, dentre outros).

Para a consecução de nossos objetivos, o presente artigo está estruturado em cinco seções. Nas duas primeiras seções, explicitamos as bases teóricas que embasam nossa proposição, procurando articular as perspectivas da Gramaticalização e da Variação (seção 1), para, em seguida, discutir a inter-relação entre forma e função e as implicações decorrentes do recorte da trajetória: se a partir da forma ou a partir da função (seção 2). Com base neste arcabouço, nas duas seções que se seguem, apresentamos o domínio das categorias verbais do PB, focando a gramaticalização de formas perifrásticas (seção 3) e a gramaticalização no domínio tempo passado (seção 4). Por fim, reservamos a última seção às nossas considerações acerca das abordagens pautadas em diferentes pontos de partida, fazendo um balanço dos resultados obtidos e ressaltando a importância do fator frequência de uso.

A interface gramaticalização/variação

Basilares na definição de fenômenos em variação são os conceitos de variável e de variante linguística. Duas ou mais formas distintas em variação que transmitam um mesmo conteúdo informativo constituem uma variável linguística ou identifica um fenômeno variável. Formas alternantes de se dizer a mesma coisa constituem formas variantes. Para que se reconheça um fenômeno variável é necessário, portanto, que duas ou mais variantes tenham

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91 o mesmo significado referencial ou denotativo (LABOV, 1972). Essa premissa básica dos estudos variacionistas se aplica sem grandes controvérsias a variáveis fonológicas, contudo a situação parece não ser a mesma para além desse nível de análise, como já fez sugerir o intenso debate, no interior da Sociolinguística, entre Beatriz Lavandera e William Labov, ao final dos anos de 1970, início dos 80 (LABOV, 1978; LAVANDERA, 1978, 1984; WEINER & LABOV, 1983), desencadeado a partir de uma série de trabalhos variacionistas que, já na década de 1970, passaram a dispensar mais atenção à variação de nível sintático, com o sacrifício, por vezes, de variáveis sociais. Exemplar desse tipo de abordagem variacionista é o trabalho de Weiner e Labov (1983), que, na investigação da alternância entre construções de voz ativa e construções de voz passiva sem agente, no inglês, desconsideraram em suas análises o componente social.

A questão norteadora do debate diz respeito a se, para além do nível morfofonológico, permaneceria válida a premissa variacionista de manutenção do significado referencial para formas consideradas alternantes. Contrárias à consideração de que, para se definir variável não-fonológica, bastaria a manutenção do significado referencial, independentemente de sua forma de expressão, colocaram-se os trabalhos de três representativas linguistas: E. Garcia (1985), B. Lavandera (1978, 1984) e S. Romaine (1981, 1984). Acerca dessa questão, assim se pronuncia criticamente Lavandera, por exemplo:

as unidades para além do [nível] fonológico, digamos, um morfema, um item lexical, ou uma construção sintática, têm cada uma por definição um significado. [...] as afirmações quantitativas devem ser tratadas [nesse caso] como dados que necessitam de interpretação, e as regras probabilísticas constituem apenas recursos heurísticos. (LAVANDERA, 1984, p. 42; 46)

A respeito dessas críticas, Labov (1978) considera que, inicialmente, a preocupação da Sociolinguística era investigar a motivação social de algumas mudanças linguísticas e demonstrar sua distribuição na escala social. Todavia, a Sociolinguística evoluiu e não pode se confinar apenas a estudos de fenômenos variáveis que estejam atrelados aos fatores sociais. Sem aprofundar o mérito dessa discussão, o certo é que muito já se avançou nos estudos sociolinguísticos na comprovação da pertinência de se considerar todos os níveis de análise da língua como sujeitos à variação. Assim, a dimensão variável da língua inclui não somente aspectos dos níveis morfofonológicos, mas também do sintático, do semântico e do pragmático, como bem demonstram estudos sobre a mudança linguística que se desenvolvem na interface gramaticalização/variação, recorrendo-se, sobretudo, ao afrouxamento da noção estrita de variável/variante, e adotando-se, como princípio, a comparabilidade funcional, tal como postulou por Lavandera (1978) ao final do debate.

Para o reconhecimento da viabilidade de aproximações entre estudos de gramaticalização e de variação, é preciso que se tenha claro a concepção de mudança linguística que cada vertente esposa. Como bem argumentam Gorski e Tavares (2009), a mudança, na perspectiva laboviana, só ocorre quando há a disseminação da inovação ao longo da comunidade de fala; não é, portanto, inovação em si. Diferentemente, em Gramaticalização, a mudança refere-se tanto ao surgimento de formas inovadoras quanto a sua propagação social; uma mudança bem sucedida contém essas duas etapas. Essas diferenças de abordagem se devem às preocupações centrais de cada teoria: no caso da Teoria da Variação e Mudança, a preocupação com o significado e as diferentes formas que o codificam e, no da gramaticalização, com uma forma que desempenha diferentes funções. Argumento relevante das autoras, ainda para justificar um estudo na interface Sociolinguística/Gramaticalização, é o de que, enquanto na teoria Sociolinguística, a mudança decorre da variação, na perspectiva da Gramaticalização, a variação é que decorre da

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92 mudança, porque é sob tal concepção que se averigua o percurso evolutivo de um dado item/construção, que, no decorrer de sua trajetória, adquire múltiplas funções. Se uma ou mais dessas funções já estiverem sendo desempenhadas por outro item, ocorre uma situação de variação. Assim, a variação é consequência da multifuncionalidade de um item em processo de gramaticalização. São palavras de Gorski e Tavares, a esse respeito:

Ao estudar variação, estamos analisando uma etapa da mudança em que convergem os percursos de gramaticalização; ao estudar gramaticalização estamos averiguando diferentes etapas de variação ao longo do tempo (GORSKI & TAVARES, 2009, p.13). Independentemente de estarmos lidando, neste artigo, com casos de variação strictu sensu, optamos por apresentar análises sociofuncionalistas, "afrouxando" os conceitos de variável e variante, para incluir tanto a variação de forma quanto a de função.

Forma e função

A relação entre forma e função no âmbito das teorias da linguagem tem sido, desde sempre, conflituosa: formalistas e funcionalistas defendem, cada qual, sua perspectiva como a primordial para os estudos da linguagem. Em nossa abordagem, não nos envolvemos nesta polêmica; limitamo-nos a tecer reflexões acerca das implicações para o delineamento do fenômeno de gramaticalização a partir de dois direcionais, da forma para a função e da função para a forma, e como a articulação entre ele, aliada ao fator frequência de uso, permite melhor captar os matizes da gramaticalização de fenômenos em níveis gramaticais mais altos e domínios funcionais complexos, como o são o das categorias verbais.

Como ponto de partida, assumimos a premissa funcionalista de que a estrutura da língua reflete a estrutura da experiência, instaurando uma relação natural entre forma e função, denominada iconicidade (cf. BOLINGER, 1977; GIVÓN, 1995). Em sua versão forte, a iconicidade prevê uma relação ideal de um-para-um entre forma e função. Em uma versão mais branda, admite que possa haver opacização entre a forma de codificação e a função por ela desempenhada, perda de transparência que abre a possibilidade para interpretação de casos à luz da variação. É nessa perspectiva que se inserem os direcionais de análise da gramaticalização em discussão.

Givón (1995) defende que a correlação ideal um-para-um entre forma e função é superestimada. Em uma situação real de uso linguístico é preciso admitir a arbitrariedade na codificação linguística, uma vez que a iconicidade do código linguístico está sujeita às pressões que atuam tanto na forma, afetando o código/estrutura, quanto na função, afetando a mensagem: o código sofre constante erosão decorrente de atrito fonológico, e a mensagem sofre alterações em virtude da elaboração criativa do falante. Tais pressões geram ambiguidade de código (polissemia), com uma forma e várias funções, e de mensagem, várias formas e uma função (variação).

Para lidar com essas implicações decorrentes da superestimação da iconicidade em estudos da mudança, tem-se articulado a abordagem variacionista e a abordagem da gramaticalização, cujo foco são as relações entre funções e formas, decorrentes de pressões linguísticas e sociais, com destaque para a história e a coexistência de diferentes formas, configurando-se como uma situação de estratificação/variação (HOPPER, 1991). Essa interface sociofuncionalista lida com estágios de gramaticalização, pressupondo que a estratificação/variação decorre da trajetória de gramaticalização.

Nessa perspectiva, os direcionais propostos configuram duas possibilidades de abordagem de trajetória de gramaticalização: a primeira, da forma para a função, é uma abordagem que parte da forma, com o mapeamento de suas diferentes funções/domínios

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93 funcionais por que perpassa em sua trajetória; a segunda, da função para a forma, é uma abordagem que parte da função/domínio funcional e busca o mapeamento das diferentes formas que o codificam. Para distinguir essas duas possibilidades, chamaremos a abordagem da forma para a função de gramaticalização de itens/construções e a abordagem de função para a forma, de gramaticalização de funções/domínios funcionais.

A gramaticalização de itens/construções refere-se ao processo, conforme Bybee (2003), pelo qual uma sequência de morfemas ou palavra frequentemente utilizada torna-se automatizada como uma única unidade no processamento e passa a desempenhar novas funções, ampliando seu escopo de atuação para outros domínios funcionais. A automatização do processo incrementa a frequência de uso, tanto a frequência type, como a frequência token. Frequência token é um método de quantificação que requer a contagem de uma forma (construção, palavra ou morfema), independentemente da função que assume no contexto em que ocorre, critério que admite a abordagem da gramaticalização de itens/construções, à medida que o aumento de frequência de uso é um dos primeiros indícios, não causa, que permite reconhecer processos de gramaticalização de itens/construções (BYBEE, 2003). Já frequência type é a contagem da frequência de um padrão particular (ou função) de dicionário que uma dada forma (construção, palavra ou morfema) assume no contexto em que ocorre, como, por exemplo, funções de tempo, aspecto, modo/modalidade etc, o que requer que se adote, para o acionamento desse critério, uma abordagem mais próxima a da gramaticalização de funções/domínios funcionais. Em grande parte de estudos casos de gramaticalização, um critério de apuração de frequência nem sempre exclui o outro, aliás, o desejável é que, na medida do possível, sejam conjugados (BYBEE, 2003).

Em termos metodológicos, o levantamento de frequência token e type constitui importante ferramenta que se associa aos princípios propostos por Hopper (1991), para diferenciar processos de gramaticalização de outros processos de mudança linguística: estratificação (“layering”), divergência, especialização, persistência e decategorização. De aplicação mais direta ao presente estudo, interessa-nos detalhar os princípios de estratificação e de divergência, que podem ser considerados à luz da noção de variável, em sentido mais lato, uma vez que o primeiro diz respeito à variação de formas dentro de um mesmo domínio funcional, enquanto o segundo refere-se à variação de funções para uma mesma forma.

Domínio funcional é o escopo de atuação de uma dada função desempenhada por uma ou mais formas da língua (cf. GIVÓN 1984). A complexidade dos domínios funcionais decorre do fato de as fronteiras entre cada um de seus subcomponentes nem sempre serem claras e precisas, impossibilitando a dissociação, na prática, de um componente do outro. Mais detalhadamente, o princípio da estratificação de Hopper sugere que, com o surgimento de novas camadas dentro de um domínio funcional, as camadas (ou formas) velhas não são necessariamente descartadas, podem coexistir e interagir com as camadas novas, que podem reter vestígios de seu sentido lexical antigo (persistência). Em decorrência dos estágios de polissemia que um item/construção experimenta num processo de gramaticalização, é forçoso que se reconheçam nuanças de sentido diferentes associadas à forma desencadeadora do processo, variância que é captada pelo princípio de divergência. A forma lexical original permanece autônoma no sistema, podendo se submeter a outros processos de mudanças que afetam os itens lexicais em geral. É, principalmente, na atuação conjunta desses dois princípios, que o item/construção sofre gramaticalização, na medida em que se submete a um rebaixamento categorial (decategorização), distanciando-se, assim, de seu congênere lexical (ou menos gramatical) para assumir função gramatical (ou mais gramatical ainda).

Nos estudos de gramaticalização, o foco da análise é captar as nuanças do processo pelo qual passam as construções e os domínios funcionais, evidenciando-se o caráter gradual da mudança, uma vez que há uma quebra na correlação prototípica entre a forma e a função. Esta quebra propicia situações de usos linguísticos variáveis em função da dinamização da

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94 trajetória dos itens/construções. Para Torres Cacoullos (2001), o termo “layering” pode ser visto em duas perspectivas nos estudos de gramaticalização. Na perspectiva de Hopper (1991), o princípio das camadas é explorado em termos da sua diversidade formal dentro de um dado domínio funcional. Torres Cacoullos sugere que esse princípio pode ser explorado em termos de divergência de forma e de sentido, ou seja, a coexistência de diferentes usos linguísticos em um mesmo recorte temporal, decorrente da trajetória de gramaticalização do item/construção. Sob tal perspectiva, o princípio de divergência de Hopper (1991) passa a ser apreciado também como um tipo especial de estratificação, como mostrado na fig. 1.

“layering”

diversidade formal

(variação sincrônica entre diferentes formas no mesmo domínio funcional)

polissemia

(variação sincrônica entre diferentes usos linguísticos da mesma forma)

Fig. 1: “Layering” como diversidade formal e polissemia (TORRES CACOULLOS, 2001, p. 463)

Variação em categorias verbais do português

Nas línguas naturais, a categoria verbal permite a expressão de funções sintático-semânticas variadas, codificadas morfologicamente, tais como valência, voz, aspecto, tempo e modo/modalidade e concordância. Uma análise minuciosa da categoria verbal nas línguas do mundo permite verificar a existência de um continuum de relevância entre tais expressões morfológicas na alteração do significado lexical codificado na raiz verbal, como mostra Bybee (1985) em pesquisa tipológica envolvendo cinquenta línguas. A autora mostra que a grande maioria das línguas (72%) traz expressa na base verbal a categoria aspecto, ao passo que concordância de número e pessoa ocorre em menor número de línguas (56%). Diante dessas evidências, é possível se chegar a uma escala, em que as categorias modificadoras da base verbal são dispostas de acordo com seu grau de relevância para a mudança do radical, como mostrado na fig. 2.

maior Grau de

relevância

Menor Valência > Voz > Aspecto > Tempo > Modo /modalidade> Concordância (número > pessoa > gênero)

Fig. 2: Ordem de relevância de categorias verbais (adaptada de BYBEE, 1985) Sob tal hierarquização icônica, quanto mais contribui para a alteração semântica do radical, mais próximo dele uma dada categoria se coloca. Assim, categorias morfêmicas que ocupam posição mais à esquerda do continuum contribuem mais significativamente para a modificação do conteúdo da base verbal do que as posicionadas mais à direita.

No presente trabalho, interessam-nos destacar dessa escala as categorias do complexo TAM para verbo (aspecto>tempo>modo/modalidade), que mostram que, na composição do sentido global da expressão verbal, aspecto é mais relevante do que tempo, que, por sua vez, é mais relevante do que a modo/modalidade, permitindo, assim, inferir dessa relação que, entre tais categorias, existe um continuum de gramaticalização de sentidos, que vai de menos abstrato > mais abstrato. Tal disposição pode encontrar seus reflexos nos correlatos gramaticais de codificação dessas categorias semânticas, seja por meio de perífrases verbais seja por meio de sufixos flexionais, uma vez que universais de base semântica encontra

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95 amparo tanto nas codificações morfológicas, caso de afixos, quanto nas codificações morfossintáticas, caso de perífrases verbais (HENGEVELD, 2004).

De acordo com Bybee (1985), a categoria aspecto refere-se à temporalidade interna do evento descrito pela predicação verbal, a qual aciona noções como duração, momentaneidade, fases de desenvolvimento do evento, resultatividade, iteratividade etc. Isso significa dizer que significados aspectuais não afetam participantes de um evento, como as categorias valência e voz afetam, nem fazem referência à temporalidade externa ao evento de fala (tempo dêitico), como é função da categoria tempo, que deixa inalterado o evento em si, independentemente de ele estar situado em momento anterior, concomitante ou posterior ao evento de fala. Como a mais abstrata, a categoria modo/modalidade é acionada para a expressão da atitude do falante, não tendo relação direta nem com o evento descrito pela predicação verbal nem com sua localização temporal, propriedade semântica que torna essa categoria menos relevante para o significado do verbo do que aspecto e tempo.

Diferentemente das línguas que serviram de base para pesquisa tipológica de Bybee (1985), em português, as categorias do complexo TAM não são codificadas exclusivamente por afixos verbais; podem ser expressas também por formas de expressão variadas, como as perífrases constituídas de Verbo auxiliar (V1) + Verbo principal (V2), em uma de suas formas nominais (particípio, gerúndio e infinitivo), pela própria predicação, por complexos oracionais ou ainda por partes maiores do discurso.

Para tratar empiricamente dos direcionais envolvendo forma e função, voltamos nossa atenção para resultados de três estudos de caso de mudança: a) a gramaticalização de ir+infinitivo (FONSECA, 2010) e a de perífrases constituídas por V1 + V2-ndo, com V1 = andar, continuar, ficar, viver (FERNANDES, 2010); e b) a gramaticalização no domínio do pretérito. É de que passamos a tratar nas duas próximas seções.

Gramaticalização de perífrases verbais

Não há consenso na literatura linguística acerca da definição de propriedades claras que permitam distinguir verbos plenos de verbos auxiliares. Como mostram Fonseca (2010) e Fernandes (2010), a depender da posição teórica do investigador e dos critérios por ele adotados, haverá um diferente conceito de auxiliar e diferentes tipos de verbos que podem integrar essa classe. Recorrendo então a diferentes estudos (LOBATO, 1975; LONGO, 1990; HEINE, 1993, LONGO & CAMPOS, 2002), as autoras levantam 25 critérios diferentes para testar a auxiliaridade em construções perifrásticas, os quais transcrevemos no quadro 1, a seguir, com o intuito de mostrar a falta de consenso em torno desses critérios.

Autor Critérios de Auxiliaridade Lobato (1975) Longo (1990) Heine (1993) Longo e Campos (2002)

1. Inseparabilidade (prosódica, sintática e semântica) √ √ √ √

2. Detematização (sem propriedade de predicação) √ √ √

3. Incidência da negação sobre a perífrase √ √ √

4. Restrição paradigmática (defectividade) √ √

5. Frequência alta (auxiliar + v. na forma nominal) √ √

6. Incidência de circunstante de tempo sobre a perífrase √ √

7. Impossibilidade de desdobramento da oração √ √

8. Critério da apassivização √ √

9. Recursividade (coocorrência com mesma raiz) √ √

10. Oposição a uma forma simples correspondente √

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12. Sujeito único √ √

13. Posição fixa na perífrase √ √

14. Participação do complexo TAM √

15. Categoria fluida entre pleno e auxiliar √

16. Formas variantes (plena e reduzida foneticamente) √

17. Impossibilidade de receber contraste enfático √

18. Tendência a se tornar clítico/afixo √

19. Flexão em pessoa, número, concordância, TAM etc √

20. Não-regência por outros auxiliares √

21. Sinsemânticos e sincategoremáticos √

22. Categoria separada do verbo principal √

23. Acepção egocêntrica √

24. Impossibilidade de ser complementado por oração √ 25. Sem restrições semânticas sobre sujeito e auxiliado √

Quadro 1: Critérios de auxiliaridade (LOBATO, 1975; LONGO, 1990; HEINE, 1993; LONGO & CAMPOS, 2002)

Mesmo diante da tentativa de se estabelecerem critérios para a distinção de auxiliares, Heine (1993), de posição moderada, advoga não haver limites claros entre verbos plenos e auxiliares, os quais se sujeitam a um continuum ou a uma gradiência de gramaticalidade, vista sempre como resultante de processos de gramaticalização que tornam, em certos contextos, verbos plenos em auxiliares. Assumindo, aqui, essa posição para a análise de construções perifrásticas, a questão que permanece diz respeito a quais parâmetros adotar para a identificação de um gradiente verbal do tipo pleno > pleno/auxiliar > auxiliar, visto que, num recorte temporal da língua, um mesmo elemento pode assumir funcionamento prototipicamente ora de verbo pleno ora de auxiliar, havendo contextos de sobreposição entre essas duas funções. Assim, a verificação da aplicação de critérios de auxiliaridade no estudo da gramaticalização de perífrase verbal constitui ferramenta útil para aferir o seu grau de gramaticalidade, pois, por meio desses critérios, torna possível verificar o grau de conexão entre V1 e V2 na construção perifrástica, que pode variar de simples justaposição a fusão, conforme Lehmann (2002 [1982]).

Tratemos então dos dois estudos de casos que, envolvendo construções perifrásticas, contemplam os direcionais enfocados neste trabalho. O primeiro estudo, partindo da forma de construções perifrásticas constituída de ir+infinitivo, procura detectar, na multifuncionalidade da construção, a função mais gramaticalizada na atualização das categorias TAM (FONSECA, 2010), enquanto o segundo, partindo do domínio funcional do aspecto imperfectivo cursivo, considera a variação de construções perifrásticas, nesse domínio, implementada pelos verbos andar, continuar, ficar e viver (V1), seguidos de gerúndio (V2), para verificar quais, dentre elas, encontram-se em estágio mais avançado de gramaticalização (FERNANDES, 2010). Está na base desses dois estudos de caso a consideração dos princípios de divergência e de estratificação, tal como discutidos na seção anterior.

Para testar a gramaticalização dessas perífrases, elegemos, para cada tipo, um conjunto de 10 critérios de auxiliaridade, dos 25 expostos no quadro 1, associados à apuração da frequência de uso, considerada não como resultado da gramaticalização, mas como “força ativa na investigação das mudanças que ocorrem em gramaticalização” (BYBEE, 2003, p. 602). A adoção desses dois critérios permite verificar, respectivamente, as seguintes hipóteses: a) quanto maior o número de critérios de auxiliaridade atualizados na perífrase, mais coesa, mais conectada e mais gramaticalizada ela estará; b) formas/funções mais

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97 gramaticalizadas são mais frequentes no discurso. Os dados empíricos que sustentam as análises das perífrases são provenientes do banco de dados IBORUNA do Projeto ALIP.

Analisemos inicialmente o caso de ir + infinitivo, sob a expectativa de que sua gramaticalização acompanha a gramaticalidade das categorias verbais (aspecto > tempo > modo/modalidade), como anteriormente discutida (BYBEE, 1985). As diferentes funções de TAM identificadas nos usos de ir+infinitivo são ilustradas no quadro 2.

Funções de ir+infinitivo Ocorrências Prototípicas T1 Aspecto Imperfectivo

Iterativo

as mulheres às vezes vão passeá(r) pra lá ... elas ficam bem assustada quando chega e vê aquilo lá (AC-093; DE ; L. 146)

T2 Aspecto Imperfectivo Semelfactivo

ela disse que sem::pre amô(u) ele que sempre vai amá(r)... apesar da mor::te dele né?... (AC-038; NR; L.139)

T3 Aspecto Perfectivo Semelfactivo

uma amiga minha foi viajá(r) pra Laranjais e ela achô(u) o hotel de lá muito bonito... (AC-004; NR; L.62)

T4 Tempo Futuro Próximo depois de amanhã na sexta-fe(i)ra a gente vai:: vai voltá(r) pra lá::

(AC-046; NE; L.115)

T5 Tempo Futuro Remoto eu ficava sempre falan(d)o –“um dia eu vô(u) passá(r) de lá vô(u) conhecê(r)

ela”– (AC-067; NE; L.07)

T6 Tempo Futuro do Pretérito um moleque maior falô(u) que ia batê(r) nele na hora do recreio... (AC-067; NR; L.170)

T7 Modalidade orientada para o Falante

“vamo(s) fazê(r) uma macumba?... nós temo(s) que fazê(r) uma macumba pa matá(r) essa mulher” (AC-100; NR; L.114)

T8 Modalidade Orientada para o Agente

então você vai lê(r) a embalagem... você vai pegá(r) a forminha... você já vai

passá(r)... não é fácil não viu? (AC-106; RP; L.548)

T9 Modalidade Epistêmica (Possibilidade)

às vez nunca dá certo porque se eles tivé(r) a carta... eles vai sabê(r) que é

sinal falso... é a única coisa que tem (AC-059; RP; L.190)

T10 Marcador discursivo vamos supor mente vazia é a oficina do diabo né? então:: lá é um lugar que cê num fica de mente vazia (AC 029-RO; L.205)

T11 Função Ambígua nós ligamo(s) pra mãe da M.... e pra minha mãe daÍ elas foram lá na praça

achá(r) essa meNIna... (AC-010; NE; L.68)

Quadro 2: Ocorrências prototípicas das funções de ir+infinitivo

Na tabela 1, apresentamos a frequência das funções (T1,..., Tn) de ir + infinitivo. Tabela 1: Multifuncionalidade (T1...Tn) e frequência de uso de ir + infinitivo

Types (funções) Tokens

ASPECTO (03) 280 tokens 19% da amostra T1. Imperfectivo Iterativo 99/1492 = 6,6% T2. Imperfectivo Semelfactivo 93/1492 = 6,2% T3. Perfectivo Semelfactivo 88/1492 = 5,9% TEMPO (03) 631 tokens 43% da amostra T4. Futuro Próximo 532/1492 = 35,6% T5. Futuro Remoto 18/1492 = 1,2% T6. Futuro do Pretérito 81/1492 = 5,4% MODALIDADE (03) 469 tokens 31% da amostra

T7. Orientada para Falante 52/1492 = 3,5% T8. Orientada para Agente 98/1492 = 6,6% T9. Epistêmica (Possibilidade) 319/1492 = 21,4% OUTRAS (02) 112 tokens 7% da amostra T10. Marcador Discursivo 65/1492 = 4,4% T11. Função Ambígua 47/1492 = 3,2% TOTAL 1492 = 100%

(10)

98 Pelo critério frequência, a função temporal seria a mais gramaticalizada, a função ambígua a menos gramaticalizada e as funções aspectuais e modais teriam grau de gramaticalização intermediário, disposição categorial que não atestaria a hipótese de que a gramaticalização de ir+infinitivo ocorreria em um processo maior de gramaticalização das categorias verbais flexionais (aspecto > tempo > modo/modalidade). Vejamos, a seguir, no quadro 3, os resultados da análise da atualização dos critérios de auxiliaridade para aprofundarmos essa discussão. A verificação da atualização dos critérios selecionados é feita atribuindo-se 1, se um dado critério se aplica, e 0, se não se aplica. Considerando-se o direcional forma função, cada critério é aplicado mediante a análise de construções de ir+infinitivo, prototípicas de cada uma das funções do complexo TAM (FONSECA, 2010).

Funções Critérios

Aspecto Tempo Modo/Modalidade Ambígua

T1 T2 T3 T4 T5 T6 T7 T8 T9 T10 1. Inseparabilidade na perífrase 1 1 1 1 1 1 1 1 1 0 2. Detematização 0 0 0 0 0 1 1 1 1 0 3. Incidência de negação 1 1 1 1 1 1 1 1 1 0 4. Restrição paradigmática 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 5. Frequência alta 1 1 1 1 1 1 1 1 1 0

6. Incidência de circunstante de tempo 1 1 1 1 1 1 1 1 1 0

7. não desdobramento em orações 0 0 0 1 1 1 1 1 1 0

8. Apassivização 0 0 0 0 0 0 1 1 1 1

9. Recursividade 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0

10. Oposição a forma simples 1 0 1 1 1 1 0 1 1 0

Grau de Gramaticalidade 6 5 6 8 7 8 8 9 9 2

Quadro 3: Multifuncionalidade (T1...Tn) e auxiliaridade de ir+infinitivo (FONSECA, 2010) Pelos resultados do quadro 3, observa-se que ir+infinitivo encontra-se em estágio avançado de gramaticalização. Não há grandes discrepâncias entre os graus de gramaticalidade de cada função, e inexistem graus baixos, com exceção da função ambígua (Grau 2), para a qual a maioria das ocorrências (63%) não tem ainda o grupo verbal formado. Outro dado que confirma um estágio avançado de gramaticalização dessa construção é a atualização do critério Recursividade, exemplificado pela ocorrência em (01).

(1) “eu/ eu quero eu quero uma arma?” ... “ah num tem/ num tem jeito de comprá(r)?”... é inlegal eu vô(u) í(r) num algum lugar aí eu conSIgo” (AC-062; RO; L.444)

O grau de gramaticalidade da função ambígua destoa das demais funções porque se trata de construções que, na maioria dos casos, ainda preservam a estrutura de deslocamento e de finalidade. Funções aspectuais, pela baixa frequência, estariam em estágio intermediário de gramaticalização (Graus 5 e 6), constatação decorrente do fato de ocorrências prototípicas ainda estarem ligadas à estrutura argumental do verbo ir e, portanto, não totalmente detematizadas; combinadas, frequentemente, com locativos expressos, essas ocorrências também podem ser desdobradas em estruturas de deslocamento e finalidade. Funções temporais, com grau 7 ou 8, estariam mais gramaticalizadas que as aspectuais. Embora alguns types temporais ainda não estejam totalmente detematizados (futuro próximo e remoto), já não é mais possível seu desdobramento oracional. Observe-se que o critério da Recursividade só foi atualizado na função de futuro próximo, o que indicia que essa função estaria um pouco mais gramaticalizada que as demais temporais. Por fim, as funções modais são as mais gramaticalizadas, com graus 8 e 9; só não atualizam o critério da Recursividade, e, no caso da Modalidade Orientada para o Falante, o critério da Oposição a uma forma simples correspondente, já que a perífrase, sob valor de exortação, não é variante de futuro.

(11)

99 A partir desses resultados, confrontemos na fig. 3, os clines de gramaticalidade de ir+infinitivo, considerando os critérios de frequência e de auxiliaridade.

Fig. 3: Clines de gramaticalidade de ir+infinitivo (FONSECA, 2010)

No confronto dos dois clines de gramaticalidade de ir+infinitivo, pelo critério frequência, modo/modalidade gramaticaliza-se em tempo, portanto tempo seria a categoria mais gramaticalizada; pelos critérios de auxiliaridade, tempo gramaticaliza-se em modo/modalidade, portanto modo/modalidade seria a categoria mais gramaticalizada. Diante dessa divergência, advogamos que o cline mais confiável é o que obedece aos critérios de auxiliaridade, porque permite ratificar o postulado universal de Bybee (1985) sobre a ordem de gramaticalização das categorias verbais: aspecto seria a menos gramatical, tempo, uma categoria intermediária, e modo/modalidade, a mais gramatical.

Analisemos, agora, o estudo de caso das perífrases constituídas por andar, continuar,

ficar e viver + V-ndo (FERNANDES, 2010), o qual assume a diretiva função forma. No

quadro 4, seguem ocorrências exemplificativas das diferentes funções de cada uma delas.

Funções Ocorrências prototípicas

Imperfectivo cursivo semelfactivo

ficar +V_ndo

eu a:: minha cunhada e a minha mãe fico(u) conversan(d)o nas: ... na:: sacada (AC-013; NE: L.09)

continuar +V_ndo

a gente ia continuá(r) namoran(d)o (AC-022; NE: L. 60)

andar +V_ndo

as polícia ... nu/ num anda fazen(d)o muita coisa não (AC-030; RO: L. 355) Imperfectivo

cursivo iterativo

ficar +V_ndo

aí com a mão aqui ((mostra com a mão)) e ficava falan/ repitin(d)o isso toda hora...(AC-001;NE:L.12)

continuar +V_ndo

aí lá a gente assim continuô(u) mantendo contato

andar +V_ndo

há vários dias já... que ela... anda me contan(d)o que os dois num tavam in(d)o muito BEM (AC-022; NR: L. 230)

viver +V_ndo

meu pai só vivia brigan(d)o com o patrão (AC-048; NR: L. 200) Imperfectivo

cursivo progressivo

ficar +V_ndo

o buraco na Camada de Ozônio fica aumentando a água no mar (AC-076; RO: L. 413)

continuar +V_ndo

e vai continuá(r) aumentan(d)o as vagas... tá nítido isso... o governo já... além de tudo... o governo... acabô(u) de... a universidade em si acabô(u) de acampá(r)... o campus da FAMERP... (AC-080; RO: L.279)

Perfectivo pontual

ficar +V_ndo

e os moleque também fica contan(d)o assim ... hoje eu fiquei sabendo que... a C. gosta do E.... nossa maior frescura lá na classe (AC-014-NR L.120)

Quadro 4: Ocorrências prototípicas das funções de andar, continuar, ficar e viver + _ndo

Critério frequência token

Função Ambígua Função Aspectual Função Modal Função Temporal ___________________________________________________________________________

menos frequente mais frequente menos gramaticalizada mais gramaticalizada Critérios de auxiliaridade

Função Ambígua Função Aspectual Função Temporal Função Modal _________________________________________________________________________

atualização de menos critérios atualização de mais critérios menos gramaticalizada mais gramaticalizada

(12)

100 Da análise do quadro 4 e dos resultados de frequência token e type, na tab.2, a seguir, depreende-se que construções com V1 continuar são as que apresentam maior variedade de função aspectual, ao passo que as formadas por andar realizam os aspectos imperfectivo cursivo semelfactivo e iterativo. Por fim, perífrases constituídas por viver+_ndo não apresentam variabilidade funcional, expressando apenas aspecto imperfectivo cursivo iterativo. Construções com V1 ficar são as mais frequentes (86%), seguidas das com V1 continuar (11%) e, com mesma frequência, as com andar+_ndo e viver+_ndo (1,5%).

V1 (frequência type) Funções ficar (4) continuar (3) andar (2) viver (1) Total Imperfectivo cursivo semelfactivo 199/593= 33,4% 47/74= 64,8% 2/12= 16% - 249/691= 36% Imperfectivo cursivo iterativo 289/593= 48,7% 25/75=33,7% 10/12= 84% 12/12= 100% 335/691= 48,5% Imperfectivo cursivo progressivo 2/593= 0,5% 2/74= 1,5% - - 4/691= 0,5% Perfectivo pontual 103/593= 17,4% - - - 103/691= 15% TOTAL (tokens) 593/691= 86% 74/691= 11% 12/691= 1,5% 12/691= 1,5% 691 Tabela 2: Frequência de uso das perífrases V1+V-ndo (FERNANDES, 2010)

Por fim, no quadro 5, a seguir, apresentamos os resultados para a aplicação dos critérios de auxiliaridade às perífrases em questão. Nesse estudo de caso, a aplicação dos critérios às diferentes perífrases considera que se há atualização de um critério em alguma ocorrência de uma dada perífrases analisada, então deve-se considerar que ele se aplica àquele tipo de perífrase, independentemente da frequência com que o critério se aplica.

V1 + V2-ndo Critérios

Andar Continuar Ficar Viver

1. Inseparabilidade na perífrase 0 0 0 0

2. Detematização 0 0 0 1

3. Incidência de negação 0 0 0 1

4. Sujeito único 1 1 1 1

5. Irreversibilidade 1 1 1 1

6. Incidência de circunstante de tempo 0 0 0 1

7. não desdobramento em orações 0 0 0 1

8. Apassivação 1 1 1 1

9. Recursividade 0 0 0 0

10. Oposição a forma simples 1 1 1 1

Grau de gramaticalidade 4 4 4 8

Quadro 5: Multifuncionalidade e auxiliaridade em perífrases de V1 + V2-ndo (FERNANDES, 2010)

Os resultados do quadro 5 evidenciam que construções com V1 viver estariam mais gramaticalizadas (grau 8) em relação às demais, que apresentam, todas, o mesmo grau médio de gramaticalidade (grau 4).61 Vejamos, a seguir, a análise de ocorrências ilustrativas da aplicação dos critérios, para uma melhor discussão sobre o resultado obtido no quadro 5. Consideremos inicialmente a ocorrência em (02).

(13)

101 (2) eu andava ali direto... procuran(d)o aquelas abelhinha jataí (AC-063; RO: L. 1347) Da análise de (02), podemos apreender que V1 atribui papel temático a seus argumentos e que V1 ocorre separado de V2 pelo locativo ali. Por essa razão, há possibilidade de desdobramento da oração em duas outras: uma principal e uma reduzida de gerúndio.

Os critérios “incidência de negação sobre a perífrase” e “incidência de circunstante de tempo sobre a perífrase” podem ser averiguados por meio de testes, em que se altera a posição da negação ou do advérbio temporal, para verificar se, a depender da posição, o circunstante continua incidindo sobre a perífrase. Em (03) e (04), mostramos como funciona o teste.

(3) do dia que eu casei até hoje eu continuo na minha casa e cuidan(d)o do meus filhos (AC-110; NE: L. 81)

a. até hoje eu não continuo na minha casa e cuidan(d)o do meus filhos b. até hoje eu continuo na minha casa e não cuidan(d)o do meus filhos

(4) a gente vai:: compra sorvete e fica na praci::nha conversan::(d)o (AC-001; DE: L. 197) a. a gente vai:: compra sorvete e não fica na praci::nha conversan::(d)o...

b. a gente vai:: compra sorvete e fica na praci::nha não conversan::(d)o...

É evidente que a razão da não atualização desses critérios nesses exemplos é a formação ambígua das perífrases, e não a alteração de seu escopo, a depender da posição do circunstante, já que em qualquer outro tipo de perífrase a atualização dos critérios é clara, como mostrado em (05).

(5) minha filha é muito alegre muito brincalhona vivia saindo com as amigas (AC-148; NR: L. 60)

a. (não) vivia (não) saindo com as amigas...

b. (sempre) vivia (sempre) saindo com as amigas...

Lobato (1975) afirma que testes como esses são pouco confiáveis, já que resultam construções por vezes estranhas ou agramaticais. Também o critério da apassivação é isento de críticas, já que é impossível passivar verbos intransitivos, como é o caso dos quatro tipos de V1 aqui tratados. Nesse sentido, todas as ocorrências atualizam esse critério. O critério “sujeito único” se atualiza em todas as ocorrências coletadas, assim como o critério “irreversibilidade” e “oposição a forma simples correspondente”. Os dados demonstram que, assim como a base verbal determina os traços e o papel temático do sujeito, não há casos em que V1 e V2 ocorram invertidos. No caso das “oposições”, qualquer construção pode ser expressa por uma conjugação simples, e não por uma perífrase, como em (07).

(7) eu nunca fiquei saben(d)o o que é aquilo lá (AC-015; DE: L. 487) a. eu nunca soube o que é aquilo lá

As perífrases formadas por V1 viver diferenciam-se das demais, por apresentarem apenas inserção de material não relevante para a modificação do estatuto de auxiliar das construções, como pronomes. Ocorre, então, que há detematização de V1, incidência de negação e de circunstante temporal sempre sobre a perífrase, e não há possibilidade de desdobramento em duas orações, como demonstrado em (08).

(14)

102 No caso do critério da “recursividade”, não há ocorrência de V1 com mesma raiz em forma gerundiva. De fato, com os tipos de V1 analisados, causa bastante estranheza uma perífrase constituída de V1 e V2 de mesma raiz, como hipotetizamos nos exemplos abaixo. (9) * Gostaria de emagrecer, então ando andando na esteira.

(10) * Continuo continuando comendo muito.

(11) * Desde aquele dia fico ficando com dores nas costas. (12) * Vivo vivendo triste

Diante da oposição de apenas dois níveis de gramaticalização de auxiliares apurados, uma alternativa para maior diferenciação dessas perífrases seria a inclusão gradativa de outros critérios, além dos adotados, o que permitiria checar em que aspectos uma perífrase vai se diferenciando de outra.

Confrontando os resultados do quadro 5 aos da tabela 2, os clines de gramaticalidade seriam os dados na fig. 4, cuja análise permite observar uma aparente contradição na apuração da gramaticalidade das perífrases analisadas, uma vez que os critérios de auxiliaridade não permitem recompor os mesmos clines de gramaticalidade alcançados pela apuração da frequência token/type. Enquanto, pelos critérios de auxiliaridade, a perífrase com V1 viver é a mais gramaticalizada (grau 8), pela frequência token, ao lado de V1 andar, ela é a menos frequente.

Critério de frequência type

viver+_ndo andar+_ndo continuar+_ndo ficar+_ndo ___________________________________________________________________________

menos frequente mais frequente menos gramaticalizada mais gramaticalizada Critério de frequência token

andar/viver+_ndo continuar+_ndo ficar+_ndo ___________________________________________________________________________

menos frequente mais frequente menos gramaticalizada mais gramaticalizada Critérios de auxiliaridade

andar/continuar/ficar+_ndo viver+_ndo ___________________________________________________________________________

atualização de menos critérios atualização de mais critérios menos gramaticalizada mais gramaticalizada

Figura 4: Clines de gramaticalidade andar, continuar, ficar e viver+_ndo

O impasse gerado entre os dois critérios empregados parece apontar como problemáticos os critérios de auxiliaridade adotados, em razão de que a baixa frequência token (apenas 12, para viver) restringe a verificação de uma maior estratificação funcional (apenas 1 type para viver), o que, por consequência, reduz a possibilidade de atualização de um número maior de critérios de auxiliaridade, ao contrário do que se verifica para os casos de ficar e continuar, cuja maior variabilidade funcional é reflexo das altas frequências tokens.

Para o estudo de caso em questão, uma formulação mais geral, então, que considera também a baixa frequência token e type de V1 andar (12 e 2, respectivamente) é a de que quanto maior a frequência de uma dada forma, maior a possibilidade de, numa escala de gramaticalidade, ela representar a forma mais gramaticalizada, e quanto menor a frequência, maior a possibilidade de, na escala de gramaticalidade, ela representar a forma menos

(15)

103 gramaticalizada, formulação que confirma a importância da frequência na gramaticalização (BYBEE, 2003). Portanto, o cline mais seguro para afirmar a gramaticalização das perífrases aspectuais é o estabelecido com base no critério de frequência, diferentemente do que se apurou para a investigação da gramaticalização de ir+infinitivo.

Gramaticalização no domínio do tempo passado

Como mostramos, as categorias verbais, no português, abarcam diferentes domínios funcionais que articulam valores de tempo, aspecto e modalidade. Estudos de orientação variacionista e/ou sociofuncionalista têm mostrado que as categorias verbais do PB se apresentam em camadas, tanto quanto à diversidade formal, como quanto à polissemia. Para ilustrar a importância da confluência das abordagens de itens/construções e de funções/domínios funcionais, recortamos, nesse outro estudo caso, o macrodomínio funcional da expressão do tempo passado em português, circunscrito, no escopo desta análise, à amostra relativa à cidade de Florianópolis do banco de dados do Projeto VARSUL.

O macrodomínio da expressão verbal do tempo passado refere-se aos recursos linguísticos de base verbal para a expressão de situações que ocorreram em momento anterior ao momento de fala. Os tempos verbais que expressam passado no português podem ser definidos em função do arranjo temporal específico, como sugere Côroa (2005), que, baseada em Reichenbach (1947), define-os em função da articulação do momento do evento (ME), momento da fala (MF) e momento da referência (MR), como explicitado em (13) a (16). (13) ME – MR – MF: o ME é anterior ao MR, que, por sua vez, é anterior ao MF, valor

temporal prototipicamente associado ao pretérito mais-que-perfeito;

(14) ME, MR – MF: o ME é simultâneo ao MR e ambos são anteriores ao MF, valor temporal prototipicamente associado ao pretérito imperfeito;

(15) ME – MF, MR: o ME é anterior ao MF e este simultâneo ao MR, valor temporal prototipicamente associado ao pretérito perfeito;

(16) MR – ME – MF: o MR é anterior ao MF, que é anterior ao ME, valor temporal prototipicamente associado ao passado condicional.

Os arranjos temporais elencados acima têm em comum o fato de se referirem a situações que ocorreram (ou poderiam ter ocorrido) no passado, ou seja, as formas prototípicas associadas a cada um dos arranjos (microdomínios) podem ser consideradas como equivalentes se levarmos em consideração a função semântico-discursiva ampla (macrodomínio) de expressão do tempo passado; porém, essas variantes carregam consigo matizes de significado muito mais salientes do que a expressão de tempo passado. Assim, embora as formas prototípicas virtualmente possam ser consideradas variantes, os matizes de significado mais salientes barram essa possibilidade, o que não impede, no entanto, que as formas permeiem pelos diferentes microdomínios da expressão verbal do tempo passado no português. Vejamos.

No domínio funcional da expressão do passando anterior (anterioridade a um ponto de referência passado) ilustrado em (13), Coan (1997) identificou duas formas que podem desempenhar essa função: a forma de pretérito mais-que-perfeito composto (18) e a forma de pretérito perfeito simples (17).

(17) Aí eu peguei, telefonei pra Macarronada e descobri que aconteceu um acidente (FLP 03, l. 867, Banco de dados VARSUL) (COAN, 1997, p. 53)

(18) Aí eu peguei, telefonei pra Macarronada e descobri que tinha acontecido um acidente. (COAN, 1997, p. 53)

(16)

104 Dos 576 contextos de passado anterior encontrados na amostra de Florianópolis (type), encontram-se apenas duas ocorrências da forma de pretérito mais-que-perfeito simples (token), especificamente em contextos com valor de projeção futura em expressões cristalizadas, como “tomara que eu esteja enganado!” (SC FLP 21, l.666), e apenas 141 ocorrências da forma de pretérito mais-que-perfeito composto. Canonicamente, costumamos associar a forma de pretérito perfeito simples à expressão de passado anterior à fala, e não ao valor de passado anterior a outra situação passada (a essa função, associamos as formas de pretérito mais-que-perfeito). No domínio funcional da expressão de passado anterior, tanto em termos de layering como diversidade formal, coexistem duas formas, a de pretérito perfeito simples e a de pretérito mais-que-perfeito composto, embora Coan (1997) sugira que, assumindo uma noção ampla para o domínio do passado anterior, a forma de pretérito imperfeito também possa atuar, como em (19), em que a situação de “chegávamos em casa” ocorre antes da situação “apanhávamos uma surra”, e poderia ser indicada pela forma de pretérito mais-que-perfeito composto.

(19) Então chegávamos em casa, apanhávamos uma surra do pai... (FLP 18, L1123) (COAN, 1997, p. 17)

A forma de pretérito perfeito simples, por sua vez, pode ser enquadrada em termos de layering como polissemia, já que, em uma mesma fatia temporal, a forma assume valores do domínio funcional do passado anterior (passado anterior a uma situação anterior), do passado simples (passado anterior ao momento de fala) (cf. COAN, 1997). Em suma, para expressar o valor de passado anterior, em PB, a forma mais frequente é a forma de pretérito perfeito, mas as formas de pretérito mais que perfeito composto e de pretérito imperfeito do indicativo também atuam neste domínio funcional. O critério de produtividade de uso (frequência) aponta para uma mudança na forma prototípica da correlação icônica um-para-um: não mais a forma de pretérito mais que perfeito composto, mas a forma de pretérito perfeito.

Ainda no domínio das categorias verbais, o valor de passado imperfectivo (passado concomitante a outra situação passada), arranjo temporal ilustrado em (14), no PB pode ser expresso pelas formas de pretérito imperfeito do indicativo (20) e pela construção perifrástica constituída por estar + gerúndio (21) (cf. FREITAG, 2007).

(20) Na época que eu mais precisei dele, que eu mais precisava de um apoio, foi quando a minha mãe morreu. (FLP 03) (FREITAG, 2007, p. 20)

(21) Aí também foi na época que a gente voltou, a gente estava precisando economizar pra começar nossa vida. (FLP 01) (FREITAG, 2007, p.20)

Foram identificados 882 contextos de passado imperfectivo (type) na amostra de Florianópolis, dos quais 546 se referem à forma de pretérito imperfeito (token). Na perspectiva de layering como diversidade formal, na expressão do passado imperfectivo, as formas de pretérito imperfeito e forma perifrástica coexistem no mesmo domínio funcional.62 Na perspectiva de layering como polissemia, a forma de pretérito imperfeito assume outros valores, que são coexistentes ao de passado imperfectivo, adentrando em outros domínios funcionais, como é o caso do domínio do passado anterior, visto acima, e do passado

62 Embora ambas as formas coexistam no macrodomínio da expressão do passado em curso, a análise empreendida aponta para a especialização das formas em subfunções específicas, relacionadas a matizes da expressão do aspecto imperfectivo: a análise quantitativa mostra evidência para a polarização entre formas e funções, encaminhando-se para a prototipicidade. Assim, a forma perifrástica está fortemente associada à expressão do aspecto imperfectivo progressivo, e a forma de pretérito imperfeito, à expressão dos aspectos imperfectivo iterativo e habitual (FREITAG, 2007).

(17)

105 condicional (cf. COSTA, 1997), prototipicamente associado à forma de futuro do pretérito, em (22).

(22) Aí eu perdi ser miss do Pólo I, ganhava biquínis, sandálias, e depois davam um cartãozinho, eu tinha crédito, qualquer loja, sabe? (Inf. 40 – Amostra Censo/ PEUL) (COSTA, 2005, 940)

Na definição do microdomínio do passado condicional, em (16), o ME é anterior ao MF, e a situação é vista como futuro a partir de uma perspectiva passada; como essa possibilidade é contemplada a partir de um sistema de referência que se coloca antes da situação, o MR é anterior ao ME. A forma de pretérito imperfeito permeia também este domínio funcional.63

O entrelaçamento dos microdomínios funcionais do escopo da expressão verbal do tempo passado e a sobreposição de formas que transitam por estes microdomínios são reflexos dos efeitos de layering, tanto como diversidade formal (as diferentes formas que coexistem em um dado domínio funcional, como o passado anterior, o passado condicional ou o passado imperfectivo), como de polissemia (os diferentes valores que o pretérito imperfeito assume), como ilustrado na fig. 5.

Pretérito mais que perfeito Futuro do pretérito Pretérito imperfeito Pretérito

imperfeito

PASSADO ANTERIOR PASSADO CONDICIONAL

Perífrase de imperfeito

PASSADO IMPERFECTIVO

Fig. 5: Interface entre as abordagens de itens/construções e de funções/domínios funcionais na gramaticalização de passado verbais no PB

Na esquematização da fig. 5, podemos observar que a forma de pretérito imperfeito do indicativo configura-se como um item/construção multifuncional, transitando por diferentes matizes do macrodomínio da expressão verbal do tempo passado. A coexistência de camadas no domínio funcional da expressão do tempo verbal passado em PB leva a uma situação de quebra da correlação icônica ideal um-para-um, fazendo com que o sistema de codificação se reacomode para voltar a instaurar o equilíbrio cognitivo. Neste processo, outras motivações convergentes atuam, especialmente a marcação, princípio cognitivo-comunicativo (GIVÓN, 1984; 2001) que atua sobre os padrões de distribuições das formas verbais (tokens) relativos a cada subfunção assumida (types).

A atuação do princípio da marcação impõe restrições de uso às formas, o que pode levar aos direcionais de mudança. Formas que coexistem no mesmo domínio funcional são analisadas/implementadas na gramática dos falantes como mais ou menos complexas,

63 A variação entre as formas de futuro do pretérito e pretérito imperfeito foi objeto de um estudo variacionista na fala de Florianópolis do banco de dados do Projeto VARSUL (SILVA, 1998). No entanto, o microdomínio da condicionalidade não foi controlado, não permitindo que se teçam considerações acerca da frequência.

(18)

106 resultando em distribuições diferenciadas: o fato de uma forma ser menos ou mais marcada correlaciona-se à probabilidade maior ou menor de sua ocorrência em certos contextos, em detrimento de outras formas que desempenham a mesma função. Diversos estudos vêm constatando a existência de correlação entre o grau de marcação de formas de categorias gramaticais variadas e o uso que se dá a elas nas situações de comunicação do dia-a-dia (cf. GIVÓN, 2001; GÖRSKI & FREITAG, 2006; GÖRSKI, TAVARES & FREITAG, 2008). Esse princípio costuma exercer ação regularizadora sobre fenômenos variáveis: variantes menos marcadas tendem a ser favorecidas em contextos de menor complexidade, ao passo que variantes mais marcadas tendem a predominar em contextos de maior complexidade.

Assim, tanto as situações de multifuncionalidade de itens/construções (polissemia) como as situações de diversidade formal em um dado domínio funcional são resultados da dinâmica do uso linguístico, sujeitas às pressões comunicativo-cognitivas reguladoras. Uma abordagem que considere apenas um direcional de análise, seja da forma para a função, seja da função para a forma, não consegue captar todos os matizes do processo.

Considerações finais

Neste artigo, considerados dois direcionais para o estudo da mudança linguística que se implementa por meio de processos de gramaticalização, o direcional forma função e o

função forma, tentamos argumentar em favor da clareza necessária, aos estudiosos da

gramaticalização, na adoção desses direcionais. Por meio de diferentes estudos de casos de gramaticalização em variedades diferentes do PB, mostramos que a conjugação desses direcionais ao critério de frequência de uso proporciona resultados mais confiáveis na análise de fenômenos de mudança.

Considerando-se os mesmos critérios aplicados ao estudo da gramaticalização de ir + infinitivo e ao das perífrases aspectuais, como se explicaria a aparente divergência dos efeitos desses critérios na obtenção dos clines de gramaticalidade em cada estudo de caso? A resposta para essa questão parece-nos mesmo residir na diretiva que se assume num trabalho de investigação. Para um estudo de gramaticalização de perífrases que assuma a diretiva função formas (abordagem de domínio funcional), o critério frequência é o mais adequado para aferir o grau de gramaticalidade das formas pertencentes àquele dado domínio funcional, caso típico da atuação do princípio de estratificação de Hopper (1991). Na investigação das perífrases aspectuais, os critérios de auxiliaridade não parecem necessários nem suficientes para determinar seus graus de gramaticalidade, “já que um dos critérios – o da inseparabilidade – pode determinar todos os outros” (FERNANDES, 2010, p. 62). Para estudo de gramaticalização de perífrases que assuma a diretiva forma funções (abordagem da gramaticalização da forma, que passa a atuar em domínios funcionais diferenciados), critérios de auxiliaridade mostram-se ferramentas mais confiáveis do que o critério frequência. É o que se verifica na apuração da frequência das funções de ir+infinitivo, uma única forma que integra diferentes domínios funcionais (Tempo, Aspecto, Modo/Modalidade), caso típico da atuação do princípio de divergência, de Hopper (1991). Sob tais considerações, a aparente contradição se desfaz, não havendo incoerência entre os resultados alcançados na aferição do grau de gramaticalização de perífrases.

A análise da gramaticalização no domínio funcional da expressão verbal do tempo passado em PB permitiu ver que a complementariedade das abordagens promove uma descrição mais acurada e dinâmica do processo.

Respondendo à pergunta do título deste artigo, concluímos que no domínio das categorias de TAM para verbo, no PB, faz-se necessário testar as duas possibilidades de análise, que, cotejadas ao critério frequência de uso, garantem resultados mais confiáveis para a descrição do fenômeno.

Referências

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