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História e Histórias Do Novo Testamento Com Ben Witherington III

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C1P)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Witherington III, Ben

História c histórias do Novo Testamento / Ben Witherington III ; tradução Lucília Marques Pereira da Silva. — São Paulo : Vida Nova, 2005.

Título original: The New Testament history. Bibliografia.

ISBN 85-275-0341-7

1. Bíblia. N. T. - História 2. Histórias bíblicas I. Título.

05-4316 CDD-225.95

índices para catálogo sistemático:

1. Novo Testamento : Bíblia : História 225.95

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BEN WITHERINGTON

HISTORIA

e

HisiórÍAs do

NOVO TESTAMENTO

TRADUÇÃO

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Copyright © 2004 Wm. B. Eerdmans Publishing Co.

Título do original: The New Testament History (ISBN: 0-8028-2765-9) Traduzido da edição publicada em 2004 por Wm. B. Eerdmans Publishing Co. (Grand Rapids, M ichigan, EUA)

As citações bíblicas do Antigo Testamento foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada - 2.a edição — 1995

© 1995 Sociedade fííblica do Brasil (São Paulo, Brasil) As citações bíblicas do Novo Testamento foram extraídas da versão Almeida Século 21 - 1 .a edição - 2005

© 2005 Sociedade Religiosa Edições Vida Nova 1 ,a edição: 2005

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por Sociedade Reugio sa EdiçOes Vida Nova, Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970 www.vidanova.com.br

Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte.

ISBN 85-275-0341 -7

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Supervisão Editorial

Robinson Malkomes Coo rd en aç ão Editorial

Aldo Menezes Revisão

Miguel Ângelo Facchini Coo rden açãode Pr o d u ç ão

Roger Luiz Malkomes Diagram ação

Sérgio Siqueira Moura Capa

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A P eter G iancola e D arlene Hyatt, notáveis contadores d e histórias. Sou m uito grato p ela oportu nida de q u e tivem os d e com pa rtilhar a história do Novo

Testamento, e sin to-m e ab ençoa do p o r ter tido nossas histórias entrelaçadas p elo O nipotente. A gradeço a am bos p o r terem en riq u ecido e m e ajudado a resgatar diversas partes da m inha história.

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SumÁrio

Abreviaturas e siglas... 9

Prefácio... 11

Primeira parte: A história do Novo Testamento 1. As ferramentas e o te x to ... 15

2. Pedagogia e Paixão: Ditos de Jesus e histórias da Paixão... 37

3. Cartas e homílias para os convertidos... 55

4. Tudo o que valia a pena registrar sobre as boas novas... 77

5. A seleção, coleta e rejeição de textos... 97

Segunda parte: As histórias do Novo Testamento 6. Histórias extraídas do Antigo Testamento ... 107

7. Histórias de Paulo e Pedro: As provas e tribulações dos apóstolos... 137

8. Histórias da família de Je s u s ...173

9. Histórias de Jesus fora dos evangelhos...189

10. Histórias de Jesus nos evangelhos... 209

Apêndice 1: Linha do tempo básica de Atos dos Apóstolos...255

Apêndice 2: Cronologia da vida e das cartas de Paulo...257

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AbrevÍAíurAS e siglAs

ARC A lmeida Revista e C orrigida, 1995

AT Antigo Testamento

C. cerca de; aproximadamente

cap. capítulo

caps. capítulos

cf. confira

e.g. (exem pli gratia) a saber; por exemplo

NT Novo Testamento

NTLH Nova Tradução na L inguagem d e H oje

P- Páginas(s) p. ex. por exemplo

tb. também

V. veja

V. versículo

(8)

PrefÁcio

e

ntendemos que o Novo Testamento, bem como o restante da Bíblia, é fruto de uma dinâmica tanto humana quanto divina. Embora afirmemos a inspiração divina dos livros canônicos, também afirmamos que seus autores escreveram como homens para um público também humano, dentro de determinados contextos sociais e culturais. Do ponto de vista humano, respondiam como homens a anseios, dúvidas, questionamentos, preocupações e desafios daqueles que procuravam conhecer e servir o Cristo de Deus.

As introduções clássicas ao Novo Testamento discorrem sobre autoria, data de composição e estrutura desses livros bíblicos sem, no entanto, tentar montar o quebra-cabeças representado pela dinâmica da inserção dos livros dentro do contexto histórico-social do desenvolvimento da igreja como instituição humana que reúne os servos de Cristo. Ben Witherington, em História e histórias do Novo Testamento,

propõe-se a fazer justamente isto: ajudar o estudioso a entender o desenvolvimento da compreensão da pessoa de Jesus Cristo e não só das implicações de servi-lo neste mundo, ou melhor, no mundo do primeiro século da era cristã.

E é nesse particular que se encontra o grande valor deste livro. Além de refletir o que existe de mais atual nos estudos neotestamentários, o leitor deverá compreen­ der melhor a história do Novo Testamento através das histórias do Novo Testamento. Witherington discorre primeiramente sobre a composição do Novo Testa­ mento. Como foram escritos os livros que hoje integram o Novo Testamento? Como foi que justamente esses livros foram reconhecidos como detentores de autori­ dade e passaram a fazer parte da Bíblia?

Na seqüência, Whiterington discorre sobre as histórias do Novo Testamento. Qual a relação do Novo Testamento com o Antigo? Onde o Antigo aparece no Novo? Como a vida de Pedro e Paulo se relaciona com os escritos neotestamentários? Como viemos a entender a pessoa de Jesus Cristo? Quais histórias a seu respeito aparecem fora dos evangelhos? Qual a história da vida dele contada pelos evangelistas?

Nada obstante, o evangélico tradicional encontrará algumas dificuldades com certas conclusões de Witherington, justamente por ele enfatizar um pouco mais o

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12 *r HISTÓRIA E HISTÓRIAS DO NOVO TESTAMENTO

lado humano da composição do Novo Testamento. Como reflexo do labor de alguns estudiosos recentes, ele parece aceitar uma data posterior à queda de Jerusalém para os evangelhos, interpretação esta baseada na preferência por entender as profecias de Jesus a respeito da queda da cidade santa como acréscimos posteriores feitos por hagiógrafos que queriam realçar a autoridade divina do Jesus histórico, em vez de entendê-las como profecias do próprio Cristo, pronunciadas décadas antes.

O autor também parece pôr em dúvida a autoria paulina das epístolas pastorais, ao contrário de declarações feitas pelo escritor dessas cartas. Além disso, parece questionar a autoria petrina da segunda carta que leva o nome de Pedro e atribui o livro de Apocalipse a “João de Patmos” e não ao apóstolo.

Apesar dessas dificuldades, recomendo a leitura de História e histórias do Novo Testamento àquele que deseja entender o Novo Testamento dentro de seu contexto histórico e social. Witherington consegue contar tanto a história dos livros canônicos em si quanto as histórias que, reunidas, compõem a história dessa parte da Bíblia tão cara para o cristão. Para o aluno e o estudioso de Novo Testamento, este livro é realmente im prescindível!

Donald Price, DTh Presidente Edições Vida Nova São Paulo, junho de 2005

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I

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ferrA m enlA s

e o lexío

1

P

ara pessoas modernas como nós, é difícil imaginar o mundo antes das má­ quinas de impressão. De fato, é difícil para alguns de nós imaginar o mundo antes dos computadores, da internet, da TV ou, antes, das modernas bibliotecas, jornais ou revistas de notícias. Entretanto, o NT não só foi escrito antes de todas essas invenções, como o foi numa época em que a alfabetização ainda era restrita a uma parcela muito pequena da população. Além disso, foi escrito muito antes do registro sonoro de alguma coisa dita por alguém. Os antigos raramente esperavam uma transcrição ao pé da letra de uma fala, exceto ocasio­ nalmente, quando se tratava de atas legais ou pronunciamentos do rei. Mesmo assim, obter a reprodução ao pé da letra de discursos proferidos durante um ju l­ gamento era novidade na época de Júlio César. Tiro, o famoso secretário e com­ panheiro de viagens de Cícero, foi muito elogiado por causa da adaptação de uma “recente” invenção, a “taquigrafia” (espécie de escrita abreviada), que lhe permitia anotar ipsis litteris os discursos feitos nas cortes de Roma, no primeiro século antes de Cristo.

No mundo do NT, a palavra falada reinava soberana. Aliás, o NT foi escrito numa cultura predominantemente oral, na qual a escrita não tinha a primeira nem a última palavra. Pense, por exemplo, no que Platão disse antes da época do NT, quando menciona a advertência de Sócrates contra a substituição das tradições orais pela palavra escrita, porque as pessoas deixariam de usar a memória (Fedro, 274c—275)! Os mesmos sentimentos são também expressos por autores que escre­ veram mais próximo da época do NT, como Xenofonte (Simpósio, 3.5) e Diógenes Laércio (7.54-56). Papias, um dos primeiros pais da igreja, que viveu no final do primeiro século d.C. e início do segundo, é famoso por sua observação sobre quanto ele preferia a palavra viva e as testemunhas vivas a qualquer escrita.

Devemos dar atenção à advertência de H. Gamble, de que “fazer uma distinção marcante entre os modos oral e escrito é anacrônico, no sentido que

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16 A HISTÓRIA DO NOVO TESTAMENTO

pressupõe tanto a moderna noção de estabilidade de um texto quanto os mo­ dernos hábitos de leitura. Os manuscritos, como eram todos os textos anteriores à invenção da imprensa, eram muito menos estáveis que os atuais textos impressos, porque estavam sujeitos a modificações acidentais ou propositais, a cada nova transcrição. Além disso, na antiguidade, quase toda leitura, pública ou privada, era feita em voz alta; os textos eram rotineiramente convertidos no modo oral. Sabendo disso, os escritores antigos escreviam tanto para o ouvido quanto para os olhos”.1

Essas atitudes em relação à oralidade e as dimensões desse modo de comu­ nicação prevaleceram durante toda a época do NT, e simplesmente salientam o quão espantoso é o fato de os 27 documentos que constituem o NT terem chegado até nós. Então, como esses 27 documentos foram gerados numa época anterior à produção de textos em massa e à disseminação da alfabetização? É uma história notável e, infelizmente, sabemos muito pouco sobre ela. Mas o que sabemos merece ser contado e, espero, bem contado.

Nós, que estamos acostumados a ler a Bíblia, gostamos de repetir a frase “No princípio era o Verbo”. Logo ficará bem claro quanto essa frase é verdadeira. Antes que houvesse quaisquer palavras escritas para compor os livros do NT, havia palavras faladas — milhares delas. Provavelmente, o NT é apenas a ponta do iceb erg de uma abundância de palavras sobre Jesus que foram comunicadas no primeiro século d.C. Podemos quase sentir a frustração do autor do evangelho de João, quando diz: “Jesus, na verdade, realizou na presença de seus discípulos ainda muitos outros sinais que não estão registrados neste livro” (Jo 20.30). Por que eles não foram registrados? Porque um rolo de papiro tinha um determinado tamanho, e o papiro era caro. Além disso, escrever e copiar um texto à mão era uma tarefa extremamente tediosa. Essas são limitações que raramente experimentamos na maioria dos lugares do mundo de hoje.

Vejamos a questão sob outro ângulo. Os evangelhos abrangem, basicamente, o período da história em que Jesus exerceu seu m inistério na Terra Santa, aproximadamente de 27 a 30 d.C. Não encontramos em nenhum lugar dos evan­ gelhos uma passagem que mencione Jesus ou qualquer um dos discípulos escrevendo enquanto aqueles eventos ocorriam. Provavelmente, a narrativa da história na forma escrita surgiu mais tarde. Semeihantemente, todas as epístolas de Paulo foram escritas para congregações que já haviam sido fundadas e tinham recebido a palavra oralmente muito antes de receberem qualquer comunicação por escrito. De fato, as cartas de Paulo funcionam como uma espécie de substituto das conversas orais que ele gostaria de ter tido, se pudesse estar presente. Tanto isso é verdade que as cartas trazem as marcas características desse tipo de comunicação — elas refletem *

(13)

AS FERRAMENTAS l O TEXTO

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padrões e técnicas da antiga retórica greco-romana, a arte oral da persuasão. No caso dos evangelhos e das epístolas, a Palavra era oral muito antes de ser escrita. Hoje em dia, invertemos o processo quando lemos o texto do NT em voz alta e, em seguida, proclamamos ou discursamos com base no que foi lido. Portanto, é justo dizer que, quando contamos a história do NT, estamos contando a história de um fenômeno de segunda ordem, a história do resíduo literário de um movi­ mento primordialmente oral que cresceu fundamentado na pregação e no ensino, na oração e no louvor e em outras formas de comunicação oral. No período inicial da história cristã, não foi principalmente por intermédio dos textos que a Palavra se espalhou, mas sim pela proclamação oral. A exceção à regra foi o uso das Escrituras Hebraicas ou, mais freqüentemente, sua tradução grega, a Septuaginta [LXX]), como podemos ver na passagem2 de 2Timóteo 3.16. Precisamos ter essas coisas em mente agora que vamos examinar os maravilhosos e desafiadores textos do NT.

A S FERRAMENTAS DO OFÍCIO E SEUS USUÁRIOS

Apesar das afirmações tão seguras de inúmeras introduções ao NT, não sabemos muito sobre quem realmente escreveu alguns dos seus livros. Quando digo “escreveu”, estou me referindo a quem realmente fez os apontamentos. E, mesmo quando temos certeza de quem foi a fonte de determinado documento, por exemplo, de que a carta aos Romanos saiu da mente de Paulo, somos informados de que a pessoa que efetivamente redigiu o documento foi um desconhecido chamado Tércio (Rm 16.22).3

Vemos, então, que foi necessário certo trabalho de equipe para escrever alguns documentos do NT, e que teremos de discutir as relações entre autores e escribas, e entre os que passavam adiante as tradições e os editores, antes de terminarmos. Alguns documentos, tais como os três primeiros evangelhos, são formalmente anônimos, já que o nome do autor não é mencionado em nenhuma parte do livro. Tampouco são mencionados os nomes dos escribas. Os sobrescritos desses evangelhos refletem tradições posteriores da igreja a respeito da autoria ou fonte primária do material.

Também temos, é claro, um documento como Hebreus, que é claramente anônimo, embora tenham surgido várias hipóteses sobre quem seria seu autor. Só quando o nome do autor é mencionado no próprio documento (como ocorre na

A igreja muitas vezes se esquece de que o NT não existia na chamada época do NT. A passagem de 2Timóteo 3.16 é sobre a inspiração e utilidade do AT para os cristãos!

3 Sobre Tércio e sobre Romanos 16 ser uma parte original da carta aos Romanos, v. meu livro The Epistle to the Romans (Grand Rapids: Eerdmans, 2003).

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18 A HISTÓRIA DO NOVO TESTAMENTO

maioria das cartas do NT) é que temos um ponto de partida concreto para definir quem produziu um determinado livro do NT. Mas o que realm ente sabemos é que, fosse quem fosse, a pessoa que produziu o primeiro exemplar de cada um desses documentos sabia ler e escrever grego, que, obviamente, é a língua em que foi escrito todo o NT, pois era a língua franca do mundo greco-romano. ' Portanto, vamos primeiramente examinar a habilidade e o ofício de escrever em grego na antiguidade.

Como a taxa de alfabetização nunca ultrapassou cerca de dez por cento, durante a época em que os documentos do NT foram redigidos,4 5 é lógico que a maioria das pessoas, quando desejava que alguma coisa fosse escrita, recorria a um escriba, um escritor profissional. Normalmente, essas habilidades profissionais eram requisitadas para a elaboração de documentos muito práticos — contratos, testa­ mentos, cartas comerciais, certidões de casamento e assemelhados. Os livros do NT não eram nada disso. Porém, numa cultura predominantemente oral, com alta taxa de analfabetismo, não é de admirar que os escribas, ou amanuenses, fossem fáceis de encontrar e aceitassem escrever quase todo tipo de documento, mediante remuneração. Contudo, não devemos nos apressar em concluir que todos os documentos do NT foram escritos por escribas. E por quê?

Os variados níveis de habilidade na redação do grego no NT mostram que, com certeza, esses documentos não foram todos redigidos por profissionais fluentes em grego, embora isso tenha ocorrido algumas vezes, como no caso de Romanos. Também é interessante observar que o próprio conteúdo dos documentos do NT os teria enquadrado como um tipo de literatura que, normalmente, só era lida pela elite letrada. Esse não era o tipo de documento prático ou comercial que pessoas comuns da sociedade greco-romana teriam redigido ou mandado copiar.

4 É claro que isso suscita algumas questões de imediato, porque Jesus e seus primeiros seguidores falavam aramaico, como demonstram claramente os fragmentos e expressões em aramaico encontrados nos evangelhos sinóticos. A questão, então, é: “Quem traduziu para o grego os ensinos que Jesus ministrou em aramaico?”. Alguém como Pedro podería ter feito isso? Até que ponto os primeiros discípulos de Jesus eram bilíngües? A resposta parece ser que, embora sua primeira língua falada fosse o aramaico, eles precisavam (alar um pouco de grego para efetuar transações comerciais na Galiléia e para se comunicar com os romanos e outras pessoas que não falavam aramaico (v. a história do ossário de Tiago e sua inscrição em aramaico no livro The Brother o f Jesus: The Dramatic Story and Meaning of the First Archaeological Link to Jesus and His Family [São Francisco: HarperCollins, 2003], de em H.

SHANKS e B. WlTHERINGTON). Issonão significa, necessariamente, que eles sabiam ler e escrever grego ou, pelo menos, que o fizessem bem. Atos 4.13 diz que Pedro e João eram agramrnatoi e idiotai. O significado da primeira palavra é “iletrados” (pessoas que não sabem ler nem escrever). Mas tanto o contexto quanto João 7-15 sugerem que o significado seja “incultos”, que não tiveram educação ou instrução formal. V. meu livro TheActs o fth e Apostles: A Socio-Rhetorical Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1998), p. 195. Portanto, não é de todo impossível que alguém como Pedro tivesse inicialmente traduzido para o grego, pelo menos oralmente, algumas frases e máximas de Jesus.

5 V., de H. Gamble, “Literacy and Book Culture”. In: The D ictionary ofN ew Testament Background (Downers Grove, III.: InterVarsity, 2000), p. 645.

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AS FERRAMENTAS eo t e x t o 19

Além da classe dos escribas, a alfabedzação também era encontrada entre pes­ soas que não pertenciam à elite da sociedade, como soldados, médicos, comerciantes, artesãos e engenheiros. Podemos conjeturar com certo grau de segurança que pelo menos dois dos maiores documentos do NT, Lucas e Atos, foram escritos por alguém que não era um escriba mas era letrado por causa de sua profissão (i.e., era médico). Uma suposição igualmente razoável é a de que um documento como Apocalipse foi escrito por alguém cuja primeira língua era o aramaico, mas que tinha o grego como segunda língua, porquanto ele escreve em grego com certa dificuldade.6 O NT como um todo provavelmente não é resultado do trabalho de escribas; e, como a maioria ou todos os documentos foram elaborados para serem lidos em voz alta, o objetivo de seus redatores não foi produzir literatura pura, no sentido moderno do termo. Eram textos com funções predominantemente não-literárias.7

Então, como se iniciou ò processo? Depois de um período em que as histórias do evangelho foram divulgadas em diversos contextos e de diversas maneiras, e exortações de vários tipos foram feitas oralmente na igreja primitiva, chegou um momento em que fatores ligados à distância espacial e temporal provocaram certa urgência de colocar várias coisas por escrito. No caso dos evangelhos, a urgência se devia, provavelmente, ao fato de que as testemunhas oculares e auditivas estavam morrendo, por volta da segunda metade do primeiro século d.C., e se fazia necessário preservar as tradições que elas haviam transmitido oralmente.

Certamente, não é impossível que, em alguns lugares, essa necessidade tenha surgido mais cedo e tenha gerado coisas como: (1) uma coleção de ditos de Jesus em aramaico, feita pela igreja de Jerusalém; (2) uma coleção de histórias de milagres envolvendo Jesus; (3) um esboço em aramaico de grande parte da história do evangelho;8 9 (4) uma narrativa por escrito da última semana de vida terrena de Jesus; e (5) um documento composto, principalmente, dos ensinamentos de Jesus, a que tanto o primeiro quanto o terceiro evangelista tiveram acesso, e que hoje chamamos Q.‘; Esses antigos precursores dos nossos evangelhos não existem mais, e a maioria dos estudiosos acredita que nenhum evangelho em grego tenha sido produzido ou estivesse disponível na forma escrita antes de 60 d.C. Isso significa que as cartas, e em particular as cartas paulinas, são os mais antigos documentos do NT, cronologicamente falando,10 e as cartas são os documentos do NT mais nitidamente ligados aos escribas.

6 V. meu comentário Revelalton (Cambridge: Cambridge University Press, 2003).

7 Essa é uma das razões pelas quais é tão inútil e improdutivo tratar esses documentos simplesmente como se fossem composições da literatura moderna.

8 V., de M. Casey, Aramaic Sources o f Merks Gospel (Cambridge: Cambridge University Press, 1998), sobre um possível original em aramaico por trás de grandes partes do evangelho de Marcos, que o autor data da década de 40.

9 Esse texto pode ter sido semelhante ao Evangelho de Tomé, que é um documento datado, provavelmente, do início do segundo século.

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20 *í* A HISTÓRIA DO NOVO TESTAMENTO

É importante ressaltar a esta altura que, com toda certeza, não devemos pensar em “livros”, no sentido moderno da palavra, quando falamos nos documentos do NT. Em primeiro lugar, naquela época eles não eram manufaturados em forma de livro ou códice, mas sim escritos em rolos de papiro. Em segundo lugar, evidente­ mente, eles não eram produzidos em massa. Inicialmente, apenas algumas cópias devem ter sido feitas, por causa do tempo necessário e do custo elevado. Em alguns casos, como nas cartas, talvez tivesse sido feito apenas um exemplar.

Quando nos referimos à cultura literária daquela época, estamos falando de pequenos círculos da elite letrada do mundo greco-romano, que tinha dinheiro para mandar reproduzir documentos e fazer cópias para os amigos, além de ter tempo para lê-los ou mandar que alguém o fizesse em voz alta. A cultura livreira, no sentido moderno de publicações para as massas, não existia. Os autores da antiguidade, normalmente, dependiam de patronos abastados para poderem custear a produção e a circulação de suas obras. Na minha opinião, Teófilo, mencio­ nado no início de Lucas e Atos, provavelmente era o patrono de Lucas, que escrevia para ele e seu círculo de amizades.

Mas como a escrita era feita, e em que tipos de materiais? A forma-padrão de produzir um documento na antiguidade era escrever em papiro. Normalmente, um rolo tinha de 20 a 25 centímetros de altura e até 10,5 metros de comprimento. Em geral, só se escrevia de um lado, já que o papiro não é um material muito denso. O texto era disposto em duas colunas de 5 a 10 centímetros de largura, com cerca de 25 a 45 linhas por coluna. Além disso, por causa do custo e do espaço necessário, normalmente não havia pontuação nem divisão de palavras, sentenças e parágrafos. Tudo era escrito em letras maiusculas, e, portanto, uma linha desse texto ficava mais ou menos assim: SÓUMANÃODISSESF.UNOME. E claro que podemos ler “Só uma não disse seu nome” ou “Só um anão disse seu nome”. Questões de interpretação surgem simplesmente pela falta de separação entre as letras ou pela ausência de pontuação. Além disso, não havia capítulos nem versículos nos manuscritos originais do NT antes do início da Idade Média!

“A leitura na Antigüidade geralmente era feita em voz alta, mesmo em particular. A razão disso é que os textos eram redigidos em escrita contínua [...] sem divisões entre palavras, frases, orações, parágrafos e sem pontuação, de modo que era necessário pronunciar e ouvir as sílabas para poder organizá-las em padrões semânticos reconhecíveis. Dessa forma, quase todos os textos andgos eram compostos tendo em vista o modo como soariam quando lidos em voz alta.”11 Foi só próximo ao fim do primeiro século d.C. que a forma de texto chamada códice ou caderno de notas se popularizou, e parece que os antigos cristãos estavam entre os primeiros a reconhecer sua utilidade e a adotá-la.11 12

11 Gamble, “Litcracy and Book Culture", p. 647.

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AS FERRAMENTAS E O TEXTO T* 21

Um fragmento de papiro do NT. Muitas vezes isso é tudo o que temos de trecho de cópia muito antiga (segundo ou terceiro século) de um documento do NT.

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22 -r A HISTÓRIA DO NOVO TESTAMENTO

Numa época em que não existiam direitos autorais, o que acontecia quando um patrono recebia um manuscrito era o seguinte: “A publicação [...] consistia em entregar esse original a um patrono ou amigo, o qual, então, o disponibilizava para ser copiado por outras pessoas interessadas. Desse modo, as cópias eram multiplicadas em série, uma de cada vez. Uma vez que o texto estivesse em circulação e disponível para cópia, qualquer um que estivesse interessado e tivesse acesso a ele poderia mandar fazer uma cópia. Assim, os livros eram produzidos e adquiridos por meio de um processo informal e não regulado”.13

A maioria das composições da antiguidade eram escritas com uma pena e tinta sobre o papiro, embora às vezes fosse usada pele de ovelhas para produzir pergaminho ou velo, um tipo de pele de animal altamente refinada. A qualidade da superfície de escrita, a tinta e as penas variavam. Cícero, que escreveu por volta de 54 a.C., resume muito bem a situação: “Para esta carta, usarei uma boa pena, uma tinta bem misturada e um papel polido a marfim, pois você escreve que quase não conseguiu ler minha última carta [...] porque eu costumo usar a primeira pena que me aparece, sem me preocupar se é boa ou não” (Carta a Quinto 2.15.1). A cana de junco era a melhor pena da antiguidade e foi substituída pelas penas de pássaros (calamos) por volta do sétimo século d.C. A tinta era feita com carbono ou fuligem diluídos em água.

Mesmo depois de ter comprado os pedaços de papiro necessários, a pessoa ainda não estava pronta para tomar nota de um ditado ou escrever. O papiro tinha de ser preparado para a escrita, e um dos principais motivos é que não existia papel pautado. O escriba ou escritor pegava uma régua e um disco de chumbo e traçava linhas finas no papel. Ele precisava também de um apontador de pena, que era uma pedra abrasiva, e de uma faca para fazer novas pontas, à medida que ia escrevendo. Nem o papiro, nem as penas, nem a tinta, nem os instrumentos para fazer linhas e apontar a pena eram baratos.

Mas, por que o papiro era tão caro? Em primeiro lugar, porque quase todo ele era produzido num único lugar, o Egito, e perto do Nilo, para que se pudesse colher o tipo de junco apropriado. Além disso, ainda havia o processo exigido para a sua produção. Plínio, o Velho, diz que a cana do papiro, que tem perfil triangular, tinha de ser fatiada com uma agulha (!) em tiras largas e muito finas. O miolo do talo ou da cana era a porção mais “carnuda” e, portanto, a parte mais útil. A casca verde provavelmente deveria ser eliminada.

As tiras, assim que eram cortadas, tinham de ser quase imediatamente colocadas sobre uma prancha de madeira umedecida com água do Nilo. Ocasionalmente, era adicionado um tipo de goma de farinha suave para auxiliar o processo, mas, normalmente, a própria seiva do junco era suficiente para unir as tiras e formar

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AS FERRAMENTAS E O TEXTO *T 23

uma peça de papiro. Quando a peça de papiro estava pronta, as pontas eram aparadas para deixar as bordas retas. As tiras eram dispostas horizontal e vertical­ mente, formando um padrão de linhas cruzadas e, em essência, entrelaçadas. A peça de papiro recém-produzida era, então, pendurada ou estendida para secar ao sol. Por último, umas vinte peças de papiro eram costuradas umas às outras para formar um rolo (v. Plínio, NaturalHistory 13.74-77). Quando um rolo ou peça de papiro chegava às mãos do escriba, este ainda tinha de alisá-lo com uma concha ou um pedaço de marfim. Era preciso tomar cuidado para que o papel não ficasse polido demais a ponto de não absorver tinta com facilidade.

Em vista de todo o exposto, entende-se por que as pessoas comuns recorriam a um escriba quando precisavam ter algum documento redigido ou, se pudessem arcar com a despesa, contratavam um secretário pessoal, como mostra, por exemplo, a relação entre Cícero e Tiro. Em geral, quanto mais longo o documento, maior a necessidade de um escriba profissional, e, pelos padrões antigos, muitos documentos do NT são realmente longos. Todos os evangelhos, Atos, as maiores cartas de Paulo e Apocalipse podem ser classificados como documentos muito longos, pelos padrões antigos. Até mesmo algumas cartas que consideramos curtas (e.g., Filipenses, Tiago, 1 Pedro) eram muito grandes para uma carta, pelos padrões antigos. Vários autores do NT eram prolixos (v., p. ex., At 20.7-11) e, como muitos documentos do NT são apenas substitutos de uma conversação ou proclamação oral, eles também são muito longos. Os primeiros cristãos, que produziram esses documentos, obviamente tinham muito que dizer!

Não dissemos nada até agora sobre a caligrafia, mas, na antiguidade, assim como hoje, pessoas diferentes tinham diferentes estilos e modelos de escrita manual. Era crucial para o escriba ter uma caligrafia bonita e legível, e não borrar a página enquanto escrevia. Falando em termos práticos, isso significava que o contratante preferia ter um destro para escrever em latim ou grego e um canhoto para escrever em aramaico ou hebraico, porque as duas primeiras línguas se escrevem da esquerda para a direita, enquanto as últimas são escritas da direita para a esquerda. Observe como Paulo acrescenta, de tempos em tempos, uma nota de próprio punho, em letras grandes, no fim do documento. Em Gálatas 6.11 está escrito: “Vede com que grandes letras vos escrevo de próprio punho”. 1'1 Como o espaço era precioso, ele teria preferido uma letra menor e mais concisa para redigir a maior parte do documento, para não desperdiçar espaço demais.

O ideal era que o escriba conhecesse tanto o autor quanto seu público. Os povos antigos acreditavam que as cartas deveríam retratar ou refletir a personalidade do autor e, até certo ponto, levar em conta também o leitor.14 15 Um secretário

14 V. Colossenses 4.18: “A saudação é de próprio punho: Paulo”, o que implica que ele não tinha escrito o restante do documento, até aquele ponto.

15 V., dc S. StOWERS, Letter Wriríng in Greco-Roman Antiquity (Philadclphia: Wesrminster/John Knox, 1986), p. 32-3.

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24 A HISTÓRIA DO NOVO TESTAMENTO

poderia ou não ter aprendido a técnica da estenografia; se não tivesse, o processo de composição poderia ser muito demorado. Muitos têm sugerido que, em alguns trechos do NT, principalmente nas cartas de Paulo, em que temos uma frase incompleta, isso talvez tenha ocorrido porque o escriba não sabia estenografia e não conseguia acompanhar a velocidade do ditado. E é claro que, se um assunto fosse urgente, poderia não haver tempo ou papiro à mão para tomar notas estenográficas e depois escrever o texto completo. O que podemos afirmar com certeza é que, normalmente, não era prática corrente no primeiro século os secretários redigirem documentos para os autores, exceto, talvez, quando se tratasse de matéria meramente formal, como um comunicado de que alguma coisa fora recebida.16 Quando um secretário escrevia em nome de alguém, era costume informar isso no documento (v. Cícero, Carta aos am igos, 8.1.1).

Quando uma pessoa, que não fosse o autor, era mencionada no início de um documento, normalmente tinha algo a ver com o documento. Por exemplo, em ICoríntios 1.1, Sóstenes, um cristão, foi provavelmente o escriba que redigiu esse documento para Paulo.17 Já em 1 e 2Tessalonicenses, poderiamos considerar seria­ mente a questão da co-autoria envolvendo Paulo, Timóteo e Silvano, diante do modo como o documento começa. Não era costume dizer “nós” num documento como esse, a menos que se tratasse realmente de “nós”. Da mesma forma, no evangelho de João (21.24), o “nós” [implícito] significa, no mínimo, uma pessoa falando pela comunidade da qual o discípulo amado fazia parte.

Quando se tratava de cartas, o procedimento normal era fazer duas cópias, uma para o remetente e a outra para ser enviada (Cícero, Carta aos amigos 9.26.1). Nas terras de Roma, antes de Augusto, não havia serviço de correio regular para ser usado por pessoas comuns, nem mesmo um serviço postal oficial do governo. Desse modo, quando as pessoas tinham uma carta para enviar, aproveitavam alguma viagem cjue seus amigos, parentes ou pessoas com quem mantinham relações de negócios estivessem para fazer e pediam-lhes que entregassem a correspondência ao destinatário. No caso dos cristãos, essa tarefa parece ter ficado a cargo de outros cristãos; e, no caso de Paulo, aparentemente o encarregado era algum de seus colaboradores. Romanos 16.1, 2 e Colossenses 4.7-9 não parecem indicar que Paulo confiaria seus documentos a uma pessoa qualquer que estivesse viajando na direção certa. A questão das redes sociais dos primeiros cristãos precisa ser conside­ rada quando pensamos na disseminação das boas novas em várias formas escritas. Naturalmente, a rapidez com que um documento chegava a um grupo de pessoas ou a um indivíduo dependia do modo e da velocidade do meio de transporte, assim como de outros fatores. Muitas vezes, as mensagens escritas não chegavam

16 V., de E. Richards, The Secretary in the l.etters ofP a u l (Tübingen: Mohr, 1991), p. 39. 17 Outra possibilidade é que ele fosse o anfitrião em cuja casa Paulo estava hospedado.

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AS FERRAMENTAS E O TEXTO 25

ao destinatário, e as conseqüências podiam ser desastrosas. Existe um famoso ditado inglês que diz: “Por causa de um prego, a ferradura se perdeu. Por causa da ferradura, o cavalo se perdeu. Por causa do cavalo, o mensageiro se perdeu. Por causa do mensageiro, a mensagem se perdeu. Por causa da mensagem, perdeu-se a batalha. Por causa da batalha, perdeu-se a guerra; e tudo por causa de um prego”. Parece claro que alguns importantes documentos cristãos da época do NT realmente estão perdidos para nós. Por exemplo, em ICoríntios 5.9, Paulo menciona que já havia escrito àquela igreja, advertindo-os de que não se associassem com pessoas imorais. Isso significa que houve uma carta aos coríntios anterior a ICoríntios. Mas ela, provavelmente, perdeu-se nas areias do tempo. O que temos no NT é só uma amostra representativa da comunicação e do discurso dos primeiros cristãos. Talvez ainda encontremos alguns dos documentos perdidos desse período.

A S TRADIÇÕES E OS TEXTOS

Os primeiros cristãos já possuíam um texto sagrado quando o movimento do cristianismo começou a florescer. Nós o chamamos “Antigo Testamento”. Naquela época, esses cristãos constituíam, num certo grau, uma comunidade habituada ao texto, mas é difícil saber até que ponto isso se aplicava às congregações predomi­ nantemente gentílicas que Paulo e outros fundaram. Contudo, Paulo freqüente- mente cita ou alude a vários textos do AT em suas cartas. Portanto, devemos presumir que alguns de seus ouvintes, talvez especialmente os judeus e os crentes em Deus, tinham acesso ao AT ou estavam familiarizados com seus ensinamentos.

Ao que parece, havia coletâneas de trechos das Escrituras, chamadas catenae,'s

feitas pelos primeiros cristãos para demonstrar algum ensinamento, uma narrativa ou um aspecto de uma pregação ou dar autoridade a eles (cfi, p. ex., Rm 9.25-29; 10.18-21; Hb 1.5-13). Por causa do número de citações no NT, sabemos com certeza que alguns livros do AT eram mais populares como fontes de citações ou alusões do que outros — em particular Salmos e Isaías. O uso do AT pelos cristãos, não apenas em catenae, mas de uma forma mais expositiva, e principalmente com propósitos cristológicos, é um assunto abordado com freqüência pelos estudiosos.18 19 Podemos ver exemplos disso em várias passagens, mas aqui vamos enfocar um pouco do material primitivo encontrado na primeira metade de Atos. É muito fácil apontar tratamentos midráxicos e judaicos cujo objetivo era tornar contempo­

18 Forma pluralizada de “catena”, esse termo designa uma série ordenada de versículos relacionados, dispostos numa cadeia ou seqüência lógica. (N. do E.)

19 V., p. ex., de M. Black, “The Christological Use of the Old Testament in the NewTestament”, New Testament Studies 18 (1971-72): 1-14. O que segue nos próximos parágrafos encontra-se de uma forma mais completa em meu livro The M any Faces ofC hrist (New York: Continuum, 1998), p. 11-102.

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26 A HISTÓRIA DO NOVO TESTAMENTO

râneo o AT — por exemplo, encontramos esse tipo de expediente no uso do salmo 2 em Atos 4.25, 26 e 13.33 e de Amós 9.11 em Atos 15-16. Ressalte-se o uso de

pais theou, literalmente “criança de Deus”, cujo significado tem sido intensamente debatido pelos estudiosos. Será que devemos considerar essa expressão outra forma de chamar Jesus de filho de Deus, ou pais é uma referência a Jesus como servo de Deus? De qualquer modo, a noção do decreto de Deus encontrada no salmo 2 ecoa em vários trechos nos discursos de Atos que aludem a Cristo como uma figura da família real. Por exemplo, em Atos 10.42, Jesus é aquele que foi “constituído por Deus juiz dos vivos e dos mortos”. Vemos ainda que o uso abundante do verbo “levantar” ou “ressuscitar” em Atos 3.22, 23, 26 e 4.2 alude a textos como Oséias 6.2, que são usados nos targuns sobre ressurreição.

Parece claro que havia alguns termos-chave ou chavões que provocavam a apli­ cação de determinados textos a Jesus. Por exemplo, duas passagens das Escrituras que contêm a palavra “pedra” (Sl 118.22 e Is 28.16) foram usadas juntas em Atos 4.11 para desenvolver a idéia da rejeição de Jesus por parte do povo de Deus e sua aceitação pelo próprio Deus. Encontramos a expressão “isto é o que” ou o uso do AT num pesher (interpretação ou comentário de um texto bíblico) em vários trechos de Atos — p. ex., em Atos 2, em que Pedro demonstra que a profecia de Joel estava ocorrendo no dia de Pentecostes. Outra técnica a ressaltar é a transferência, quando Joel 2.32 (texto massorético) é citado em Atos 2.21 referindo-se a “invocar o nome do Senhor”. É claro que, em Joel, a palavra Senhor refere-se a Iavé, mas em Atos o texto se refere a Cristo (cf. Rm 10.13) e gera outras alusões — p. ex., em Atos 3.16, onde encontramos a frase peculiar “pela fé no seu nome” (a r c) , na qual o nome de Jesus está implícito, como em outros textos da literatura dos primeiros cristãos judeus (v. Tg 2.7).

O que se observa repetidamente quando se examinam alguns trechos do material cristológico primitivo encontrado em Atos é que os salmos, e depois deles os textos proféticos, são usados freqüentemente para dar sustentação a argumentos sobre Jesus (cf., p. ex., Sl 2.7 usado em At 13.33; Sl 16.10 usado em At 2.25-28 e 13.35; Sl 110.1 usado em At 2.34, 35; Sl 132.11 usado em At 2.30; Is 53.7, 8 usado em At 8.32, 33; Is 55.3 usado em At 13.34; Am 9.11, 12 usado em At 15.15-17; J1 2.28-32 usado em At 2.17-21). Mais especificamente, o modo como os textos são usados reflete técnicas encontradas constantemente em textos judaicos antigos, principalmente em Qumran e em algum material de lEnoque. Podemos distinguir grande parte desses dados do modo como Lucas prefere usar as Escrituras, porque, como se sabe, “uma de suas maiores preocupações é mostrar que Jesus é verdadeiramente o cumprimento das Escrituras, como vemos em várias de suas declarações sumárias (Lc 24.25, 26, 45-47; At 3.18, 24; 17.2, 3; 18.28; 24.14, 15; 26.22, 23; 28.23)”.20 Não há nenhuma evidência de que Lucas soubesse aramaico

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AS FERRAMENTAS E O TEXTO T 27

ou, no que se refere ao assunto, as filigranas das técnicas de exegese e homilética judaica;21 portanto, podemos ter certeza de que boa parte dos dados que apontei acima provém dos primeiros esforços dos cristãos judeus em usar o material do AT para interpretar os acontecimentos ligados à vida e à morte de Cristo. Tanto M. Black quanto C. Evans demonstraram várias vezes que o conhecimento do modo como esses textos foram usados na literatura de Qumran ou nos targuns ajuda muito a compreender o uso dessas passagens na parte inicial de Atos.

Podemos também conferir nossas conclusões sobre esse assunto fazendo o cruza­ mento de referências. Por exemplo, dois dos principais textos empregados com propósitos cristológicos em Atos 2, no discurso de Pedro (Jl 2.28-32 e SI 110.1) são também encontrados não só em outros trechos de Atos (At 8.16; 9.10-17; 15.26; 22.13-16), mas também no corpus paulino, no hino de Filipenses 2.9-11. São correspondências como essa que nos certificam de que estamos aqui diante de mais uma janela aberta sobre as reflexões cristológicas dos primeiros cristãos judeus.

Por fim, há certos títulos cristológicos nos primeiros discursos de Atos que parecem ter um cenário escriturístico, mas não refletem tendências ou preferências de Lucas (apegando-se a fórmulas testadas e aprovadas, como o emprego de christos

como nome próprio e Kyrios).22 Esses títulos, portanto, podem também nos dizer algo sobre as reflexões cristológicas dos primeiros cristãos judeus. Estou pensando, por exemplo, no uso apropriado de christos como um título (e.g., At 3.18, 20; 5.42), o uso de pais provavelmente aplicado a Cristo como filho de Deus (3.26, cf. acima) e a referência a Cristo como nosso Príncipe (archêgos) e Salvador (At 5.31). O título “Salvador” é incomum em Lucas—Atos, e a idéia de “Príncipe”, ou primeiro, encontramos em outro documento antigo dos cristãos judeus, em Hebreus 12.2. Outro título interessante encontrado nos primeiros discursos de Atos é “o Justo“ (7.52). Esse tipo de dado nos encoraja a pensar que as reflexões cristológicas encontradas em vários trechos de Atos de 1 a 15, incluindo o uso do AT, muitas vezes revelam pontos de vista das fontes que Lucas utiliza, e não apenas as opiniões do próprio Lucas a respeito do Cristo. De qualquer modo, essa evidência mostra claramente que os primeiros cristãos usaram rapidamente o AT de diversas maneiras para interpretar a história de Jesus e o significado do surgimento do Cristo. O AT era, de fato, seu texto sagrado e livro-fonte, mas ele era lido mais freqüentemente sob uma ótica cristológica e escatológica.

Parece, também, que existiam credos, hinos, confissões, orações e outros textos escritos ou memorizados já usados antes de o cristianismo ter formalmente seus textos sagrados. Será útil dar uma olhada nas evidências que demonstram esses fatos, enquanto tentamos desvendar a história por trás e antes da criação dos textos do NT.

21 A respeito de Lucas, v. p. 83-5 deste livro.

22 V. a discussão que faço sobre a cristologia de Lucas em Atos, no meu livro The Acts o f the Apostles (Grand Rapids: Eerdmans, 1998), p. 147-55.

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Em lCoríntios 15.3, num texto escrito logo após a primeira metade do primeiro século d.C., Paulo lembra seus leitores de algumas tradições que ele recebera e que havia transmitido a seus convertidos de Corinto: “Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras. E apareceu a...”. Paulo usou aqui a linguagem judaica sobre a transmissão cuidadosa de tradições sagradas. Observe que essas tradições têm a ver com o final da vida terrena de Jesus. Imediatamente, somos confrontados com o fato de que Paulo não era o criador das boas novas que proclamava. Ele negava ser um inovador. Ao contrário, ele estava apenas passando adiante o que havia recebido. Além disso, ele dizia ao seu público que estava alinhado com os que transmitiam as tradições.

Houve outros antes dele que haviam formulado certas tradições cristãs — neste caso, na forma de uma história de Jesus — e as haviam transmitido. Como Paulo se converteu provavelmente não muito após a morte de Jesus (no máximo, quatro ou cinco anos depois, em 35 d.C.), podemos ter segurança razoável de que ele se refere a tradições que recebeu dos primeiros judeus seguidores de Jesus, isto é, os cristãos judeus de Jerusalém. Nos capítulos 1 e 2 de Gálatas, sua mais antiga carta, escrita em 49-50, Paulo já havia admitido isso. Ele foi a Jerusalém e esteve com Tiago, Pedro e João. Com toda a certeza, eles não conversaram sobre o tempo! Isso, por sua vez, significa que os primeiros cristãos judeus trataram a história de Jesus e outras informações relevantes do mesmo modo que tratavam anteriormente as sagradas tradições judaicas. Eles as haviam aprendido de cor. Eles as haviam repetido várias vezes. Eles as tinham passado adiante de forma bastante estável. Paulo está nos dizendo que permanecera nessa mesma linha, transmitindo essa tradição aos convertidos de Corinto, predominantemente gentios. Mas não foi só a história de Jesus que Paulo transmitiu. Ele passara adiante todo um conjunto de tradições.

Por exemplo, muitos estudiosos têm observado os ecos das palavras de Jesus nas passagens mais diversas, como Romanos de 13 a 15, Gálatas 5 e 6 e lTessa- lonicenses 4 e 5. Paulo parece conhecer enorme variedade de ensinos de Jesus, que incluem ética, escatologia e muitos outros assuntos (como a questão de pagar ou não tributos a César). Em outras palavras, não era apenas a história da vida de Jesus que estava sendo transmitida, mas também alguns preceitos de Jesus sobre vários assuntos. E não é só Paulo que repete os ensinamentos de Jesus sobre amor, dinheiro e muitas outras questões. Tiago, o irmão de Jesus, também faz o mesmo. Em sua epístola, encontramos cerca de vinte repetições, alusões ou citações parciais de ensinamentos éticos de Jesus.23 Portanto, estão sendo transmitidos pelos

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23 Sobre Paulo, leia meu livro Jesus, Paul an d the End o fth e World (Downcrs Grove, III.: IntcrVarsity, 1992), p. 23-242; e sobre Tiago, leia The Brother o f Jesus, de Shanks e Witherington, , p. 146-52.

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AS FERRAMENTAS E O TEXTO 19

primeiros mestres cristãos, no período anterior à escrita dos documentos do NT, tanto as palavras quanto os fatos.

Porém, ainda há mais — há orações, fragmentos do credo e hinos, presumi­ velmente ligados, em primeiro lugar, à adoração. Por exemplo, no final de 1 Coríntios

16, encontramos as seguintes palavras no versículo 22: “Se alguém não ama o Senhor, maldito seja! Vem, Senhor!”. A forma mais curta dessa frase pode ter sido

anathema marana tha. De qualquer modo, a maldição é seguida de uma oração para que o Senhor venha e, neste caso, podemos praticamente ter certeza de que ele se refere à chamada segunda vinda de Jesus. Ninguém ora pela volta de um rabino falecido. A oração está sendo dirigida a Jesus na qualidade de pessoa divina que voltará para o seu povo. Já havia uma reformulação cristológica do monoteísmo logo nos primeiros dias da igreja, tanto assim que os judeus cristãos que falavam aramaico oravam pela volta de Jesus. Eles sabiam que parte da história era seu retorno à terra. Provavelmente, nunca houve uma forma de cristianismo primitivo que não incluísse no seu credo os elementos escatológicos sobre a morte, a ressur­ reição e a volta de Cristo.

Em Romanos 1.3, 4, temos o que a maioria dos estudiosos considera uma citação paulina de parte de uma antiga declaração de fé dos cristãos judeus. Como Paulo nunca fala realmente de Jesus como Filho de Davi nem se refere em nenhuma outra parte ao “espírito de santidade”, e como a gramática aqui é um pouco incongruente com seu contexto, parece provável que Paulo esteja citando uma fonte. O que aprendemos do material dessa fonte? Novamente, aprendemos que os primeiros cristãos tinham a história de Jesus sempre em vista e queriam enfatizar tanto o aspecto humano quando o lado divino da história. Jesus, segundo a carne, era descendente de Davi e, portanto, um possível candidato a Messias. Entretanto, Jesus demonstrou ser o Filho de Deus em poder, por meio de sua ressurreição que se deu pela ação do Espírito Santo. Estamos falando sobre quem Jesus era pelo nascimento e pelo renascimento da ressurreição. Portanto, a história implícita abrange toda a vida terrena de Jesus. No entanto, existe uma forma mais expandida dessa história, recontada num hino que se encontra em Filipenses 2.5-11.

Será útil mostrar por completo o que esse hino diz, antes de comentá-lo:

Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, o qual, existindo em forma de Deus, não considerou o fato de ser igual a Deus algo a que se devia prender; mas, pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo e fazendo-se semelhante aos homens. Assim, na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus também o exaltou soberanamente e lhe deu o nome que está acima de qualquer nome; para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.

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Já demonstramos com detalhes que esse é, provavelmente, um fragmento de hino pré-paulino;24 portanto, resta-nos aqui apenas observar algumas de suas características importantes. Primeiramente, podemos ressaltar que esse fragmento é encontrado numa carta escrita pelo próprio Paulo, redigida numa data náo posterior a 62 d.C., provavelmente antes disso. Em outras palavras, esse material, mesmo se considerarmos a data mais tardia, antecede o primeiro evangelho em alguns anos e, com toda probabilidade, é pelo menos meia década mais antigo que o evangelho de Marcos. Por sua vez, isso significa que uma forma bastante completa da trajetória de Jesus já estava sendo contada, e às vezes até escrita, muito antes de os evangelhos serem redigidos. Em suma, a história do evangelho, em forma oral e sinopse escrita, é anterior à redação completa dos evangelhos e, provavelmente, pelo menos na forma oral, anterior até mesmo a algumas cartas de Paulo, no mínimo. É preciso reconhecer que, quando se consideram as fórmulas confessionais, orações, fragmentos de hinos e textos semelhantes, em conjunto, todos eles refletem uma cristologia muito elevada, mostrando que os primeiros cristãos criam que Jesus nascera, ao mesmo tempo, humano e divino. Portanto, o hino a Cristo em Filipenses 2 não deve ser visto como uma anomalia, mas sim como a expressão mais plena do modo como a história de Jesus vinha sendo contada havia já algum tempo. É necessário notar, também, que a hipótese de que a história de Adão está por trás desse material de Filipenses 2 simplesmente não procede. Adão não escolheu, num período anterior à existência do tempo, deixar suas prerrogativas divinas para se tornar um ser humano, como o hino nos informa que fez o Filho de Deus. Adão também não escolheu morrer; na verdade, a morte lhe foi imposta como castigo por seus pecados. É a história singular do divino e ao mesmo tempo humano Filho de Deus que é contada aqui, e não uma versão revista da história de Adão.

Alguns estudiosos têm defendido a hipótese de que as histórias sobre o nasci­ mento de Jesus encontradas em Mateus 1 e 2, Lucas 1 e 2 e também em João 1 refletem idéias sobre o nascimento de um divino Filho de Deus que só surgiram no final do primeiro século; idéias, portanto, que não estavam presentes nas reflexões a respeito de Jesus datadas do período inicial do pensamento cristão. Contudo, se o hino a Cristo de Filipenses 2 reflete não apenas o pensamento de Paulo, mas também o pensamento pré-paulino, é correto afirmar que, na época da primeira geração de seguidores de Jesus, já existia não só uma cristologia bastante desenvolvida, espelhando a divindade de Jesus e, portanto, sua preexistência, mas também um conceito da encarnação, que é simplesmente ampliado em João 1. O que Mateus 1 e 2 e Lucas 1 e 2 acrescentam a essa história é a natureza miraculosa da concepção no útero de Maria, narrando como o Filho de Deus veio ao mundo. É improvável que essa tradição fosse mais desenvolvida ou “avançada” que a noção de preexistência e encarnação

u V. meu livro Jesus tbe Sage: The Pilgrimage ofWisdom (Minneapolis: Augsburg/Fortress, 1994), p. 249-66.

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encontrada em Filipenses 2. Parece, portanto, que devemos descartar a hipótese de um modelo evolutivo do desenvolvimento da história de Jesus e da reflexão sobre ele. De fato, a julgar por evangelhos apócrifos posteriores, tais como o Evangelho de Tomé ou o Evangelho d e Filipe, deveriamos antes falar da degeneração da história, e não de seu aperfeiçoamento com o passar do tempo.25

Voltando a Filipenses 2, o que, então, esse texto nos revela? Em primeiro lugar, que existe uma atitude demonstrada por Jesus ao se esvaziar — humilhando- se e tornando-se não apenas um ser humano, mas um servo entre os seres humanos — que deve ser imitada pelos seguidores de Cristo. Em outras palavras, num certo sentido, a história de Cristo é um modelo para a história de todo cristão, exceto, é claro, pelo fato de que os cristãos não preexistiam nos céus antes de assumirem a forma humana nem irão tornar-se o supremo Senhor do universo após a morte. Em segundo lugar, o texto deixa claro que Cristo tinha a natureza e as prerrogativas de Deus, mas decidiu não tirar vantagem delas. Em vez disso, ele se despiu de suas prerrogativas divinas e tornou-se não só humano, mas um escravo entre os seres humanos, chegando até a morrer como morria um escravo rebelde — na cruz. Os principais verbos da primeira metade do hino enfatizam o que Cristo escolheu fazer. Particularmente importante é o fato de que ele foi “obediente até à morte e morte de cruz”. Essa é uma alusão ao plano pré-temporal de Deus para a redenção da humanidade, ao qual Cristo quis obedecer, adequando a ele todas as suas ações para que a salvação pudesse ocorrer. Deus exigiu de seu Filho um sacrifício expiatório para a redenção da humanidade.

A segunda metade do hino concentra-se no que Deus fez por Cristo como resultado de sua obediência, isto é, exaltou-o a uma elevada posição no céu e deu- lhe vários dos nomes divinos de Deus, ou nomes da autoridade real. Cristo não exaltou a si mesmo num mundo cheio de autopromoção; em vez disso, humilhou- se e serviu a outros, atitude que a maioria das pessoas da sociedade greco-romana, principalmente a elite, consideraria desprezível, e não admirável. A mensagem

25 É nesse ponto que um estudo como o de B. Ehrman, The New Testament (Oxford: Oxford University Press, 1997), p. 1-10, mostra-se completamente equivocado. Ele tenta atribuir ao início do período cristão a diversidade de pensamento que se verificou posteriormente, ainda que os documentos do NT não endossem ou sugiram termos como cristianismo gnóstico ou marcionita, que, de fato, existiram em documentos do segundo século e posteriores. Ele ignora a preocupação com a pureza da história, exibida em textos antigos, como Gálatas 1, porque era inaceitável a existência de evangelhos conflitantes. Ele também tem de ignorar o cuidado de um historiador como Lucas, em Lucas 1.1-4, que mostra três autoridades como Pedro, Tiago e Paulo em essencial concordância acerca do evangelho, embora tivessem algumas divergências de ordem prática. Os cristãos ebionitas do segundo século podem muito bem ter sido um desdobramento dos cristãos judeus farisaicos de Jerusalém, mencionados em Atos 15, mas sua voz nunca foi considerada normativa no início do cristianismo. De fato, suas idéias de que todos os cristãos deveríam guardar a lei mosaica não foram rejeitadas apenas por Paulo, mas também por Pedro c Tiago. É um erro histórico fundamental presumir que não existia nenhum evangelho unificador ou normas doutrinárias comuns na igreja primitiva, antes da formação do cânon do NT.

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O templo de Herodes, onde Pedro pregou sua mensagem de Pentecostes.

transmitida aos convertidos de Paulo é muito clara: humilhem-se e sirvam aos outros e sejam fiéis até a morte e deixem a exaltação do próprio nome a cargo de Deus, como fez Jesus. A história de Jesus não é apenas uma narrativa agradável e redentora; ela é um molde para uma forma particular de vida cristã, e isso muito antes de os evangelhos serem escritos.

Até aqui, temos falado sobre cristãos pregando primordialmente para cristãos, no contexto de suas casas e cultos de adoração. Mas, e quanto à divulgação da história e da Palavra fora desses contextos, antes que houvesse qualquer documento escrito? B. D. Ehrman resume muito bem o que se pode afirmar sobre as primeiras pregações e esforços evangelisticos, usando a história de Jesus:

O que os cristãos diziam às pessoas para convertê-las? As evidências de que dispomos a esse respeito são frustrantemente escassas: exemplos de sermões missionários no livro de Atos e algumas insinuações da pregação de Paulo nas próprias cartas dele (e.g. lTs 1.9- 10). Não podemos dizer quão representativos são esses exemplos. Além disso, há algumas boas razões para pensarmos que a maior parte do esforço missionário cristão não se realizava por meio de pregações públicas, digamos, numa esquina movimentada, mas sim em particular, quando indivíduos que haviam crido que Jesus era o Filho de Deus contavam a outros sobre sua nova fé e tentavam convencê-los a abraçá-la também.

Como sabemos que no mundo greco-romano a religião era uma forma de obter o favor dos deuses, provavelmente não divagamos muito ao supor que, se soubessem que a fé em Jesus podia trazer benefícios ou até resultados miraculosos, as pessoas poderiam

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se sentir motivadas à conversão. Se um cristão testemunhasse, por exemplo, que tinha orado a Jesus, ou a Deus em nome de Jesus, e sua filha tinha ficado curada, ou que um representante de Jesus havia expulsado um espírito imundo, ou que o Deus de Jesus tinha providenciado milagrosamente o alimento para uma família faminta, poderia despertar o interesse de seu vizinho ou companheiro de trabalho. Os que se interessassem por Jesus poderíam querer saber mais a seu respeito. Quem era ele? Em que época viveu? Como ele morreu? O cristão, por sua vez, se sentiría compelido a contar histórias sobre Jesus a pessoas interessadas e, ao mesmo tempo, gratificado por isso.

Tais oportunidades de contar histórias sobre Jesus devem ter surgido em todas as principais áreas urbanas do Mediterrâneo durante décadas, antes da redação dos evangelhos. Do contrário, não havería como explicar a difusão da religião numa época que não contava com os benefícios das telecomunicações.26

Discordo da pouca importância que Ehrman atribui à pregação, mas, apesar disso, concordo que as conversas particulares também foram cruciais para a divulgação da história de Cristo. Agora que estamos nos aproximando do final desta parte da discussão sobre o que ocorreu antes e por trás da redação da história de Jesus, será bom vermos alguns exemplos de sumários das primeiras pregações a cristãos e não-cristãos que Lucas colocou em Atos. Eu uso o termo sumário proposi- tadamente, já que a maior parte do que Lucas nos apresenta em Atos, com a possível exceção do discurso de Estêvão, não pode ser considerada senão sumários, pois não se leva mais que alguns segundos para lê-los em voz alta.

Para que possamos apreciar melhor o material contido em Atos, é preciso ter três dados em mente: (1) Lucas consultou testemunhas oculares e os primeiros pregadores da Palavra, como Lucas 1.1-4 deixa claro. Em vista disso, podemos presumir, razoavelmente, que ele teve contato com os temas básicos e com as formas como os primeiros cristãos contaram e recontaram a história de Jesus; (2) Lucas escolhe, deliberadamente, apresentar de forma seletiva diferentes tipos de discursos a diferentes públicos; (3) a perspectiva escatológica dos primeiros cristãos é evidente em todo o texto. Com essa última observação, quero ressaltar que os primeiros cristãos acreditavam que viviam na época do cumprimento das profecias e de vários outros textos do AT, e que essas profecias se cumpriam não só na vida e no ministério de Jesus, mas também na própria vida deles. Eles viviam na época em que todas as histórias do AT se tornavam realidade.

Atos 2.14-41 fornece excelente ilustração do que estou dizendo. Pedro usa o texto de Joel 2.28-32 para explicar o que acontecia aos cristãos de Jerusalém no Pentecostes. O Espírito Santo de Deus descia sobre eles, afetando seu comportamento. Segue, em Atos 2.23, 24, um sumário da vida, morte e do ministério de Jesus, com aproximadamente a mesma extensão dos encontrados nas declarações de fé e nos hinos já mencionados. Depois disso, em Atos 2.25-28, há uma citação de Salmos

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34 A HISTÓRIA DO NOVO TESTAMENTO

16.8-11, usada para explicar a trajetória de Cristo. Outro texto é anexado aos versículos 34 e 35. A ênfase do sermão está colocada nitidamente na ressurreição e exaltação de Jesus, após sua crucificação, acontecimentos vistos como provas da veracidade das afirmações de Jesus sobre si mesmo: “... a esse mesmo Jesus, a quem crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo”. A cristologia é feita aqui em forma narrativa, tal como ocorria nas orações, declarações de fé e nos hinos, como já vimos. A história permanece intacta e pode ser expandida ou contraída, de acordo com a situação. Neste caso, o público era composto de judeus e tementes a Deus; portanto, há uma ênfase especial nas citações e na demonstração do cumprimento das Escrituras.

Em Atos 13, há um sermão mais ou menos semelhante, igualmente costurado com citações do AT, que Paulo dirige ao mesmo tipo de audiência: judeus e homens tementes a Deus. Porém, Paulo, assim como Estêvão em Atos 7, faz primeiro uma espécie de recapitulação da história de Israel, e são enfatizadas as raízes davídicas do Messias. Nos versículos de 26 a 36, encontramos novamente um breve retrospecto do final da vida de Jesus — sua condenação, morte e ressurreição, mais uma vez com ênfase em sua justificação por Deus, entrelaçada com citações tiradas dos salmos 2 e 16, e de Isaías 55.3. Segue-se, então, a interessante conclusão: “E, por meio dele, todo o que crê é justificado de todas as coisas das quais vós não pudestes ser justificados pela lei de Moisés”. A superação da lei de Moisés por Cristo e em Cristo seria, é claro, um tema importante na primeira carta de Paulo a esses mesmos gálatas (v. G1 3; 4).27 O discurso se encerra com uma advertência aos leitores, tirada de Habacuque 1.5, para que não agissem como os escarnecedores descritos na Escritura. Mais uma vez, a impressão que fica é que as profecias e histórias do AT estavam se cumprindo e podiam ser aplicadas não só a Jesus (embora seja ele o foco especial da linguagem sobre cumprimento e das citações de textos), mas também a judeus e a seguidores de Jesus, em vários aspectos.

O discurso de Tiago em Atos 15 também enfoca o cumprimento das profecias e, neste caso, é uma profecia sobre judeus e gentios sendo unidos como o povo de Deus (citando basicamente Amós 9.11, 12). A citação é usada como base para a conclusão de que, como essa ação escatológica de Deus está ocorrendo e os gentios são salvos independentemente da obediência à Lei, eles não devem ser perturbados com as restrições mosaicas. O chamado decreto apostólico, portanto, não é uma sentença obrigando os gentios a observai certas leis mosaicas alimentares e éticas em si, mas sim uma exigência de que se afastem dos templos pagãos e das atividades que ocorrem em tais lugares.28 Desse modo, eles estariam de fato guardando o cerne dos Dez Mandamentos, afastando-se da idolatria e da imoralidade. Esse sermão, ao contrário dos outros sermões de Atos que vimos até aqui, não tem um foco cristológico, e sim eclesiológico. Tiago está preocupado com o caráter e a práxis do povo de Deus,

27 V. P. 58-60.

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composto de judeus e gentios unidos em Cristo. Ele admite que gentios foram enxertados na história do povo de Deus e devem ser aceitos.

O discurso de Paulo diante do Areópago, em Atos 17, é uma forma diferente de pregação, que primeiro lisonjeia os ouvintes e depois os repreende. Em vez de citar textos do AT, contém breves citações de poetas e filósofos gregos e tenta convencer as autoridades areopagitas de que o deus desconhecido mencionado em alguns de seus altares era de fato aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos, isto é, o Deus criador, que também é o Deus de Israel. Aqui também existe o enredo de uma história, mas a ação se desenrola a partir da morte e ressurreição de Jesus e vai até o dia em que ele julgará o mundo. A ressurreição de Jesus é tratada aqui como uma prova de que, um dia, ele desempenhará o papel de Juiz, assim como em Atos ela foi considerada uma prova de que Deus havia confirmado o ministério de Jesus e suas pretensões messiânicas.

Por último, gostaríamos de comentar o discurso de Paulo despedindo-se dos cristãos de Éfeso, em Atos 20. Esse é o único discurso longo dirigido a cristãos, e não é de surpreender que seja o único a conter numerosas ressonâncias de escritos cristãos, especificamente as próprias cartas de Paulo.29 Nesse discurso, Paulo torna a contar as próprias histórias e exorta seus ouvintes a permanecerem fiéis, apesar das provas e tribulações. E conclui com um dito de Jesus (20.35) que não é encon­ trado em nenhuma outra fonte, um fato que demonstra que os ditos de Jesus tinham papel importante nas primeiras pregações, em alguns contextos (principalmente no ambiente cristão).

Nesses discursos resumidos, são contadas histórias de Jesus, do povo de Deus, da vida de um cristão em particular; e essas histórias estão relacionadas a diversos tipos de textos sagrados ou respeitados — o AT, os ditos de Jesus e até famosos textos gregos. A proclamação das boas novas podia incluir muitas outras histórias, embora o foco geralmente fosse a explicação da história de Jesus. É nos discursos de Atos 2 e 13 que se observa mais nitidamente uma superposição dos sumários sobre a vida de Cristo encontrados nas profissões de fé, nas orações e nos fragmentos de hinos. A reverência pelo AT e seu uso escatológico, indicando cumprimento, são evidentes do começo ao fim.

A.S FERRAMENTAS E O TEXTO + 35

Co n c l u s õ e s

Neste capítulo, procuramos investigar o período anterior aos textos do NT de forma superficial. Discutimos tanto os meios quanto o significado da transmissão da história nesse período e enfatizamos quão impressionante é o fato de existirem esses 27 livros escritos por autores cristãos numa época em que a esmagadora maioria da população era analfabeta, não tinha recursos financeiros para adquirir ou custear documentos e

Referências

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