• Nenhum resultado encontrado

DIREITO PENAL DO INIMIGO: REALIDADE E EFICÁCIA. 1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "DIREITO PENAL DO INIMIGO: REALIDADE E EFICÁCIA. 1"

Copied!
29
0
0

Texto

(1)

DIREITO PENAL DO INIMIGO: REALIDADE E EFICÁCIA.

1

Marcos Vinícius Nespolo de David* Orientador Prof. Dr. Álvaro Filipe Oxley da Rocha**

SUMÁRIO: Resumo; Introdução; 1 O Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs; 2 O fenômeno de Expansão do Direito Penal e a incompatibilidade do conceito de inimigo com o princípio do Estado de Direito; 3 Direito Penal do inimigo: realidade e eficácia; Considerações Finais.

RESUMO: O presente artigo faz uma contraposição entre a atuação do Direito Penal do inimigo e os princípios característicos do modelo de Estado de Direito. Para isso busca identificar as particularidades do Direito Penal do inimigo, bem como realizar uma análise teórica da eficácia dos seus métodos na manutenção da ordem social e da vigência da norma, frente os riscos das novas realidades. Para tanto, estuda a base da teoria do inimigo, o fenômeno de expansão do Direito Penal e os fatores políticos e sua incompatibilidade com o modelo de Estado de Direito, demonstrando que o poder punitivo sempre empregou um tratamento diferenciado incompatível à condição de pessoa, que a legislação penal de caráter simbólico e punitivista, típico do Direito Penal do inimigo, é o resultado de políticas públicas ineficazes e, ainda, a impossibilidade da co-existência ente o Direito Penal do inimigo e do cidadão no mesmo ordenamento jurídico. Ao final, a teoria do inimigo, justificada como exceção, é identificada, na verdade, como um modelo de ação típico de um estado absolutista, não sendo a melhor forma de atuação ao fim que se propõe.

Palavras-chave: Direito Penal do inimigo. fenômeno de expansão. fatores políticos. Estado de Direito. exceção.

ABSTRACT: This work makes a contraposition between the performance of the enemy Criminal Law and the characteristic principles of Rule of Law. For this search to identify the

* Acadêmico da Faculdade de Direito da PUCRS. E-mail: marcosddavid@hotmail.com

** Professor Doutor em Direito do Estado pela UFPR – Curitiba/PR, docente do Departamento de Propedêutica Jurídica da Faculdade de Direito da PUCRS – Porto Alegre/RS. E-mail: alvarooxleyrocha@yahoo.com

1

Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovado com grau máximo pela banca examinadora composta pelo Prof. Álvaro Filipe Oxley da Rocha, Profa.

(2)

particularities of the enemy Criminal Law, and conduct a theoretical analysis of the effectiveness their methods in the maintenance of the social order and the validity of the norm, facing the risks of new realities. Thus, it was demonstrating that the punitive power always used a differentiated treatment incompatible to the person condition, that the criminal legislation of nature symbolic and punitivista, typical of the enemy Criminal Law, is the result of inefficacious public politics and, yet, the impossibility of co-existence between the enemy Criminal law and Criminal law of the citizen in the same jurisdiction. In the end, the enemy theory, justified as an exception, is identified, in fact, as a typical model of an Absolutist State, and is not the best way to the end of action that is proposed.

Key-Words: enemy Criminal Law. phenomenon of expansion. political factors. Rule of Law. exception.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a analisar a eficácia do Direito Penal do inimigo no combate à criminalidade proveniente das novas realidades da sociedade contemporânea. O Direito Penal do inimigo é um modelo de atuação do Estado, proposto por Günther Jakobs, que visa combater aqueles indivíduos que, de forma permanente e duradoura, optam por abandonar a norma vigente, sendo, a partir deste momento, considerados inimigos e fonte de perigo para a sociedade.

A escolha do tema ocorreu pela sua grande repercussão no âmbito da ciência do Direito Penal atual, pela necessidade de aprofundar a discussão do tema diante dos efeitos sociais provocados pela nova realidade econômico-tecnológica e pela influência exercida pelo conceito de inimigo nos recentes discursos políticos, principalmente nos países da América Latina, refletidos na produção legislativa em matéria penal.

Neste aspecto, observa-se que a sociedade contemporânea, principalmente a partir dos fenômenos econômico-sociais da Globalização, acompanhou o surgimento de novas formas de criminalidade, uma criminalidade mais qualificada, que ameaça o Estado e seus cidadãos. Confrontado com essa nova realidade social, o Direito Penal Clássico, baseado na teoria do fato e na proteção do bem jurídico penal, não consegue coibir e reprimir tal criminalidade, pois o Estado não está legitimado a atuar no combate a esses novos crimes em seu estado prévio, antes do advento do ato criminoso em si.

(3)

Para preencher esta lacuna, apresenta-se o denominado Direito Penal do Inimigo, uma nova perspectiva do Direito Penal que visa prevenir a lesão punindo condutas consideradas de risco.

Assim, para contextualizar o conceito de inimigo, se buscará identificar quem são os inimigos da sociedade, quais os métodos típicos de ação do Direito Penal destas características. Em contrapartida, se analisaráo fenômeno da expansão do Direito Penal, bem como sua relação com a teoria de Jakobs e os fatores políticos da teoria do inimigo dentro das características do Estado de Direito, tudo isso para demonstrar a realidade e a eficácia da introdução deste conceito na realidade social contemporânea.

1 O DIREITO PENAL DO INIMIGO DE GÜNTHER JAKOBS

A teoria do inimigo no Direito Penal, elaborada por Günther Jakobs, é um dos temas atuais mais discutidos pelos doutrinadores jurídico-penais. O principal motivo para tanto é que a teoria de base, que será aqui analisada, promete uma revolução na sistemática penal vigente.

1.1 A VIGÊNCIA DA NORMA

Como ponto de partida, é essencial ressaltar que toda sociedade, de maneira geral, estabelece valores e princípios fundamentais, aspectos que não são diferentes no âmbito do Direito Penal. Esses valores se refletem no momento da construção de uma ordem jurídica, os chamados bem jurídicos tutelados, transformando-se nos mais diversos tipos de normas que, deontologicamente, devem ser respeitadas por todos os membros desta relação jurídica-social estabelecida.

Portanto, percebe-se que a norma, nesse processo, visa orientar a organização de uma sociedade, devendo as condutas, tanto individual quanto coletiva dos seus membros guiarem-se através de tais determinações legais. Assim, espera-guiarem-se que cada pessoa aja de acordo com a conduta pré-estabelecida, ou seja, sem infringi-la.

Com o descumprimento do preceito legal vigente, ou seja, com a prática de um ato contrário ao estabelecido pela norma, entra em cena a figura do Estado, que é o responsável pela manutenção da ordem social, para cumprir o seu papel e dar uma resposta à afirmação do agressor.

(4)

Tendo isso como preceito básico, e partindo da observação da realidade atual da sociedade contemporânea, Günther Jakobs questiona, principalmente, o conceito de bem jurídico e a forma como o Estado deve proceder a fim de tornar eficazes os preceitos estabelecidos pela norma. É a partir destes questionamentos que se inicia a discussão sobre a realidade e a eficácia do Direito Penal do inimigo.

1.1.1 A vigência da norma como o bem jurídico maior a ser tutelado

Para Jakobs, primeiramente, é preciso delimitar a proteção jurídico-penal dos bens jurídicos. Segundo a doutrina dominante, o direito penal protege os bens jurídicos em sentido estrito2. Isso significa que existem determinados bens, tais como a vida, o patrimônio, anteriores ao próprio Direito Penal, que integram a fonte primária da dogmática penal.

Pois bem, partindo desta premissa, Jakobs percebe que existem diversos tipos de lesões aos bens jurídicos que não são, e não devem ser tutelados pelo Direito Penal. Tais lesões se caracterizam pela perecidade do bem em si, advento da ação do tempo ou da natureza, como a morte de uma pessoa ocasionada por doença ou pela idade avançada, ou um carro que se deteriora com o decurso do tempo. Estas ocorrências não têm importância jurídica alguma ao Direito Penal, uma vez que este visa proteger um determinado bem da vida que está em perigo em virtude da ação de um indivíduo. Neste sentido, André Luís Callegari explica “que a relevância jurídica dos bens é relativa, referente apenas a uma situação de ameaça”3.

Portanto, o Direito Penal não visa proteger o bem jurídico de forma genérica, mas, sim, busca resguardá-lo da simples ameaça de que outras pessoas poderão atacar este bem ou da expectativa de que novos ataques não ocorram.

Ademais, a sociedade contemporânea é definida por Jakobs como uma sociedade de massas, essencialmente de contatos anônimos4. Assim, observa-se que as pessoas, nas

2

Entendido como uma relação funcional entre o sujeito e uma situação valiosa.

3

CALLEGARI, André Luís; at. al. Direito Penal e Funcionalismo. Coord. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli e Lúcia Kalil. Ed. Livraria do Advogado. Porto Alegre. 2005. p.33.

4

Os contatos anônimos caracterizam-se pela despersonalização das relações sociais atuais, em que a lei deve ser vista como a diretriz da interação dessas pessoas, regulando, assim, qual o papel que cada um deve desempenhar nas diversas situações da vida social, uma presunção de que o outro irá se comportar de acordo com as regras jurídicas estabelecidas, mesmo sem essas pessoas se conhecerem.

(5)

relações jurídicas estabelecidas dentro deste convívio social, se caracterizam por serem reconhecidas, de maneira geral, como possuidoras de direitos, uma vez que, ao interagirem com outras pessoas, esperam dessas um comportamento de acordo com a norma estabelecida, não se preocupando, primordialmente, com a segurança dos bens jurídicos.

Com isso, afirma Jakobs, “um ato penalmente relevante, não se pode definir como lesão ao bem, mas somente como lesão de juridicidade. A lesão da norma é o elemento decisivo do ato penalmente relevante, como nos ensina a punibilidade da tentativa, e não a lesão de um bem”5.

Portanto, a concepção do Direito Penal como proteção do bem jurídico é relativa, uma vez que a relevância penal ocorrerá, unicamente, quando da ameaça de outrem – esse entendido, por Jakobs, como o bem jurídico próprio de Direito Penal. Assim, sendo a norma o instrumento que regula as condutas relevantes ao Direito Penal, qualquer ato ilícito é, primeiramente, um ataque ao ordenamento jurídico vigente, devendo o Estado, através da aplicação de medidas coercitivas, restaurar a ordem, ou seja, a vigência da norma concebida como o bem jurídico maior a ser tutelado.

1.2 DIREITO PENAL DO INIMIGO E DO CIDADÃO? A NECESSIDADE DA CONFIRMAÇÃO COGNITIVA MÍNIMA

Em seus escritos, Jakobs ressalta a necessidade de diferenciar as duas formas de tratamento que o Estado deve impor aos indivíduos que praticaram algum ato em desacordo com a norma.

A primeira forma, dirigida ao cidadão, consiste em retirar os meios de desenvolvimento das pessoas que, apesar de terem cometido um delito, não almejaram, em hipótese alguma, atingir o núcleo da estrutura estatal. Assim, verifica-se que o “ato não se dirige contra a permanência do Estado, e nem sequer contra a de suas instituições”6.

A segunda, o denominado Direito Penal do inimigo, tem como objetivo combater aqueles que, por princípio, proporcionam uma perturbação à ordem social vigente, gerando

5

JAKOBS, Günther. Ciência do Direito e Ciência do Direito penal, Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, Coleção Estudos de Direito penal – v. 1, Barueri/SP, Ed. Manole, 2003. p. 51.

6

Idem. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, Org. e Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli, 2ª Ed., Porto Alegre/RS, Ed. Livraria do Advogado, 2007. p. 32.

(6)

um perigo potencial à coletividade e, conseqüentemente, à estrutura estatal. Estes indivíduos, segundo o autor, não podem ser considerados cidadãos, mas inimigos da sociedade, devendo receber, por parte do Estado, um tratamento diferenciado daqueles, ou seja, devem ser excluídos das relações jurídico-sociais de forma definitiva.

Assim, segundo Jakobs, o Estado deve legitimar dois modelos distintos de medidas coercitivas contra a afirmação delinqüente: tanto tratá-lo como uma pessoa que cometeu um deslize em seu comportamento (Direito Penal do cidadão), quanto como um indivíduo que deve ser impedido de destruir a ordem jurídica (Direito Penal do Inimigo).

Dito isso, surge a questão: como as pessoas se transformam em inimigos? Sabe-se que a norma gera uma expectativa que deve ser mantida. O Direito Penal do inimigo, com o intuito de cumprir este objetivo, e para evitar o perigo de danos futuros à vigência da norma, busca nas atitudes individuais de cada cidadão “uma garantia cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, [...] isso como conseqüência da idéia de que toda normatividade necessita de uma cimentação cognitiva para poder ser real”7.

Então, para a concretização da expectativa do Direito, é necessário que as pessoas ofereçam uma confirmação cognitiva mínima de suas ações, que deve estar refletida, também, na personalidade do indivíduo, ou seja, é preciso ter certeza de qual é a avaliação do coletivo prezada pelo indivíduo, sua capacidade de satisfação ou insatisfação e, ainda, sua noção de lícito ou ilícito, pois só assim é possível deduzir qual será a sua reação frente a determinadas situações, podendo-se concluir se esse irá corresponder à expectativa nele depositada, confirmando a vigência da norma.

Portanto, após esta breve consideração, podemos definir o inimigo como

um indivíduo que, não apenas de maneira incidental, em seu comportamento (...) ou em sua ocupação profissional (...) ou, principalmente, por meio de vinculação a uma organização [criminal] (...), vale dizer, em qualquer caso de forma presumivelmente permanente, abandonou o direito e, por conseguinte, não garante o mínimo de segurança cognitiva do comportamento pessoal e o manifesta por meio de sua conduta8.

Jakobs, como referido anteriormente, busca diferenciar o Direito Penal do cidadão do Direito Penal do inimigo sustentando, ainda, que o primeiro se aplica a delinqüentes que têm

7

JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, Org. e Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli, 2ª Ed., Porto Alegre/RS, Ed. Livraria do Advogado, 2007. p. 45.

8

Idem. Ciência do Direito e Ciência do Direito penal, Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, Coleção Estudos de Direito penal – v. 1, Barueri/SP, Ed. Manole, 2003. p. 57.

(7)

reconhecido seu status de pessoa dentro da relação jurídica, enquanto no segundo, trata-se do direito do Estado de se proteger de indivíduos que reiteradamente cometem delitos contra a estrutura social vigente. Entretanto, importante frisar que, no segundo caso, não se excluem todos os direitos inerentes à condição de cidadão destes indivíduos não-alinhado, os direitos civis de natureza privada ficam resguardados, uma vez que o Estado deve manter uma possibilidade para que estes indivíduos possam retornar ao convívio social.

Ao final desta fase, é importante ressaltar a própria percepção de Jakobs. Apesar de reconhecer a necessidade de constituir uma legislação específica para cada modelo de Direito Penal, visto que cada qual tem seus próprios objetivos, o autor acredita que é improvável que o Direito Penal do inimigo e o Direito Penal do cidadão apareçam como tipos ideais de forma pura, uma vez que se buscará, junto ao cidadão, evitar riscos futuros e, ao inimigo, será dado, ao menos, o mínimo tratamento como cidadão.

Após determinar a figura do inimigo e suas características, a próxima etapa consiste em conhecer as medidas inerentes ao Direito Penal do Inimigo que o Estado tem à disposição para evitar perigos futuros e manter a expectativa da norma e a segurança social.

1.3 A INSTRUMENTALIZAÇÃO DOS MEIOS DE COMBATE AO INDIVÍDUO NÃO-ALINHADO E A FUNÇÃO DA PENA NO DIREITO PENAL DO INIMIGO

Apesar da concepção do Direito Penal do inimigo estar diretamente associada à idéia de legítima defesa do Estado, em face de indivíduos que não oferecem uma confirmação cognitiva mínima, não significa dizer que toda a ação com este objetivo é válida. Afirmar isso é reconhecer um mínimo de personalidade potencial deste indivíduo, devendo as medidas estatais de combate a ele não ultrapassarem a medida do necessário.

1.3.1 Os meios de combate ao inimigo

O Direito Penal do inimigo visa manter a vigência da norma e a expectativa que ela proporciona a seus cidadãos. Para isso, utiliza-se de medidas típicas deste modelo, tais como a

(1) ampla progressão dos limites da punibilidade [...]; (2) falta de redução da pena proporcional a essa progressão [...]; (3) passagem da legislação de Direito Penal à

(8)

legislação de combate à criminalidade [...]; (4) supressão de garantias processuais [...]9.

A progressão dos limites da punibilidade consiste na alteração da perspectiva do Direito Penal clássico, ou seja, ao invés de punir o ato praticado, pune-se pelo ato que será praticado. Assim, é possível reprimir as organizações criminais antes da concretização do fim ao qual se propuseram; entretanto, a progressão dos limites da punibilidade não acarreta a respectiva redução da pena, uma vez que a intenção de seus agentes é certa e determinada, e a prática do ato ilícito em si não se concretizou unicamente pela interferência da ação do Estado.

Com passagem da legislação penal a uma legislação de combate, o autor pretende intensificar a coerção de indivíduos delinqüentes, principalmente aqueles que praticam a denominada criminalidade econômica, terrorismo, tráfico de drogas e outras formas de criminalidade organizada, chegando a crimes sexuais e outras condutas perigosas, assim como a criminalidade em geral. Estas medidas se fazem necessárias uma vez que tais condutas atentam contra o núcleo da manutenção da vigência estatal, o que acarreta violação à expectativa de segurança da sociedade.

A supressão de garantias processuais a que os inimigos estão sujeitos surge como mais uma diferenciação no tratamento existente entre os cidadãos e os indivíduos não-alinhados, isso porque aquele que age em desacordo com a norma jurídica vigente, logicamente, não pode se aproveitar desta mesma norma para usufruir de benefícios nela estabelecidos.

Tendo em vista as medidas de combate aos indivíduos não-alinhados, prezadas pelo Direito Penal do inimigo, Jakobs frisa que o “Estado [ao agir por estes meios] não se comunica com seus cidadãos, mas ameaça seus não-alinhados [...]”10.

1.3.2 A compreensão da pena no Direito penal do inimigo

A aplicação da pena, no modelo proposto pela teoria penal do inimigo, constitui-se no principal elemento prático de ação do Estado contra a desautorização da norma praticada por um indivíduo.

9

JAKOBS, Günther. Ciência do Direito e Ciência do Direito penal, Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, Coleção Estudos de Direito penal – v. 1, Barueri/SP, Ed. Manole, 2003. p. 55/56.

10

(9)

Para Jakobs, a pena consiste, simplesmente, em coação, ou seja, ela tem apenas um significado, é

portadora da resposta ao fato: o fato, como ato de uma pessoa racional, significa algo, significa uma desautorização da norma, um ataque a sua vigência, e a pena também significa algo; significa que a afirmação do autor é irrelevante e que a norma segue vigente sem modificações, mantendo-se, portanto, a configuração da sociedade11.

Em outras palavras, a certeza da aplicação da pena como medida coercitiva à afirmação delinqüente confirma, perante a sociedade, a expectativa normativa esperada, reafirmando a vigência da norma e estabelecendo a segurança necessária à manutenção do convívio social, uma vez que a pena está voltada contra um indivíduo perigoso. Dessa forma, a punição não contempla, unicamente, um ato praticado no passado, mas, também, se dirige aos atos futuros como forma de prevenir a tendência deste indivíduo de atentar contra a vigência da norma novamente.

Para Jakobs, a pena no Direito Penal do inimigo é a confirmação da identidade normativa da sociedade, sendo essa denominada como sua função manifesta12. Entretanto, essa função não exclui outras latentes à aplicação da pena, pois além de confirmar a vigência da norma, ela

produz fisicamente algo. Assim, por exemplo, o preso não pode cometer delitos fora da penitenciária: uma prevenção especial segura durante o lapso efetivo da pena privativa de liberdade. É possível pensar que é improvável que a pena privativa de liberdade se converta na reação habitual frente a fatos de certa gravidade se ela não contivesse este efeito de segurança13.

Portanto, a prevenção especial, ou ainda, a prevenção geral positiva, como se configura, consiste no principal efeito da pena, responsável pela manutenção da expectativa normativa social.

Dentro da idéia de que o Direito Penal visa à proteção da vigência da norma, Jakobs ressalta que o fato delituoso e a pena “encontram-se no mesmo plano: o fato é a negação da estrutura da sociedade; enquanto a pena é a marginalização dessa negação, ou seja, a confirmação da estrutura”14. Assim, a principal função da pena é a confirmação da

11

JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, Org. e Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli, 2ª Ed., Porto Alegre/RS, Ed. Livraria do Advogado, 2007. p. 22.

12

Idem. Ciência do Direito e Ciência do Direito penal, Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, Coleção Estudos de Direito penal – v. 1, Barueri/SP, Ed. Manole, 2003. p. 51.

13

Op. cit.. Direito Penal do Inimigo: noções ... p. 22.

14

JAKOBS, Günther; at. al. Direito Penal e Funcionalismo. Coord. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli e Lúcia Kalil. Ed. Livraria do Advogado. Porto Alegre. 2005. p. 50.

(10)

configuração da sociedade. Os demais efeitos gerados por ela, mesmo que imprescindíveis à função latente da pena, não são elementos essenciais ao fim da pena.

Após a análise da concepção do Direito Penal do inimigo proposta por Jakobs, percebe-se que sua intenção consiste em romper de forma abrupta o dogma penal clássico constituído, por entender que este modelo está ultrapassado frente aos avanços da criminalidade na sociedade contemporânea, principalmente, com o desenvolvimento do crime organizado e das organizações de cunho terrorista.

Entretanto, a teoria do inimigo encontra certa resistência por parte de alguns doutrinadores penais devido aos seus meios incompatíveis com o Direito Penal concebido pelo princípio do Estado de Direito e os efeitos negativos provocados na sociedade.

2 O FENÔMENO DE EXPANSÃO DO DIREITO PENAL E A

INCOMPATIBILIDADE DO CONCEITO DE INIMIGO COM O PRINCÍPIO DO ESTADO DE DIREITO

Ao analisar a evolução das políticas criminais das sociedades pós-industriais, Silva Sánchez constatou uma tendência comum às legislações: o surgimento de novos bens jurídicos, com a conseqüente introdução de novos tipos penais e o agravamento de determinadas sanções a regras penais pré-existentes. Esta tendência foi denominada, pelo autor, como fenômeno da expansão do Direito Penal15.

No processo de expansão identificado pelo autor, destaca-se a necessidade de sua ocorrência devido à evolução econômica e tecnológica da sociedade contemporânea e o surgimento de novos valores e interesses, entretanto, observa-se, neste contexto, existe tanto um espaço de expansão razoável do Direito Penal, quanto há também, na mesma medida, um espaço de expansão desarrazoada. Para exemplificar esta afirmação, veja-se o raciocínio do autor.

A entrada maciça de capitais procedentes de atividades delitivas (singularmente, do narcotráfico) em um determinado setor da economia provoca uma profunda desestabilização desse setor, com importantes repercussões lesivas. É, pois, provavelmente razoável que os responsáveis por uma injeção maciça de dinheiro ‘negro’ em um determinado setor da economia sejam sancionados penalmente pela comissão de um delito contra a ordem econômica. Mas, vejamos, isso não se faz, por si só, razoável a sanção penal de qualquer conduta de utilização de pequenas (ou

15

Este fenômeno foi apresentado pelo autor na obra: A expansão do Direito Penal. Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais, publicada inicialmente em 1999.

(11)

médias) quantidades de dinheiro ‘negro’ na aquisição de bens ou retribuição de serviços. A tipificação do delito de lavagem de dinheiro é, enfim, uma manifestação de expansão razoável do Direito Penal (em seu núcleo, de alcance limitado) e de expansão irrazoável do mesmo (no resto das condutas, em relação as quais não se possa afirmar em absoluto que, de modo específico, lesionem a ordem econômica de modo penalmente relevante)16.

As causas do fenômeno da expansão do Direito Penal destacam-se, principalmente, por duas características distintas. Primeiro, pelo surgimento de novos interesses sociais e, segundo, pela nova valoração de bens já existentes. Respectivamente, o desenvolvimento econômico-tecnológico destas sociedades, propagado pelo fenômeno da globalização, proporciona a aparição de novas realidades e, conseqüentemente, de novos interesses jurídico-sociais, estabelecendo-se uma relação entre “a vinculação do progresso técnico e o desenvolvimento das formas de criminalidade organizada”17.

De outro vértice, a preocupação atual com a proteção do meio ambiente, em virtude dos efeitos globais negativos proporcionados pelo descaso mundial, aparece como exemplo de um bem tradicional, já existente nos ordenamentos jurídicos, que, diante da perspectiva atual, sofreu um incremento na sua valoração, diferentemente do que lhe correspondia anteriormente.

Entre outros elementos relevantes responsáveis pelo fenômeno de expansão do Direito Penal, destacam-se, pelo objeto deste trabalho, em especial, o que o autor define como a institucionalização e a sensação da insegurança.

Tendo como ponto de partida a realidade européia18, ou seja, a crise do modelo Estatal de bem-estar social e a instabilidade nas taxas de desemprego e violência urbana, o autor tenta demonstrar a complexidade social existente na qual se está destinado a conviver. Todos os problemas sociais trazem preocupações à sociedade em geral, o que acarreta, objetivamente, institucionalização da insegurança nesse meio social.

Diante da existência dos novos riscos, sejam eles tecnológicos ou não, a dimensão subjetiva do problema, ou seja, a sensação social de insegurança caracteriza-se pela

16

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 1ª Ed., São Paulo/SP. Ed. Revista dos Tribunais, 2002. p.28.

17

Ibidem. p.29/30.

18

Realidade essa semelhante à conhecida pelos países emergentes da América Latina, como o Brasil, conforme se observa diariamente nos noticiários dos meios de comunicação em geral.

(12)

diversidade das fontes de informação existentes, uma vez que o mesmo fato pode gerar as mais diferentes interpretações pelas instituições que a divulgam.

Com isso, o autor enfatiza que o ritmo de aceleração de vida provocado pela revolução dos meios de comunicação, do qual algumas pessoas não conseguem se adaptar, bem como a dificuldade de se obter uma informação fidedigna aos fatos devido à pluralidade da divulgação desta informação, são elementos que contribuem para o desenvolvimento da insegurança social.

Neste aspecto, a atuação dos meios de comunicação em massa tem função relevante no processo de propagação da insegurança, pois pela forma que transmitem determinadas notícias, agem como um multiplicador da criminalidade.

Entretanto, ressalta Sanchez, os meios de comunicação não são os responsáveis pela criação do medo da criminalidade19 social; seria um pensamento errôneo tal afirmação. O que se verifica é que esses meios atuam como instrumentos para reforçar ou estabilizar medos pré-existentes na sociedade.

Assim, em conseqüência destes fenômenos sociais, a busca por maior segurança se converte em uma pretensão social à qual se supõe que o Estado, através do Direito Penal, deva oferecer uma resposta. Com efeito, surgem novas demandas de

ampliação da proteção penal que ponha fim, ao menos nominalmente, à angústia derivada da insegurança [...] nem sequer [importando] que seja preciso modificar as garantias clássicas do Estado de Direito. [...], em uma sociedade que carece de consenso sobre valores positivos, parece que corresponde ao Direito Penal ‘malgré lui’ a missão fundamental de gerar consenso e reforçar a comunidade20.

Assim, o fenômeno de expansão do Direito Penal está diretamente relacionado com o sentimento social, principalmente quando se trata da segurança pública. Esse sentimento se agrava em virtude da complexidade social a que são submetidos. Diariamente, ouvem-se notícias de ondas de violência provocadas, não só pelo aumento do número de desempregados, oriundos do modelo econômico vigente, mas, também, pelo crime organizado e pelas ameaças de terrorismo que rondam a sociedade contemporânea.

19

O medo da criminalidade, conforme define Silva Sánchez, constitui-se, fundamentalmente, na concreção de um conjunto de medos difusos dificilmente perceptíveis que, de algum modo, são inerentes à posição das pessoas nas sociedades contemporâneas.

20

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 1ª Ed., São Paulo/SP. Ed. Revista dos Tribunais. 2002. p. 41

(13)

Diante desta realidade, a sociedade busca no poder punitivo a última esperança para a estabilização da sociedade e para o combate dos males sociais. Esta expectativa social atribui ao Direito Penal uma responsabilidade que não é sua, mas do Estado executivo, via políticas públicas eficientes. Essa realidade proporciona uma distorção na essência da dogmática penal, possibilitando o surgimento de concepções como o Direito Penal do Inimigo.

2.1 O DIREITO PENAL DO INIMIGO E O FENÔMENO DA EXPANSÃO

Numa primeira análise, a concepção atual do Direito Penal do inimigo de Jakobs foi desenvolvida como alternativa no combate e na neutralização das ameaças provenientes das novas realidades sócio-econômicas. Assim, pode-se concluir que este modelo de atuação está intimamente ligado ao fenômeno de expansão identificado por Silva Sánchez.

Neste sentido, para Manuel Cancio Meliá, a expansão do Direito Penal acarreta, ainda, duas características: o chamado Direito penal simbólico e o ressurgir do punitivismo. Para o autor, essas características constituem o embrião do denominado Direito Penal do inimigo, como se observará a seguir.

2.1.1 O fenômeno de expansão: o direito penal simbólico

Primeiramente, importante ressaltar que os elementos de interação simbólica estão presentes na essência do Direito Penal, como bem observa o autor:

Para se poder abordar o conceito, há que recordar, primeiro, até que ponto o moderno princípio político-criminal de que só uma pena socialmente útil pode ser justa, tenha sido interiorizado (em diversas variantes) pelos participantes no discurso político-criminal. Entretanto, apesar deste postulado (de que se satisfaz um fim, com a existência do sistema penal, que se obtém um resultado concreto e mensurável, ainda que só seja – no caso das teorias retributivas – a realização da justiça), os fenômenos de caráter simbólico fazem parte, de modo necessário, do entrelaçamento do Direito Penal, de maneira que, na realidade, é incorreto o discurso do ‘Direito penal simbólico’ como fenômeno estranho ao Direito Penal21.

Entretanto, o Direito Penal simbólico, inerente ao fenômeno da expansão penal, caracteriza-se pela atuação legislativa de agentes políticos que, através da sua conduta no exercício do poder legislativo, visa, apenas, a criação de regulações penais frente a uma

21

MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, Org. e Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli, 2ª Ed., Porto Alegre/RS, Ed. Livraria do Advogado, 2007. p.58.

(14)

situação fática específica para qual a sociedade, naquele momento, clama por uma resposta por parte do Estado. Em conseqüência dessa manifestação intensa, o legislador produz estas leis de acordo com as expectativas sociais, independentemente de um juízo de razoabilidade e proporcionalidade das conseqüências de tais medidas, passando a “impressão tranqüilizadora de um legislador atento e decidido”22 frente a essas situações. Esta manifestação legislativa aparece, principalmente, naquelas situações relacionadas aos problemas da segurança pública de grande repercussão social.

Tendo em vista a sua atuação, o simbolismo no Direito Penal caracteriza-se pela

inaplicabilidade, pela falta de incidência real na ‘solução’, em termos instrumentais. Tão-só identifica a especial importância outorgada pelo legislador, aos aspectos de comunicação, a curto prazo, na aprovação das respectivas normas23.

Assim, verifica-se que a principal motivação para a elaboração destas regulações penais é o interesse no ganho político obtido na repercussão social de seu ato, uma vez que, de maneira geral, a população espera que o Estado cumpra com sua responsabilidade junto à sociedade.

2.1.2 O fenômeno de expansão: o ressurgir do punitivismo

Aliado a essa conduta legislativa, outro fenômeno característico da expansão penal é a tendência dos legisladores contemporâneos de promover o endurecimento da legislação penal atual, seja devido à criação de novas regulações, ou, simplesmente, ao agravamento dos tipos penais pré-existentes.

O punitivismo no Direito Penal, nas palavras de Meliá, caracteriza-se pela

introdução de normas penais novas com o intuito de promover sua efetiva aplicação com toda firmeza, [...] ou [...] [pelo] endurecimento das penas para normas já existentes24.

Ademais, constatado o avanço do fenômeno do simbolismo e o retorno do punitivismo no Direito Penal, cabe ressaltar que estes elementos característicos da expansão penal não se apresentam de forma pura no ordenamento jurídico, sendo impossível determinar que certa legislação apresente características simbólicas ou punitivistas. A introdução de uma norma de

22

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación al Derecho penal contemporâneo, 1992, p. 304 apud op. cit. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo... p. 59.

23

Op. cit. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo... p.65.

24

(15)

caráter punitivista, provavelmente, foi aprovada e motivada pelo efeito simbólico obtido pela sua promulgação, ou, de outro vértice, normas de características simbólicas podem gerar um processo criminal de firmeza real.

A elaboração de normas baseadas nessas características gera certa identidade social, pois se trata da reação social refletida na legislação penal. Neste aspecto, as pessoas que sofrem a incidência da norma incriminadora, ou seja, aqueles que agem em desacordo com a identidade social estabelecida, são tratados como “outros”, considerados como indivíduos não integrantes desta sociedade. Em outras palavras, a expressão “outros” pode ser substituída, sem prejuízo teórico, por “inimigos”, uma vez que a essência proposta por Jakobs está fielmente retratada nas características de expansão do Direito Penal.

2.1.3 Alguns efeitos sociais da expansão do Direito Penal

O discurso utilizado para a implantação do Direito penal do inimigo – a proteção da sociedade frente a perigos futuros – ignora que a percepção dos riscos é uma construção social que não está relacionada com as dimensões reais de determinadas ameaças. A existência do risco social, utilizada como justificativa de ação da teoria penal do inimigo, não encontra um suporte fático na realidade, uma vez que os ditos inimigos não têm a capacidade de levar perigo à estrutura social vigente25 conforme prega o Direito penal do inimigo.

Assim, mesmo com a constatação de que os riscos justificantes da teoria do inimigo não se concretizam na realidade prática do Direito Penal, suas idéias alcançaram grandes proporções, e sua discussão tornou-se tão relevante, porque as condutas enfatizadas pelo Direito Penal do inimigo caracterizam-se por comportamentos que afetam elementos essenciais e vulneráveis da identidade da sociedade, dentre esses elementos destaca-se o direito à segurança dos cidadãos. Entretanto, a violação desse direito social não ocorre da forma como é apresentada pelo conceito de inimigo, como risco de sua existência, mas sim num plano simbólico, na possibilidade da lesão, no “poder ser”, sendo estas projeções capazes de causar uma preocupação geral na sociedade civil, na qual o Direito Penal do inimigo surge para aliviá-la.

25

Isto não quer dizer que tais organizações criminais não tragam prejuízos graves às sociedades nas quais estão presentes; apenas não apresentam os riscos que justifiquem a prática do Direito penal do inimigo. Assim, este problema deve ser enfrentado em diversas frentes, através políticas públicas adequadas e pelo direito penal através da proporcionalidade e da razoabilidade que regem o Direito Penal clássico.

(16)

De outro vértice, o rigor do punitivismo de determinadas regulações penais, principalmente em matéria relacionada a tráfico e consumo de droga, pode não estar relacionado, simplesmente, com as conseqüências sociais negativas do consumo de entorpecentes, mas, também, com a ineficácia de políticas públicas26 adequadas de combate às drogas, ou seja, o efeito simbólico do rigor da legislação penal como forma de superar a ineficiência do Estado no cumprimento de suas obrigações.

Neste sentido, a expansão do Direito Penal na qual se enquadram as noções de inimigo de Jakobs, principalmente em sociedades emergentes, em que as políticas públicas na área da segurança são ineficientes, o endurecimento das normas penais pode ser utilizado como a saída mais simples no combate a este problema, gerando um efeito simbólico e ineficaz de que o Estado está atuando no combate das necessidades sociais.

2.2 SOBRE O DIREITO PENAL DO INIMIGO, A SEGREGAÇÃO ENTRE OS CIDADÃOS E OS INDIVÍDUOS NÃO-ALINHADOS

A segregação entre cidadãos e inimigos oriunda do Direito Penal do inimigo é algo inconcebível por Meliá diante da ordem jurídica vigente nas sociedades que vigoram sob a guarda do Estado de Direito. Para Jakobs, o cidadão é aquele que se comporta de acordo com a expectativa normativa esperada, através da confirmação cognitiva mínima. Em contrapartida, o inimigo caracteriza-se por descumprir deliberadamente tal prerrogativa, tornando-se um perigo para o equilíbrio social vigente, razão pela qual perde a sua condição de cidadão, devendo, portanto, ser neutralizado e excluído desta sociedade.

Entretanto, o status de cidadão, nas sociedades submetidas ao regime de Direito, é algo inerente a todos os seres humanos em virtude de sua condição humana. Dessa forma, cabe ao Estado, mediante norma constitucional, definir, apenas, quais os respectivos direitos e deveres dessa condição. Assim, não é possível conceber qualquer apostasia a essa condição, pois as pessoas não podem se auto-excluir da sociedade, mesmo não agindo de acordo com a expectativa normativa pretendida, uma vez que os cidadãos não têm capacidade jurídica para exercer esta função.

26

A discussão quanto à efetividade das políticas públicas não é o foco do trabalho em análise; entretanto, este é um elemento importante apresentado para complementar a crítica de Meliá ao Direito Penal do Inimigo.

(17)

Ademais, o Direito Penal do inimigo – entendido como uma reação contra um indivíduo perigoso através de um novo paradigma de princípios e regras penais em que a pena exerce apenas uma prevenção geral positiva – vai de encontro com a ciência do Direito Penal, uma vez que, nestes termos, a teoria do inimigo

praticamente reconhece, ao optar por uma reação estruturalmente diversa, excepcional, a competência normativa (a capacidade de questionar a norma) do infrator; mediante a demonização de grupos de autores, implícita a sua tipificação – uma forma exacerbada de reprovação – da propagação de seus atos27.

Ao excluir o cidadão da sociedade mediante a incidência do rigor penal imposto a este indivíduo pela teoria do inimigo, principalmente quando a punição está voltada contra a ideologia de uma pessoa ou grupo, impossibilita “ao infrator a capacidade de questionar, precisamente, esses elementos essenciais ameaçados”28, impossibilitando a dialeticidade inerente ao Direito em si, o que, em tese, favorece o comportamento daqueles que optam pelo desvio de conduta, uma vez que estes indivíduos perdem sua liberdade por serem identificados por suas idéias e não por seus atos.

Assim, Meliá não acredita na eficácia dos meios propostos pelo Direito Penal do inimigo, principalmente quando se trata da co-existência entre os direitos penais do cidadão e do inimigo vigentes no mesmo ordenamento jurídico-penal.

Ademais, ainda quanto à co-existência de legislações penais, a história jurídico-penal leva a acreditar que as medidas ditas exclusivas do Direito penal do inimigo, que, de modo geral, visam proteger os preceitos estabelecidos pelo Direito Penal do cidadão,

tendem a contaminar outros âmbitos de incriminação [...] de modo que há boas razões para pensar que é ilusória a imagem de dois setores do Direito penal [...] que possam conviver em um mesmo ordenamento jurídico29.

Assim, Meliá defende que a reação Estatal deve estar pautada em critérios de proporcionalidade e de imputação devidamente constituídos pelos princípios de Direito Penal (do cidadão).

27

MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, Org. e Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli, 2ª Ed., Porto Alegre/RS, Ed. Livraria do Advogado, 2007. p.79/80.

28

Ibidem. p.78.

29

(18)

2.3 O INIMIGO NO DIREITO PENAL, SUA CONCEPÇÃO POLÍTICA E O PRINCÍPIO DO ESTADO DE DIREITO

Para ampliar a discussão sobre o inimigo no Direito Penal e sobre o poder punitivo, Eugenio Raúl Zaffaroni afirma que esse sempre discriminou os seres humanos, conferindo-lhes um tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoa, mas tratando-os como seres perigosos, que precisavam ser neutralizados e eliminados. A partir dessa constatação, sobre um olhar na teoria política, o autor elabora uma análise sobre a introdução do conceito de inimigo no Direito Penal do Estado de Direito.

Para corroborar o argumento apresentado por Zaffaroni, Foucault já retratava, na sua obra clássica, as características inerentes ao poder punitivo desde sua época.

[...] são punidas pela economia interna de uma pena que, embora sancione o crime, pode modificar-se [...] conforme se transformar o comportamento do condenado; são punidas, ainda, pela aplicação desta ‘medidas de segurança’ que acompanham a pena (proibição de permanência, liberdade vigiada, tutela penal, tratamento médico obrigatório) e não se destinam a sancionar a infração, mas a controlar o indivíduo, a neutralizar sua periculosidade [...]30.

Portanto, a partir da ótica da teoria política sobre a questão, verifica-se, inicialmente, que

o tratamento diferenciado de seres humanos privados do caráter de pessoas (inimigos da sociedade) é próprio do Estado Absoluto, que, por sua essência, não admite gradações e, portanto, torna-se incompatível com a teoria política do Estado de Direito31.

Dessa forma, conseqüentemente, cria-se uma contradição entre a doutrina penal que legitima o inimigo e os princípios constitucionais do Estado de Direito, fazendo com que se introduza uma conduta punitiva inadequada ao modelo de Estado estabelecido na maioria das sociedades contemporâneas ocidentais.

2.3.1 Os fatores políticos de disseminação do Direito Penal do Inimigo

A última tendência do poder punitivo consiste na regressiva transformação da política criminal em que, em virtude da expansão do Direito Penal, o tema do inimigo da sociedade ganhou grande destaque nesta discussão.

30

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 34ª. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2007. p. 20.

31

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. Coleção Pensamento Criminológico. Rio de Janeiro/RJ. Ed. Revan. 2007. p. 11.

(19)

A principal justificativa de defesa do fenômeno de expansão está nas situações de emergências da atual sociedade, causadas por diversos fatores que justificam a criação de Estados de exceção. Entretanto, observa-se que estas legislações não se modificam após a supressão dos elementos justificadores de tal ação repressiva, tornando-se exceções perpétuas e configurando-se, assim, como legislação penal ordinária de aplicação plena pelo poder punitivo.

Isso ocorre, principalmente, por que

os estados nacionais são débeis e incapazes de prover reformas estruturais; os organismos internacionais tornam-se raquíticos e desacreditados; a comunicação de massa, de formidável poder técnico, está empenada numa propaganda völkisch32 e vingativa sem precedentes; a capacidade técnica de destruição pode arrasar a vida; guerras são declaradas de modo unilateral e com fins claramente econômicos; e, para culminar, o poder planetário fabrica inimigos e emergências – com os conseqüentes Estados de Exceção – em série e em alta velocidade33.

Com isso, verifica-se que a existência do inimigo da sociedade no Direito Penal tem um caráter essencialmente político, uma vez que o novo panorama da globalização, responsável pelo surgimento das novas realidades sociais, justificadoras dos Estados de Exceção, caracteriza-se por uma profunda mudança política mundial, em que as legislações limitam-se ao exercício do poder de designar o inimigo com o intuito de destruí-lo ou reduzi-lo à impotência total.

2.3.2 A legitimação do estado de exceção: a estrita medida da necessidade

Portanto, evidenciado o caráter político da instituição do inimigo no Direito Penal, verifica-se que, ao se constituir uma exceção,

se invoca uma necessidade que não conhece lei nem limites. A estrita medida de necessidade é a estrita medida de algo que não tem limites, porque esses limites são estabelecidos por quem exerce o poder. [...] a incerteza do futuro mantém aberto o juízo da periculosidade até o momento em que quem decide quem é o inimigo deixa de considerá-lo com tal. Com isso, o grau de periculosidade do inimigo – e, portanto a necessidade de contenção – dependerá sempre do juízo subjetivo do individualizador, que não é outro senão o de quem exerce o poder34.

Como forma de legitimar as decisões políticas de tais medidas repressivas, características do reconhecimento do inimigo na política criminal atual, justifica-se que tais

32

A expressão völkisch pode ser traduzida por populismo, entendido como discurso político que subestima o povo mediante a reafirmação dos preconceitos deste.

33

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. Coleção Pensamento Criminológico. Rio de Janeiro/RJ. Ed. Revan. 2007. p. 15/16.

34

(20)

indivíduos perigosos sejam submetidos à estrita medida da necessidade, “ou seja, só se priva o inimigo do estritamente necessário para neutralizar seu perigo, porém deixa-se a porta aberta para seu retorno [...], mantendo todos os seus outros direito”35. Esta afirmação visa justificar a atuação de um modelo de ação de características absolutistas, que tendem a se estabelecer quando se considera tais ações como uma mera limitação ao princípio do Estado de Direito em face da necessidade justificadora em sua estrita medida.

Ademais, para ressaltar a incompatibilidade existente nesse conceito e as regras instituídas pelo Estado de Direito, Zaffaroni adverte que o

fato de que o tratamento a um ser humano como coisa perigosa que ameaça a segurança ou a certeza acerca do futuro não se limita a despersonalizar apenas quem é tratado dessa maneira. [...] a priorização do valor da segurança como certeza acerca da conduta futura de alguém, e mais ainda sua absolutização, acabaria na despersonalização de toda a sociedade36.

Isso ocorre em virtude da realidade atual da busca pelo inimigo. Na sociedade contemporânea, não é possível identificar claramente o indivíduo perigoso, pois este está inserido em uma sociedade de características culturais distintas, em que apenas uma ampla investigação por parte do Estado pode identificar este indivíduo não-alinhado. Para tanto, é necessário que o Direito Penal possibilite esta atuação, limitando os direitos e garantias individuais de todos os cidadãos com o objetivo de identificar e neutralizar o inimigo, ou seja, maior ingerência por parte do Estado na vida dos cidadãos, outra característica de traço absolutista.

[...] admitir um tratamento penal diferenciado para inimigos não identificáveis nem fisicamente reconhecíveis significa exercer um controle social mais autoritário sobre toda a população, como único modo de identificá-los, e, ademais, impor a toda a população uma série de limitações à sua liberdade e também o risco de uma identificação errônea, e conseqüentemente, condenações e penas a inocentes37.

Assim, a priorização da segurança e os elementos de influência política abrem espaço para a introdução do conceito de inimigo no Direito Penal, de característica absolutista, no seio do modelo de Estado de Direito, legitimada como exceção, em situações de extrema necessidade. Conseqüentemente, a exceção tende a influenciar toda a dogmática penal, uma vez que não existem meios de controle de limitação desta legislação, fazendo com que o Estado de Direito retroaja ao princípio do Estado Absolutista.

35

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. Coleção Pensamento Criminológico. Rio de Janeiro/RJ. Ed. Revan. 2007. p. 24.

36

Ibidem. p. 20.

37

(21)

Para finalizar esta idéia, Zaffaroni instiga seus leitores a uma breve reflexão: “para se livrar do efeito perverso do conceito de inimigo no Direito Penal, ou pelo menos para contê-lo, não basta precisar o conceito de inimigo; é necessário também precisar previamente o que se entende por Direito Penal”38.

3 DIREITO PENAL DO INIMIGO: REALIDADE E EFICÁCIA

Após análise da mudança de perspectiva do Direito Penal clássico e dos meios de combate à criminalidade na sociedade contemporânea propostos do Direito Penal do inimigo e levantadas as divergências da implantação deste modelo frente às realidades social, jurídica e política características do Estado de Direito, se faz necessário, neste momento, demonstrar que, independentemente da teoria política vigente, existem aspectos da doutrina penal do inimigo na realidade jurídica brasileira.

A partir desta observação, e da compreensão de todos os aspectos debatidos, principalmente sobre a atuação do Estado no combate a esta nova criminalidade, será analisada, ao menos no âmbito teórico da discussão, a eficácia do Direito Penal do inimigo para o fim a que se propõe.

3.1. OS INDÍCIOS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA

Embora a maior parte da legislação penal brasileira seja anterior à discussão do Direito Penal do inimigo39, principalmente em se tratando do Código Penal Brasileiro (vigente desde 1940, parcialmente reformado em 1984), é possível identificar elementos característicos desse modelo de atuação estatal na legislação penal brasileira.

Para demonstrar esta realidade, é preciso realizar uma breve análise de alguns aspectos presentes no Código Penal Brasileiro e, principalmente, na legislação extravagante, sobretudo quando se trata de crimes relacionados a entorpecentes (Lei Federal nº. 11.343/06).

38

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. Coleção Pensamento Criminológico. Rio de Janeiro/RJ. Ed. Revan. 2007. p. 26.

39

O Direito Penal do inimigo foi apresentado pela primeira vez em 1985, na Alemanha, por Güinther Jakobs, no trabalho Kriminalisierung im Vorfeld einer Rechtsgutverlezung (Criminalização no estágio prévio à lesão a bem jurídico).

(22)

3.1.1 A circunstância jurídica da aplicação da pena característica do conceito de inimigo

A aplicação da pena no Brasil está disciplinada no artigo 59 do Código Penal Brasileiro40. Dentre as diversas discussões que envolvem as circunstâncias jurídicas de fixação de pena estabelecidas no referido artigo, apenas uma interessa ao objetivo deste trabalho: a personalidade do agente.

O julgador deve, sob pena de nulidade sentença41, apreciar todas as circunstâncias jurídicas descritas no artigo para determinar a pena-base da condenação. Assim, conseqüentemente, o juiz deve realizar um juízo valorativo da personalidade do agente para cumprir o requisito legal de aplicação da pena. Entretanto, a perspectiva do Direito Penal do Estado de Direito está em punir o agente pelo fato cometido e não pela sua personalidade.

O princípio normativo da separação impõe que o julgamento não verse sobre a moralidade, ou sobre o caráter, ou, ainda, sobre outros aspectos substanciais da personalidade do réu, mas apenas sobre os fatos penalmente proibidos que lhe são imputados e que, por seu turno,constituem as únicas coisas que podem ser empiricamente provadas pela acusação e refutadas pela defesa. Assim, o juiz não deve indagar sobre a alma do imputado, e tão pouco emitir veredictos morais sobre sua pessoa, mas apenas individuar os comportamentos vedados pela lei42.

Na mesma linha de Ferrajoli, segue José Antonio Paganella Boschi quando trata da ilegitimidade da invasão discricionária do Estado na esfera individual à qual está vedado de operar.

Sem nenhuma pretensão de [...] darmos o problema por resolvido, queremos registrar nossa adesão à corrente que propõe a punibilidade pelo que o agente fez, e não pelo que ele é ou pensa, para não termos que renegar a evolução do direito penal e retornarmos ao tempo em que os indivíduos eram executados porque divergiam, e não pelo que faziam43.

Nesta perspectiva, a análise da personalidade do agente como circunstância judicial para a mensuração da pena é, nitidamente, uma aplicação inerente ao conceito de inimigo, uma vez que, o agente fica a mercê da discricionariedade de quem detém o poder de aplicar à pena.

40

“Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) [...]”

41

Conforme dispõe o artigo 564, inciso III, alínea “m”, do Código de Processo Penal Brasileiro.

42

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª Ed. Ver. e Amp. São Paulo/SP. Editora Revista dos Tribunais. 2006. p. 208.

43

BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 3ª ed. Porto Alegre. Livraria do Advogado. 2006. p. 211.

(23)

3.1.2. A política criminal antidrogas no Brasil e o Direito Penal do Inimigo

A política criminal de combate às drogas no país está disciplinada na Lei Federal nº. 11.343/06. Em comparação com as antigas legislações sobre o tema (Lei nº. 6.368/76 e Lei nº. 10.409/02), a disposição normativa vigente mantém a mesma base ideológica fundada no processo de demonização das drogas. Apesar da perceptível avanço quanto à dicotomia no tratamento entre traficantes e usuários proporcionado pelas Leis, típico da ideologia da diferenciação44, para Salo de Carvalho, “as alterações em matéria de penas evidenciam o aprofundamento da repressão”45, especialmente devido ao aumento das penas estabelecidas e à ampla margem de discricionariedade judicial para sua fixação. Esta política tem como fundamento ideológico, principalmente, a perspectiva da Institucionalização da Segurança Nacional e dos Modelos de Lei e Ordem desenvolvidos nos Estados Unidos nos meados dos anos 60 e 7046. Estes movimentos pregavam que

a forma de manutenção do corpo social sadio contra as investidas daqueles que pretendem aniquilar os valores morais é a sanção neutralizadora, cuja finalidade, diferentemente dos modelos de Defesa Social baseados na recuperação do infrator, é estruturada na idéia de eliminação47.

Para Salo de Carvalho, a principal conseqüência legislativa desta política, fruto dos movimentos criminalizadores autoritários, é a legitimação da Lei dos Crimes Hediondos.

Os efeitos da Lei 8.072/90, porém, ultrapassam os comandos do constituinte (excesso legislativo), inviabilizando aos condenados pelos crimes nela previstos (art. 1º) o direito de liberdade provisória (art. 2º, II), o indulto (art. 2º, I) e a progressão de regime (art. 2º, §2º), ampliando, ainda, os prazos da prisão temporária (art. 2º, § 3º) e os de livramento condicional (art. 5º)48.

Mais recentemente, precisamente no decorrer do ano de 2003, em virtude dos problemas penitenciários ocorridos em São Paulo, todos relacionados à organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), organização ligada ao tráfico de entorpecentes no Estado Paulista, foi editada a Lei Federal nº. 10.792/03, que federalizou o Regime Disciplinar Diferenciado – RDD, criando inúmeras restrições aos direitos dos presos considerados perigosos, determinando

44

OLMO, Rosa Del. A face Oculta da Droga, p. 34 apud CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil (Estudo Criminológico e Dogmático). 4ª Ed. Rio de Janeiro. 2007. Editora Lumen Juris. p. 14.

45

Op. cit. CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Dro... p. 27.

46

COMBLIN, A ideologia da Segurança Nacional apud op. cit. CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Dro... p. 39/40.

47

Op. cit. CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Dro.... p. 40.

48

(24)

medidas administrativas absolutamente lesivas dos direitos fundamentais, vinculando o ingresso do preso no regime diferenciado quando apresentar ‘alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade’ (art. 52, §1º, LEP) ou quando ‘recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando’ (art. 52, §2º, LEP)49.

Para Leonardo Sica, a política empregada no combate ao tráfico e consumo de entorpecentes não alcançou o fim específico almejado, uma vez que, entre outros efeitos, a oferta de drogas não diminuiu e o seu consumo aumentou50. Este aspecto evidencia, ainda, o caráter simbólico da presente política antidrogas no Brasil.

Assim, verifica-se que o tratamento proporcionado a estes indivíduos, certamente, não condiz com a condição de pessoa, inerente a sua condição humana, o que fere os direitos individuais constitucionais e o princípio de execução penal, que preza por proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado51.

3.2 UMA BREVE ANÁLISE TEÓRICA DA EFICÁCIA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO

O Direito Penal do inimigo busca, na utilização dos meios específicos deste conceito, proteger a vigência da norma, responsável pela formatação da estrutura social, bem como prevenir a lesão desse bem jurídico, não frustrando, assim, a expectativa de segurança da sociedade. Isso deve ocorrer através de uma legislação distinta, que viabilize a punição daquele indivíduo que, em sua conduta, não demonstra uma confirmação cognitiva mínima, ou seja, que não respeitará a ordem social vigente, sendo, portanto, considerado uma fonte de perigo a esta sociedade, tornando-se seu inimigo.

Com efeito, a introdução do conceito de inimigo no Direito Penal característico do Estado de Direito encontra resistência por grande parte da doutrina, uma vez que, primeiramente, esta legislação de combate aos indivíduos incorrigíveis vai de encontro aos princípios constitucionais deste modelo de Estado adotado pela maioria dos países ocidentais, ferindo direitos fundamentais historicamente conquistados.

49

CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil (Estudo Criminológico e Dogmático). 4ª Ed. Rio de Janeiro. 2007. Editora Lumen Juris.. p. 67/68.

50

SICA, Leonardo, et. al. Drogas: Aspectos Penais e Criminológicos. Coord. Miguel Reale Jr. Rio de Janeiro. Ed. Forense. 2005. p. 20.

51

(25)

Ademais, o Direito Penal do inimigo é um sistema baseado na investigação do âmbito interno e externo do indivíduo. Nem sua vida privada ou seus pensamentos escapam da incidência do poder punitivo destas características, o que evidencia um julgamento baseado na moral e na personalidade do indivíduo e não na lesão de fato provocada por ele, uma profunda alteração da perspectiva penal clássica.

Neste sentido, para Meliá, se a exclusão da sociedade se dá pela análise do comportamento deste indivíduo, o Estado impossibilita-o de questionar os elementos essenciais ameaçados justificadores de sua neutralização, reforçando, assim, a tese daqueles que optam pelo método do terror, uma vez que este indivíduo ou determinado grupo social serão identificados pelo Direito Penal do inimigo pela sua manifestação ideológica e não pelos seus atos52.

Este método ainda, além da imprecisão constitucional mencionada, possibilita uma maior ingerência por parte por parte do Estado sobre seus cidadãos. Isso ocorre devido à dificuldade de identificação do inimigo, uma vez que este não tem uma característica própria e convive como qualquer outro cidadão dentro das relações sociais anônimas. Assim, é necessário que o Estado tenha livre acesso às informações de todos os seus tutelados para poder buscar aquele que se enquadra na condição de inimigo.

Todas as características apresentadas sobre o Direito Penal do inimigo fazem com que este conceito se enquadre na idéia de modelo punitivo irracional de mera prevenção inerente à concepção de Direito Penal Máximo descrito por Ferrajoli. Este modelo caracteriza-se pela subjetividade do sistema, baseado na tipologia do autor, em que a punição assume nele a natureza de medida preventiva, uma prevenção especial relativa ao fato criminoso, do mero perigo de delitos futuros, de forma a evitá-lo53. Esta concepção em que se enquadra a teoria do inimigo baseia-se na certeza de que nenhum culpado fique impune; entretanto, não evita a possibilidade da incerteza de que algum inocente possa ser condenado54.

Outro aspecto importante para análise, ao menos teórica, da eficácia do Direito Penal do inimigo é o caráter simbólico da sua legislação penal, construído pelo legislador oportuno no calor de uma situação social fática de comoção social. Como exemplos desta realidade, temos a política criminal de combate às drogas e a lei dos crimes hediondos, em que, apesar

52

MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, Org. e Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli, 2ª Ed., Porto Alegre/RS, Ed. Livraria do Advogado, 2007. p. 78.

53

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª Ed. Ver. e Amp. São Paulo. 2006. Editora Revista dos Tribunais. p. 99.

54

(26)

do excesso do rigor, a relativização de garantias processuais, o resultado social pretendido, a diminuição do consumo de drogas e da violência, não foi alcançado simplesmente pela promulgação das referidas leis. O aspecto simbólico evidenciado traz consigo outro efeito nefasto para a sociedade, pois a máscara do punitivismo desta legislação, por vezes, serve para encobrir a realização de políticas públicas adequadas ao combate a estes graves problemas sociais55.

Por todas as razões expostas, mas sem a pretensão de ter esgotado a questão, percebe-se que o Direito Penal do inimigo, apesar de visar proteger a norma e as garantias constitucionais vigentes para o cidadão, pelo poder que proporciona, e pela subjetividade inerente a condição humana, pode propiciar o avanço de um Estado de Exceção sem limites, fazendo com que o Direito Penal retroaja a um Estado de características absolutistas. Portanto, o Direito Penal do inimigo não é o meio mais eficaz de combate aos riscos da evolução econômico-tecnológica da sociedade contemporânea.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como exposto no início do trabalho, após análise das características inerentes à proposta de Jakobs, pode-se afirmar que o Direito Penal do inimigo, em nome da prevenção da ação criminosa e da neutralização das condutas de riscos, altera a perspectiva de ação do Direito Penal clássico, ou seja, ao invés de punir pelo ato praticado (Direito Penal do fato), pune, a partir de uma análise de conduta do indivíduo, pelo ato que se vai praticar (Direito Penal do autor). Esta mudança de atuação deve-se à incapacidade da teoria clássica do Direito Penal em atuar no estágio prévio as lesões oriundas da nova criminalidade decorrentes do desenvolvimento econômico-tecnológico da sociedade atual.

O Direito Penal do inimigo é estruturado sobre a égide da proteção à vigência da norma. Dessa forma, o indivíduo, ao cometer um a ato criminoso, antes de atentar contra um bem da vida, desautoriza a vigência da norma. Nesta concepção, é a norma penal quem estabelece os bens que não podem ser ameaçados e, portanto, cabe ao Direito Penal o papel de garantir a expectativa proporcionada pela norma.

Neste aspecto, ainda, o indivíduo pode ser classificado de duas formas distintas dentro da sociedade: ou é considerado um cidadão, quando oferece uma confirmação cognitiva

55

MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, Org. e Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli, 2ª Ed., Porto Alegre/RS, Ed. Livraria do Advogado, 2007. p. 78.

Referências

Documentos relacionados

Apesar de ser um Estado Democrático de Direito, existem no Brasil algumas leis que foram influenciadas pela teoria de Jakobs. Porém, influencia não é aplicação. O direito

Adotar as medidas que a teoria do Direito Penal do Inimigo preceitua, seria aceitar a saída de um Estado Democrático de Direito, onde a dignidade da pessoa humana

Este processo adquire consistência a partir do século XVII, por obra de filósofos como Thomás Hobbes (dito filósofo do absolutismo, entendimento que foi revisado

provided by Universidade Luterana do Brasil: Periódicos ULBRA.. É protegida por Gunther Jakobs desde os anos de 1985 e recebeu simpatizantes na Europa, especificamente

Reservados todos os direitos de publicação, total ou parcial, a NÚRIA F ABRIS EDITORA..

4.1. O certame será realizado, na data prevista, independentemente da ocorrência ou não da vistoria pelo interessado. Depois da lavratura da Ata de Sessão Pública, a licitante

O objetivo deste estudo foi avaliar as prescrições aviadas em uma farmácia comunitária do município de São Luiz Gonzaga/RS, quanto a presença das informações necessárias para

Em cerca de 2/3 dos casos as indicações da cordocentese referem- se à necessidade de cariótipo fetal rápido, diante de malformações tardia diagnosticadas pela ultrassonografia