• Nenhum resultado encontrado

Os Sentidos Do Lulismo

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Os Sentidos Do Lulismo"

Copied!
140
0
0

Texto

(1)

I

I

,

I

It

It

I

,

It

r~

A REELEICAO de LuizInacio Lula da Silva no pleito de 2006 se consumou pela mesma diferenca numerica dos resultados de 2002:cerca de 20milhoes devotos. Essasemelhanca mascara, no entanto, urn inedito realinhamento eleitoral, indicativo deprofundas transformacoes na sociedade brasileira.

Enquanto 0primeiro triunfo petista

obedeceu ao padrao hist6rico de Lula desde a decada de 1980- isto e, alta votacaonas grandes cidades e na dasse media -, a reeleicao rnarcou a consolidacao de urnfenomeno sociopolitico ainda em curso:0!ulisnw.

Ospobres e os muito pobres

abandonaram 0ternor da"desordem" associado

a

esquerda e abracararn em b1oco a candidatura do ex-torneiro mecanico. A partir do escandalo do mensalao, pOT outro lado,adasse media tradicional transferiu seus votos para a direita.

Neste ensaio fecundo, Andre Singer, ex-porta-voz do governo Lulae professor de ciencia politica na USP, elucida a genese do movimento politico-eleitoral mais importante das ultimas decadas, realizando uma arguta radiografia das relacoes de classe e poder no Brasil contemporaneo.

ANDRE SINGER

O

'

S

'

SENTIDOS

. ,

DO

LUL

ISMO

REFORMA

GRADUAL

E PACTO CONSERVADOR

(2)
(3)

t

t

t

t

t

t

t

t

t

t

t

t

t

t

t

t

t

t

t

t

••

t

••

D

FSC ~.!x.0i1I Mlsro P.~I produrldO .~rtlfd. font••r..pond .••1•1 FSC- C019498

AmarcaFSC·ea garantia deque a madeira utilizada na fabricacao do papel deste livro provem de florestas queforamgerenciadas demaneira ambientalmente correta, social mente justa e economicamente via vel,

alern de outras fontesdeorigemcontrolada.

ANDRE SINGER

as sentidos do lulismo

Reforma gradua

l

e

pa

ct

o

c

o

nserva

do

r

(4)

}..

Sumari

o

Introducao: Alguns temas da questao setentrional .

1.Raizes sociais e ideologicas dolulismo . 2. A segunda alma do Partido dos Trabalhadores

3.0 sonho rooseveltiano do segundo mandato 4. Sera0lulisrno urn reforrnisrno fraco?

Apendice: Tabelas e quadros citados no texto Posfacio: No rneio do carninho tinha urna pedra

Bibliografia . Indice onomastico .

••

••

••

4

4

4

9

t

t

51

84

125

,

169

223

233

263

271

~

t

4

till

(5)

••

••

••

••

••

••

••

Introducao

Alguns

tern as

da

questao

setentrional

Afirmamos que 0camponis meridional estd ligado ao grande

proprietario rural por meio do intelectual. Este tipo de organiza-faoe,o mais difundido em todo0Mezzogiorno ena~icflia. For-maurn monstruoso bloco agrdrio queno seu conjunto [unciona como intermediario eguardiiio do capitalismo setentrional edos grandes bancos.Seu anico objetivo

e

conservar 0status quo.

Antonio Gramsci, Alguns temas da questao meridional

o

lulismo existe sob 0signa da contradicao. Conservacao e

mudanca, reproducao e superacao, decepcao e esperan<;:a num mesmo movimento. Eo carater ambiguo do fen6meno que torna

dificil a sua interpretacao. No entanto,

e

preciso arriscar os sent

i-dos, as resultantes das forcas em jogo, se desejamos avancar a

cornpreensao do periodo. Paco a minhaaposta principal em for

-made pergunta, pois 0processo ainda esta em curso: a inesperada

trajet6ria dolulismo incidira sobre contradicoes centrais docapi

-talismo brasileiro, abrindo caminho para coloca-las em patamar superior?

(6)

Para ten tar uma resposta, e necessario refazer os passos his to-ricos e descer aos detalhes materiais e ideol6gicos que ossustenta -ram. Na aparencia, tendo vencido a eleicao de 2002 envolto ainda por restos da aura do movimento operario dos anos 1980,0 ex --rnetalurgico apenas manteve a ordem neoliberal estabelecida nos mandatos de Collor e PHC.Decidido a evitar 0confronto com 0 capital, Lula adotou politica economica conservadora. Nos dois

primeiros meses de 2003, 0 Comite de Politica Monetaria ( Co-porn) do Banco Central (BC) aumentou os juros de 25% para 26,5%.' De modo a pagar a divida contraida com essa elevacao, 0

Executivo subiu a meta de superavit primario de 3,75% em 2002,2

ja considerada alta,' para 4,25% do PIB(Produto Interno Bruto) e anunciou em fevereiro enorme corte, de 14,3 bilhoes dereais, no orcamento publico, quase 1% do produto estimado para aquele

ano.'0 poder de compra do salario minimo foi praticamente congelado em 2003 e 2004.5 Para completar 0 pacote, em 30 de

abril de 2003 0 presidente desceu a rampa do Planalto

a

frente de extensa comitiva para entregar pessoalmente ao Congresso proje-to com reformaconservadora da Previdencia Social. Entre outras

coisas, a PEC(Proposta de Emenda

a

Constituicao) 40 acabava com aaposentadoria integral dos futuros servidores publicos,

o

efeito das decisoes foi 0esperado. 0 crescimento caiu de 2,7% nos ultimos doze meses de Fernando Henrique Cardoso

para 1,3% do PIBnos primeiros doze do PT.0 desemprego a

umen-1.Deacordo com Ralph Machado, a taxa real passou de6%para 13%entre 2002 e2003.Ver Ralph Machado, Lula a.c.-d.c.,p. 36.

2.Ralph Machado, Lula a.c.-d.c.,p.37.

3.Ver LuisNassif, "Polltica macroeconomica e ajuste fiscal",em B.Lamounier e

R.Figueiredo (orgs.), A era FHC,p. 45.

4.Ver<www.jusbrasil.com.br/noticiasI2560604>.consultado em 14mar.2010.

5.Houve urn aumento real de 1,2% no salario minimo entre 2003 e2004.Ver

Folha deSPaulo, 1 mar.2008,p.B1.

10

tou, passando de 10,5% no derradeiro dezembro tucano para

10,9% no primeiro dezembro petista (2003).6 A renda media do

trabalhador caiu 12,3%.7 As instituicoes financeiras tiveram urn resultado 6,3% maior," Cornpreende-se, portanto, que naconc lu-sac de 0 ornitorrinco, datada de julho de 2003, 0 sociologo Fra n-cisco de Oliveira tenha afirmado que 0Brasil era "uma acumula -cao truncada e uma sociedade desigualitaria sem rernissao'"

Entretanto, passados oito anos, 0 cenario era outro. Em de

-zembro de 2010 os juros tinham caido para 10,75% aoana, com taxa real de 4,5%.100 superavit primario fora reduzido para 2,8%

do PIBe, "descontando efeitos contabeis', para 1,2%." 0 salario

rninimo, aumentado em 6% acima da inflacao naquele ano, tota li-zava 50% de acrescimo, alern dos reajustes inflacionarios, entre 2003 e 2010. Cerca de 12 milhoes de familias de baixissima renda

recebiam urn auxilio entre 22 e duzentos reais por mes do Progra-ma Bolsa Familia (PBP).120 credito havia se expandido de 25% para

••

••

••

••

41

41

t

t

41

t

41

t

••

t

41

••

t

t

41

••

6. Dados do'BGE,segundo <http://economia.uol.com.br>,consultado em22fev. 201l.

7.Cornparacao entre a renda media do trabalhador de marco a dezembro de 2002

em relacao a marco-dezernbro de 2003, de acordo com a Pesquisa Mensal de E

m-prego doIBGE.Em marco de2002,0 lUGEadotou novametodologia depesquisa, por

issoa cornparacao parte desse mesoVerFolha deSPaulo, 25 jan.2008,p. B7. 8. Citado em LedaPaulani, Brasil delivery,p. 50.

9. Francisco deOliveira, Critica

a

razdodualistal 0ornitorrinco,p.150.

10.Ver<http://economia.uol.com.br>/ultimas-noticias/redacao/20 10/12/081 brasil-tem-maior-taxa-real-de-juros-do-mundo.jhtm>.

11.Ver<http://economia.estadao.com.br>, consultado em22fev.2011. Segundo

o ex-presidente do BNDES,Demian Fiocca, "descontando efeitos contabeis do

Fundo Soberano e da concessao do pre-sa},0superavit prirnario federal foire du-zido de 2,8% em2008para 1,2% em 2009 e em 2010'~Ver Demian Fiocca,"Per

que 0Brasil cresceu mais",Folha de S.Paulo,21 fev.2011, p. A3.

12. Eduardo Scolese, "Bolsa Familia ja beneficia 26% dos novos assentados",

Folha de S.Paulo,7jun. 2010, p.A11.

"

(7)

45% do PIB,13 permitindo 0 aumento do padrao de consumo dos

estratos menos favorecidos, em particular mediante 0credito

con-signado.

As consequencias dessas medidas, voltadas para reduzir a pobreza, ativando 0mercado interno, foram igualmente logicas.

o

crescimento do PIB, em 2010, pulou para 7,5%. 0 desemprego,

em dezembro, havia caido para 5,3%, taxa considerada pelos eco-nomistas pr6xima ao pleno emprego. 0 indice de Gini, que mede

adesigualdade de renda, foi de 0,5886 em 2002 para 0,5304 ern 2010.14Entrevistada em novembro de 2010, a economista de ori-gem portuguesa Maria da Conceicao Tavares afirmava: "Eu estou lutando pela igualdade desde que aqui cheguei [1954]. E s6 agora

eque eu acho que estamos no rumo certo"," Urn ana antes, Con-ceicao assinalava que 0governo Lula estava "tocando tres coisas

importantes: crescimento, distribuicao de renda e incorporacao social".16

o

que teria acontecido nos do is quadrienios em que Lula orientou 0Brasil? Confirmou-se 0truncamento da acumulacao e adesigualdade "sem remissao", previstos por Oliveira, ou se en-trou em fase de desenvolvimento com.distribuicao de renda,

ob-servada por Tavares? 0 pais teria dado seguimento

a

vocay~o conservadora, que afogara, no passado, as possibilidades de des

en-13.0 dado corresponde

a

expansao do credito entre 2003 e 2010.Ver Eduardo

Cucolo,"Credito subsidiado chega al/3 do total",Folha de S.Pau/o,29 jun.2010,

p.Bl.

14.Usamos aqui osdados de Marcelo Neri,A novaclassemedia,0lado brilhante

dos pobres,p.40, e"Desigualdade no Brasil atinge 0menor nivel em 2010,diz FGV", em<http://wwwl.folha.uol.com.br/poder/91 0726-desigualdade-no-

bra-sil-atinge-o-menor-nivel-em-2010-dizfgv.shtml>, consultado em 4 jan. 2012.

Verquadro 2doApendice,

15.Maria daConceicao Tavares,Desenvolvimento eigualdade,p.17.

16.Idem,entrevista a VeraSaavedra Durao, Valor,6 novo 2009.

volvimento dernocratico, ou estariam certas as avaliacoes de que a aceleracao do crescimento e a reducao da desigualdade inaugura-yam etapa distinta? E, caso estivessem corretas as perspectivas

otimistas, como teria sido possivel destravar a economia e reduzir a iniquidade sem radicalizacao politica, numa transicao quase imperceptivel do vies supostamente neoliberal do primeiro ma n-dato para 0reformismo do segundo?

Este livro nao tern a pretensao de dar respostas definitivas a

essas perguntas, mas procura oferecer urn esquema interpretativo com base no qual elas podem ser equacionadas. Em resumo, 0es -quema proposto tern 0seguinte roteiro. Teria havido, a partir de

2003,uma orientacao que permitiu, contando com a mudanca da

conjuntura economics internacional, a adocao de politicas para re-duzir a pobreza - com destaque para 0combate

a

miseria - e para

a ativacao do mercado interno, sem confronto com0capital.Isso

te-ria produzido, em associacao com a crise do "mensalao" 17urn

reali-nhamento eleitoral que se cristaliza em 2006, surgindo 0Iiilismo. 0

aparecimento de uma base lulista, por sua vez, proporcionou ao

presidente maior margem de manobra no segundo mandato, possi

-bilitando acelerar a implantacao do modele "diminuicao da pobre-za com manutencao da ordem" esbocado no primeiro quadrienio.

A expressao "realinhamento eleitoral" foi elaborada nosEst

a-dos Unidos para designar a mudanca de clivagens fundamentais

do eleitorado, que definem urn cicIo politico longo. Apesar de 0

conceito de realinhamento ser objeto de extenso debate na ciencia

politica," interessa-me nele apenas a ideia de que certas conve

r-s6esdeblocos deeleitores sao capazes de determinar uma agenda

de longo prazo, da qual nem mesmo a oposicao ao governo con

se-17. Escandalo politico-midiatico envolvendo 0PTem 2005.

18. Para urn resume didatico dos debates sobre anocao de realinhamento, ver

(8)

gue escapar. Por isso, a meu ver, 2002 pode ser 0marco inicial de

fase prolongada no Brasil, como aconteceu nos EVA com a ascensao deFranklin Delano Roosevelt. 'Em 1932, nos EVA, assim como em

2002no Brasil, numa tipica eleicao de alternancia, forma-se nova

maioria. Em 2006, em pleito de continuidade, ha relevantes trocas

de posicao social no interior da coalizao majoritaria: em funcao das opcoes governamentais tomadas no primeiro mandato de

Lula,a classe media se afasta e contingentes pobres ocupam 0seu lugar. Isso quer dizer que, embora 0processo demudanca tenha cornecado em 2002, a eleicao decisiva do ponto de vista das clas

-ses, na qual 0 subproletariado adere em bloco a Lula e a classe

media aoPSDB,e a de 2006.

Na realidade, conforme fui advertido nos debates em torno da tese do realinhamento, e possivel que ele tenha cornecado an-tes, com a lenta penetracao do PT em camadas mais pobres e no

Nordeste" des de 1989, enquanto 0 PSDBvinha consolidando desde o seu pr6prio surgimento, em 1988, a condicao de partido decla

s-se media. Isso, alias, seria compativel com 0tipo derealinhamento

que V.O. Key, Jr.chama de "secular"," Conforme explica Antonio Lavareda, no realinhamento secular as"transforrnacoes podem decorrer [... ]de umprocesso bem mais discreto de acumulo de

modificacoes de longo prazo, on de uma extensa sequencia de

plei-tos gradativamente corporifica 0deslocamento delealdades, for

-talecendo urn partido ou grupo de partidos em detrimento de ou tro (s)",2l

Distinguir com precisao 0tipo de realinhamento (critico ou

19.Agradeco a Fernando Limongi, Gustavo Venturi eTimothy Power as obser

-vacoes arespeito.

20. V.O.Key,Ir., "Secular realignment and the party system",TheJournal ofPoli

-tics,vol.1,n.2, maio 1959.

21.Antonio Lavareda, A democracia nas urnas,p.63.

14

secular) em curso, bem como 0papel relativo nele jogado pelas

eleicoes de 2002 e 2006, alem das anteriores, demandaria pesqui

-sas especificas que excedem os prop6sitos deste trabalho e espero venham a mobilizar outros cientistas politicos. 0 meu objetivo

era chamar a atencao para as importantes mudancas que sedivis

a-yam nos dados relativos

a

eleicao de 2006, alteracoes capazes de "definir urn novo tipo de politica, urn novo conjunto declivagens,

que pode, entao, durar por decadas'." No caso brasileiro, a agenda

desse possivel realinhamento e, a meu ver, a reducao dapobreza.

Note-se que, durante a vigencia do realinhamento, pode haver

troca de partidos no poder, como sucedeu em 1952 e 1956 com a

vitoria republicana nos Estados Unidos, seguida da volta do Part

i-do Democrata

a

Presidencia em 1960 e 1964, sem solucao deco n-tinuidade em relacao aos gran des objetivos nacionais estabelec i-dos na decada de 1930, ate que sobreviesse outro realinhamento,

capaz de mudar a fase da politica.

Em suma, foi ern 2006 que ocorreu 0duplo deslocamento de classe que caracteriza 0realinhamento brasileiro eestabeleceu a

separacao politica entre ricos e pobres, a qual tern forca suficiente

para durar por muito tempo. 0 lulismo, que emerge junto com 0

realinhamento, e, do meu ponto de vista,0encontro de uma lide

-ranca, a de Lula, com uma fracao de dasse, 0subproletariado, por

meio do programa cujos pontos principais foram delineados en -tre 2003 e 2005: combater a pobreza, sobretudo onde ela emais

excruciante tanto social quanta regionalmente, por meioda ativa -cao do mercado interno, melhorando 0padrao de consumo da

metade mais pobre da sociedade, que se concentra no Norte e

••

I

••

I

••

••

22.John C. Berg,"The debate over realigning elections:where do westand now?",

Paperapresentado na reuniao anual da North Eastern Political Science Asso-ciation, 2003. Consultado em <www.allacadernic.com», 18 ago. 2010. Versao

original emIngles, traducao livre minha.

(9)

It

••

••

••

••

I

I

••

It

I

I

I

Nordeste do pais, sem confrontar os interesses do capital. Ao

mes-mo tempo, tambem decorre do realinhamento 0antilulismo que

se concentra no PSDBe afasta a classe media de Lula e do PT,

crian-do-se uma tensao social que desmente, como veremos, a hip6tese de despolarizacao da politica brasileira pos-ascensao de Lula.

Foram as opcoes praticas do primeiro mandato, as quais pre-cederam a crise do "mensalao" (2005) e com ela conviveram, mais

do que qualquer programa explicito, que cristalizaram 0

realinha-mento e fizeram surgir 0lulismo. 0 piv6 do lulismo foi de uma

parte a relacao estabelecida por Lula com os mais pobres, os quais, beneficiados por urn conjunto de politicas voltadas para melhorar as suas condicoes de vida, retribuiram na forma de apoio macico

e,em algumas regioes, fervoroso da eleicao de 2006 em diante.

Paralelamente, 0"mensalao" catalisou 0 afastamento da classe

media, invertendo a f6rmula de 1989, quando Lula foi derrotado exatamente pelos mais pobres, que tin ham votado em Collor.

o

lulismo, por sua vez, alterou a base social doPTe favoreceu,

em particular no segundo mandato, a aceleracao do crescimento

econornico com diminuicao da desigualdade, sobretudo mediante

a integracao do subproletariado

a

condicao proletaria via empre

-go formal. No plano ideol6gico, isso trouxe, outra vez,

a

tona a

gramatica varguista, que opunha 0"povo" ao "antipovo". Nao e

dificil perceber, tambern, por que se repoern, no esquema

inter-pretativo sugerido, alguns temas caros

a

tradicao da ciencia social

brasileira. Impossibilitado de fazer, por ora, a necessaria revisao

da bibliografia pertinente, permito-me citar, de passagem, dois

autores canonicos, apenas para ilustrar a volta de assuntos recor-rentes. Para Celso Furtado e Caio Prado Ir., as virtualidades e

e~-pecilhos que tinha a nacao para romper 0clrculo vicioso do atraso

estavam vinculados

a

existencia da massa de miseraveis no pais.

Vale a pena transcrever trecho de Caio Prado:

16

[ ••. Ja heranca colonial brasileira ainda faz sentir, no essencial,

to-dos ou pelo menos seus principais efeitos. Constituimos ainda,

numa perspectiva ampla e geral [...

J,

urn aglomerado humane

he-terogeneo e inorganico, sem estruturacao economic a adequada, e em que as atividades produtivas de grande significacaoe expressao nao se acham devidamente entrosadas com as necessidades

pr6-prias da massa dapopulacao, E como consequencia desse estado de

coisas [...Jvai a economia brasileira incidir no circulo vicioso a que

ja nos referimos:os baixos padroes e nivel de vida da grande massa da

populacao brasileira nao dao margem para atividades produtivas em proporcoes suficientes para absorverem a forra de trabalho disponivel, e assegurarem com isso ocupacao e recursos adequados aquela popu

-lacao," [grifos meus]

Deve-se recordar que 0livro de Prado Jr. foi escrito depois da

interrupcao abrupta do percurso inaugurado pela Revolucao de

1930,0 qual, do seu jeito, atacara as principais contradicoes

nacio-nais. Lembra Celso Furtado: "0 modele de industrializacao

subs-titutiva deimportacoes estava longe de haver esgotado suas

possi-bilidades como motor de crescimento"," Em outras palavras, 0

golpe de 1964 interrompeu 0processo antes que a construcao

iniciada por Vargas se completasse.

Aspecto interessante da contradicao brasileira e que a

"grande massa" empobrecida abria e fechava simultaneamente

as perspectivas de desenvolvimento autbnomo do pais. Abria, pois

se tratava de mercado interno de que raros paises. dispunharn;

mas fechava, uma vez que 0padrao de con sumo era tao baixo

que impedia a realizacao daquele potencial. A miseria anulava a

possibilidade de surgir urn setor industrial voltado para 0

mer-23.Caio Prado Ir.,A reyolufao brasileira; pp.252-3. 24. Celso Furtado, 0 longo amanhecer, p.17.

(10)

cado interno. Sem ter emprego, a massa rniseravel tornava-se uma especie de "sobrepopulacao trabalhadora superempobre-cida perrnanente"," Seria necessario elevar as condicoes de existencia das camadas rnais pobres, superando a"situacao de miserabilidade da grande massa da populacao do pais, que deri-va em ultima instancia da natureza de nossa formacao hist6ri-ca", para iniciar urn circulo virtuoso, pensava Caio Prado." Ao faze-lo, 0mercado interno ampliado estimularia a criacao de

investimentos e empregos, rompendo finalmente 0circulo vi-cioso anterior.

Apesar do quase meio seculo transcorrido desde a reflexao de Prado, e das expressivas transforrnacoes pelas quais passararn o Brasil e0mundo, a contradicao fundamental, quando Lula

to-mou posse, em 12de janeiro de 2003, continuava de pe. Uma serie de relevantes contribuicoes intelectuais da decada de 1970 procu-rou dar conta de como e por que a sobrepopulacao trabalhadora superempobrecida permanente se reproduzia, nao obstante a re-tomada da industrializacao pela ditadura militar, a partir de 1967, no chamado "milagre econornico" 0 que se via naquela epoca era 0paradoxo da expansao do setor dinamico com 0 au-mento da desigualdade, atestado pela piora na distribuicao da renda. Como era possivel que, mesmo ativando 0mercado inter-no, como indicava Paul Singer," a economia brasileira assistisse ao continuo afastamento "entre a cupula (0 'setor capitalista') e a

25.Sem querer entrar no debate especializado, uso de modo livrea expressao

"sobrepopulacao trabalhadora" inspirado em Marx, que fala em"sobrepobtacion obrera" como "producto necesario de la acumulaci6n 0del desarrollo de la riqueza

sobre una base capitalista"; Karl Marx, EI capital; Livro 3, cap. 23, p.786. Acres-cento"superernpobrecida e perrnanente" para marcar a especificidade brasileira.

26.Caio Prado Ir., A revolurao brasileira, p. 264. 27.Paul Singer, A crise do "milagre", p. 76.

18

base da pirarnide (0 'setor subdesenvolvido')", nas palavras de Maria da Conceicao Tavares?"

Francisco de Oliveira sugeriu que, por tras da aparente duali-dade entre urn sistema dinamico e outro atrasado, na realiduali-dade ha-veria uma integracao de ambos, em detrimento dos pobres. 0 au-mento da exploracao, refletido na menor renda dos pobres, canalizaria riqueza para 0alto, permitindo aumentar 0suficiente 0

consumo dos ricos para sustentar a expansao do mercado interno, sem precisar diminuir a pobreza e a desigualdade." A grande massa empobrecida estaria sendo absorvida pelo setor de services infor-mal, por assim dizer, lavando os carros que a pr6spera industria automobilistica vendia para a dasse media, numa das vividas ima-gens de Oliveira. "Esses tipos de services, longe de serem excrescen-cia e apenas dep6sito do 'exercito industrial de reserva', sao adequa-dos para 0processo de acumulacao global e da expansao capitalista

e, por seu lado, reforcam a tendencia

a

concentracao da renda.""

Em 1981, Paul Singer percebeu que a sobrepopulacao traba-lhadora superempobrecida permanente constituia, na realidade, fracao de dasse,

a

qual denominou subproletariado," e logrou quantifica-la, conduindo tratar-se de nada menos que 48% da populacao economicamente ativa (PEA), contra apenas 28% de proletarios (dados de 1976). Estava ali a chave para entender por que 0processo politico brasileiro nao pode ser pens ado sem se

••

I

••

I

41

41

41

41

••

41

t

41

t

41

t

t

t

41

t

III

28. Maria da Conceicao Tavares, "0 caso do Brasil", em M.da C. Tavares,Dese n-volvimento e igualdade, p. 121. 0 ensaio foi publica do originalmente em 1972. 29.Francisco de Oliveira, Critica

a

razdo dualista/ Oornitorrinco.

30.Idem, ibidem, p.58.Entre as obras importantes do perfodo encontra-se,

tambern, A revolurao burguesa no Brasil. Ensaio de interpretacao sociologica, de Florestan Fernandes. Esperamos, em outra oportunidade, realizar a revisao que

o conjunto desses trabalhos merece.

31. Ver Paul Singer, Dominacao e desigualdade. Estrutura de classe e reparticao da renda no Brasi/.

(11)

••

It

••

••

levar em consideracao 0elemento subproletario. Afinal,

apresen-tando-se na cena politica como massa,0subproletariado, por seu

tamanho, influi decisivamente na luta de classes.

o

fim do "milagre", a crise da divida externa e a introducao do receituario neoliberal, que marcaram sucessivamente as deca-das de 1980 e 1990, repuseram com vigor 0problema da

sobrepo-pulacao trabalhadora superempobrecida perrnanente. Primeiro, a estagnacao da economia e, depois, 0combate

a

inflacao por meio das importacoes produziram explosao de desemprego, jogando parcela do proletariado formado na epoca do milagre de volta

a

precariedade do subproletariado, alem de segmentos do subprole-tariado no lumpemproletariado," 0que favoreceu a constituicao

do crime organizado nas zonas metropolitanas. Em 1999, Celso Furtado escrevia:

Nosso pais se singulariza por dispor de consideravel potencial de

solos araveis nao aproveitados, fontes de energia e mao de obra su-butilizadas, elementos que dificilmente se encontram reunidos em

outras partes do planeta. Por outro lado, abriga dezenas de milhoes de pessoas subnutridas e mesmo famintas [...

J

.

0 cerne da questao

e

definir que modelo de desenvolvimento vai se propor ao Brasil para os pr6ximos anos. Efundamental solucionar 0problema da

criacao de empregos."

A singularidade das classes no Brasil consiste no peso do

subproletariado, cuja origem se deve procurar na escravidao,

32.Adistincao entre a sobrepopulacao trabalhadora atingida pelo pauperismo e olumpemproletariado (marginalidade) esta em Marx. Ver Karl Marx, EL capital;

Livro3, cap.23,p. 802. Comparece tambern em Paul Singer: 0subproletariado ~ composto de"pobres que trabalharn" iDominacao e desigualdade, p.23). 33. CelsoFurtado, 0Longoamanhecer, pp. 32 e 102.

20

que ao longo do seculo xx nao con segue incorporar-se

a

condi-c;:aoproletaria, reproduzindo massa rniseravel permanente e re-gionalmente concentrada. 0 Norte e0Nordeste tern indices de

pobreza bem maiores que os do SuI e do Sudeste. 0 populo so Nordeste, em particular,

e

0principal irradiador de imigrantes

para as regioes mais pr6speras. Por isso, entendo que, ao tocar na questao da miseria, dinarnizando, sobretudo, a economia nor

-destina, 0 lulismo mexe com a nossa "questao setentrional": 0

estranho arranjo politico em que os excluidos sustentavam a

exclusao.

o

lulismo partiu de grau taoelevado de miseria e desigualda-de, em pais cujo mercado interno potencial

e

expressivo, que as

mudancas estruturais introduzidas, embora tenues em face das

expectativas radicais, tiveram efeito poderoso, especialmente quando vistas da perspectiva dos que foram beneficiados por elas:

o pr6prio subproletariado. A conjuntura econ6mica mundial fa-voravel entre 2003 e 2008, nao s6 por apresentar urn ciclo de ex-pansao capitalista como por envolver urn boomde commodities,

ajudou aproduzir 0 lulismo. No en tanto, foram as decisoes do

primeiro mandato, intensificadas no segundo, que canalizaram 0

vento a favor da economia internacional para a reducao da pobre-za e a ativacao do mercado interno. Lula aproveitou a onda de ex-pansao mundial e optou por caminho interrnediario ao neolibe-ralismo da decada anterior - que tinha agravado para pr6ximo do insuportavel a contradicao fundamental brasileira.- e ao re-formismo forte que fora0 programa doPTate as vesperas da earn-panha de 2002.0 subproletariado, reconhecendo na invencao lu-lista a plataforma com que sempre sonhara - urn Estado capaz de ajudar os mais pobres semconfrontar a ordem -, deu-lhe suporte para avancar, acelerando 0crescimento com reducao da

desigual-dade nosegundo mandato, e, assim, garantindo a vit6ria de Dilma

em 2010 e a continuidade do projeto ao menos ate 2014.

(12)

Mas, se esta claro urn dos possiveis sentidos do lulismo, cabe apontar 0tipo de contradicao que 0acompanharia: ao promover

urn reformismo suficientemente fraco para desestimular confli-tos, ele estende no tempo a reducao da tremenda desigualdade nacional, a qual decai de modo muito lento diante do seu tama-nho, em compasso tipico dos andamentos dilatados da hist6ria brasileira (escravatura no Imperio, politica oligarquica na Repu-blica,coronelismo na modernizacao p6s-1930).

Eis, em resumo, 0esquema interpretativo que pretendo

de-senvolver nas paginas a seguir. Antes de deixar 0leitor julgar por si

mesmo, na leitura dos quatro capitulos que compoern a expos i-cao, a qualidade das evidencias empiricas que recolhi em beneficio desta analise, devo fazer do is breves apontamentos te6ricos. Aos que se aborrecem com as excursoes pela teoria, mesmo que ligei-ras, sugiro irem diretamente ao capitulo 1.

PERSPECTIVA DE CLASSE E REPOLARIZA<;:AO DA POLlTICA

Se, do ponto de vista do comportamento eleitoral, 0senti do

ideol6gico do realinhamentolulista confirm a as pesquisas que empreendi sobre os pleitos de 1989 e 1994,34quando assinalei que os votantes mais pobres queriam urn Estado fortalecido para pro-mover acoes de combate

a

pobreza, mas rejeitavam 0caminho da ruptura proposto pela esquerda, 0lulismo enquanto rearranjo do bloco no poder me levou a bus car os fundamentos de classe do fen6meno. Decidi fazer a opcao te6rica de que 0angulo declasse

continuava util para explicar as sociedades capitalistas, em que pesem as mudancas ocorridas desde os anos 1950. Embora fuja ao

34.Ver Andre Singer,Esquerda e direita noeleitorado brasileiro.As identificacoes ideologicas nasdisputas presidenciais de1989e1994.

22

I

••

I

I

••

••

••

41

t

I

41

41

I

41

41

t

41

••

••

escopo do livro, voltado para a discussao do Brasil conternpor

a-neo, entrar nos meandros do caudaloso debate a respeito do esta -tuto dasclasses sociais no seculo XXI,espero que algumas refere

n-cias gerais sejam capazes de situar minimamente 0 leitor

interessado no tema.

Ainda que fora de moda nos ultimos anos, a perspectiva de classe continua a dar sinais de vitalidade nas duas tradicoes dere -flexao que a utilizam - a originada em Marx e a que se nutre em Max Weber. Para relembrar de maneira esquernatica as formula-coes de ambos, Marx propoe no Manifesto comunista a nocao de que as classes se efetivam na luta de classes,sendo esta sempre

"uma luta politica"," Os auto res do Manifesto indicam que 0

de-senvolvimento das forcas produtivas tende a criar diferentes re la-~oes de producao e, portanto, distintas classes,em potencial, mas que estas s6 se realizam no plano da politica.

Forcas produtivas e relacoes de producao constituem modos de producao, que na forrnulacao do Prefacio

a

"Contribuicao

a

critica da economia politica" aparecem assim: "A gran des traces podemos designar como outras tantas epocas de progresso, na formacao economica da sociedade, 0modo de producao asiatico,0

antigo, 0feudal e0moderno burgues"," Em cada urn deles ha

clas-sesem si,ocupando posicoes objetivas nas relacoes de producao. As

classes podem transforrnar-se em classespara si,isto e, conscientes de seus interesses e dispostas a lutar por eles no plano da politica.

No caso de classes em si que nao logramse unificar e conscientiza r--se para a acao coletiva, tendem a aparecer na luta politica como

35.Karl Marx e Friedrich Engels,Manifesto comunista, p. 27.

36.Ha uma extensa literatura a respeito do desenvolvimento dos modos depro -ducao. Como nao

e

objetivo aqui discutir 0assunto, mantivemos a referencia ao esquema do Prefacio it"Contribuicao it critica da economia politica", sabendo que para Marx 0suposto evolucionismo

e

uma simplificacao consciente. VerKarl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas (vol. i), p.302.

(13)

massa, estruturada de fora para dentro, como acontece em 0 ·18

Brumario," As classes fundamentais, por serem portadoras de urn projeto hist6rico, como

e

0caso da burguesia e do proletariado no

capitalismo, tenderiam a se organizar enquanto classes; as demais, a surgir na politica como massa. 0 funcionarnento da consciencia, nas fracoes de classe que aparecem como massa, assemelha-se ao da pequena burguesia, istoe, seriam incapazes de perceber 0

con-texto real em que estao situ ad as, pois este lhes

e

adverso.

Na visao alternativa de Weber, classe seria "todo grupo hu-mana que se encontra em uma mesma situacao de classe" A "si~ tuacao de classe"

e

definida por urn "conjunto de probabilidades tipicas" de acesso a bens, astatus,e de destino pessoal dentro de uma determinada ordem economica." Dai a tendencia, nos estu-dos de extracao weberiana,em localizar as classes a partir de mul-tiplos criterios objetivos,'como renda, escolaridade, consumo etc. Sobre esse solo com urn, diz Weber, "podern surgir processos de associacao'." Mas nao

e

obrigat6rio que isso ocorra. Como a rno-bilidade de uma classe a outra

e

razoavelmente simples, a "unida-de"das classes sociais se "manifesta de modo muito diverse';" De maneiramais rest rita, segundo Richard Aschcraft, "numa leitura plausivel de Weber (adotada por urn extenso segmento de sociolo-gos politicos americanos),

e

possivel afirmar que ele definiu clas-ses no senti do econ6mico em terrnos da fonte e da natureza da renda dos seus membros","

37.Karl Marx, "018 Brumario de Luis Bonaparte", em K.Marx,A revolufiio antes

da revolufiio.

38. Max Weber,Economlaysociedad,p.242. Traducao minha. 39.Idem, ibidem.

40. Idem.

41.Richard Aschcraft, "A analise do liberalismo em Weber e Marx", p. 208. Mais adiante vamos ver, sobretudo no capitulo 4, como 0criterio de renda

e

decisivo para certa cornpreensao das classes no Brasil hoje.

As intensas transforrnacoes sofridas pela estrutura social ca-pitalista no seculo xx, matriz das experiencias analisadas por Marx no seculo XIX,tornaram dificil a tarefa dos que procuram pensar a

partir das categorias formuladas por ele. Perry Anderson, ja no iniciodos anos 1990, fazia 0seguinte balance de "cinco eixos de

diferenciacao?? das classes no capitalismo avancado. Em primeiro lugar, houve a ascensao dos services, com declinio da classe traba-lhadora manual para cerca de 1/4 da forca detrabalho, sendo su-perada pelo mimero de empregados do setor terciario, e, simulta-neamente,o afrouxamento dos Iacos de solidariedade entre os dois segmentos. Em segundo, aumentou a diversidade intern a da pr6pria classe trabalhadora manual, com bons salaries na ponta mais alta e longos periodos de desemprego na mais baixa. Em terceiro, surgiram novas clivagens etarias. 0 prolongamento da adolescencia, com uma demora e dificuldade para ingressar no mercado profissional, gerou cultura juvenil aut6noma. Simulta-neamente, a longevidade incrementou 0peso dos aposentados na

populacao, restando aos trabaIhadores da "segunda idade" carre-gar sozinhos pesado fardo econ6mico. Em quarto, 0incremento

do numero de mulheres no mercado de trabalho fez crescer a im-portancia da clivagem por genero, tornando as reivindicacoes fe-inininas pauta obrigat6ria das lutas trabalhistas. Em quinto, 0

maior numero de imigrantes "erodiu a cultura de solidariedade na populacao trabalhadora'l? 0 resultado de tudo isso foi uma in-tensa fragrnentacao da "antiga" classe operaria.

Mas justamente pela compreensao das transforrnacoes apon-tadas acima ~ ou seja, pela captura das novas configuracoes de classe -

e

que seria possive! apreender a din arnica politic a

con-42. Perry Anderson e Patrick Camiller (orgs.), Um mapa da esquerda na Europa Ocidental.

(14)

ternporanea. Escrevendo em marco de 2009, Anderson a rgumen-ta, por exemplo, que a incapacidade de uma das tradicoes intelec-tuais mais respeitaveis da Europa, a que foi inaugurada por Gramsci, para lidar com a fragmentacao p6s-moderna do traba-lho dificulta-lhe a decifracao da politica italiana atual."

Na linha de pesquisa que le preferencialmente Weber, en-contram-se afirrnacoes parecidas. Os trabalhos de Geoffrey Evans, entre outros, procuram mostrar como 0voto de classe,

incorporadas, e claro, as novidades ocorridas desde osanos 1950, continua a ser relevante para explicar 0comportamento politico

na Europa e nos Estados Unidos." Sem duvida, em funcao das transforrnacoes sociais, as classes precisam ser redefinidas. Sug

e-re-se urn esquema de quatro classes, separando a pequena bur

-guesia (autonomos), uma classe gerencial de services, uma classe de trabalhadores nao manuais de baixa responsabilidade (empre-gados de escrit6rio de escalao baixo) e a classe trabalhadora pro

-priamente dita." 0 reconhecimento de uma fracao de classe ge-rencial e outra ligada as funcoes de qualificacao menor nos

escrit6rios tambem comparece na tradicao marxista. Iana decada de 1970, Nicos Poulantzas assinalava que os engenheiros e tecni-cos seriam "portadores da reproducao das relacoes ideologicas no proprio seio do processo de producao material"," Por volta da

mesma epoca, Paul Singer indicava no Brasil a existencia de duas fracoes da pequena burguesia: a tradicional, composta de "pro-dutores diretos nao assalariados, proprietaries dos seusmeios de

44.PerryAnderson, ''An invertebrate left",London Review of Books,vol. 31, n.5, mar. 2009, pp. 12-8.

45.Ver Geoffrey Evans (ed.), The end ofclasspolitics? Class voting in comparative context.

46.VerBen Clift, "Social-democracy in the 21st century: still aclass act?", em <http://wrap.warwick.ac.uk>. consultado em 23fev.2011.

47.NicosPoulantzas, Asclassessociais nocapitalismo dehoje,p.256.

26

producao", e a pequena burguesia recente, a qual incluiria assala -riados que nao se confundem com a classe trabalhadora por exercerem atividades gerenciais." Decadas mais tarde, Fernando

Haddad acrescentaria a sugestao de que.a segunda camada e inte-grada tambern por "agentes socia is inovadores"."

Em resumo, ha urn conjunto de sintomas de que a categoria classe vem sendo reabilitada nas duas escolas para explicar a so-ciedade conternporanea." De olho nessas contribuicoes, 0socio

-logo Louis Chauvel propos uma definicao de classe que busca

tornar complementares os criterios de uma e de outra formul

a-cao. De acordo com Chauvel, classes deveriam ser entendidas

como grupos sociais definidos, de urn lado, pela quantidade de

riqueza apropriada e, de outro, por tres dimensoes de identida-de: temporal, cultural e coletiva. Na primeira, esta em jogo a durabilidade da identificacao. Na segunda, a existencia de refe -rencias simb6licas comuns e estilos de vida compartilhados. Na

terceira, a capacidade de participar de acao coletiva. Oseleme n-tos de identidade dao conta dos valores imateriais e poderiam se aplicar a qualquer agrupamento: de genero, etnico, regional, re-ligioso etc. 0 que os transforma em atributos de classe

e

0fato de

se referirem a grupos sociais definidos no plano da economia (apropriacao da riqueza).

No Brasil, afora a tradicao inspirada em Marx, a qual volta re-mos adiante, autores como Marcelo Neri, Amaury de Souza e Bo-livar Lamounier, de urn lado, e Jesse Souza, de outro, recorreram

a

nocao de classe para dar conta das rnudancas em curso no lulismo. Neri usa instrumental economico e estatistico para medir classes

48. Paul Singer,Domina~ao edesigualdade, p.18. 49.Fernando Haddad, Trabalho e linguagem, p.110.

50.Ver LouisChauvel, "Are socialclasses reallydead?A French paradox inclass dynamics", em G.Therborn (ed.), Inequalities of the world,pp.298-9.

(15)

de renda. Inspirados em Weber, Souza e Lamounier buscam em

pesquisas quantitativas as "caracteristicas objetivamente mensu-raveis, como a educacao, a renda e a ocupacao, entendidas como

atributos individuals';" que seriam elementos para identificar as

classes na sociedade brasileira. A partir delas, procedem a extensa

analise de crencas e atitudes do que chamam "nova classe media". Ia Jesse Souza, tambern leitor de Weber e Pierre Bourdieu,

argu-menta que e na "transferencia de valores imateriais" que reside 0

"rnais importante" fator para separar asclasses.v Procurara, por

meio de pesquisas qualitativas, capturar a unidade simb6lica do

que chama "rale" e "nova classe trabalhadora" no Brasil de hoje.

Nos capitulos 3 e 40assunto sera retomado.

Por agora, deseja-se destacar que este livro nao se en contra

isolado na decisao de usar a categoria "classe" para entender 0

pe-riodo 2002-10.

E

original apenas a sugestao de que 0

deslocamen-to do subproletariado, uma fracao de classe com importante peso

eleitoral, provocou 0surgimento do lulismo (capitulo 1).0

lulis-mo, por seu turno, teria impactado 0 PT(capitulo 2), dando

su-porte

a

virada programatica que comecara em 2002. Em seguida,

no segundo mandato, 0governo Lula, sustentado pelo

subproleta-riado e por urn partido lulista.afiancou 0modelo de arbitragem

entre as classes fundamentais, dando asas a urn imaginario

roose-veltiano (capitulo 3). E0conjunto de mudancas pode ser

entendi-do como urn reformismo fraco, que, simultaneamente, reproduz e

avanc;:aas contradicoes brasileiras (capitulo 4).

o

angulo de classe, diferentemente da maioria das

explica-coes que tendem a enxergar despolarizacao e despolitizacao no

periodo do lulismo, me levou a pensar que 0 realinhamento

provocou uma repolarizacao e uma repolitizacao da disputa

••

••

It

••

••

••

••

••

51.Amaury de Souza e Bolivar Lamounier,A classe media brasileira, p.13.

52. Jesse Souza,

as

batalhadores brasileiros, p. 23.

28

partidaria,

E

verdade que ate em relacao a autores do mesmo

campo te6rico ha diferencas a esse respeito. Avaliando 0pleito

de 2006, Francisco de Oliveira refere-se a urn suposto desinteres-se do eleitorado, "reflexo de que a politica nao passa pelo conflito

de classes"," De acordo com Oliveira, nesse pleito teria havido "a

porcentagem mais aha de 'indiferenca' eleitoral da hist6ria

mo-derna brasileira, aproximando-se dos mimeros da abstencao dos

norte-americanos nas eleicoes presidenciais";" Ruy Braga

obser-va que haveria urn "efeito regressivo" do lulismo: nele, a politica

afasta-se dos embates hegem6nicos e refugia-se "na sonolenta e

desinteressante rotina dos gabinetes"," Desde esse ponto de

vis-ta, a polarizacao entre ricos e pobres ocorrida na eleicao de 2006

(e reproduzida em 2010) teria sido ilusao de 6tica. Mas, como se

pode observar na tabela 1 do Apendice, as taxas de abstencao em

2006 nao foram maiores do que as apresentadas desde 1994,

sendo ate urn pouco menores que as de 1998 e 2002, 0que indica

interesse pelo pleito. Retornaremos ao assunto adiante,

Em outra chave, Brasilio Sallum Jr.56tambern avalia haver despolarizacao, po is acha que se estabeleceu urn consenso

liberal--desenvolvirnentista. Para ele, 0governo Lula se aproximou da

plataforma liberal deFHC,que consistia em tirar 0 Estado das

ati-vidades empresariais, desenvolver politicas sociais, equilibrar as

53. Francisco de Oliveira,"Hegernonia as avessas", em F.de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), Hegemoniaas avessas, p.23.

54. Idem, ibidem.

55.Ruy Braga, "Apresentacao', em F. de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), He

-gemonia as avessas, p.8.

56. Brasilio Sallum Jr. e Eduardo Kugelmas, "Sobre0modo Lula de governar'; em

B.Sallum Ir., Brasil e Argentina hoje; Brasllio Sallum Jr.,"A crise do governo Lula eo deficit de democracia no Brasil", em 1. C. Bresser-Pereira (org.), A economia

brasileira na encruzilhada; idem, "El Brasil en la 'pos-transicion': la instituciona -lizaci6n de una nueva forma de Estado",em I. Bizberg (org.), M6cico en el espejo

latinoamericano.

(16)

financas publicas e derrubar a antiga protecao varguista

a

empresa nacional. Sobretudo, haveria urn consenso de que a estabilidade monetaria seria urn valor supremo. A plataforma liberal teria se combinado, desde 0 governo doPSDB,com a busca de insercao in-ternacional competitiva, passando pelo estimulo a diversas ativi-dades agricolas, industria is e de services, e atracao de multinacio-nais que pudessem adensar cadeias produtivas internas. Em outras palavras, seria urn liberalismo seletivo, associado

a

defesa de seto-res especificos da economia.

Mas as medidas de protecao

a

parcela mais pobre da popula-cao nao teriam carater liberal. Por isso, 0terreno comum entre

tucanos e petistas deveria ser considerado "liberal-desenvolvi-mentista". Sallum Jr. reconhece 0que denomina de "novo ativismo

estatal" no segundo mandato de Lula, que, embora pudesse signi-ficar uma inflexao desenvolvimentista, continuaria a ser liberal, ou seja, atuaria dentro dos marcos estabelecidos no governo ante-rior. A hip6tese de uma inflexao desenvolvimentista, sugerida por Sallum Ir.,

e

interessante para caracterizar 0lulismo, como

vere-mos no capitulo 3. Porem, cabe ressaltar que a politica social, vol-tada para os mais pobres, com reflexos sobre 0mercado interno e as relacoes de classe, inicia des de 2005-06 uma polarizacao entre ricos e pobres que escapa ao terreno comum de urn possivel libe-ral-desenvolvimentismo, pois ela opoe de maneira consistente os que desejam maior intervencao estatal aos que preferem solucoes de mercado.

Igualmente para Luiz Werneck Vianna, 0empenho,

bem-su-cedido, do governo Lula teria sido 0de despolitizar e, portanto,

despolarizar os conflitos." Vianna percebe na constituicao de urn "Estado de compromisso', arbitrando em seu interior a

negocia-57.Luiz Werneck Vianna, "0 Estado Novo do PT", no sltio Gramsci e0Brasil,

<www.acessa.com/gramsci/>. consultado em 24 fev. 2011.

30

):ao entre grupos de interesse, a caracteristica central do lulismo. "~esse ambiente fechado

a

circulacao da politica, a sua pratica se limita ao exercicio solitario do vertice do presidencialismo de coa-lizao,0chefe de Estado.?" A despolitizacao resultante se refletiria no esvaziamento do Parlamento e do sistema de partidos, cuja funcao de comunicar a opiniao que se forma na sociedade civil estaria, assim, bloqueada. Ou seja, por razoes diferentes das suge-ridas por Oliveira e Braga, que estao pensando no sequestro neo-liberal da politica, Sallum Jr. e Werneck Vianna coincidem quanta

a

inclinacao do governo Lula

a

pasteurizacao.

Urn quinto autor, Marcos Nobre, expoe, com outras nuances, o que seria a "anulacao" da politica no lulismo. Nobre sugere que a cultura politica brasileira teria encontrado, na saida da ditadura, urn estilo particular, 0peemedebismo, de absorver a "ascensao de

pobres e remediados

a

condicao de representados politicos"," 0 peemedebismo se caracterizaria por urn sistema de vetos cons-truido no periodo de transicao

a

dernocracia, 0qual representaria

a capacidade de bloquear mudancas estruturais. A partir de 2005, com a plena incorporacao do PMDBao seu governo, Lula teria pas-sado a "ampliar de tal maneira 0centro politico que a polarizacao praticamente desapareceu". Ao faze-lo, destruiu a bipolaridade existente no periodo FHC. A peemedebizacao do lulismo

implica-ria uma "regressao politica", fazendo preyer "uma reorganizacao de grandes proporcoes", uma vez que "0sistema politico nao

so-brevive sem polarizacao" Enquanto isso nao acontece, teriamos "uma sociedade amputada por uma representacao politica exclu-dente",o que explicaria por que a eleicao de 2010 teria ficado "en-tre 0chocho e0abstruso, sem nada de realmente relevante entre

I

••

I

I

••

••

t

I

41

••

••

t

41

41

58.Idem, ibidem.

59. Marcos Nobre, "0 fim da polarizacao", piaui, n.51, dez.2010, pp. 70-4. Todas as citacoes de Nobre se referem a esse artigo.

(17)

asduas coisas",numa analise que lembra a de Oliveira sobre 0

pleito de 2006.Em suma, 0 sistema de vetos teria retirado qual

-quer possibilidade de movimento

a

politica.

Penso,entretanto, que, nesse aspecto, a razao esta com Fabio

Wanderley Reis,quando indica que0lulismo produziu nao despo-larizacao, mas urn tipo de polarizacao distinto: "0 lulismo, combi-nando simbolismo popular e empenho redistributivo, resultou em

algoinedito nas disputas presidenciais, tendendo a caracterizar 0

processo eleitoral de maneira geral: a intensa correlacao, que tran

s-pareceu com nitidez especial na eleicao de 2006, entre 0apoio

eleitoral aurncandidato ou outro e a posicao socioeconomica dos

eleitores - com as projecoes regionais dessa correlacao';'" Mas,

coerentemente com avisao construida desde a decada de 1970, Reis naove polaridade ideo16gica, e sim processo de identificacao

com base em "imagens toscas", desde0qual se poderia enxergar "0

caso de Lula como parte de uma nova onda populista na America

Latina, que alguns identificam em casos como 0 dos Kirchner, na Argentina, e os de Hugo Chavez (Venezuela), Evo Morales (Boli -via) e Rafael Correa (Equador)"," Procuraremos argumentar que o lulismo faz uma rearticulacao ideol6gica, que tira centralidade doconflito entre direita e esquerda, mas reconstr6i uma ideologia apartir do conflito entre ricos e pobres.

Note-se que, embora Reis tenha tentado evitar as conotacoes

negativas da expressao "populismo", ao argumentar que 0

neopo-pulismo nao precisa estar carregado deapelos fraudulentos e ins

-tituicoes frageis, como aparece, por exemplo, na exposicao de

60. Fabio Wanderley Reis,"Identidade polltica, desigualdade e partidos brasilei

-ros', NovosEstudos,n.87,jul. 2010,p.70.

61. Idem, ibidem.

Fernando Henrique Cardoso em conferencia na OEA,62ambos en

-tendem 0 populismo pelo vies cognitivo. "0 populismo esta de

volta, ainda deforma restrita. Mas esta de volta e e uma arneaca

a

democracia", disse 0ex-presidente referindo-se

a

America Latina.

o

populismo, de acordo com Cardoso, caracteriza-se por uma relacao personalista e direta do lider carisrnatico com a populacao,

em lugar do governo baseado em regras e instituicoes. Notabil

iza--se,outrossim, pela crltica constante a essas mesmas instituicoes,

que passam aser desacreditadas, e por urn discurso simplificado e

vazio, "assente namanipulacao e na propaganda em vez de em

fa-tos ou na opiniao informada". A visao "cognitivista" do lulismo exdui a visadade dasse, desde a qual Francisco Weffort analisou, emsua epoca,0populismo varguista," e que atualizada permite, a

meu ver,entender 0lulismo. Voltarei a debater 0 esquema inter

-pretativo de Reis,urn dos mais completos sobre a politica brasile i-raconternporanea, ao longo do livro. .~

Ha, finalmente, uma terceira linha de compreensao, que de

s-taca a existencia de polarizacao, mas sem identificar 0 deslo

ca-mento ideol6gico produzido pelo lulismo no interior dela. Ruda

Ricci vincula a vit6ria de Lula em 2006 ao voto dos mais pobres e, ao analisar a eleicao de2008,chega

a

conclusao de que se manteve a

polarizacao PT-PSOB, "tendo 0 PMOB como fiel desta balanca"," A analise deFernando Limongi e Rafael Cortez vai adiante, indican

-do que apolarizacao entre PTePSOBfoi transplantada para os est

a-dos naeleicao de2010. "A polarizacao PT-PSOB na eleicao pres

iden-cialrepercute ereorganiza asdisputas pelos governos estaduais."65

62.Ver aconferencia pronunciada por Fernando Henrique Cardoso em 30 mar. 2006naOEA. Consultado em <http://www.oas.org>,2S jan.2011.

63.Francisco Weffort, 0populismo na politica brasileira.

64. Ruda Ricci,Lulismo,pp. 9S e124.

6S.Fernando Limongi eRafaelCortez, "As eleicoes de 2010e0quadro partid

(18)

Juarez Guimaraes, por sua vez, tomando como foco 0 segundo

turno da eleicao de 2010, afirma que se deu uma "polarizacao ine-dita na hist6ria brasileira recente"," Nela, Guimaraes enxerga componentes ideo16gicos: esquerda e direita teriam vindo

a

tona,

"conformando uma disputa que indicava dois caminhos diame-tralmente opostos para 0Brasil':

A diferenca entre a minha abordagem e ados autores dessa ultima corrente e que, embora estejamos de acordo que a polari-zacao PT-PSDB,estabelecida des de 1994, continua a existir e e deci-siva, penso que ela mudou de conteudo. Estariamos em face de uma repolarizacao da politica brasileira, na vigencia da qual 0

sentido da disputa entre PTe PSDBse alterou. Guimaraes tern razao ao perceber que 0 PTse tornou "mais Brasil". 0 busilis e que, ao se

tornar "mais Brasil': ele se torna menos "dos trabalhadores", isto e, opera urn deslocamento de classe e, portanto, ideol6gico, que Gui-maraes nao incorpora

a

sua analise. A ascensao do subproletaria-do, do qual 0PTse tornou 0representante na arena politica, por

isso se assemelhando a urn "partido dos pobres" de estilo anterior a 1964, significa que as classes fundamentais pass am para 0fun do

da cena. Foi por isso que a polarizacao entre esquerda e direita es-maeceu, sendo substituida por uma polarizacao entre ricos e po-bres, parecida com a do periodo populista.

Urn sintoma de que nao ha despolarizacao e0

compareci-mento estavel nas eleicoes presidenciais de 2002, 2006 e 2010 (ver tabela 1 do Apendice), Sem voltar ao recorde de participacao esta-belecido na eleicao de 1989, com abstencao de somente 12% no primeiro turno e 14% no segundo, a ausencia nas eleicoes desde 2002 esteve dentro da faixa estabelecida em 1994 e 1998, ao redor de 20%. Nao houve diminuicao do interesse porque a disputa

en-66. Juarez Guirnaraes, "A nova dialetica da vida politica", Teoria e Debate, n. 90, nov./dez. 2010, p.12.

34

tre ricos e pobres mobiliza 0eleitorado. Os numeros apresentados

nos capitulos 1 e 4 sac expressivos de que em 2006 e 2010 houve nitida separacao entre 0voto dos pobres e0dos ricos.

Simultanea-mente, ocorreu diminuicao do alinhamento ideol6gico que pre-valeceu entre 1989 e 2002, quando os votos da esquerda estavam com 0PTe os da dire ita eram anti-PT. A hip6tese que testei em Es-querda e direita no eleitorado brasileittr' se confirmou ate 2002 (inclusive). Apesar da baixa escolaridade media do eleitorado, ha-via uma coerencia ideologica dos votos em cerca de 3/4 dos eleito-res: aqueles que se colocavam

a

dire ita, entre os quais os de baixa renda, tendiam a votar nos candidatos mais conservadores, a co-mecar por Collor,0contrario acontecendo conforme se avancava

para as rendas maiores, em queaumentava, estatisticamente, a adesao

a

esquerda e0voto em Lula. Mas isso se altera em 2006.

Em suma, penso que no lulismo a polarizacao se da entre ri-cos e pobres, e nao entre esquerda e direita. Por isso, a divisao lu-lista tern uma poderosa repercussao regional, e0Nordeste, -que e

mais pobre, concentra 0 voto lulista. Dai, igualmente, termos

maioria tucana de Sao Paulo para 0Sul, e petista do Rio de Janeiro

para 0 Norte. Isso significa que 0lulismo dilui a polarizacao

es-querda/direita porque busca equilibrar as classes fundamentais e esvazia as posicoes que pretendem representa-las na esfera politica. Desse angulo, as analises que falam em despolarizacao e

despolitiza-,~a6.tern urn momento de verdade, isto

e,

descrevem parcialmente 0 processo.Acontece que 0lulismo separa os eleitores de baixa renda

das camadas medias, tornandoos do is principais partidos do pais

;,;...,.,·PT'e.psDBrepresentativos desses polos sociais. Assim, mesmo.:,...

que'obtigados a ficarem programaticamente pr6ximos em funcao

'dcil~~~inhamento, PTe PSDBsac as expressoes de uma polarizacao

I

••

••

••

••

t

t

4

••

t

41

••

,f

67. Andre Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro. A identificafiio ideol6-gica nas disputes presidenciais de1989e 1994.

(19)

"

social talvez ate mais intensa do que a dramatizada por PTBeUDN

nos anos 1950. A diferenca esta em que os partidos de agora evitam

a radicalizacao politico da polarizacao sociaL

Nao por acaso, 0realinhamento iniciado em 2002 lembra 0

descrito por Maria do Carmo Campello de Souza para a etapa

1945-64.68 A autora mostra que 0 PTBcomecava a ganhar terreno

fora dos gran des centros, obrigando aUDN a buscar refugio no

seu reduto natural, a classe media urbana. 0 lulismo fez 0 PT

crescer no interior do Nordeste, solapando as fileiras do DEM, 0

que empurrou a oposicao a procurar energia junto as camadas

urbanas em ascensao, como explicitou 0ex-presidente Fernando

Henrique Cardoso." Ainda segundo Campello de Souza, nessa

passagem de acordo com a analise de Glaucio Soares," 0

eleito-rado do pre-1964 estava se realinhando com 0 PTB (pobres das

cidades e do interior) e aUDN (classes medias urbanas), como se

da hoje com 0 PTe0 PSDB.•

POLiTICA DE MASSAS E REVOLU<;:AO PASSIVA

A aplicacao mecanica de conceitos atrapalha a apreensao

do objeto. Bern usados, entretanto, os conhecimentos gerados

pela explicacao de circunstancias hist6ricas anteriores podem

ser aliados na iluminacao do presente. Constituindo, desde 0alto,

o subproletariado em suporte politico, 0lulismo repete

mecanis-68.Maria do Carmo Campello de Souza, Estado e partidos politicos no Brasil

(1930-1964). Cabe registrar que Souza apJica 0termo "realinhamento"it ten

-dencia hist6rica detectada antes por Glaucio Ary Dillon Soares. Ver, desse autor,

Sociedade e politica no Brasil;pp. 89-93.

69. Fernando Henrique Cardoso, "0 papel da oposicao", Interesse Nacional; n.13, abr./ jun. 2011.

70.Glaucio Ary Dillon Soares,Sociedade epolitico no Brasil.

mo percebido por Marx em 018Brumario." A analise de Marx

e que as fracoes de classe que demonstram dificuldades

essen-ciais para se organizar e tomar consciencia de si, como ja vimos,

apresentam-se na politica enquanto massa. Destituida da

possi-bilidade de agir por meios pr6prios, a massa se identifica com

aquele que, desde 0 alto, aciona as alavancas do Estado para

beneficia -la.

Quando a massa en contra uma lideranca que a unifica, entra

em cena de maneira intempestiva, por nao ser precedida do

vaga-roso percurso que acompanha a ascensao de classe que se

auto--organiza. No entanto, e necessario deixar explicito, para evitar

mal-entendidos, que as similitudes entre 0Bonaparte IIIe Lula sao

limitadas." Nenhuma revolucao antecedeu 0lulismo, como

aeon-teceu na Franca com Bonaparte III.Tampouco ha elementos

mili-tares envolvidos em sua genese, como no epis6dio frances. Pare-cem-se apenas na politica de mass as de carater projetivo, sem a

qual 0vies profundamente popular do lulismo se torna

incom-preensivel, e na inclinacao a pairar acima das classes, deixando

opaco 0solo em que finca as raizes.

Do ponto de vista dos resultados, sendo urn exemplo de

mo-vimento sem mobilizacao, poder-se-ia considerar o lulismo urn

caso de "revolucao passiva",conforme pensada por Gramsci. Cabe

recordar a definicao de Carlos Nelson Coutinho: "Deve-se subli-nhar, antes de mais nada, que urn processo de revolucao passiva, ao contrario de uma revolucao popular, realizada a partir 'de baixo',

jacobina, implica sempre a presenca de dois momentos: 0da

'res-tauracao' {na medida em que e uma reacao a possibilidade de uma

71. Karl Marx,"0 18 Brumario de Luis Bonaparte"; em K. Marx, Arevolufi'io antes da revolucao.

72. Agradeco a Paulo Arantes e Ina Camargo Costa a recomendacao de cautela com.a analogia ..

(20)

transforrnacao efetiva e radical 'de baixo para cima') eo da'renova-cao' (na medida em que muitas demandas populares sao assimila-das e postas em pratica pelas velhas camaassimila-das dominantes)"," 0 pr6prio Coutinho adverte que "0conceito de revolucao passiva

constitui [...] urn importante criterio de interpretacao para com-preender nao s6 epis6dios capitais da hist6ria brasileira, mas tambem, de modo mais geral, todo 0processo de transicao de

nosso Pais a modernidade capitalists"." Nao seria 0lulismo mais

urn capitulo a ser adicionado ao rol de passagens modernizado-ras sem mobilizacao as quais·se aplicaria a nocao de revolucao passiva?

Werneck Vianna, para quem 0 Brasil "po de ser

caracteriza-do como 0lugar por excelencia da revolucao passiva"," entende

que, no caso do lulismo, entretanto, ocorre uma inversao do modelo. Aqui, as forcas da antitese (leia-se: OPT) "nao quiseram assumir os riscos de sua vit6ria", optando por assumir 0

progra-ma da tese (leia-se: 0 PSDB),contra a qual haviam construido a sua identidade." Entao, foi "0elemento de extracao jacobina"

quem acionou "os freios"," Ou seja, em lugar de 0partido

con-servador cooptar os quadros revolucionarios para executar de maneira controlada as alteracoes renovadoras, na pratica lulista os elementos conservadores e que foram cooptados pelos diri-gentes de origem progressista, corroborando 0diagn6stico de Oliveira, para quem "parece que os dominados dominam, pois

73.Carlos Nelson Coutinho, Gramsci, urn estudo sobre seu pensamento politico,

p.19S.

74. Idem, ibidem, pp. 202-3. Ver tambem Emir Sader (org.), Gramsci, poder, politico e partido, pp. 77-S6.

75. Luiz Werneck Vianna, A revoluf/lo passiva, p.43.

76.Idem, "0 Estado Novo do PT",no sitio Gramsci e0Brasi~ <www.acessa.comJ

gramsci/>, consultado em24fev.2011.

77. Idem, ibidem.

38

fornecem adirecao moral'e, fisicamente ate, estao a testa de or-ganizacoes do Estado"." :

Oliveira esta as voltas com 0paradoxo de uma troca no co-mando do Estado, sem que houvesse urn correspondente desvio na orientacao do Estado. Ele interpretara 0enigma como sendo "0

avesso" da hegemonia, isto

e,

a transformacao do consenso para a

manuteruiio da dorninacao. Eis0absurdo: em lugar de justificar a

conservacao,o consenso simulaa mudanca, que na superestrutura de fato se realiza (0 paradoxo de Werneck), apenas para afiancar a dorninacao antiga. Diante do tamanho da encrenca, Oliveira afir-ma:

"E

uma revolucao epistemol6gica para a qual ainda nao dis-pomos de ferramenta te6rica adequada","

Werneck resolve de modo distinto a "inversao da logica da revolucao passiva"," Enquanto Oliveira enxerga "capitulacao ante a exploracao desenfreada'l" Werneck aponta que a "forma bizar-ra" da revolucao passiva lulista implicou 0 bloqueio da agenda conservadora constituida pelas reformas tributaria, previdencia-ria, sindical e trabalhista. A estranheza do quadro leva Werneck a ressaltar 0papel da "acao carismatica do seu principal fiador e

artifice"," 0 presidente da Republica, que precisa equilibrar as

tensoes "importadas" para dentro do Estado a partir do seu presti-gio popular. Na esteira desse raciocinio, Ricci sugere que s6 Lula seria capaz de formular urn discurso que articula retardo e

mo-~

••

••

,

I

I

I

I

t

••

••

,

t

7S. Francisco de Oliveira, "Hegernonia as avessas",em F.de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), Hegemonia as avessas, p. 26.

79.Idem, ibidem, p. 27. '.

SO.Luiz Werneck Vianna, "0 Estado Novo do PT",no sitio Gramsci e0Brasil,

<www.acessa.com/gramsci/> , consultado em24fev.2011.

SI. Francisco de Oliveira, "Hegemonia as avessas",em F.de Oliveira, R.Braga e C. Rizek (orgs.), Hegemonia as avessas, p. 27.

S2.Luiz Werneck Vianna, "0 Estado Novo doPT", no sitio Gramsci e0Brasil,

<www.acessa.com/gramsciJ> , consultado em

,

24fev.2011. .

'

-

.

Referências

Documentos relacionados

Após 96 horas, houve um aumento no consumo, com o aumento de 100 para 160 ninfas, que não diferiu significativamente da densidade 220; com 280 ninfas disponíveis houve um

[…] Estamos desapontados pelo facto de as autoridades que, qualquer que seja o seu poder, não possuem real competência em relação ao modo como as línguas vivem

interlocução entre os professores/as de escolas públicas da Educação Básica e o Ensino Superior acerca das questões de gênero e sexualidade? É notória a existência de

A teoria das filas de espera agrega o c,onjunto de modelos nntc;máti- cos estocásticos construídos para o estudo dos fenómenos de espera que surgem correntemente na

De acordo com estes resultados, e dada a reduzida explicitação, e exploração, das relações que se estabelecem entre a ciência, a tecnologia, a sociedade e o ambiente, conclui-se

O baixo nível de Literacia em Saúde Mental (LSM) é um fator determinante para a ausência de comportamentos de procura de ajuda. O conceito de LSM apresentado

Semelhante ao grau de hidrólise (Figura 1a), o teor de aminoácidos aromáticos livres para Novo Pro D ® foram maiores que para reação catalisada por Alcalase ® (Figura

O KTAX-COMPLIANCE TRIBUTÁRIO executa análises digitais sobre os arquivos de dados do cliente (validação, cruzamentos, conciliações, relatórios gerenciais, indicadores e