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INSTRUÇÃO PÚBLICA E MORALIDADE EM CONDORCET: DIRECIONAMENTO DA FORMAÇÃO DA AUTONOMIA

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Academic year: 2021

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INSTRUÇÃO PÚBLICA E MORALIDADE EM CONDORCET: DIRECIONAMENTO DA FORMAÇÃO DA AUTONOMIA

Sidney Reinaldo da Silva1

Renato Gross2

Resumo:

A obra de Condorcet (1743-94) tem muito a contribuir para com a reflexão pedagógica atual. No mínimo, suas idéias tornam-se, ao lado do pensamento de filósofos como Rousseau, Diderot e Kant, uma referência para se contrapor modernidade e pós-modernidade. O autor é um entusiasta do poder emancipador inerente à dimensão pedagógica do processo civilizador. Sua proposta de instrução apresenta-se como uma forma de ensino capaz de promover uma moral cosmopolita, baseada na solidariedade ou benevolência e na justiça. Embora sendo um racionalista e desprezando as pedagogias que apelam para a sensibilidade, caracterizando-as como obscurantistas, para o autor, o ensino da moral deve buscar equilibrar as tendências sensíveis com a racionalidade. Contudo, reconhece Condorcet, mesmo o ensino das ciências naturais, da matemática e das “artes” ou técnicas, saberes constituídos racionalmente, são fundamentais para que a moralidade se forme adequadamente. Mas isso depende da maneira como são ministrados. O autor propõe uma instrução capaz de desenvolver a moralidade de modo sistemático, articulando pedagogicamente diversas disciplinas, cujo objetivo básico é a formação da autonomia racional. Analisamos os principais aspectos dessa proposta de ensino, buscando mostrar como ela ainda apresenta elementos fundamentais que podem contribuir para o atual debate sobre a formação moral.

Palavras-chave: Instrução Pública. Direcionamento da formação Moral. Condorcet.

Para Condorcet (1743-94), existiria um imperativo moral enraizado na própria organização natural do ser humano, que o levaria a não suportar a injustiça e ficar indiferente frente ao sofrimento alheio. Contudo, essa característica verificar-se-ia apenas 1 Doutor em Filosofia Pelo IFCH da UNICAMP, professor do Programa de Pós-graduação em Educação –

Mestrado em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná.

2 Doutor em Filosofia da Educação pela FE da UNICAMP, professor do Programa de Pós-graduação em

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no indivíduo não corrompido pelos preconceitos do seu meio social, isto é, que teria uma formação moral racional. Sendo assim, a moral resultaria de uma instrução adequada, que promovesse o desenvolvimento equilibrado da sensibilidade e da racionalidade. Com isso, ela tornaria a pessoa capaz de se preocupar não apenas consigo mesmo, com o interesse de sua família e de sua nação, mas também com o destino de toda a humanidade. Mas semelhante instrução não poderia estar desvinculada dos avanços dos saberes realizados pela humanidade. Caberia a ela formar pessoas capazes de agenciar moralmente os sentimentos naturais despertados nas mais variadas situações diárias, as regras comuns admitidas coletivamente e as informações recebidas dos mais diversos canais de comunicação. Condorcet defende que mesmo o ensino das ciências naturais, da matemática e das “artes” ou técnicas, saberes constituídos racionalmente, contribui para que a moralidade não se forme adequadamente. O autor propõe uma instrução capaz de desenvolver a moralidade de modo equilibrado, articulando as diversas disciplinas cujo objetivo básico é a formação da racionalidade e da autonomia.

Um indivíduo adequadamente instruído seria capaz de correlacionar seus interesses e direitos com os interesses e os direitos dos demais seres humanos. Descartada essa possibilidade de reflexão e universalização, não haveria moralidade autêntica, pois não existiriam pessoas verdadeiramente autônomas. A instrução moral é uma formação reflexiva que, rompendo com a tradição, abraçaria a humanidade como princípio absoluto, fundador dos direitos naturais inalienáveis dos indivíduos. A instrução compõe o principal aspecto da política ou arte social para promover a formação do sujeito liberal como pessoa autônoma e cosmopolita. A instrução pública, a “formação da razão e da moral de um povo”, apresenta-se como o principal fator de expansão da civilização, que, para Condorcet, produziria uma espécie de liberalismo sem males ou justo.

Conforme a Primeira memória sobre a instrução pública, os sentimentos morais nascem no momento em que somos capazes de identificar a autonomia alheia, quando “nós podemos ter idéias distintas” do que vem a ser um indivíduo. Isso se inicia com a identificação de uma sensibilidade comum, que expressa nossos sentimentos morais. Esses sentimentos não exigem um ensino para serem percebidos, reconhecidos e distinguidos. Eles são algo natural, inerente à organização humana. Os sentimentos morais são primitivos, pois são anteriores à razão. A piedade pelos seres sensíveis é um mal estar

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ocasionado pelo sofrimento alheio. Em um indivíduo não corrompido, esse sentimento se despertaria sempre que se deparasse com um ser que sofre ou que se lembrasse dele.

A sensibilidade moral é a capacidade de sentir a dor própria e a alheia. Em decorrência dessa sensibilidade, nasce o sentimento de justiça ou a intenção de não repetir para com um terceiro o mal recebido de um primeiro (1968, VI, p. 294). Esse sentimento torna-se um princípio ou idéia moral na medida em que ele é analisado. As idéias morais são nuançadas. Elas vão desde uma moral grosseira, nascida do interesse e da sensibilidade natural, inerente à própria construção humana, até a elaboração de princípios de justiça mais sofisticados e próprios dos seres civilizados (1968, VI, p. 304). Mas antes de desenvolver a capacidade de analisar, tais idéias são aceitas de modo confuso, sem que se tenha consciência da natureza e da maneira pela qual elas são formadas. Contudo, é nesse período anterior ao desenvolvimento da capacidade de analisar que se é levado a crer em opiniões irracionais, que se formam os “preconceitos”. Nessa fase, a adesão dar-se-ia por imitação, por cálculos e raciocínios falsos, ou ainda devido à sedução retórica e à doutrinação. Mas a capacidade de análise deve ser desenvolvida por uma instrução adequada, sem a qual o indivíduo jamais alcançaria a plena maturidade intelectual, ficando preso a formas infantis de conhecimento.

As reflexões pedagógicas de Condorcet se deram a partir de 1783. Entre os seus textos de análise do ensino, destaca-se, inicialmente, a coletânea organizada por Manuela Albertone, intitulada Réflexions et notes sur l’éducation (Condorcet, 1983), que recupera as primeiras obras do autor no período de 1773 até 1782, época de amadurecimento intelectual pré-revolucionário. Em 1791, foi publicada as Cinq mémoires sur l’instruction publique (Essa obra passa a ser indicada abreviadamente como Cinq mémoires ou Cinco memórias). Condorcet apresenta, em 1792, o Rapport et Projet de décret sur l’organisation générale

de l’instruction publique (Abreviadamente Rapport et Projet ou Relatório e Projeto) à

Assembléia Nacional, em nome do Comitê de Instrução Pública. Na primeira obra, de cunho filosófico, ele analisa a natureza e os objetivos da instrução pública, traçando uma importante distinção entre educação e instrução que é fundamental para se compreender sua filosofia do ensino público. No Rapport et Projet, encontra-se um plano para a instrução pública baseado nas idéias filosóficas desenvolvidas nas Cinq mémoires. O próprio texto

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ou Esboço), uma obra que analisa a perfectibilidade do gênero humano de forma retrospectiva e prospectiva, tem como um de seus eixos teóricos a discussão pedagógica. No que se refere à questão metodológica do ensino, o autor escreveu, em 1794, uma obra denominada Moyens d’apprendre à compter surement et avec facilite (Essa obra será referida como Moyens d’aprendre ou Meios de aprender), que expressa os fundamentos do método de ensino de matemática para crianças. Como se pode notar, ainda que não tenha sido um pedagogo, Condorcet realizou uma ampla e diversificada abordagem da educação.

O texto Meios de aprender é manual para ensinar a contar e também uma obra reflexiva. Segundo o autor, a finalidade do ensino de matemática é desenvolver o pensamento analítico e metafísico. Conforme o método proposto, simultaneamente à lição do cálculo, deve se ensinar também a refletir a respeito dos procedimentos intelectuais inerentes à atividade de computar. Todos os passos que conduzem a aprendizagem das fórmulas e de como elas são inventadas devem ser explicitados. Assim, evita-se aprender as fórmulas sem que o espírito repasse sobre todos “os motivos” e sobre todos “os segredos de seu artifício”. Com isso, explica-se como a noção de número, que nasce da percepção simultânea de várias coisas semelhantes, se estende às coisas não semelhantes (1903, p. 52). Pretende-se ensinar também que somente a lembrança de sempre se ter repetido uma determinada operação, ou de se ter admitido uma determinada correlação entre proposições, não pode ser um motivo de crer bem fundamentado na correção delas. A evidência dos passos dados não poderia passar desapercebida.

Contudo, esse ensino deve ser adequado à “marcha natural do espírito humano”, de modo a manter a atenção das crianças. Trata-se de ensinar a analisar os processos de raciocínios. Assim, aprender-se-ia que, ao se aderir a uma proposição, deve-se ter consciência de que ela é o “resultado de outras proposições já adotadas”, sendo sempre o produto de algum raciocínio pretérito.

Ao ensinar a contar, ensina-se não só a lógica, mas também a metafísica, isto é, o significado filosófico de termos como identidade, analogia e probabilidade. Deve se ensinar a gênese da própria aprendizagem, conforme a capacidade de entendimento alcançada pelo aluno. Trata-se de ensinar que não se pode aprender nada a não ser sucessivamente e segundo uma determinada ordem. Esta “seria uma lição a mais” (1903, p.77) Condorcet

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supõe que há um prazer ligado à aprendizagem, e que as crianças teriam capacidades naturais para lidar com idéias abstratas.

Um outro princípio indicado no Manual é o da necessidade de aprender a reconhecer os próprios erros. Com isso, as crianças aprenderiam que o erro viria de um tipo de hábito. Este seria um vício mental de confiar sem prova suficiente. Trata-se de ensinar a desconfiar da “memória habitual”; a aderir somente quando fossem conferidos os resultados; e de nunca confiar quando a lembrança estivesse acompanhada de incertezas (1903, p. 75). O erro decorre da incorreta representação de uma seqüência de raciocínio, da crença de uma identidade indevida entre proposições. Ainda, nesse sentido cartesiano, deve se adquirir uma atenção mais forte e ter menos precipitação. Isso impediria de se formar um resultado antes de se ter uma lembrança distinta da seqüência de operações que se deve executar e a certeza de a ter executado (1903, p 75).

Com o referido método, não se admite aprendizagem simplesmente decorando os resultados. Trata-se de fortificar a inteligência, a capacidade de atenção e de reflexão. Certos alunos seriam capazes de aprender por conta própria e de conferir tais aprendizagens a partir de um manual ou consultando o professor. Contudo, a diferença entre os ritmos de aprendizagens dos estudantes deve ser respeitada, sem, contudo, introduzir descriminações na escola (1903, p 80).

Os aspectos pedagógicos da teoria do motivo de crer mostram que aprender analisar a gênese das idéias é fundamental para que se alcance a autonomia intelectual. Uma verdadeira instrução deveria preparar o indivíduo para “refazer” sua inteligência. Ela deve conferir a capacidade de se analisar, de recompor as próprias idéias e de submeter a um “exame novo tudo que a razão já havia adotado” (1968, VI, p. 581).

O método de ensinar varia segundo o objeto ensinado. O sentido e a marcha da instrução depende da forma como isso é feito. Toda aprendizagem escolar deve contribuir de algum modo para a formação da liberdade individual. Isso se dá quando um determinado ensino pelo menos não atravanca o desenvolvimento da racionalidade, pois dessa depende a autonomia moral. O ensino técnico, assim como as atividades profissionais, tende a mecanizar a inteligência e criar hábitos repetitivos que não exigem reflexão. Cabe à instrução pública evitar que essa situação surja ou perdure.

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Na Quarta mémória, Condorcet fala do ensino técnico, reafirmando-o como fundamental para as atividades públicas e privadas. É destacável, no referido texto, sua proposta de se evitar que tal ensino corrompa a capacidade de reflexão dos indivíduos e, com isso, afetar as faculdades morais que dependem dela.

A aprendizagem prática de um ofício não deve ser dissociada do conhecimento dos princípios teóricos. Sem aprender os fundamentos da teoria, o ensino perde a eficácia libertadora do espírito. Isso ocorre quando o ensino técnico faz reter as conseqüências práticas dos princípios de uma ciência, sem capacitar acompanhamento de seus progressos. Ao fazer isso, esse tipo de ensino não permite um desenvolvimento autônomo do espírito e afeta a capacidade moral dos indivíduos que o recebem.

Retomando Smith, para quem quanto mais a divisão do trabalho se intensifica, mais os indivíduos tendem à estupidez, Condorcet propõe que isso seja evitado por uma instrução que prepare os indivíduos para ocupar os mais diversos cargos públicos ou para que possam aprender rapidamente as atividades que lhe serão exigidas. Assim, o acesso aos cargos e funções públicas não seria facultado apenas aos que podem comprá-los. Com isso, os indivíduos poderão participar de forma esclarecida na vida política, o que dificultaria que se tornassem vítimas de charlatões e demagogos.

A instrução pública técnica deveria ser um ensino geral, no sentido de ensinar os princípios e mecanismos básicos. Deve-se ensinar a estrutura e o funcionamento de determinada máquina, da razão de tal prática, de tal gesto, de tal atitude. A formação especializada e utilitária deveria ser feita “en situation”. Coutel e Kintzler destacam as seguintes características ou razões do ensino técnico público em Condorcet: a) razões

jurídicas e políticas: a instrução tem o dever de tornar o cidadão livre; mesmo nas

aprendizagens mais concretas, não se deve degradar a razão; b) razões econômicas: o ensino deve dar possibilidades de adquirir novos conhecimentos e preparar para encarar novas situações; c) razões epistemológicas e filosóficas: trata-se de conhecer os princípios das máquinas, de poder analisar as qualidades das novas técnicas, de não ser enganado por charlatões (1994, p. 312). Na perspectiva técnica propriamente dita, a instrução pública deve se dar de modo que o indivíduo possa também, conforme suas próprias aptidões e talentos, contribuir para o aperfeiçoamento das técnicas. Com isso, a cadeia de atividades humanas não seria interrompida desde as mais sublimes meditações do gênio até as

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operações mais vulgares das artes mecânicas (1994a, p. 251). Essa proposta de ensino técnico geral está em consonância com a formação moral, pois ela preservaria a capacidade de reflexão.

No terceiro ano do primeiro grau, Condorcet (1994a) destaca o ensino em seu aspecto epistêmico, ou seja, na capacitação do aluno para acompanhar a marcha do espírito humano, a rota percorrida pelo progresso da ciência. Trata-se de um método genético de ensino. Em Matemática, devido à própria dinâmica da produção da verdade abstrata pelo espírito humano, esse método não seria tão útil, pois ele acabaria por retardar a aprendizagem, devido à amplitude dos saberes a serem retomados. Isso não significa, como mostra o texto Meios de aprender, não usar o método genético para ensinar matemática para as crianças. O que não seria viável é a reconstituição detalhada de toda a seqüência histórica dos progressos feitos pela ciência do cálculo. Mas no caso, o estudo genético referir-se-ia a gênese das verdades abstratas e não de uma técnica de cálculo específica.

Na formação moral, de acordo com o seu objeto específico e à própria dinâmica epistemológica, o método genético é fundamental. Neste caso, as verdades não são nem empíricas, pois não se formam pela intuição de objetos sensíveis, nem meramente idênticas, pois não resultam da combinação precisa de idéias abstratas. As verdades morais são produtos da reflexão de cada indivíduo sobre seu sentimento interior. A Esquisse mostra as etapas percorridas pelo espírito humano para reconhecer isso. Ao contrário do que ocorre na aprendizagem da matemática, no ensino da moral, a instrução refere-se à própria constituição do sujeito.

No segundo grau da instrução pública, deve se ensinar Matemática, Física, História Natural, destacando os conteúdos que serão “úteis à vida comum”. Nessa fase, os princípios das ciências políticas serão ensinados com maior profundidade ao se examinar as disposições das leis que governam o país. Acrescenta-se também o ensino de Gramática, Lógica e Metafísica, bem como elementos de História e Geografia. No que concerne ao ensino da moral, exige-se agora um aprofundamento da análise do código já ensinado, completando-o com elementos novos ao alcance do aluno desse nível, que seriam ineficazes se ensinados antes.

Condorcet refere-se à justeza das idéias morais do ponto de vista lógico. Trata-se de transmitir idéias precisas, sendo necessário evitar ao máximo possível expor os temas aos

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quais o aluno não estaria preparado para compreender. Em função da necessidade de rigor lógico, deve se diferenciar a forma de se ensinar moral do ensino das ciências naturais ou físicas, e das ciências abstratas (matemáticas). No que concerne ao ensino das ciências físicas, trata-se apenas de descrever os objetos dentro dos limites de compreensão dos alunos. Os temas escolhidos deveriam ser aqueles cujo ensino é suficiente para o reconhecimento dos objetos especificados em todos os lugares que pudessem ser encontrados. As idéias abstratas restringir-se-iam àquelas que são familiarizáveis, que podem ser ensinadas de modo preciso, tais como as noções de número e de extensão. Somente com o hábito e a experiência de analisar, as idéias abstratas mais complexas seriam ensinadas. Acompanhando essa marcha da instrução, o ensino das idéias morais ocorreria com a reflexão sobre os próprios sentimentos e sobre os eventos ligados à ação humana.

A História como a apresentação rigorosa dos eventos passados não deveria ser diretamente objeto de ensino para as crianças, pois sua dinâmica profunda só poderia ser conhecida quando a faculdade de refletir estivesse fortalecida. Contudo, as narrativas de eventos passados poderiam ser usadas com cautela. O valor pedagógico da História estaria na apresentação de fatos que podem “excitar a virtude pelo exemplo”. Mas teria que se tomar cuidado para não impor às crianças uma visão da história susceptível de ser aceita sem crítica. Elas ainda não seriam capazes de compreender a marcha da produção do saber histórico, o que seria pernicioso para o desenvolvimento intelectual e moral do aluno (1994a, p. 81).

O ensino da moral recomendado para o primeiro período de instrução restringir-se-ia a contar histórias simples e curtas capazes de despertar sentimentos de simpatia, de “colocá-los nas situações dos personagens, de modo a suprir a falta de experiência ou vivência pessoal” (1994a, p. 71). Também conforme as Cinco memórias, o ensino de História é fundamental para despertar os primeiros sentimentos morais. Essa idéia está presente desde os primeiros escritos pedagógicos de Condorcet. Se a História é útil aos jovens não é pelo frio conhecimento das datas e dos acontecimentos, mas pelo sentimento que ela excita em suas almas, o qual ela desenvolve e fortifica (1983, p. 118). Conforme a “Segunda memória”, o aluno no segundo grau de instrução pode aprender a História memorizando fatos e datas, mas o importante é que ele possa, de certa forma, “criar por si

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mesmo a filosofia da história”, habituando-se a captar as ligações e as relações entre os fatos e as observações, seja no espaço ou no tempo (1994a, p. 137). Essa exposição cautelosa dos alunos às imagens ou narrativas de eventos que envolvem atos e decisões humanas torna-se um instrumental para a formação moral. Condorcet fala em História, mas poderia ser um filme, uma reportagem, um documentário, obras de artes e tudo o que uma futura cidade instrutiva poderia oferecer.

Quanto ao ensino da religião, diz Condorcet, o essencial é de não tocar no assunto. Ferrenho combatente do ensino religioso, ele recusa toda forma de catecismo moral e de métodos que levam ao desenvolvimento da sensibilidade ancorado no “entusiasmo”. Com isso, estar-se-ia apenas criando fanáticos, pois se enfraqueceria a razão e desenvolveria a violência das paixões. A religião, como uma educação mal feita, pode corromper os sentimentos morais, pois ela seria capaz de destruir o sentimento de remorso. Tal ocorre, por exemplo, quando alguém mata ou agride em nome de Deus. Nesse caso, não há mais compaixão, mas apenas fanatismo. A própria idéia de que a confissão seria uma forma de se livrar da culpa dos crimes cometidos, atestaria essa corrupção da moral.

Segundo Condorcet, a instrução deve ajudar o desenvolvimento das faculdades humanas nos seus primórdios, durante a fragilidade da infância. Nesse período, a capacidade de perceber relações e identidades entre as coisas, bem como de abstrair, de captar o que há de comum entre elas, ainda é fraca e confusa, pois é determinada mais pelo acaso da experiência cotidiana. O autor propõe o processo pedagógico como uma descontinuidade ou ruptura com a experiência cotidiana e um modo de reformulação do conhecimento. Cabe à instrução lidar com a flexibilidade das faculdades sem contudo abusar delas, ou seja, modelá-las arbitrariamente. Trata-se de uma pedagogia que toma as “crenças” ou saberes como revisáveis. Por isso a instrução é indefinida, e precisa ocorrer durante toda a vida.

O ensino da moral é destacado por seu compromisso com a racionalidade e universalidade: “os princípios da moral ensinados nas escolas e nos institutos serão os que, fundados sobre nossos sentimentos naturais e sobre a razão, pertencem igualmente a todos os homens” (1994b., p. 149). Cabe à escola preparar os indivíduos para reconhecê-los e aceitá-los de forma esclarecida e consciente, não como uma imposição, mas como uma descoberta que eles mesmos podem fazer, enquanto seres racionais. A moral deve ser,

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sobretudo, independente da opinião comum. É tarefa da instrução libertar o indivíduo da submissão a essa opinião. A opinião comum, a tradição, deve ser sobrepujada, corrigida e não seguida ou obedecida. Ainda que instrução atue sobre os indivíduos, ela se dirige, em última instância, ao espírito humano, à formação de uma geração inteira e ao aperfeiçoamento geral da razão humana (1994b, p.157). Nesse sentido, somente uma instrução pública, universal e laica, modulada pela razão e os conhecimentos rigorosos, poderia formar um indivíduo autônomo. Paradoxalmente, para o autor, sem um direcionamento pedagógico, a autonomia moral não desabrocha.

Condorcet representa o ideário pedagógico moderno positivo, que vem sendo duramente combatido no meio educacional. A idéia de uma instrução capaz de formar indivíduos críticos, com capacidade analítica e racional, culturalmente descentrados, abertos para o respeito à humanidade como um valor universal, torna-se cada vez mais combatida pelas novas tendências curriculares pluralistas, que se ancoram em valores multiculturais, visando o desenvolvimento da afetividade e das inteligências múltiplas. Com as propostas de ensino baseadas nos direitos das minorias e no resgate das culturas e tradições locais, perde-se cada vez mais o foco da idéia de gênero humano e de sua unidade racional. Trata-se de uma tendência recente da educação que busca se adaptar a uma época em que a hegemonia do capitalismo não necessita mais se fundar no ideário iluminista. Referências bibliográficas

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CONDORCET, Marquis de. -Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat- (1968) Oeuvres, (ed. A. Condorcet O’Connor et M F Arago, 1847) Reimpressão: Friedrich Frommann Verlag (Günther Holzboog). Stuttgard-bad Cannstatt.

_____ Moyens d’apprendre à compter surement et avec facilité. Rio de Janeiro, Editora do Apostolado Positivista do Brasil , 1903.

_____ Réflexions et notes sur l’éducation. Napole, Bibliopoles, 1983.

_____ Esquisse d’un tableau historiques des progress de l’esprit humain. Fragment sur

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_____ Cinq mémoires sur l’instruction publique, Paris, GF-Flammarion, 1994a.

_____ (1994b) Rapport et Projet de décret sur l’Instrutuction Publique, Présentées à l’Assemblée Nationalle, au non du Comité d’Instruction Publique. In: La Leçon de

Condorcet. Une conception oublié de l’instruction pour tous nécessaire à une republique.

Direction de J. DUMAZEDIER, Paris, ed. L’Harmattan

COUTEL, C. e KINTZLER, K. (1994), “Notas”. In: CONDORCET, Cinq mémoires sur

l’instruction públique, Paris, GF-Flamarion.

KINTZLER, K., C (1994) Condorcet, l’instruction publique et la naissance du citoyen, Folio- Essais, Minerve.

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