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Infecção por Rangelia vitalli ( Nambiuvú, Peste de Sangue ) em Caninos: Revisão

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Infecção por Rangelia vitalli (“Nambiuvú”, “Peste de

Sangue”) em Caninos: Revisão

Infection by Rangelia vitalli (“Nambiuvú”,

“Peste de Sangue”) in Dogs: a Review

Alexandre Paulino Loretti1 Severo Sales Barros2

Loretti AP, Barros SS. Infecção por Rangelia vitalli (“nambiuvú”, “peste de sangue”) em caninos: revisão. MEDVEP Rev Cientif Med Vet Pequenos Anim Anim Estim 2004; 2(6):128-44.

Rangelia vitalli é um protozoário transmitido por carrapatos que provoca uma doença em caninos, conhecida popularmente como “peste de sangue”, “nambiuvú” ou “febre amarela dos cães”. Afeta principalmente cães jovens das zonas rurais e periurbanas, cães caçadores e cães militares. A doença usualmente é observada nas épocas mais quentes do ano, quando a quantidade de carrapatos no ambiente é grande, mas também pode ser vista ao longo do ano, inclusive em cães adultos. Causa anemia, icterícia, febre, espleno e linfadenomegalia, hemorragias no trato gastrintestinal (“nambiuvú das tripas”) e sangramento persistente pelas bordas e face externa das orelhas, narinas e cavidade oral. O hemograma dos animais afetados é consistente com o de uma anemia hemolítica extravas-cular auto-imune. Esferocitose e eritrofagocitose são achados típicos dessa anemia imunomediada. Histologicamente, R. vitalli tem sido observado no interior de vacúolos parasitóforos no citoplasma das células endoteliais de capilares sangüíneos. Estudos em microscopia eletrônica revelam que esse parasito pode ser encontrado não apenas no endotélio, mas também livre no sangue circulante. A ultra-estrutura de R. vitalli e de seu vacúolo parasitóforo é semelhante à de outros protozoários do filo Apicomplexa, ordem Piroplasmorida. O diagnóstico presuntivo dessa enfermidade é feito com base no histórico, quadro clínico, hemograma e resposta favorável à terapia. O diagnóstico definitivo dessa protozoose tem sido feito através do exame microscópico de esfregaços de tecidos confeccionados durante a necropsia ou em cortes histológicos. Sugere-se que os carrapatos ixodí-deos Rhipicephalus sanguineus e Amblyomma aureolatum sejam os vetores de R. vitalli nas zonas periurbanas e rurais, respectivamente. Tem sido especulada a participação de um reservatório silvestre no ciclo biológico de R. vitalli, que manteria esse protozoário no meio rural.

PALAVRAS-CHAVE: Doenças do cão; Infecções protozoárias em animais; Apicomplexa.

1 Médico Veterinário; Mestre em Patologia Veterinária – UFSM – Santa Maria, RS; Professor Assistente III, Setor de Patologia Veterinária – Departamento de Patologia Clínica Veterinária – Faculdade de Veterinária – UFRGS; Rua Paissandu, 385/201, Flamengo - CEP 22210-080, Rio de Janeiro, RJ; e-mail: aloretti@uoguelph.ca 2 Médico-Veterinário; Especialização em Patologia (Tierärztliche Hochschule Hannover, TIHO, Alemanha);

Pesquisador Visitante – Departamento de Patologia Animal – Faculdade de Veterinária – UFPel – Pelotas, RS; e-mail: severo@smail.ufsm.br

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INTRODUÇÃO

Rangelia vitalli é um protozoário do filo Api-complexa, ordem Piroplasmorida1,2, transmitido

por carrapatos3 e que provoca uma doença em

caninos conhecida popularmente como “peste de sangue”, “nambiuvú” ou “febre amarela dos cães”3,4,5. O termo popular “nambiuvú”, palavra

da língua tupi-guarani que significa “orelha que sangra”, era originalmente empregado pelos indígenas da família tupi que habitavam a região tropical sul-americana para se referir a essa enfermidade, visto que o sangramento persistente pela face externa das orelhas era tido como um sinal típico dessa doença, em tempos remotos. R. vitalli é um parasito intracelular que, até o presente momento, foi descrito apenas no Brasil1,3,4,5,6,7,8,9,10. Apesar de a primeira descrição

da infecção por R. vitalli ter sido feita no início do século passado4, há poucos estudos a respeito

desse protozoário em nosso país. Controvérsias a respeito do ciclo evolutivo de R. vitalli e sobre a real identidade desse protozoário povoaram o meio científico brasileiro durante muitos anos. Esse parasito intracelular tem sido confundido na histologia com outros protozoários e riquétsias que ocorrem no sangue e nos tecidos de caninos – por exemplo, Toxoplasma gondii, Leishmania donovani, Ehrlichia canis, Trypanosoma cruzi. Além disso, doenças infecciosas de cães que causam anemia, icterícia, febre, esplenomegalia, linfadenomegalia e hemorragias – por exemplo, babesiose canina (Babesia canis) e erliquiose canina (Ehrlichia canis) – têm sido confundidas clinicamente com aquela provocada por R. vitalli, criando mais polêmica ao redor desse assunto.

PROPOSIÇÃO

O objetivo do presente trabalho é o de fa-zer uma revisão sobre R. vitalli e sobre a doença causada por esse protozoário (“peste de sangue”, “nambiuvú”) resgatando um assunto que desa-pareceu por completo dos livros e revistas cien-tíficas de Medicina Veterinária do Brasil a partir da década de 50, apesar de diversas evidências apontarem para o fato de que esse patógeno é uma causa importante de doença clínica e morte em cães das zonas rurais e periurbanas no Estado do Rio Grande do Sul, Região Sul do Brasil, e, provavelmente, em outras regiões do interior do país.

REVISÃO DE LITERATURA

Epidemiologia

R. vitalli afeta principalmente cães jovens das zonas periurbanas1,2,3, cães das zonas rurais

(cães que vivem no interior) e cães caçadores (cães lebreiros, em especial os de raça, nos quais a enfermidade usualmente se manifesta após uma caçada)1,3,5,11. Publicações veterinárias do

Exército Brasileiro, força armada que movimen-ta em seus canis os “cães-de-guerra”, movimen-também fazem menção ao parasitismo por R. vitalli12. A

enfermidade tem sido observada durante todo o ano, sendo, porém, mais freqüente nas épocas mais quentes (durante o verão)1,3. Na Região

Sul do Brasil, no Estado do Rio Grande do Sul, a enfermidade tem sido vista no meio rural, nas regiões limítrofes entre a cidade e a zona rural (em sítios) e também na periferia da cidade, na-quelas áreas em que os cães são mantidos em pátios fechados e onde as casas vizinhas também têm cães, ou naqueles locais onde os cães têm acesso direto às áreas de mato e morros que circunvizinham as habitações humanas1,9,10. Em

suma, a distribuição da doença está associada àqueles locais onde as espécies de carrapatos capazes de infestar o cão estão presentes. Nesse Estado, um grande número de casos clínicos e de necropsias de infecção por R. vitalli têm sido observados durante os meses de novembro a março, uma vez que a quantidade de carrapatos no ambiente é grande durante esse período, em função da temperatura ambiental ser mais elevada nessa época do ano, o que estimula as fêmeas ingurgitadas a realizarem a oviposição. Casos dessa enfermidade também têm sido diagnosticados nessas mesmas áreas durante os meses de maio a agosto1. Apesar de os relatos de

casos dessa enfermidade publicados na literatura se concentrarem no Estado do Rio Grande do Sul, Região Sul do Brasil1,2,9,10,e Rio de Janeiro e São

Paulo, Região Sudeste do país3,5,8, acredita-se que

essa doença ocorra em todo o território nacional, nas mesmas condições observadas naquelas áreas de onde vêm os primeiros registros da en-fermidade. No Estado de Santa Catarina, Região Sul do Brasil, há histórico de doença que afeta cães das zonas rurais e de sítios e que provoca sangramento bilateral nas orelhas e morte (Gava, 2002*, Driemeier, 2003**).

*Gava A. Comunicação pessoal. UDESC, Lages, SC; 2002. **Driemeier D. Comunicação pessoal. UFRGS, Porto Alegre, RS; 2003.

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Carrapatos ixodídeos das espécies Am-blyomma aureolatum (A. striatum) (o “carrapato amarelo do cão”) e Rhipicephalus sanguineus [o “carrapato vermelho (marrom) do cão”] têm sido encontrados regularmente infestando aqueles cães acometidos pela infecção por R. vitalli. Sugere-se que esses artrópodes sejam os veto-res de R. vitalli1,2,3,6,8,9,10. Estudos experimentais

demonstraram que R. sanguineus é capaz de transmitir essa protozoose8. A epidemiologia

dessa enfermidade vem sendo estudada na zona periurbana e na zona rural do Estado do Rio Grande do Sul de forma mais sistemática, desde o ano de 2002. Nessa pesquisa, tem sido feita a colheita e identificação dos carrapatos de cães domésticos daqueles estabelecimentos onde há histórico da ocorrência da “peste de sangue”, de pacientes afetados por R. vitalli atendidos no hospital veterinário universitário local (Hospital de Clínica Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – HCV-UFRGS –, Porto Alegre, RS) e de carcaças de animais acometidos por essa protozoose que são encaminhadas para necropsia no setor de Patologia Veterinária dessa mesma instituição (Setor de Patologia Veterinária, Departamento de Patologia Clínica Veterinária, Faculdade de Veterinária, UFRGS, Porto Alegre, RS). Resultados preliminares desse levantamento epidemiológico realizado em território gaúcho nos últimos dois anos (2002-2004) sugerem que os principais artrópodes vetores envolvidos na transmissão de R. vitalli são os carrapatos ixodídeos R. sanguineus e A. aureolatum1,2,como

já mencionavam os primeiros trabalhos sobre esse protozoário3,6. Nesse Estado, R. sanguineus

tem sido observado em casos de infecção por R. vitalli vindos da periferia da cidade, ao passo que A. aureolatum tem sido encontrado naqueles casos de infecção por R. vitalli oriundos da zona rural1,2.

No Estado do Rio Grande do Sul, há histó-rico de que a “peste de sangue” é uma doença freqüente em cães da zona rural. Nessa área, foi constatada uma prevalência elevada de car-rapatos adultos da espécie A. aureolatum em cães utilizados na caça a animais silvestres13.

Acredita-se que essa categoria de cão é mais propensa ao desenvolvimento da infecção por R. vitalli, pelo fato de estar mais exposta, durante as caçadas, a um ambiente onde a infestação pelo ixodídeo A. aureolatum, tido como um dos vetores do patógeno, é elevada. Apesar de A. aureolatum ser um carrapato encontrado tipica-mente nas zonas rurais e ser capaz de infestar tanto animais selvagens como cães domésticos,

deve ser ressaltado que esse artrópode também pode ocorrer em áreas urbanas pouco populo-sas ou em áreas situadas nas regiões limítrofes entre a zona urbana e a zona rural14. No Estado

gaúcho, formas adultas (machos e fêmeas) de A. aureolatum têm sido encontradas em caninos domésticos não apenas das zonas rurais, mas também das zonas periurbanas14,15, inclusive

naquelas propriedades em que têm sido obser-vados casos de infecção por R. vitalli que foram confirmados pela histopatologia1,2. Tem sido

especulada a participação de um reservatório silvestre no ciclo biológico de R. vitalli, que seria capaz de manter esse protozoário no meio rural sem adoecer. No Estado do Rio Grande do Sul, sugere-se que, na zona rural, R. vitalli seja manti-do no ambiente pelos hospedeiros naturais de A. aureolatum – animais silvestres e passeriformes1.

Nessa região, esse carrapato ixodídeo tem sido encontrado infestando canídeos silvestres – o graxaim ou zorro, graxaim-do-mato [“zorro de monte”, Cerdocyon (Dusicyon) thous] e o gra-xaim-do-campo [“zorro de campo”, Pseudalopex (Dusicyon) gymnocercus] –, o guaxinim (mão-pe-lada, Procyon cancrivorus), passeriformes, além dos cães domésticos15,16.

Sabe-se que, apesar de R. sanguineus ocor-rer tipicamente em cães da cidade (cães da zona urbana, cães de rua)17, local onde a infecção por

R. vitalli não tem sido observada, esse carrapato também ocorre em cães das zonas periurbanas (periferia das cidades – por exemplo, Porto Ale-gre, Estado do Rio Grande do Sul), em locais próximos a matos e morros14, onde a infecção por

R. vitalli vem sendo diagnosticada com relativa freqüência1,2. Na zona periurbana, R.

sangui-neus funcionaria tanto como vetor quanto como reservatório do protozoário. Exemplares de R. sanguineus têm sido recuperados de vários casos de infecção por R. vitalli em cães oriundos da periferia de Porto Alegre, RS. Os animais afetados eram mantidos em pátios de casas ou em sítios, em locais onde o número de cães das vizinhanças infestados por R. sanguineus era grande e onde esses animais tinham acesso a matos altamente infestados por carrapatos. Em um desses casos, foi observado um grande número de carrapatos do lado de fora da casa, subindo nas paredes dessa habitação humana, o que reflete o elevado grau de infestação daquele domicílio. Havia uma região de mato imediatamente ao lado dessa moradia, e os cães adquiriam grande quantidade desses carrapatos durante suas visitas periódicas a esse local. Deve ser mencionado que a maior prevalência de R. sanguineus na população de

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cães estudada pode estar relacionada ao fato de que a Faculdade de Veterinária da Univer-sidade local (FAVET –UFRGS) é de mais fácil acesso para aqueles proprietários que mantêm seus cães nas zonas periurbanas, comparados àqueles que têm seus animais no meio rural1,2.

É interessante frisar que, no Rio Grande do Sul, R. sanguineus também é apontado como vetor da babesiose canina e da erliquiose canina15,18.

A esse respeito, deve ser mencionado que não há evidências convincentes de que a infecção por B. canis e/ou por Ehrlichia canis sejam causas importantes de doença clínica e morte em cães nessa região, apesar dos diagnósticos labora-toriais freqüentes dessas enfermidades, feitos a partir do exame microscópico de esfregaços de sangue. A relevância dessas moléstias nessa área do país tem sido questionada, uma vez que ambos os patógenos não têm sido observados à necropsia, citologia post-mortem ou histopatolo-gia, durante as atividades de rotina desenvolvidas pelos principais laboratórios de diagnóstico em patologia veterinária dessa região1,9,10.

Ciclo biológico

A questão do ciclo evolutivo de Rangelia vitalli é polêmica e cercada de muitas dúvidas, desconfianças e lacunas a serem preenchidas. Na literatura pertinente ao assunto, consta que R. vi-talli ocorre em células endoteliais (especialmente aquelas dos capilares sangüíneos), hemácias3,5,

macrófagos5 e fibroblastos3. Todavia, até o

pre-sente momento, não há evidências convincentes de que esse protozoário se replique no interior de eritrócitos, células fagocitárias ou células conjuntivas. Pesquisadores têm observado esse parasito apenas no citoplasma de células endo-teliais1,2,9,10. Estudos em microscopia eletrônica

de transmissão demonstraram que o protozoário é encontrado principalmente no interior de va-cúolos parasitóforos no citoplasma dos capilares sangüíneos e, ocasionalmente, livre na corrente sangüínea1,2. A maior parte dos estudiosos do

assunto não tem observado exemplares de R. vitalli em esfregaços sangüíneos, apesar de os primeiros relatos dessa enfermidade, no início do século passado, descreverem a presença deste parasito no interior das hemácias. Alguns pesquisadores alegam que eritrócitos parasitados por R. vitalli ou as formas livres desse protozoário na corrente sangüínea são achados raros, em especial na forma crônica da doença. Relata-se que R. vitalli seria mais facilmente observado no sangue colhido na fase inicial da infecção, e que há mais chances de se recuperar o parasito

e visualizá-lo em esfregaços sangüíneos quando as amostras de sangue são coletadas durante os picos febris da enfermidade3,5. Os resultados de

estudos experimentais em que cães adoeceram após a inoculação intravenosa de sangue co-lhido de animais infectados por R. vitalli, junto aos achados ultra-estruturais já mencionados, fortalecem a teoria de que esse protozoário de fato ocorre na corrente sangüínea1,3,5,9,10.

Aspectos clinicopatológicos: Sinais clínicos

Cães parasitados por Rangelia vitalli podem apresentar anemia, icterícia, febre, espleno-megalia, aumento de volume generalizado dos linfonodos, sangramento persistente pelas narinas (epistaxe), cavidade oral (inclusive hema-temese), bordas e face externa das orelhas e locais de coleta de sangue (punção venosa), hemorragias no trato gastrintestinal (diarréia sanguinolenta, “nambiuvú das tripas”), petéquias nas membranas mucosas visíveis – por exemplo, mucosa vaginal e mucosa oral – e edema dos membros posteriores3,5. Há casos em que o

san-gue goteja de forma ininterrupta através das bor-das bor-das orelhas. A face externa bor-das orelhas pode apresentar extensas áreas recobertas por sangue coagulado com a formação de crostas vermelho-escuro, ressequidas e que aglutinam os pêlos dessa região. Hemorragias semelhantes podem ocorrer ao longo do dorso ou em qualquer outra parte do corpo3. Alguns proprietários comentam

que cães infectados por R. vitalli sangram através dos poros da pele1. Dermatorragias espontâneas,

descritas como hemorragias capilares que ocor-rem na superfície tegumentar do animal e em que o sangue brota através de orifícios cutâneos muito reduzidos, têm sido relatadas na infecção por esse protozoário3. A doença espontânea

pode ter evolução clínica que varia de alguns dias a até 3 meses, dependendo da forma de apresentação da enfermidade. O quadro clínico dessa protozoose foi classificado, de acordo com a duração da doença e seus sinais clínicos mais evidentes, em: (i) forma aguda ou ictérica, (ii) forma subaguda ou hemorrágica e (iii) forma crônica leve, benigna ou mitigada3,5. O quadro

clinicopatológico dos casos de infecção por R. vitalli estudados pelos autores do presente tra-balho, muitas vezes, sobrepunha-se e abrangia as três formas da doença. Assim, havia situações em que um mesmo animal apresentava marcada icterícia e hemorragias múltiplas em diferentes órgãos e tecidos, além de sangramento profuso

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pelas orelhas e diarréia sanguinolenta. Esses casos não se encaixam perfeitamente à classifica-ção originalmente proposta pelos pesquisadores que descreveram essa doença no início do século passado3,5. A sobreposição das formas clínicas

dessa protozoose também tem sido descrita por outros autores9,10.

A infecção por R. vitalli usualmente culmina com a morte do animal, se o paciente não for tratado a tempo e de forma adequada5. A

doen-ça tem sido reproduzida através da inoculação de sangue de caninos doentes, parasitados por R. vitalli (cães com a doença espontânea), em cães experimentais, jovens, livres desse proto-zoário e suscetíveis a esse patógeno3,5. Estudos

experimentais mostram que o curso clínico dessa protozoose pode variar de três dias (forma aguda da doença) a 8-15 dias (forma subaguda) ou até 18-25 dias (forma crônica)3. Tem sido

observa-do, através de estudos da doença espontânea, que aqueles animais que são acometidos pela “peste de sangue” e que se recuperam da enfer-midade adquirem imunidade contra uma nova infecção por R. vitalli. Esse estado de imunidade frente à ação desse patógeno também tem sido confirmado através de estudos experimentais, em que cães adultos inoculados com sangue contaminado por R. vitalli não desenvolveram a enfermidade. Acredita-se que esses animais, de idade um pouco mais avançada, já teriam sido expostos em outra ocasião a esse protozoário no ambiente através do repasto sangüíneo de um carrapato infectado, desenvolveram a for-ma benigna (branda) da doença, que passou despercebida, e então adquiriram resistência ao agente causador da moléstia. Descreve-se que R. vitalli permanece durante vários meses no sangue circulante dos cães tratados que se recuperaram da enfermidade3,7.

Patologia clínica

O perfil hematológico de cães afetados por R. vitalli é consistente com o de uma ane-mia hemolítica extravascular auto-imune1,9,10.

Tem sido sugerido que esse patógeno induz um distúrbio hemolítico mediado pelo sistema imune (hemólise imunomediada), promovendo uma eritrólise associada à ativação do sistema complemento e remoção de eritrócitos opsoniza-dos ou antigenicamente alteraopsoniza-dos pelo sistema monócito-fagócito1,2,9,10. Médicos Veterinários

Clínicos de pequenos animais relatam que o emprego de corticóides em associação a uma droga protozoocida – por exemplo, doxiciclina – no tratamento da infecção por R. vitalli tem

dado bons resultados, o que corrobora a hipóte-se de que eshipóte-se protozoário induz uma hemólihipóte-se extravascular mediada pelo sistema imunológico. Alterações usualmente encontradas nos hemo-gramas desses animais incluem: (i) no eritro-grama, anemia regenerativa macrocítica hipo-crômica acentuada, esferocitose, eritrofagocitose, reticulocitose, policromasia (policromatofilia), anisocitose, poiquilocitose, metarrubricitemia e a presença de corpúsculos de Howell-Jolly; e (ii) no leucograma, linfocitose (associada à estimu-lação antigênica) e monocitose. Trombocitopenia é um achado raro nos hemogramas de cães afetados por R. vitalli e pode estar associada à coagulopatia de consumo (CID). A presença de grande quantidade de macroplaquetas também tem sido observada. Anemia regenerativa com reticulocitose e esferocitose, e eritrofagocitose, têm sido considerados como achados sugestivos (mas não diagnósticos) de anemia hemolítica imunomediada (anemia hemolítica extravascu-lar). Os níveis de hemoglobina e a contagem de eritrócitos revelam valores baixos e o volume corpuscular médio (VCM) mostra-se normal ou levemente aumentado1,2,3,5,9,10. O plasma desses

cães usualmente está ictérico1,9,10. A urina tem

aspecto turvo e apresenta grande quantidade de pigmentos biliares (bilirrubinúria acentuada secundária à hemólise), em especial naqueles casos em que a icterícia é intensa1,3.

Achados de necropsia

Achados de necropsia na infecção por Ran-gelia vitalli incluem palidez (anemia) ou ama-relecimento (icterícia) generalizado da carcaça, das mucosas visíveis, órgãos internos e pele (por exemplo, da face interna do pavilhão auricular e do abdome), sangue mais claro e aquoso, aumen-to de volume do baço e dos linfonodos externos e internos que, ao corte, mostram-se avermelhados ou castanhos-escuros e úmidos e suculentos, podendo apresentar extensas áreas esbranqui-çadas (que correspondem histologicamente à hiperplasia linforreticular), tonsilas avermelhadas e aumentadas de volume, presença de grande quantidade de sangue coagulado ou fluido na luz dos intestinos (“nambiuvú das tripas”) e em menor quantidade na luz do estômago, que também pode estar preenchido por muito muco, pêlos da região perianal sujos e aglutinados por fezes diarréicas e sanguinolentas, fígado pálido e com acentuação do padrão lobular (que microscopicamente corresponde a necrose centrolobular associada a hipóxia tecidual em função da anemia), difusamente amarelado (degeneração gordurosa) ou amarelo-alaranjado

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(retenção biliar – fragmentos de fígado assumem coloração esverdeada após serem colocados no formol a 10%), vesícula biliar repleta e com a bile espessa e grumosa, pulmões úmidos, pesados e não-colapsados (edema pulmonar com presença de espuma esbranquiçada na luz da traquéia e brônquios), hemorragias de diferentes tamanhos (petéquias, equimoses, sufusões) afetando diver-sos órgãos e tecidos e também as mucosas (por exemplo, oral e vaginal), medula óssea pastosa ou liquefeita e de coloração vermelha intensa, indicando estimulação da hematopoese (medula óssea ativada), edema subcutâneo gelatinoso, translúcido e amarelado nos membros pélvicos, presença de coágulos lardáceos (amarelados) ou mistos (parte amarelados, parte vermelhos) nas câmaras cardíacas e acúmulo de quantidade moderada de líquido citrino e amarelo (efusão) nas cavidades corporais – por exemplo, saco pericárdico e cavidade abdominal1,2,3,5,9,10.

Achados citológicos, histológicos, imunoistoquímicos e ultra-estruturais Na citologia, o parasito tem sido observado mais freqüentemente na medula óssea, através da confecção de esfregaços desse tecido hemato-poético durante a necropsia1,9,10. Tentativas para

recuperar exemplares desse protozoário por meio de aspirados de medula óssea e de linfonodos feitas em pacientes trazidos aos estabelecimentos veterinários locais ou em carcaças de animais recém-mortos têm sido infrutíferas1,2 (Fighera,

2003***).

Histologicamente, R. vitalli é observado em vacúolos parasitóforos intracitoplasmáticos em células endoteliais de capilares sangüíneos de diversos órgãos e tecidos1,2,3,5,7,9,10. Esses

proto-zoários intracelulares não têm sido observados no endotélio das arteríolas, artérias, veias e vê-nulas1,2, com exceção de um relato que descreve

a presença do parasito nas células endoteliais de aorta e jugular8. Linfonodos, tonsilas,

medu-la óssea, plexo coróide, rins, pulmões e região medular da glândula adrenal são locais onde R. vitalli é mais freqüentemente encontrado em cor-tes histológicos1,3,5,7,9,10. Um estudo experimental,

no qual linfonodos externos (poplíteos) foram retirados cirurgicamente 17 dias após a inocula-ção endovenosa de 3ml de sangue contendo R. vitalli, demonstrou que, apesar de esses linfono-dos não apresentarem alterações macroscópicas (não havia alterações no tamanho e no aspecto desses linfonodos externamente e ao corte), na

histologia, miríades desses protozoários foram encontrados nas células endoteliais dos capilares sangüíneos dos tecidos linfóides1. Nos animais

tratados com medicamento anti-protozoário, as lesões macro e microscópicas são semelhantes àquelas observadas nos animais não tratados.

Todavia, naqueles animais submetidos a terapia protozoocida, usualmente não são mais observados exemplares de R. vitalli e, naqueles casos em que os parasitos ainda são encontrados nos tecidos mesmo após o tratamento, estes estão presentes em quantidade muito reduzida1,9,10,11.

R. vitalli não se cora através da imunoistoquímica para Leishmania donovani9,10, L. chagasi1,2 e

To-xoplasma gondii1,2,9,10, protozoários com os quais

R. vitalli já foi confundido21,22,23,24.

Estudos em microscopia eletrônica de trans-missão demonstraram que R. vitalli apresenta aspectos ultra-estruturais semelhantes aos de outros protozoários do filo Apicomplexa, ordem Piroplasmorida, e que o vacúolo parasitóforo que alberga esse parasito intracelular apresenta características morfológicas similares aos vacúo-los parasitóforos de outros membros do filo Api-complexa. Estudos ultra-estruturais de amostras de tecidos de diferentes órgãos colhidas de um cão inoculado experimentalmente com R. vitalli revelaram que há marcada variação na morfo-logia desse protozoário, dependendo do tecido examinado e fase evolutiva do parasito1.

Estudos ultra-estruturais e em imunoistolo-gia fornecem evidências convincentes de que R. vitalli é um protozoário distinto de todos os outros já conhecidos e descritos na literatura, e mostram que aqueles pesquisadores que estudaram esse patógeno pela primeira vez, no início do século passado3,4,5, acertaram ao conferir uma

denomi-nação única a esse novo protozoário, R. vitalli, que infelizmente caiu em absoluto olvido pela comunidade científica.

Patogenia

Desconhece-se o mecanismo patogenético responsável pelas hemorragias em diferentes órgãos e tecidos e pelo sangramento através dos orifícios naturais e pele que recobre as orelhas, ob-servadas no parasitismo por R. vitalli. O fenômeno de coagulação intravascular disseminada (CID) tem sido sugerido como um dos mecanismos pato-genéticos envolvidos na ocorrência dessas hemor-ragias. Evidências morfológicas de CID na infecção por R. vitalli incluem a presença de microtrombos em arteríolas, capilares e vênulas observados na

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microscopia de luz e depósitos de fibrina (fibrina polimerizada) no interior dos vasos sangüíneos visualizados através da microscopia eletrônica de transmissão1. Acredita-se que a CID seja

de-sencadeada pela lesão endotelial causada pela replicação continuada desse parasito intracelular em vacúolos parasitóforos, promovendo a rup-tura do endotélio dos capilares sangüíneos. Essa lesão vascular disseminada promoveria, então, a ativação da cascata de coagulação sangüínea e subseqüente consumo dos fatores da coagula-ção sangüínea (coagulopatia de consumo), com a ocorrência de hemorragias. Adicionalmente, a presença do patógeno no sangue circulante poderia induzir a formação de imunocomplexos, que também ativariam diretamente a cascata de coagulação. Esses imunocomplexos circulantes também causariam lesão endotelial, estimulando a agregação plaquetária. A liberação massiva de antígenos durante a lise de parasitos causada pelo tratamento à base de droga protozoocida também favoreceria a ocorrência de CID1. De

forma semelhante, alguns autores têm sugerido uma correlação positiva entre a ocorrência de exemplares de R. vitalli no interior das células endoteliais e um possível dano vascular associado à presença desses parasitos, baseando-se no fato de que um maior número de protozoários são observados naqueles órgãos e tecidos em que as hemorragias são mais intensas e freqüentes5,9,10.

Marcada trombocitopenia tem sido observada em diversas doenças de diferentes etiologias que cursam com hemorragias em diferentes órgãos e tecidos, e tem sido considerada como um mecanismo importante para a ocorrência dessas hemorragias19,20. Na infecção por R.

vi-talli, trombocitopenia é um achado laboratorial raro e usualmente não é grave o suficiente para provocar uma diátese hemorrágica da magni-tude daquela observada nessa protozoose1,9,10.

Trombocitopenia auto-imune também tem sido sugerida como provável mecanismo patogenético responsável pela redução moderada no número de plaquetas observada em alguns casos de pa-rasitismo por R. vitalli9,10.

Diagnóstico

O diagnóstico clínico presuntivo do para-sitismo por R. vitalli em cães tem sido feito a partir do histórico, quadro clínico, hemograma e resposta favorável à terapia à base de aceturato de diminazeno, diproprionato de imidocarb ou doxiciclina associada a corticoterapia e, quando necessário, transfusão sangüínea. O diagnóstico definitivo dessa protozoose é problemático para o

Médico Veterinário Clínico de pequenos animais, uma vez que R. vitalli tem sido observado pela grande maioria dos pesquisadores apenas em esfregaços de tecidos confeccionados durante a necropsia e em cortes histológicos no endotélio de diferentes órgãos e tecidos. Sugere-se que os vacúolos parasitóforos que albergam gran-de quantidagran-de gran-de parasitos em replicação se rompem6 e liberam os protozoários na corrente

sangüínea, os quais, então, permanecem livres no sangue circulante até penetrarem em uma célula endotelial intacta de capilar sangüíneo, iniciando uma nova multiplicação. Levando em consideração que R. vitalli pode ocorrer livre na corrente sangüínea sem estar associado a qualquer tipo de célula do sangue1,2,6,8,

sugere-se que as dimensões extremamente reduzidas desse protozoário (1,5-2,5µm)1,2,3,5,9,10 tornaria a

pesquisa do patógeno em esfregaços sangüíneos uma tarefa laboriosa para o Patologista Clínico Veterinário. Esforços de profissionais de diversas áreas devem ser concentrados na realização de estudos multidisciplinares adicionais a respeito da infecção por R. vitalli, de modo a se conhecer melhor essa protozoose. Faz-se mister a padro-nização de um exame laboratorial complementar acurado, que permita um diagnóstico definitivo (diagnóstico etiológico) da enfermidade, de forma que o Clínico Veterinário possa proceder com mais segurança e embasamento científico no tratamento, controle e profilaxia dessa pro-tozoose.

Diagnóstico diferencial

No diagnóstico diferencial da infecção por Rangelia vitalli, devem ser incluídas aquelas doenças infecciosas e parasitárias que ocorrem em cães no Brasil e que cursam com anemia, icterícia, febre, esplenomegalia, linfadenopatia e hemorragias. Devem ser consideradas princi-palmente (i) a babesiose (piroplasmose), (ii) a erliquiose, (iii) a leishmaniose e (iv) a leptospi-rose, que são as enfermidades mais freqüente-mente confundidas com a infecção por R. vitalli em nosso meio. Outras causas de anemia, por exemplo, doenças que cursam com perda de sangue através do trato gastrintestinal tais como as verminoses e as úlceras gástricas, a anemia hemolítica imunomediada secundária associada a diferentes etiologias e a anemia hemolítica imunomediada primária (idiopática) também devem ser levadas em conta no diagnóstico diferencial do parasitismo por R. vitalli. No Esta-do Esta-do Rio Grande Esta-do Sul, o local de origem Esta-do paciente e a espécie de carrapato que infesta

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o animal (cães da zona rural usualmente são infestados por Amblyomma aureolatum e cães da periferia da cidade em geral são parasitados por Rhipicephalus sanguineus) são informações que auxiliam no diagnóstico clínico presuntivo da infecção por R. vitalli.

A respeito da babesiose canina, é interes-sante mencionar que apenas no Brasil o san-gramento profuso pelas pontas, margens e face externa das orelhas tem sido considerado como um sinal clínico típico dessa protozoose, quando na realidade esse achado é comumente observa-do na infecção por R. vitalli3,5. Dados a respeito da

babesiose canina no Brasil compilados a partir da literatura nacional25,26,27,28 e internacional (livros

estrangeiros que fazem referência aos trabalhos sobre B. canis publicados em nosso país)29,30

são conflitantes quando se confrontam alguns aspectos da mesma doença, causada pelo mes-mo agente etiológico, que ocorre em diferentes países. Estranhamente, a eliminação de sangue através do pavilhão auricular, sinal tido como característico da babesiose canina em nosso país e que a fez merecer o nome popular “orelha que sangra” (“nambiuvú”, de acordo com a literatura publicada a respeito da babesiose em cães a partir da década de 50), não tem sido descrita em outros países onde essa protozoose também ocorre com freqüência – por exemplo, na África do Sul. Alguns autores brasileiros têm sugerido que a diminuição no número de plaquetas em cães infectados por B. canis poderia justificar a ocorrência de sangramento do pavilhão auricular, hemorragia essa desencadeada provavelmente pela picada de moscas hematófagas ou ácaros, ou então devido a anemia e conseqüente fragi-lidade capilar21,26,27,31. Relata-se que tais

hemor-ragias nas orelhas, tidas como patognomônicas para a babesiose canina, cessam após se colocar os animais doentes em local onde o acesso de insetos hematófagos não é possível, protegendo esses pacientes das picadas de artrópodes nas orelhas21. A literatura estrangeira cita que, na

babesiose canina, hemorragias clinicamente evidentes (por exemplo, epistaxe, petéquias e equimoses nas mucosas visíveis) ocorrem em conseqüência de uma coagulopatia de consumo (DIC e trombocitopenia), mas que raramente são observadas32,33. A hemoglobinúria é um

achado relativamente freqüente na babesiose canina19,34,mas não tem sido observada na

in-fecção por R. vitalli3,5. Para as outras espécies

de Babesia dos cães que ocorrem nos demais países – B. canis, B. gibsoni, B. rossi e B. vogeli (que até recentemente eram consideradas como

cepas ou subtipos dentro da espécie B. canis), não se descreve o sangramento pelas orelhas como um sinal clínico da doença; nem mesmo no caso de B. rossi, que ocorre na África do Sul e que é considerada como a espécie de Babesia de maior patogenicidade para caninos32,33. B.

canis e B. gibsoni são as espécies de Babesia descritas no Brasil, tendo sido diagnosticadas pela primeira vez no Estado do Rio Grande do Sul por meio do exame de esfregaços sangüíneos35.

A partir da década de 4036, a babesiose canina

passou a ser chamada de “nambiuvú”, apesar de esse termo ter sido originalmente resgatado da cultura e linguagem indígenas do nosso país para referir-se à infecção por R. vitalli, quando a doença foi inicialmente descrita no ano de 19084. Trabalhos de revisão sobre a babesiose

canina publicados em nosso país têm relatado a ocorrência de hemorragias nas orelhas como um dos sinais clínicos típicos dessa doença, mas referenciam unicamente trabalhos do Brasil para sustentar esse dado27,28,31. No Brasil, estudos

retrospectivos sobre a babesiose canina de ocor-rência espontânea37 e estudos experimentais, em

que cães foram inoculados com amostras de B. canis isoladas de algumas regiões do país, não mencionam, em momento algum, a ocorrência de qualquer tipo de hemorragia31,38. Em nosso

país, a babesiose canina tem sido descrita prin-cipalmente em cães que vivem na cidade39,40 e R.

sanguineus, um carrapato tipicamente observa-do na zona urbana, inclusive no Estaobserva-do observa-do Rio Grande do Sul14, tem sido apontado como o vetor

desse hematozoário. A. aureolatum, carrapato que ocorre em cães domésticos, animais silvestres e aves na zona rural41,42, tem sido incriminado

como transmissor da piroplasmose canina14,43,

mas, pelo menos no Estado do Rio Grande do Sul, não há evidências convincentes de que esse carrapato seja o vetor de B. canis. Ademais, nessa região não há registros de necropsia e histopa-tologia de casos de babesiose canina em zonas rurais, periurbanas ou urbanas. Sugere-se uma revisão criteriosa de todos os casos de babesiose canina diagnosticados clinicamente ou através de esfregaços sangüíneos no Estado do Rio Grande do Sul, Região Sul do Brasil35,44,45,46.

A erliquiose canina é uma doença que tam-bém deve ser incluída no diagnóstico diferencial da infecção por R. vitalli. No Estado do Rio Gran-de do Sul, Região Sul do Brasil, essa riquetsiose tem sido confundida com a infecção por R. vitalli, na clínica e na patologia. A infecção por E. canis deve ser diferenciada do parasitismo por R. vitalli através do histórico, sinais clínicos, hemograma

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e achados histopatológicos. Ambas as enfermi-dades cursam com hemorragia, que é conside-rada como um dos sinais clínicos mais marcantes dessas moléstias. Na literatura estrangeira per-tinente ao assunto, a epistaxe é descrita como a forma de hemorragia mais freqüente na infecção por E. canis, seguida de petéquias e equimoses na pele e nas mucosas, melena, hemorragias vaginais e penianas, hematoquezia, hematúria, hematemese, hifema e sangramento prolongado em incisões cirúrgicas e locais de punção de veia47. A trombocitopenia, achado comum nessa

riquetsiose, é responsável pela diátese hemorrá-gica48. Estudos recentes feitos no Brasil sugerem

que as manifestações clínicas da erliquiose cani-na podem variar de acordo com a região geo-gráfica em questão. Estudos de casos espontâ-neos e experimentais com cepas brasileiras de E. canis revelaram que a ocorrência de sangramen-tos e trombocitopenia, tidos como achados co-muns na erliquiose canina em outros países, não são freqüentes nos casos vistos em nosso país e, quando observados, ocorrem apenas em cães sororreagentes tanto para E. canis como para B. canis49,50,51. Icterícia é um sinal clínico raramente

observado na infecção por E. canis47 e, quando

constatada, usualmente está associada a uma infecção simultânea por B. canis52. Icterícia

ca-racterizada por amarelecimento das mucosas, da carcaça e dos órgãos e tecidos devido a bilirru-binemia e bilirrubinúria são relativamente co-muns na infecção por R. vitalli1,2,9,10. No Rio

Grande do Sul, sangramento pelas bordas das orelhas tem sido considerado, de forma equivo-cada, como um sinal clínico típico da erliquiose. Dados a respeito da epidemiologia da infecção por E. canis nessa região revelam que a doença é observada em cães infestados por R. sangui-neus mantidos em casas que têm pátios44, à

semelhança do que tem sido observado na in-fecção por R. vitalli nesse Estado1,2. R. sanguineus

é o artrópode vetor de E. canis. Esse carrapato pode ser encontrado na pelagem do animal doente ou então há histórico de contato com esse ixodídeo48, de forma similar ao que ocorre na

infecção por R. vitalli1,2. O primeiro relato da

infecção por E. canis no Rio Grande do Sul53 traz

um caso clínico de erliquiose de apresentação bastante incomum, de acordo com o que consta na literatura a respeito dessa riquetsiose48. Esse

caso singular de erliquiose observado no muni-cípio de Santa Maria, RS, Região Sul do Brasil53,

caracterizava-se por anorexia, icterícia, aumen-to de volume dos linfonodos poplíteos, sangra-mento pela borda da orelha, anemia macrocítica

hipocrômica, policromasia, corpúsculos de Ho-well-Jolly, leucocitose e presença de mórulas de E. canis em monócitos, visualizadas a partir do exame de esfregaços sangüíneos. Sangramento pelas orelhas, descrito na infecção por R. vitalli3,5,

não tem sido visto na erliquiose canina48. Apesar

de o hematoma auricular (oto-hematoma) ser descrito por alguns autores como um sinal clíni-co típiclíni-co da erliquiose em áreas endêmicas54,

esse sinal clínico é distinto do sangramento pro-fuso através da pele do pavilhão auricular rela-tado na infecção por E. canis no Rio Grande do Sul53. O perfil hematológico do primeiro registro

de erliquiose canina no Rio Grande do Sul53

também não é consistente com aquele usual-mente observado na infecção por erliquiose dos cães48. Na infecção por E. canis, usualmente há

uma anemia normocítica normocrômica arrege-nerativa acompanhada de leucopenia e trombo-citopenia. Nessa riquetsiose, a anemia também pode ser regenerativa naqueles casos em que há infecção concomitante por E. canis e B. canis48,52.

Infecção simultânea por B. canis, E. canis e He-patozoon canis também tem sido descrita33,55

inclusive no Brasil13,56,57,58. Há também relatos de

infecção mista por B. canis e Leishmania infan-tum59. Anemia hemolítica imunomediada

secun-dária também tem sido ocasionalmente obser-vada na infecção por E. canis60. Síndrome

hemo-fagocítica (anemia hemolítica imunomediada) associada à infecção por E. canis também tem sido descrita esporadicamente em nosso país61,62.

Na infecção por R. vitalli, ocorre tipicamente uma anemia macrocítica hipocrômica regenerativa do tipo imunomediada (anemia hemolítica extra-vascular) associada à leucocitose e, raramente, trombocitopenia1,2,9,10. Chama-nos a atenção o

fato de não haver um único diagnóstico de ne-cropsia irrefutável de erliquiose canina em nossa região (Estado do Rio Grande do Sul, Região Sul do Brasil) ao longo dos anos. Sangramento con-tinuado pelas margens e face externa das orelhas não tem sido observado em casos de erliquiose canina descritos em outros países47,48, o que

le-vanta ainda mais desconfiança com relação à real importância do parasitismo de E. canis como causa de doença clínica e morte nos cães do Estado do Rio Grande do Sul. Sobre o diagnós-tico laboratorial da erliquiose, alguns pontos críticos devem ser levados em conta, de modo a se evitar diagnósticos etiológicos equivocados pela emissão de resultados falso-positivos e fal-so-negativos para a infecção por E. canis. Deve-se levar em consideração a existência de porta-dores assintomáticos de E. canis (infecção

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sub-clínica), que tipicamente são soropositivos para esse patógeno, mas que têm uma quantidade muito reduzida de riquétsias no sangue periféri-co, o que torna a detecção desses microrganis-mos através do exame microscópico de esfrega-ços sangüíneos muito difícil ou inviável em termos práticos55,63,64. A presença desses portadores

assintomáticos em hospitais veterinários que mantêm bancos de sangue e um grupo de ani-mais doadores oferece riscos àqueles pacientes submetidos à transfusão sangüínea. Exames de esfregaços sangüíneos e testes sorológicos para E. canis devem ser feitos em cães doadores, para evitar a contaminação acidental de cães recep-tores suscetíveis65. Também deve ser enfatizado

que exemplares de E. canis dificilmente são ob-servados em cortes histológicos66. Na histologia,

raramente são encontradas mórulas de E. canis no interior de células mononucleares fagocitá-rias48,66 e no interior do citoplasma de células

endoteliais dos vasos sangüíneos pulmonares menos calibrosos67. Há autores que sugerem que

o diagnóstico da infecção por E. canis deve ser feito através do exame microscópico de imprints de fragmentos de pulmão confeccionados para a necropsia48. A visualização de E. canis nos

leucócitos é mais fácil quando se fazem esfrega-ços a partir de “papa” leucocitária (buffy coat) ou exame citológico de esfregaços de linfonodos48,64.

Para evitar diagnósticos falso-positivos de infec-ção por E. canis, deve-se ter cautela para não confundir as mórulas dessa riquétsia, encontra-das no interior de leucócitos, com as seguintes estruturas: (i) grânulos azurófilos linfocíticos (que podem se assemelhar a corpos elementares de E. canis), (ii) material nuclear fagocitado por monócitos, (iii) corpos linfoglandulares (que de-vem ser diferenciados de mórulas de localização extra-celular) e (iv) plaquetas sobrepostas inci-dentalmente em monócitos. A observação cuida-dosa de esfregaços sangüíneos por profissionais experientes no ramo da Patologia Clínica Vete-rinária também é essencial para que não sejam dados diagnósticos falso-positivos de erliquiose canina64. Deve ser mencionado que, durante

vários anos (1995-2002), a infecção por R. vitalli foi diagnosticada de forma equivocada como erliquiose pelo Setor de Patologia Veterinária da UFRGS, Porto Alegre, RS. Este equívoco foi repa-rado recentemente, a partir de um estudo sobre a infecção por R. vitalli desenvolvido nessa insti-tuição de ensino e pesquisa. Esse estudo incluiu a revisão de casos arquivados nos últimos anos,

que tinham o diagnóstico de erliquiose1,2. Isto

posto, sugere-se uma revisão sensata dos diag-nósticos clínicos, laboratoriais (pesquisa de hematozoários e riquétsias através do exame de esfregaços sangüíneos) e histológicos de erliquio-se canina feitos no Estado do Rio Grande do Sul35,44,46.

Nesse Estado, a leishmaniose visceral ca-nina foi confundida, durante muitos anos (de 1985 até 2000), com a infecção por R. vitalli9,10,24

(Barros, 2002****). Tenta-se justificar a interpre-tação equivocada de cortes histológicos de casos de parasitismo por R. vitalli dessa região base-ando-se na premissa de que R. vitalli e Leishma-nia spp. seriam morfologicamente semelhantes, ao microscópio de luz10. A esse respeito, deve ser

mencionado que a epidemiologia e o quadro clinicopatológico da infecção por R. vitalli e da leishmaniose visceral canina são distintos. A leishmaniose visceral geralmente causa emagre-cimento progressivo, acompanhado de atrofia muscular (apesar da polifagia), palidez das mu-cosas, febre intermitente, anorexia, polidipsia, lesões de pele (dermatite exfoliativa, seca, usu-almente não-pruriginosa), aumento de volume generalizado dos linfonodos, do baço e do fíga-do, diarréia episódica, onicogripose (crescimen-to anormal, exagerado das unhas, que ficam longas e encurvadas), onicorrexia (unhas que-bradiças), conjuntivite, ocasionalmente epistaxe e melena, e raramente icterícia68,69. Achados

laboratoriais na leishmaniose visceral incluem anemia normocítica normocrômica, hiperpro-teinemia (hiperglobulinemia), leucocitose (neu-trofilia com desvio à esquerda), disproteinemia, hipoalbuminemia, trombocitopenia, trombopatia, tempo de trombina prolongado, aumento na quantidade dos produtos de degradação da fi-brina, teste de Coombs positivo, níveis elevados de alanino-aminotransferase, atividade da fos-fatase alcalina sérica elevada e proteinúria20,69.

À necropsia, observa-se caquexia, lesões de pele descamativas e hiperqueratóticas distribuídas por toda a superfície tegumentar (mais freqüente-mente observadas no nariz, ao redor dos olhos e nas orelhas), linfadenomegalia generalizada, espleno e hepatomegalia, medula óssea difusa-mente vermelha e abundante (apesar da eritro-poese ineficiente) e, raramente, petéquias e equimoses sobre as serosas e mucosas68,69. O

exame citológico de aspirados de linfonodos e medula óssea revela a presença de formas amas-tigotas de Leishmania sp. livres ou no citoplasma

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de macrófagos. Leishmania spp. não tem sido observado em esfregaços de sangue periférico70.

Na histopatologia, além da presença dos proto-zoários intracelulares fagocitados por macrófagos em diferentes órgãos e tecidos – por exemplo, baço, linfonodos, medula óssea – há hiperplasia folicular (na fase aguda da doença) acompa-nhada de proliferação de macrófagos nos seios dos linfonodos (histiocitose sinusal), que podem conter ou não os parasitos, atrofia dos folículos linfóides (na fase crônica da enfermidade) e, em parte dos casos, glomerulonefrite induzida pela deposição de imunocomplexos circulantes, além de nefrite intersticial e, ocasionalmente, amiloi-dose69,71,76. A leishmaniose visceral tem sido

diagnosticada mais freqüentemente em cães adultos68. A demodicose, a erliquiose canina, a

hepatozoonose e a neosporose têm sido descri-tas como doenças oportunisdescri-tas que podem estar associadas à leishmaniose visceral71,72,73. Diversos

casos de leishmaniose visceral em humanos (calazar) e em cães causadas por Leishmania (Leishmania) chagasi têm sido descritos no Brasil em zonas rurais e também em áreas suburbanas e urbanas74,75, mas não no Estado do Rio Grande

do Sul, com exceção dos casos de infecção por R. vitalli que inicialmente foram diagnosticados como infecção por Leishmania spp.9,10,24,76.

Ma-terial referente aos casos de infecção por R. vitalli oriundos do Sul do país, que a princípio eram tidos como casos de leishmaniose visceral canina, foi enviado para um famoso laboratório de pro-tozoologia no exterior, para estudos adicionais24.

Nessa instituição estrangeira, mundialmente reconhecida pelo desenvolvimento de numerosos estudos sobre protozoários de animais domésti-cos, tais amostras foram revisadas por especia-listas no assunto. Naquela época, a imunoisto-logia para Leishmania ainda não estava pronta-mente disponível para fins diagnósticos nos la-boratórios de patologia veterinária do Brasil (Graça, 2002*****). Assim, a técnica de imunois-toquímica para Leishmania donovani foi feita nesse estabelecimento fora do país, de modo a confirmar o diagnóstico da leishmaniose visceral canina. Estranhamente, o diagnóstico de leish-maniose visceral (infecção por L. donovani) foi confirmado através do exame de cortes histoló-gicos e imunoistoquímica24, apesar da

disparida-de entre a epidisparida-demiologia e quadro clinicopato-lógico desses casos de leishmaniose visceral canina oriundos da Região Sul do país, local onde até então a infecção por Leishmania spp. ainda

não tinha sido diagnosticada, e aquilo que já havia sido publicado a respeito da leishmaniose em cães na literatura nacional e internacional. Recentemente, os dados sobre a epidemiologia e quadro clinicopatológico desses casos de leish-maniose visceral em cães do Rio Grande do Sul foram revisitados9,10. Constatou-se, então, que

aqueles casos publicados anteriormente como infecção por L. donovani24 eram, na verdade,

casos de infecção por R. vitalli. Uma série de equívocos foram constatados durante essa revi-são prudente e oportuna, a começar pela própria identificação morfológica errônea do patógeno em questão, através da histopatologia e imunois-toquímica. Nos casos já mencionados, descritos inicialmente como leishmaniose visceral24, a

apresentação clínica da infecção por Leishmania spp. era bastante atípica, comparada às descri-ções da literatura a respeito dessa protozoose em cães68,69. Os casos de leishmaniose visceral

canina na Região Sul do Brasil caracterizavam-se por icterícia, hematúria, ausência de lesões na pele e presença de formas amastigotas de L. donovani livres ou no interior de macrófagos e de células endoteliais, formas essas observadas ao microscópio de luz e melhor evidenciadas através da técnica de imunoistoquímica24. A esse

respeito, deve ser mencionado que a presença de Leishmania spp. no interior de células endo-teliais é achado raro na leishmaniose visceral dos cães69,73. Estranhamente, aqueles casos de

infec-ção por R. vitalli, descritos inicialmente como casos de leishmaniose visceral e dados como positivos para L. donovani na imunoistologia24,

tiveram resultados negativos para L. donovani10

na imunoistologia, em estudo mais recente, em que esses mesmos casos foram revisados. Esses dados conflitantes da imunoistoquímica perma-necem por ser esclarecidos. A icterícia, sinal clí-nico descrito como freqüente nos casos de infec-ção por Leishmania spp. no Rio Grande do Sul24

é tida como rara na leishmaniose visceral. Em um trabalho de revisão de 80 casos de leishma-niose canina diagnosticados durante um período de 15 anos em um hospital veterinário universi-tário, em pacientes que ainda não tinham sido tratados para essa protozoose, apenas dois ani-mais (1,5%) apresentavam icterícia68. Em um

outro estudo retrospectivo, em que 150 casos da infecção por L. infantum em cães foram analisa-dos, durante os anos de 1994 a 1996, não foi observada icterícia em um caso sequer72. A

lite-ratura também não menciona hematúria como

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sinal clínico observado na infecção por Leishma-nia spp. em cães, sinal clínico esse descrito nos casos de leishmaniose visceral canina (posterior-mente confirmados como casos de parasitismo por R. vitalli9,10) diagnosticados no Estado do Rio

Grande do Sul durante as décadas de 80 e 9024.

Hematúria também não tem sido descrita na infecção por R. vitalli. Alterações cutâneas são observadas em aproximadamente 90% dos casos de leishmaniose visceral canina69. Em nenhum

dos casos da infecção por L. donovani em cães estudados no Estado do Rio Grande do Sul são descritas lesões de pele24. Alterações cutâneas

na infecção por R. vitalli restringem-se àquelas associadas a doença sistêmica, ou seja, amare-lecimento da pele acompanhado da presença de hemorragias através da superfície tegumentar3,5.

Sabe-se que os flebotomíneos são os vetores da leishmaniose em nosso país74. Lutzomyia

(conhe-cido popularmente como “mosquito palha” ou “birigui”) é um gênero de flebotomíneo descrito no Estado do Rio Grande do Sul, que tem sido apontado como vetor de Leishmania (Viannia) braziliensis, agente etiológico da leishmaniose tegumentar americana dos humanos77 e de

Leishmania (Leishmania) enriettii, agente causa-dor da leishmaniose mucocutânea em cobaios78.

Todavia, levantamento epidemiológico nessa região à procura do vetor flebótomo de Leish-mania spp., na época em que os diagnósticos de leishmaniose visceral foram feitos (1985-1997), forneceu resultados negativos24. Casos de

leish-maniose visceral em humanos e cães têm sido notificados em 19 Estados do Brasil, nas Regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, mas não na Região Sul do país74. O perfil

hematoló-gico da infecção por R. vitalli1,2,9,10 apresenta

diferenças marcantes quando comparado ao da leishmaniose visceral68,69,72. Deve ser

menciona-do que a leishmaniose visceral (calazar) é uma zooantroponose (doença de animais que também pode acometer o homem) e, portanto, tem gran-de importância em saúgran-de pública68,69,74. Até

re-centemente, essa doença era tida como uma enfermidade limitada ao meio rural e ambientes silvestres. Hoje, sabe-se que ela também pode ser contraída em zonas suburbanas e urba-nas74.

A forma aguda da leptospirose, causada por Leptospira interrogans sorovar icterohaemorrha-giae, tem sido confundida com a infecção por R. vitalli, uma vez que ambas as doenças cursam tipicamente com icterícia. O diagnóstico da leptos-pirose está baseado no histórico, quadro clinico-patológico, exame sorológico e identificação do

microrganismo causador da enfermidade através do exame da urina, por microscopia em campo escuro, imunofluorescência em imprints de teci-dos (rim e fígado) ou cortes histológicos corateci-dos com prata ou imunoistoquímica79. A

epidemiolo-gia da doença envolve o contato dos animais com urina de ratos ou de outros animais infectados que eliminam as leptospiras pela urina, inclusi-ve cães que se recuperaram da doença clínica ocasionada por essa espiroqueta. No Brasil, a doença tem sido observada tanto em cães da cidade como nos da zona rural27. A forma aguda

da leptospirose causada pelo sorovar icteroha-emorrhagie tem um curso clínico típico de uma doença septicêmica e provoca choque e morte após 2-3 dias do surgimento súbito dos primeiros sinais clínicos79. A infecção por R. vitalli pode ser

confundida com a lepstopirose fulminante, em função da marcada icterícia, febre alta e evolu-ção clínica semelhante. Aumento de volume dos linfonodos e esplenomegalia, achados clínicos e de necropsia usualmente observados na infecção por R. vitalli, são lesões macroscópicas que não têm sido descritas na leptospirose. Sangramento através das orelhas, achado típico do parasitismo por R. vitalli, também não tem sido observado na leptospirose. Na leptospirose aguda, as hemor-ragias observadas à necropsia são muito mais extensas, freqüentes e numerosas, comparadas àquelas observadas no parasitismo por R. vitalli, em especial aquelas observadas nos pulmões. O mesmo pode ser dito para a icterícia que, em geral, é muito mais intensa na lepstopirose aguda do que na infecção por R. vitalli. Insuficiência renal acompanhada ou não de lesões extra-renais de uremia e alterações bioquímicas do sangue ou na urinálise, consistentes com doença renal, não têm sido observadas na infecção por R. vitalli, mas usualmente estão presentes na leptospirose, em especial na forma crônica dessa doença bacteriana. Leucocitose moderada devi-do a neutrofilia com desvio à esquerda, achadevi-do típico de uma reação inflamatória aguda, é um achado relativamente constante no hemograma de cães com leptospirose79, mas não tem sido

visto na infecção por R. vitalli.

As picadas da mosca Stomoxys calcitrans (“mosca dos estábulos”) na ponta das orelhas provocam em cães uma dermatite auricular, caracterizada pela presença de crostas escuras formadas a partir do sangue e soro, que exsudam dessas lesões. Sangramento periódico através das lesões tem sido observado como resultado do ato de coçar as orelhas e chocalhar com-pulsivamente a cabeça, na tentativa de aliviar

(13)

o incômodo naquela região80. Essas lesões não

devem ser confundidas com aquelas observadas nos casos de “nambiuvú”, em que o sangramento através das orelhas é profuso, intenso e persis-tente e afeta não só as pontas, mas também as bordas e face externa dos pavilhões auriculares. Ademais, o parasitismo por R. vitalli provoca uma doença sistêmica, ao passo que S. calci-trans causa apenas dermatite nas orelhas, além da irritação do animal. A ocorrência sazonal de ambas as condições, isto é, durante as épocas mais quentes do ano, é fonte de confusões e interpretações equivocadas para essas lesões auriculares distintas.

Tratamento

Clínicos Veterinários que têm diagnosticado a infecção por R. vitalli com base no histórico, quadro clínico e resultados do hemograma, têm empregado a doxiciclina, o dipropionato de imi-docarb ou o aceturato de diminazeno na terapia dessa protozoose. Tem-se empregado a mesma posologia usada na terapia de outras protozooses e riquetsioses sangüíneas de caninos, tais como a babesiose e a erliquiose, além da instituição de corticoterapia e, quando necessário, transfusão sangüínea e fluidoterapia. A administração de corticóides tem sido recomendada no tratamento da anemia hemolítica imunomediada idiopática ou secundária60. R. vitalli tem-se mostrado

sensí-vel a todas essas três drogas e o tratamento dessa protozoose tem sido bem sucedido com o uso desses medicamentos, quando adequadamente utilizados. Com relação ao tratamento do parasi-tismo por R. vitalli com aceturato de diminazeno, deve-se chamar a atenção para o fato de que essa diamidina aromática, utilizada na terapia de hemoprotozooses dos cães, é uma droga de baixo índice terapêutico e tem ação neurotóxica em caninos. No Estado do Rio Grande do Sul, o aceturato de diminazeno (diaceturato de diami-nodibenzamidina) vem sendo recomendado para o tratamento da “doença do carrapato dos cães”, principalmente nas agropecuárias. Nesses esta-belecimentos, os clientes têm livre acesso para comprar essa droga. Nessa situação, quando os cães são acometidos pela “peste de sangue” (“nambiuvú”), os proprietários lançam mão desse remédio, aplicando-o à sua maneira em seus

animais de guarda e companhia que estão doen-tes, trisdoen-tes, fracos, sem apetite e sangrando pelas orelhas. Essa toxicose provoca encefalomalácia hemorrágica simétrica focal bilateral, afetando o mesencéfalo, tálamo e cerebelo, mas poupando o córtex cerebral81. Casos de intoxicação por

aceturato de diminazeno em cães, usualmente fatais, têm sido descritos, inclusive no Estado do Rio Grande do Sul11,82 (Lessa, 2003******). Nos

casos de intoxicação por aceturato de diminazeno em cães diagnosticados no Estado do Rio Grande do Sul, a epidemiologia, quadro clínico e achados de necropsia e histopatológicos dos pacientes tratados com essa droga são consistentes com aqueles observados no parasitismo por R. vitalli. Nos animais tratados com essa diamidina, R. vitalli não tem sido encontrado em esfregaços de tecidos confeccionados à necropsia e nem na histopatologia. O tratamento desses animais com essa droga protozoocida explicaria a au-sência desses parasitos. Nesses casos, as lesões cerebrais típicas causadas pelo efeito tóxico das diamidinas no sistema nervoso central também estão presentes11,82. Aceturato de diminazeno

não é mais comercializado em países como Estados Unidos, França e Alemanha, em função do grande risco que oferece à saúde dos cães, mesmo quando utilizado em doses terapêuticas. No Brasil, laboratórios de medicamentos veteri-nários têm retirado de suas bulas a informação de que aceturato de diminazeno é indicado para a terapia de hematozoários que afetam caninos. Não se recomenda o emprego dessa diamidina aromática no tratamento da infecção por R. vitalli, em função dos efeitos nocivos que essa droga apresenta para os cães. Adicionalmente, há outros medicamentos mais seguros e aos quais R. vitalli é igualmente sensível, que podem ser usados alternativamente no tratamento dessa do-ença (imidocarb ou doxiciclina). Relatos informais de Veterinários locais trazem-nos a informação de que a doxiciclina tem-se mostrado eficaz no tratamento dessa protozoose, em especial quan-do associada à corticoterapia.

As práticas de magia para a cura dos ani-mais acometidos por R. vitalli ou então para a prevenção dessa protozoose são comuns. Uma das simpatias empregadas para curar “nambiu-vú” de cachorro (infecção por R. vitalli) é a de

(14)

passar azeite quente na orelha do animal doente durante nove dias seguidos83. Outro tratamento

empírico para a “peste de sangue” é a admi-nistração de querosene por via oral (Driemeier, 2003**). Naqueles cães que são destinados à caça quando atingem a fase adulta, faz-se cortes nas orelhas ainda quando filhotes, como medi-da de profilaxia para a “peste de sangue”. Esse procedimento provoca cicatrizes que desfiguram o pavilhão auricular desses animais (Driemeier, 2003**). Tais práticas populares correspondem a rituais que carecem de embasamento científico e que, aparentemente, não conferem cura ou proteção alguma contra o agente causador da moléstia conhecida como “nambiuvú” ou “peste de sangue” (R. vitalli).

Importância em Medicina Veterinária Na Região Sul do país, em especial no Es-tado do Rio Grande do Sul, os cães de pastoreio (mestiços ou de raça) estão diretamente ligados ao trabalho do campo e, nas fazendas, têm como missão acompanhar o peão em suas lidas rurais, desempenhando papel auxiliar na condução do rebanho bovino e das ovelhas. Também desem-penham função de guarda nas propriedades. Raças caninas rústicas, desenvolvidas, especial-mente na Região Sul do Brasil, para o trabalho no campo, incluem o ovelheiro gaúcho, o buldogue campeiro e o veadeiro brasileiro, além das tradi-cionais raças de cães de pastoreio – por exemplo, border collie e collie (dos quais o ovelheiro gaú-cho é descendente)84. A “peste de sangue” é uma

doença que já é conhecida há muitos anos nessa região pelos fazendeiros, trabalhadores rurais e caçadores. O “nambiuvú” vem provocando, ao longo dos anos, doença clínica e morte nos cães dessa área destinados ao trabalho (lidas rurais) ou esporte (caça de banhado ou caça de campo, daquelas espécies cigenéticas discriminadas pelo IBAMA85).

DISCUSSÃO

A infecção por R. vitalli em cães já foi con-fundida na clínica, necropsia e histopatologia com casos de babesiose22, erliquiose53 (Oliveira,

2003*******), hepatozoonose (de acordo com

Carini7), leishmaniose visceral (calazar)10,24,

toxoplasmose21,22 e tripanossomose (Colodel,

2003********). Infecções mistas por R. vitalli e Hepatozoon canis e/ou por R. vitalli, H. canis e Ehrlichia canis, já foram descritas em cães jovens, em um estudo experimental sobre a hepatozo-onose canina13. Ao longo de todos esses anos,

esses diagnósticos infundados foram sendo divul-gados à comunidade científica brasileira através de diversas publicações em revistas e apresenta-ções em congressos, criando mais confusões em relação a esse tópico. Assim, obras clássicas sobre doenças infecciosas e parasitárias, da autoria de estudiosos do Brasil e do exterior25,26,27,29,30,36,88,

passaram a tratar R. vitalli como sinônimo para B. canis, desconsiderando a proposta originalmente formulada por Carini, Maciel3,4,7 e Pestana5 do

reconhecimento de uma espécie nova de proto-zoário que vinha sendo observada regularmente em cães apenas no Brasil. Um livro consagrado sobre protozoologia publicado no exterior traz as informações de que, na América do Sul, a babesiose canina era conhecida vulgarmente como “nambiuvú”, que na linguagem guarani significava “orelhas sangrentas”, e que B. canis (que, segundo a obra, tem em nossa região o sinônimo de R. vitalli) provocava uma doença hemorrágica, como o próprio nome popular já sugere, caracterizada por sangramento pelas orelhas e focinho, que afetava particularmen-te cães jovens duranparticularmen-te o verão e que também causava hemorragias internas30. Uma outra

obra estrangeira, também de reconhecimento e penetração mundiais, afirma que aquele parasito que havia sido observado no interior de células endoteliais e descrito inicialmente como a nova espécie de protozoário R. vitalli4 correspondia,

na verdade, ao protozoário Toxoplasma. Nessa obra, emprega-se o termo Babesia vitalli como sinônimo de R. vitalli29. Com relação à

toxoplas-mose, deve ser mencionado que, na doença espontânea, T. gondii usualmente ocorre no interior de macrófagos e de células alveolares pulmonares89 e, na infecção experimental, em

macrófagos, células da micróglia, fibroblastos, em todos os tipos de células dos pulmões (com exceção dos eritrócitos) e raramente nas células endoteliais90,91,92. Essa série de controvérsias,

**Driemeier D. Comunicação pessoal. UFRGS, Porto Alegre, RS; 2003. *******Oliveira RT. Comunicação pessoal. UFRGS, Porto Alegre, RS; 2003. ********Colodel EM. Comunicação pessoal. FUFMT, Cuiabá, MT; 2003.

Referências

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