Reflexões sobre Sintoma
Sinto-me má ou Sinto-me mal?
Ana Gabriela Garcia dos Santos Ciclo V – Quinta-feira – Manhã 2017
O que sente a pessoa que apresenta um sintoma? Mal-estar, dor, prostração,
tristeza, confusão, limitações das capacidades físicas e mentais, desorganização do mundo interno e externo, do material e imaterial. Apesar de tantas sensações e sinais, o sintoma não comunica algo a alguém com propósito e clareza – é, antes, um enigma a ser decifrado, seja pela medicina, psicologia, psicanálise, terapias alternativas ou qualquer outra abordagem de cura.
No sintoma, sente-se algo. Mas não com sentido, nem consentido.
A natureza concreta e urgente do fenômeno sintomatológico – a dor, o desânimo, a aflição -- se sobrepõem inicialmente a qualquer possibilidade elaboração em busca de sentido para o que se sentiu. E o sintoma também não é consentido – ao menos não conscientemente. Aparentemente, ele “pipoca”, “estoura”, irrompe quando quer.
A etimologia da palavra nos aponta essa característica de mistério. Sinthoma (sintoma) vem do grego, sendo Sin = junção e Tomo = pedaços. O que o paciente sente, então, são fragmentos de um todo a ser investigado e curado. Curioso pensar na propriedade da gíria “estar um caco”, em pedaços.
No consultório médico, o sintoma aparece como “sinto-me mal”
Na medicina, em geral, o sintoma é encarado como um “caco” aleatório, sem conexões significativas com o todo (físico e psíquico) que somos. Frequentemente é visto como a própria doença. Eliminando-se o que o paciente apresenta, obtém-se a cura ou, ao menos, o controle do mal-estar. O objetivo é lidar com o sinto-me mal, que é a primeira camada (mas não a porta de entrada ou saída) de qualquer enfermidade.
Na psiquiatria ortodoxa (acredito que existem psiquiatras já cientes da importância da investigação e elaboração mais ampla e profunda de angústias), o sintoma também é recebido como uma informação que se encerra em si mesmo. O paciente é um corpo passivo a ser medicado. Não há, assim, mensagem nem mensageiro. O foco é resgatar o bem-estar, tamponando o que faz mal à pessoa. A queixa relatada pelo paciente, então, é calada.
Sob esse olhar, o sintoma perde a sua força narrativa. Por um lado, é resumido a um desequilíbrio químico negativo a ser corrigido. Por outro, é enquadrado em doenças psiquiátricas estatisticamente catalogadas, roubando-lhe a individualidade. A terapia exclusivamente medicamentosa cessa ou reduz o sofrimento para restaurar a chamada vida funcional. Devolve-se à pessoa a
possibilidade de trabalhar, relacionar, dormir, comer e assim por diante. Com o tempo, porém, podem ocorrer recaídas ou surgimento de novos sintomas, já que a angústia de fundo, propulsora do sintoma inicial, não foi verificada -- ao contrário, foi ignorada.
No setting psicanalítico descobre-se que o sintoma é um “sinto-me má”
Na psicanálise, o processo de cura envolve a descoberta e compreensão subjetiva do sintoma e das imagens reais, imaginárias e simbólicas que ele expressa. O que a pessoa sente? Qual é o sentido do que sente? Assim como sonhos, lapsos, chistes e atos falhos, aqui o sintoma também é uma rica manifestação de conteúdos inconscientes. A diferença são seus efeitos deletérios – dói, machuca, limita – e sua possível cronificação na vida de uma pessoa. Se recorrente, invade e desorganiza a rotina, mina a energia vital.
Crises de vômito mediante situações de pressão, a fantasia de ataque cardíaco que se revela uma crise de estresse, o ritual exagerado de organizar a casa inteira antes de sentar-se à mesa para comer ou a fobia de elevadores que impedem a presença em prédios. Esses são exemplos de sintomas (de conversão e deslocamento) que expressam uma linguagem peculiar e ancorada na história pessoal (medo de elevador e não de altura, vômito e não constipação, ataque cardíaco e não alérgico).
Com a escuta psicanalítica torna-se possível entender a gramática que sustenta a linguagem da doença. Quais são as suas regras, exceções e formações? O que é consentido ou não nessa estrutura? Os sintomas exigem tempo e espaço para se fazerem ver como algo além de uma ferida exposta – inicialmente são ilegíveis para quem os escreve e para quem tenta lê-los. Se tamponados, ficam invisíveis de vez, e mais presentes do que nunca.
Ainda que misteriosos, tem-se como pressuposto na psicanálise que os sintomas estão vinculados ao fato (ainda inconsciente) de que a pessoa sente-se má (e não mal, que é o oposto de bem-estar e sinônimo de doente). O sintoma psicanalítico é um sinto-me má, maldita, malévola, cruel, ruim, prejudicial, perigosa. Para mim mesma e/ou para os outros.
Para Freud, “a construção de um sintoma é um substituto de alguma outra coisa que não aconteceu”. Por isso é uma linguagem – dá notícias cifradas de experiências, desejos e fantasias não consentidas de alguma forma, que precisaram ser abafados no inconsciente, mas que ainda assim retornam à superfície sem que se tenha compreensão de seu significado ou função. O sintoma, portanto, não é apenas negativo. Traz ganhos. Quem o sente, ganha a possibilidade de reviver uma situação que foi anteriormente castrada e não pôde ser realizada como se esperava.
Miller nos lembra que há um segundo e importante entendimento sobre sintoma para Freud. Ele serve também como substituto da satisfação sexual a que o paciente foi privado. O gozo foi interditado, mas não a busca por ele. Assim surge a sensação de sinto-me má: procura-se o proibido por meio dos sintomas. É clara essa segunda conceituação quando Freud relata o caso da jovem submetida ao meticuloso e extenso cerimonial para dormir. O ato obsessivo de configuração de travesseiros, relógios e portas estava associado a temores sobre a perda da virgindade e à sedução do pai.
Nas perversões, as substituições para obter satisfação sexual são bastante visíveis: um pé, uma roupa, um cenário no lugar de um corpo inteiro ou ato completo. O perverso tem consciência do que precisa e o faz. Na histeria, a satisfação sexual é velada pela própria conversão, que a “disfarça” de doença, sendo tarefa da análise buscar-lhe o sentido oculto. O mesmo ocorre nos casos de neurose obsessiva, onde impera um sintoma ainda mais abstrato, o psíquico.
Na psicanálise há, ainda, um esforço para não nomear os sintomas ou a doença, pois a nomeação pode restringir a busca de sentido e compreensão do paciente sobre si mesmo. O que A e B sentem pode parecer igual, mas cada um o nomeará (ou não) de acordo com interpretações pessoais e individualizadas.
Na contramão, na psiquiatria, a cada dia surgem mais nomes e doenças a serem tratadas, consideradas desvios de padrões da dita normalidade. A indústria farmacêutica agradece a patologização crescente do comportamento humano. Ser saudável tornou-se bastante improvável de acordo com o CID-10 (Classificação Internacional de Doenças – CID 10), publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Diante de sintomas há que se considerar, ainda, a existência de um sujeito histórico, que produz e é produto de seu tempo. O profeta, o xamã, o artista, o melancólico de ontem não raramente acordam hoje como loucos, sob o escrutínio de novos valores e critérios sociais e médicos. Nesse contexto, a psicanálise ganha ainda mais relevância. Pelo estímulo à elaboração (simbolização) dos sentidos do sintoma, contribui para que histórias de vida sejam entendidas e experimentadas como tal e não como um prontuário médico.
Bibliografia
FOUCAULT, M. – Doença Mental e Psicologia – Capítulos “Loucura e cultura” e “A constituição histórica da doença mental”.
FREUD, S. – Sigmund Freud Obras Completas Volume 10 (1911-1913) – Cia das Letras (2010). Capítulo “Recordar, repetir e elaborar”.
FREUD, S.- Sigmund Freud Obras Completas Volume 13 (1916-1917) - Cia das Letras (2010). Capítulos “O sentido dos sintomas” e “Os caminhos da formação de sintomas”.
MILLER, J.A – Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos do Lacan,