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TEMA 2 QUAIS AS RELAÇÕES ENTRE SAÚDE E CULTURA?

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Academic year: 2021

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1 TEMA 2 – QUAIS AS RELAÇÕES ENTRE SAÚDE E CULTURA?

Texto3. A construção Sociocultural da doença

Trecho extraído de: Langdon, Esther Jean. A construção Sociocultural da Doença e Seu Desafio para a Prática Médica. In: Roberto G. Baruzzi e Carmen Junqueira (orgs). Parque Indígena do Xingu:

Saúde, Cultura e História. Ed.Terra Virgem, São Paulo, Brasil, 2005. P116 a 122

A EXPERIÊNCIA DA DOENÇA

Na década de 1970, vários antropólogos começaram a propor visões alternativas à biomedicina sobre o conceito da doença (Fabrega, 1974; Good, 1977, 1994; Hahn e Kleinman, 1983; Kleinman, 1980; Young, 1976, 1982). Juntando o campo da etnomedicina com as preocupações da antropologia simbólica, da semiótica, da psicologia e considerações sobre a questão da eficácia da cura, esses pesquisadores se preocuparam com a construção de paradigmas em que o biológico seria articulado com o cultural (Bibeau, 1981: 303). Segundo eles, a doença não é um evento primariamente biológico, mas é concebida em primeiro lugar como um processo vivenciado cujo significado é elaborado por meio de episódios culturais e sociais e, em segundo lugar, como um evento biológico.

A doença não é apenas uma categoria diagnóstica, mas um processo que requer interpretação e ação no meio sociocultural, o que implica uma negociação de significados na busca da cura (Staiano, 1981). Os assuntos pesquisados por essa abordagem não diferenciam muito dos que tradicionalmente faziam parte dos estudos de etnomedicina: as crenças, as práticas terapêuticas, os especialistas de cura, as instituições sociais, os papéis sociais dos especialistas e pacientes, as relações interpessoais, e o contexto econômico e político.

No entanto, essa perspectiva se diferencia da etnomedicina tradicional pela relativização da biomedicina e pela preocupação com a dinâmica da doença e o processo terapêutico, resultando numa nova abordagem com importantes mudanças de ênfase e enfoque. Uma grande diferença entre a abordagem tradicional de etnomedicina e a atual encontra-se em suas noções diferentes de cultura, que é o

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2 conceito central na antropologia. A etnomedicina tradicional definiu cultura como um conjunto de normas, práticas e valores estabelecidos e fixos que determina os pensamentos e as atividades dos membros de uma cultura. Nessa visão, a cultura é conceituada como um sistema fixo e homogêneo, no qual todos os membros compartilham as mesmas idéias e agem igualmente. Ainda mais importante para essa discussão em pauta, a cultura, segundo essa ótica, é colocada a priori da ação, e não como um resultado da interação dos atores.

A partir do desenvolvimento da antropologia simbólica, o conceito de cultura passa por uma reconceitualização significativa. Cultura é definida como um sistema de símbolos que fornece um modelo de e um modelo para a realidade (Geertz, 1978). Esse sistema simbólico é público e centrado no ator que o usa para interpretar seu mundo e para agir, de forma que também o reproduz. As interações sociais são baseadas numa realidade simbólica que é constituída, e também constitui, os significados, instituições e relações legitimadas pela sociedade. A cultura é expressa na interação social, em que os atores comunicam e negociam os significados. Aplicado ao domínio da medicina, o sistema de saúde é também um sistema cultural, um sistema de significados ancorado em arranjos particulares de instituições e padrões de interações interpessoais. Um sistema cultural que integra os componentes relacionados à saúde e fornece ao indivíduo as pistas para a interpretação de sua doença e as ações possíveis.

Sem descartar a idéia de que cultura é compartilhada pelos membros do grupo, sua análise passa para um enfoque na práxis: a relação entre a procura do significado dos eventos e a ação. Esta abordagem enfatiza os aspectos dinâmicos e emergentes. A cultura emerge da interação dos atores que estão agindo juntos para entender os eventos e procurar soluções. O significado dos eventos, seja doença, sejam outros problemas, emergem das ações concretas tomadas pelos participantes. Essa visão reconhece que inovação e criatividade também fazem parte da produção cultural. Cultura não é mais uma unidade estática e homogênea de valores, crenças, normas, etc., mas uma expressão humana frente à realidade. É uma construção simbólica do mundo sempre em transformação. É um sistema simbólico fluido e aberto. Também central neste conceito é o enfoque no indivíduo como um ser consciente que percebe

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3 e age. Segundo esta perspectiva, a doença não é vista como um momento ou uma categoria cultural; é vista como um processo de construção sociocultural.

Através do processo de socialização, a criança incorpora as noções simbólicas, sendo expressas nas interações do grupo do qual ela participa. Interpretando as mensagens contidas nas atividades culturais, ela age segundo suas percepções individuais influenciadas em parte pelos significados culturais circulando no grupo, mas também por sua própria subjetividade e experiência particular. Reconhecer subjetividade implica, ainda nos grupos mais isolados e distantes de outras culturas, que nem todos os indivíduos de uma cultura sejam iguais no seu pensamento ou na sua ação.

É uma visão que permite heterogeneidade, não só porque as culturas sempre estão em contato com outras culturas que possuem outros conhecimentos, mas, inclusive, porque os indivíduos dentro de uma cultura, por serem atores conscientes e individuais, têm percepções heterogêneas devido à sua subjetividade e experiência, que nunca é igual à dos outros. Esta visão de cultura que ressalta a relação entre percepção/ação, a heterogeneidadee a subjetividade tem várias implicações na nova visão sobre saúde-doença.

A DOENÇA COMO PROCESSO

O enfoque tradicional na etnomedicina era a identificação das categorias das doenças segundo o grupo estudado, reconhecendo que o que é definido como doença, como é classificado e que sintomas são reconhecidos como seus sinais, varia de cultura para cultura e não corresponde necessariamente às categorias da biomedicina (Frake, 1961; Langdon e MacLennan, 1979). Uma pesquisa clássica sobre esse assunto é o estudo de Frake (1961), que utiliza as técnicas e análise da etnociência para produzir uma classificação detalhada das doenças de pele entre os Subanun, nativos das ilhas Filipinas. Ele demonstra como os Subanun organizam as categorias das doenças de acordo com uma classificação hierárquica, segundo os sintomas que reconhecem. O trabalho de Frake é importante porque demonstra que as classificações e os diagnósticos das doenças entre povos considerados primitivo são sofisticados, complexos e baseados na observação de uma realidade empírica. Frake tem servido como um modelo de pesquisa e análise na etnomedicina.

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4 Porém, o significado da doença em outras culturas não se limita às diferenças de nomeação e/ou de classificação das doenças (Good, 1977; Good, 1993). Da perspectiva da doença como experiência, a doença é vista como um processo construído através dos processos socioculturais. Não é um momento único nem uma categoria fixa, mas sim uma sequência de eventos que tem dois objetivos para os atores: (1) entender o sofrimento no sentido de organizar a experiência vivida; e (2) se possível, aliviar o sofrimento. A interpretação do significado da doença emerge através do seu processo, e para entender a percepção e o significado é necessário compreender todo o episódio da doença: o seu itinerário terapêutico e os discursos dos atores envolvidos em cada passo da sequência de eventos. O significado emerge desse processo entre percepção e ação. Um episódio apresenta um drama social que se expressa e se resolve através de estratégias pragmáticas de decisão e ação.

Em termos gerais, os seguintes passos caracterizam a doença como processo: (a) o reconhecimento dos sintomas do distúrbio como doença;

(b) o diagnóstico e a escolha de tratamento; e (c) a avaliação do tratamento.

(a) Reconhecimento dos sintomas: os eventos iniciam com o reconhecimento do estado de doença baseado nos sinais que indicam que nem tudo vai bem. Quais sinais são reconhecidos como indicadores de doença depende da cultura, pois não são universais como indicado no modelo biomédico. Cada cultura reconhece sinais diferentes que indicam a presença de doença, o prognóstico e possíveis causas, e esses sinais, em várias culturas, não estão restritos aos sintomas corporais. A situação ambiental, seja do grupo, seja da natureza, também faz parte das possíveis fontes de sinais a serem consideradas na tentativa de identificar a doença.

(b) Diagnóstico e escolha de tratamento: uma vez que um estado de sofrimento é reconhecido como doença, o processo diagnóstico se institui para que as pessoas envolvidas possam decidir o que fazer. Esse momento inicial normalmente acontece dentro do contexto familiar, no qual os membros da família negociam entre si para chegar a um diagnóstico que indique qual tratamento deve ser escolhido. Se não chegam a um diagnóstico claro, pelo

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5 menos tentam concordar sobre o tratamento, através da leitura dos sinais da doença. No caso de tratar-se de uma doença leve e conhecida, a cura pode ser um chá ou uma visita ao posto de saúde. No caso de uma doença séria, com sintomas não usuais, ou interpretada como resultante de um conflito nas relações sociais ou espirituais (por exemplo, quebra de tabu), talvez o xamã ou outro especialista em acertar relações sociais seja escolhido primeiro. Não é possível predizer a escolha, pois esta vai ser determinada pela leitura dos sinais da doença negociada pelos participantes.

(c) Avaliação: uma vez que um tratamento é feito, as pessoas envolvidas avaliam os seus resultados. Em casos simples, a doença some depois do tratamento e todos ficam satisfeitos, mas frequentemente a doença continua. Assim, é preciso rediagnosticar a doença, baseando-se na identificação de novos sinais ou na reinterpretação dos mesmos sinais. Com o novo diagnóstico, um outro tratamento é selecionado, realizado e avaliado. Essas etapas se repetem até que a doença seja considerada terminada. Casos graves ou prolongados envolvem vários eventos de diagnóstico, tratamento e subsequentes avaliações. Frequentemente a doença se torna uma crise que ameaça a vida e desafia o significado da existência. Muitas pessoas e grupos são mobilizados no processo terapêutico, e os significados da doença no contexto mais abrangente (relações sociais, ambientais e espirituais) são explorados. Através dos episódios da doença envolvendo diagnósticos, tratamentos e avaliações sucessivas, as pessoas procuram sinais extracorporais, tais como as relações sociais ou os movimentos cosmológicos, para compreender a experiência de sofrimento.

O processo terapêutico não é caracterizado por um simples consenso; é mais bem entendido como uma sequência de decisões e negociações entre várias pessoas e grupos com interpretações divergentes a respeito da identificação da doença e da escolha da terapia adequada. Há suas fontes principais de divergências: uma se encontra na própria natureza dos sinais da doença e a outra nas diferentes interpretações das pessoas.

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6 Em primeiro lugar, os sinais da doença não são por natureza claros. Eles são ambíguos, causando interpretações divergentes entre pessoas, mesmo quando elas compartilham o mesmo conhecimento e classificação diagnóstica. Frake notou isto entre os Subanun. Duas pessoas que concordavam sobre os sintomas que indicam uma certa doença frequentemente na prática identificavam o mesmo caso diferentemente. Isto pode ser porque interpretavam os sintomas diferentemente ou reconheciam sintomas diferentes. Isto também acontece na biomedicina; nem sempre há um consenso entre os médicos examinando o mesmo paciente. Na teoria, as classificações das doenças segundo seus sintomas podem ser bem-organizadas em categorias discriminadas sem aparência de ambiguidade, mas, na prática, um sinal de doença não é necessariamente tão claro e fácil de interpretar.

Diferentes diagnósticos de uma mesma doença aumentam consideravelmente quando os participantes do processo possuem diferentes conhecimentos, experiências e interesses em relação ao caso em pauta. Entre os membros de um grupo, nem todos possuem o mesmo conhecimento, devido a vários fatores: idade, sexo, papel social (i.e. pessoa leiga, especialista em cura, pajé) e também redes sociais e alianças com outros. Numa situação de pluralidade de grupos étnicos e sistemas médicos, como no caso da saúde do índio, esta situação se complica ainda mais. Por isso, cada passo do episódio é caracterizado por visões diferentes dos participantes, cada um exercendo seus diferentes conhecimentos, experiências e poderes nas negociações sobre a terapia adequada e o significado da doença.

Referências Bibliográficas

Bibeau G. The Circular Semantic Network in Ngbandi Desease Nosology. Social Science and Medicine 15B: 295-307, 1981.

Good B. The Heart of What’s the Matter: The Semantics of Illness in Iran. Culture, Medicine and Psychiatry I: 25-58, 1977.

Good B. Medicine, Rationality and Experience. New York: Cambridge University Press, 1993.

Fabrega H. Jr. Disease and Social Behavior: An Interdisciplinary Perspective. Cambridge: The MIT Press, 1974.

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7 Frake CO. The Diagnosis of Disease among the Subanum of Mindanao. American Anthropologist 63: 113-132.

Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

Kleinman AM, Patients and Healers in the Context of Culture. California: University of California Press, 1980.

Young A. The Anthropologies of Illness and Sickness. Annual Review of Anthropology. II: 257-285. Palo Alto, Annual Reviews Inc., 1982.

Hahn R, Kleinman AM. Biomedical Practice and Anthropological Theory: Frameworks and Directions. In: Beals et al. (orgs.). Annual Review of Anthropology 12:305- 333. Palo Alto, Annual Reviews Inc., 1983.

Langdon, EJ, MacLennam R. Western Biomedical and Sibundoy Diagnosis: An Interdisciplinary Comparison. Social Science and Medicine 13B:211-220, 1979.

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