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Dados Internacionais de Cataloga-;:ao na Publica-;:ao ( CIP) ( Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Han, Byung-Chul

Sociedade do cansa<;:o I Byung-Chul Han; tradu<;:ao de Enio Paulo Giachini. - Petropolis, RJ: Vozes, 2015. Titulo original : Miidigkeitsgesellscha:ft

Bibliografia

ISBN 978-85-326-4996-6

1. Depressao mental - Aspectos sociais 2. Fadiga mental - Aspectos sociais 3. Paradigmas (Ciencias Sociais) 4. Sociedade I. Titulo.

15-01597 CDD-301.01

Indices para catalogo sistematico: 1. Sociologia e filosofia 301.01

BYUNG-CHUL HAN Sociedade do cansa~o

Traduc;ao de Enio Paulo Giachini

1 a Reimpressao

I.Ii

EDITORA

Y

VOZES

(3)

© Matthes & Seitz Berlin Verlag. Berlin, 2010. Titulo original em alemao: Miidigkeitsgesellschaft Direitos de publicar;ao em lingua portuguesa - Brasil:

© 2015, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luis, 100 25689-900 Petr6polis, RJ

www.vozes.com.br Brasil

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e/ou quaisquer meios (eletronico ou mecanico, incluindo fotoc6pia e gravar;ao) ou arquivada em qualquer sistema ou

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Frei Antonio Moser Edi tores Aline dos Santos Carneiro

Jose Maria da Silva Lidio Peretti Marilac Loraine Oleniki

Secretario executivo J oao Batista Kreuch

Editorarao: Flavia Peixoto Diagramarao: Sandra Bretz Projeto de capa: Pierre Fauchau Arte-finalizafiio: Jardim Objeto ISBN 978-85-326-4996-6 (Brasil) ISBN 978-3-88221-616-5 (Alemanha) Editado conforme o novo acordo ortografi.co. Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

Sumario

1 A violencia neuronal, 7

2 Alem da sociedade disciplinar, 23 3 0 tedio profundo, 31

4 Vita activa, 39 5 Pedagogia do ver, 51 6 0 Caso Bartleby, 59 T Sociedade do cansayo, 69

(4)

1

A violencia neuronal

Cada epoca possuiu suas enfermidades fundamentais. Desse modo, temos uma epoca bacteriol6gica, que chegou ao seu fim com a descoberta dos antibi6ticos. Apesar do medo imenso que temos hoje de uma pandemia gri-pal, nao vivemos numa epoca viral. Gra<;:as

a

tecnica imunol6gica, ja deixamos para tras essa epoca. Visto a partir da perspectiva pato-16gica, o come<;:o do seculo XXI nao e definido como bacteriol6gico nem viral, mas neuronal. Doen<;:as neuronais como a depressao, trans-torno de deficit de aten<;:ao com sindrome de hiperatividade (Tdah), Transtorno de perso-nalidade limitrofe (TPL) ou a Sindrome de Burnout (SB) determinam a paisagem

(5)

pato-16gica do come<j:O do seculo XXI. Nao Sao

in-fec<j:6es, mas enfartos, provocados nao pela

ne-gatividade de algo imunologicamente diverso, mas pelo excesso de positividade. Assim, eles escapam a qualquer tecnica imunol6gica, que tern a fun<j:ao de afastar a negatividade daquilo que e estranho.

0 seculo passado foi uma epoca imunol6-gica. Trata-se de uma epoca na qual se estabe-leceu uma divisao nitida entre dentro e fora, amigo e inimigo ou entre pr6prio e estranho. Mesmo a Guerra Fria seguia esse esquema imunol6gico. 0 pr6prio paradigma imuno-16gico do seculo passado foi integralmente dominado pelo vocabulario dessa guerra, por um dispositivo francamente militar. A a'rao imunol6gica e definida como ataque e defesa.

Nesse dispositivo imunol6gico, que ultrapas-sou o campo biol6gico adentrando no campo e em todo o ambito social, ali foi inscrita uma cegueira: Pela defesa, afasta-se tudo que e tranho. 0 objeto da defesa imunol6gica e a es-tranheza como tal. Mesmo que o estranho nao tenha nenhuma inten'rao hostil, mesmo que

ele nao represente nenhum perigo, e elimina -do em virtude de sua alteridade.

Nesses ultimas tempos, tern surgido di-versos discursos sociais que se servem nitida-mente de modelos explicativos imunol6gicos. Todavia, a atualidade do discurso imunol6gi-co nao pode ser interpretada imunol6gi-como sinal de que a organiza<j:ao da sociedade de hoje seria uma epoca mais imunol6gica do que qual-quer outra. 0 fato de um paradigma ser eri-gido propriamente como objeto de reflexao, muitas vezes, e sinal de seu declinio. Imper-ceptivelmente, ja desde ha algum tempo, vai se delineando uma mudans:a de paradigma. 0

·fim da Guerra Fria ocorreu precisamente no curso dessa mudan'ra de paradigma1

• Hoje a

1 E interessante notar que ha uma influencia mutua en-tre discursos sociais e biol6gicos. Ciencias nao estao livres de· dispositivos que nao sao de origem cientffica. Assim, ap6s o fim da Guerra Fria, encontramos uma mudanc;:a de paradigma tambem dentro da imunologia medicinal. A imunologista americana Polly Matzinger rejeita o velho paradigma imunol6gico da Guerra Fria. De acordo com seu modelo imunol6gico, o sistema imunol6gico nao dis-tingue entre self e non-self, entre pr6prio e estranho ou outro, mas entre fiend/ye dangerous (cf. MATZINGER, P. "Friendly and dangerous signals: is the tissue in control?".

Nature Immunology, vol. 8, n. 1, 2007, p. 11-13). O objeto

(6)

sociedade esta entrando cada vez mais numa constela<;:ao que se afasta totalmente do esque-ma de organiza<;:ao e de defesa imunologicas. Caracteriza-se pelo desaparecimento da alteri-dade e da estranheza. A alteridade e a categoria fundamental da imunologia. Toda e qualquer

rea<;:ao imunologica e uma rea<;:ao

a

alteridade. Mas hoje em dia, em lugar da alteridade en-tra em cena a diferenra, que nao provoca ne-nhuma rea<;:ao imunologica. A diferen<;:a p6s--imunol6gica, sim, a diferen<;:a p6s-moderna ja nao faz adoecer. Em nivel imunol6gico, ela

e

o mesmo2

Falta

a

diferen<;:a, de certo modo,

da defesa imunol6gica ja nao e mais a estranheza ou a al-teridade como tat. S6 se repele apenas aquela intromissao

estranha que se porta destrutivamente no interior do pr6-prio. Nessa perspectiva, enquanto o estranho nao chama a aten~ao, nao e tocado pela defesa imunol6gica. De acordo com a ideia de Matzinger, o sistema imunol6gico bio/6gico

e

mais hospitaleiro do que se admitiu ate o presente. Nao conhece nenhuma xenofobia. E mais inteligente, portanto, que a sociedade humana com xenofobia. Essa e uma rea-!;ao imunol6gica patologicamente potenciada, prejudicial inclusive ao desenvolvimento do pr6prio.

2 Tambem o pensamento de Heidegger aponta um teor imunol6gico. Assim, ele recha~a decididamente o igual e lhe contrapoe o mesmo. Contrariamente ao igual, o mesmo possui uma interioridade, na qual repousa toda e qualquer rea~ao imunol6gica.

10

o aguilhao da estranheza, que provocaria uma violenta rea<;:ao imunologica. Tambem a estra -nheza se neutraliza numa formula de consu-mo. O estranho cede lugar ao ex6tico. 0 tou-rist viaja para visita-lo. 0 turista ou o consu-midor ja nao

e

mais um sujeito imunol6gico.

Dessa forma, tambem Roberto Esposito coloca uma falsa hip6tese na base de sua Teo-ria da Immunitas, ao afirmar: "Em qualquer dia do ultimo ano podemos ler o relato nos jornais, talvez ate na mesma pagina, a respei-to de diversos acontecimenrespei-tos. 0 que tern em com um entre si fen6menos como a luta contra o surto de uma nova epidemia, a resistencia

·contra um pedido de extradi<;:ao de um

che-fe de Estado estrangeiro, acusado de viola<;:ao

dos direitos humanos, o refor<;:o das barreiras contra a imigra<;:ao ilegal e as estrategias para neutralizar o ataque dos virus de computa-dor mais recentes? Nada, na medida em que os interpretamos dentro de seus respectivos ambitos, separados entre si, como a medici-na, o direito, a politica social e a tecnologia da informatica. Mas isso se modifica quando

(7)

nos referimos a uma categoria interpretativa, cuja especificidade mais pr6pria consiste na capacidade de cruzar transversalmente aque-las linguagens particulares, referindo-nos a um e ao mesmo horizonte de sentido. Como fica evidente ja a partir do titulo desse volume, proponho essa categoria como sendo a cate-goria da 'imunizas:ao: [ ... ] Os acontecimentos descritos acima, independente de sua desi-gualdade lexical, podem ser todos reduzidos a uma reas:ao de protes:ao contra um risco"3

Nenhum dos acontecimentos mencionados por Esposito aponta para o fato de que nos encontramos em meio a uma epoca imunol6-gica. Tambem o assim chamado "imigrante': hoje em dia, ja nao

e

mais imunologicamente um outro; nao e um estrangeiro, em sentido

enfatico, que representaria um perigo real ou alguem que nos causasse medo. Imigrantes sao vistos mais como um peso do que como uma ameas:a. Tambem o problema do virus de computador ja nao tern mais tanto

impac-3 ESPOSITO, R. lmmunitas -Schutz und Negation des Lebens. Berltm, 2004, p. 7.

12

to social. Nao e por acaso que, entao, que em sua analise imunol6gica, Esposito nao se volta para problemas da atualidade, mas exclusiva-mente a objetos do passado.

0 paradigma imunol6gico nao se coaduna com o processo de globalizas:ao. A alteridade, que provocaria uma imunorreas:ao atuaria con-trapondo-se ao processo de suspensao de bar-reiras. 0 mundo organizado imunologicamen-te possui uma topologia especifica.

E

marcado por barreiras, passagens e soleiras, por cercas, trincheiras e muros. Essas impedem o proces-so de troca e intercambio. A promiscuidade geral que hoje em dia toma conta de todos os · ambitos da vida, e a falta da alteridade

imuno-logicamente ativa, condicionam-se mutuamen-te. Tambem a hibridizas:ao, que domina nao apenas o atual discurso teoretico-cultural mas tambem o sentimento que se tern hoje em dia da vida, e diametralmente contraria precisa-mente

a

imuniza<;ao. A hiperestesia imunol6gi-ca nao admite qualquer hibridiza<;ao.

. A dialetica da negatividade e o tra<;o fun-damental da imunidade. 0 imunologicamente

(8)

outro e o negativo, que penetra no proprio e

procura nega-lo. Nessa negatividade do outro o proprio sucumbe, quando nao consegue, de seu lado, negar aquele. A autoafirma<;ao imo-nologica do pr6prio, portanto, se realiza como nega<;ao da nega<;ao. 0 proprio afirma-se no outro, negando a negatividade do outro. Tambem a profilaxia imunologica, portanto a vacina<;ao, segue a dialetica da negatividade. Introduz-se no proprio apenas fragmentos do outro para provocar a imunorrea<;ao. Nesse caso a nega<;ao da nega<;ao ocorre sem perigo de vida, visto que a defesa imunol6gica nao e confrontada com o outro, ele mesmo. Delibe-radamente, faz-se um pouco de autoviolen-cia para proteger-se de uma violenautoviolen-cia ainda maior, que seria mortal. 0 desaparecimento da alteridade significa que vivemos numa epo-ca pobre de negatividades.

E

bem verdade que os adoecimentos neuronais do seculo XXI se-guem, por seu turno, sua dialetica, nao a diale-tica da negatividade, mas a da positividade. Sao estados patol6gicos devidos a um exagero de positividade.

14

A violencia nao provem apenas da negati -vidade, mas tambem da positi-vidade, nao ape-nas do outro ou do estranho, mas tambem do

igual. Baudrillard aponta claramente para essa

violencia da positividade quando escreve so-bre o igual: "Quern vive do igual, tambem

pe-rece pelo igua1''4

• Baudrillard fala igualmente da "obesidade de todos os sistemas atuais", do sistema de informa<;ao, do sistema de

comu-nica<;:ao e do sistema de produ<;ao. Nao existe

imunorrea<;ao

a

gordura. Mas Baudrillard ex-p6e o totalitarismo do igual a partir da pers-pectiva imunol6gica - e essa e a debilidade de sua teoria: "nao e por acaso que se fala tanto . de imunidade, anticorpos, de insemina<;:ao e aborto. Em tempos de carestia, a

preocupa-<;ao esta voltada para a absorpreocupa-<;ao e assimilapreocupa-<;ao.

Em epocas de superabundancia, o problema volta-se mais para a rejei<;ao e expulsao. A co-munica<;ao generalizada e a superinforma<;ao amea<;am todas as for<;:as humanas de defesa''5•

4 BAUDRILLARD, J. Die Transparenz des Bosen - Ein Essay

Ober extreme Phanomene. Berlim, 1992, p. 75. 5 Ibid., p. 86.

(9)

Num sistema onde domina o igual so se pode falar de for<;:a de defesa em sentido figurado. A defesa imunol6gica volta-se sempre contra o outro ou o estranho em sentido enfatico. 0

igual nao leva

a

forma<;:ao de anticorpos. Num

sistema dominado pelo igual nao faz sentido fortalecer os mecanismos de defesa. Temos de distinguir entre rejei<;:ao (Abstossung)

imuno-16gica e nao imunol6gica. Essa se aplica a um

excesso de igual, um exagero de positividade.

Ali nao ha participa<;:ao de nenhuma

negati-vidade. Ela tampouco e uma exclusao (Auss-chliessung), que pressup6e um espa<;:o interno imunol6gico. A rejei<;:ao imunol6gica se <la, ao contrario, independentemente do quantum,

pois e uma rea<;:ao

a

negatividade do outro. 0

sujeito imunol6gico rejeita o outro com sua interioridade, o exclui, mesmo que exista em quantidade minima.

A violencia da positividade que resulta da superprodu<;:ao, superdesempenho ou super-comunica<;:ao ja nao e mais ((viral': A imuno-logia nao assegura mais nenhum acesso a ela. A rejei<;:ao frente ao excesso de positividade

16

nao apresenta nenhuma defesa imunol6gica, mas uma ab-rearao neuronal-digestiva, uma

rejei<;:ao. Tampouco o esgotamento, a

exaus-tao e O sufocamento frente

a

demasia sao

rea-<;:6es imunol6gicas. Todas essas sao manifes-ta<;:6es de uma violencia neuronal, que nao e

viral, uma vez que nao podem ser reduzidas

a

negatividade imunol6gica. Assim, a teoria

da violencia de Baudrillard esta perpassada de refuta<;:6es argumentativas, porque busca descrever imunologicamente a violencia da positividade ou do igual, do qual nao

partici-pa nenhuma alteridade. Assim, ele escreve:

"E

uma violencia viral, aquela da rede e do

vir-. tual. Uma violencia da aniquila<;:ao suave, uma

violencia genetica e de comunica<;:ao; uma vio-lencia do consenso [ ... ] . Essa viovio-lencia e viral no sentido de nao operar diretamente, atraves de infec<;:ao, rea<;:ao em cadeia e elimina<;:ao de todas as imunidades. Tambem no sentido de

que atua em contraposi<;:ao

a

violencia

nega-tiva e hist6rica atraves de um excesso de po-sitividade, precisamente como celulas cance-rigenas, atraves de uma prolifera<;:ao infinita,

ill

I

(10)

excrescencia e metastase. Ha um parentesco secreto entre virtualidade e viralidade"6•

De acordo com a genealogia da inimizade de Baudrillard, o inimigo aparece num pri-meiro estagio como lobo. Ele e um "inimigo exterior que ataca e, contra o qual, nos defen-demos, construindo fortifica<;:6es e muros"7•

No pr6ximo estagio, o inimigo toma a forma de um rato.

E

um inimigo que atua nos sub-terraneos, que se combate atraves da higiene. Num estagio seguinte, o estagio do besouro, finalmente o inimigo toma a forma viral: "O quarto estagio toma a forma dos virus, esses se movem praticamente na quarta dimensao.

E

mais dificil defender-se do virus, pois estao localizados no cora<;ao do sistema"8

• Surge um

"inimigo fantasma, que se estende sobre todo planeta, como um virus, que em geral se infil-tra e peneinfil-tra em todas as fendas do poder''9• A

6 Ibid., p. 54.

7 BAUDRILLARD, J. Der Geist des Terrorismus. Viena, 2002, p. 85.

8 Ibid., p. 86. 9 Ibid., p. 20. 18

violencia viral parte daquelas singularidades que se instalam no sistema como celulas po-tenciais terroristas, e buscam minar o sistema a partir do interior. Baudrillard apresenta o terrorismo como a principal figura da violen-cia viral, em consequenviolen-cia de uma revolta do singular frente ao global.

Mesmo em forma viral, a inimizade segue o esquema imunol6gico. 0 virus inimigo pene-tra no sistema, que funciona como um sistema imunol6gico e repele o invasor viral. Todavia a genealogia da inimizade nao coincide com a genealogia da violencia. A violencia da po-sitividade nao pressup6e nenhuma inimizade.

· Desenvolve-se precisamente numa sociedade permissiva e pacificada. Por isso ela e mais in-visivel que uma violencia viral. Habita o espa<;:o livre de negatividade do igual, onde nao se da nenhuma polariza<;:ao entre inimigo e amigo, interior e exterior ou entre pr6prio e estranho.

A positiva<;ao do mundo faz surgir novas formas de violencia. Essas nao partem do ou-tro imunologico. Ao contra.do, elas sao ima-nentes ao sistema. Precisamente em virtude

(11)

de sua imanencia, nao evocam a defesa imu-nol6gica. Aquela violencia neuronal que leva ao infarto psiquico

e

um terror da imanencia. Esse se distingue radicalmente daquele horror que procede do estranho no sentido imunol6-gico. A Medusa

e

qui<;a o outro imunol6gico em sua forma extrema. Constitui uma alteri-dade radical, que nem sequer se pode olhar, sem sucumbir. Assim, a violencia neuronal, ao contrario, escapa a toda 6tica imunol6gica, pois nao tern negatividade. A violencia da po-sitividade nao

e

privativa, mas saturante; nao exdudente, mas exaustiva. Por isso

e

inacessi-vel a uma percep<;ao direta.

A violencia viral, que continua seguindo o esquema imunol6gico de interior e exterior ou de pr6prio e outro, e pressup6e uma singu-laridade ou alteridade hostil ao sistema, nao esta mais em condi<;6es de descrever enfermi-dades neuronais como depressao, Tdah ou SB. A violencia neuronal nao parte mais de uma negatividade estranha ao sistema.

E

antes uma violencia sistemica, isto

e,

uma violencia ima-nente ao sistema. Tanto a depressao quanto o

20

Tdah ou o SB apontam para um excesso de po-sitividade. A SB

e

uma queima do eu por su-peraquecimento, devido a um excesso de igual. 0 hiper da hiperatividade nao e uma categoria imunol6gica. Representa apenas uma massifi

(12)

2

Alem da sociedade disciplinar

A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presidios, quarteis e fabri-cas, nao e mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, ha muito tempo, entrou uma outra so-ciedade, a saber, uma sociedade de academias

de fitness, predios de escrit6rios, bancos,

aero-portos, shopping centers e laborat6rios de ge-netica. A sociedade do seculo XXI nao e mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Tambem seus habitantes nao se chamam mais "sujeitos da obediencia", mas sujeitos de desempenho e produc;ao. Sao em -presarios de si mesmos. Nesse sentido, aqueles muros das institui<;:6es disciplinares, que deli-mitam os espa<;os entre o normal e o anormal,

(13)

se tornaram arcaicos. A analitica do poder de Foucault nao pode descrever as modifica<r6es psiquicas e topol6gicas que se realizaram com a mudan<ra da sociedade disciplinar para a so-ciedade do desempenho. Tambem aquele con-ceito da «sociedade de controle» nao da mais conta de explicar aquela mudan<ra. Ele contem sempre ainda muita negatividade.

A sociedade disciplinar e uma sociedade da negatividade.

E

determinada pela negati

-vidade da proibi<rao. 0 verbo modal negativo que a domina e o nao-ter-o-direito. Tambem ao <lever inere uma negatividade, a negativi-dade da coer<rao. A socienegativi-dade de desempenho vai se desvinculando cada vez mais da

negati-vidade. Justamente a desregulamenta<rfo cres-cente vai abolindo-a. 0 poder ilimitado

e

o verbo modal positivo da sociedade de desem-penho. 0 plural coletivo da afirma<rfo Yes, we

can expressa precisamente o carater de posifr-vidade da sociedade de desempenho. No lu-gar de proibi<rao, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motiva<rfo. A sociedade disciplinar ainda esta dominada pelo nao. Sua

24

negatividade gera loucos e delinquentes. A so-ciedade do desempenho, ao contrario, produz depressivos e fracassados.

A mudan<ra de paradigma da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho aponta para a continuidade de um nivel. Ja habita, naturalmente, o inconsciente social, o desejo de maximizar a produ<rao. A partir de determinado ponto da produtividade, a tecni-ca disciplinar ou o esquema negativo da proi

-bi<rao se choca rapidamente com seus limites. Para elevar a produtividade, o paradigma da disciplina e substituido pelo paradigma do de-sempenho ou pelo esquema positivo do poder, pois a partir de um determinado nivel de pro

-dutividade, a negatividade da proibi<rao tern um efeito de bloqueio, impedindo um maior crescimento. A positividade do poder

e

hem mais eficiente que a negatividade do <lever. Assim o inconsciente social do <lever troca de registro para o registro do poder. 0 sujeito de desempenho e mais rapido e mais produtivo que o sujeito da obediencia. 0 poder, porem, nao cancela o <lever. 0 sujeito de desempenho

(14)

continua disciplinado. Ele tern atras de si o estagio disciplinar. 0 poder eleva o nivel de produtividade que e intencionado atraves da tecnica disciplinar, o imperativo do dever. Mas em rela<riio

a

eleva<rao da produtividade nao ha qualquer ruptura; ha apenas continuidade.

Alain Ehrenberg localiza a depressao na passagem da sociedade disciplinar para a so-ciedade de desempenho: "A carreira da de-pressao come<ra no instante em que o modelo disciplinar de controle comportamental, que, autoritaria e proibitivamente, estabeleceu seu papel as classes sociais e aos dois generos, foi abolido em favor de uma norma que incita cada um

a

iniciativa pessoal: em que cada um se comprometa a tornar-se ele mesmo. [ ... ] O

depressivo nao esta cheio, no limite, mas esta esgotado pelo esfor<ro de ter de ser ele mes-m o . ro ematlcamente, A ain Ehrenberg »10 p bl . 1

aborda a depressao apenas a partir da pers-pectiva da economia do si-mesmo. O que nos torna depressivos seria o imperativo de

obede-10 EHRENBERG, A. Das erschopfte Selbst-Depression und Gesellschaft in der Gegenwart. Frankfurt a.M., 2008, p. 14s.

26

cer apenas a nos mesmos. Para ele, a depres -sao e a expres-sao patol6gica do fracasso do homem p6s-moderno em ser ele mesmo. Mas pertence tambem

a

depressao, precisamente, a carencia de vinculos, caracteristica para a crescente fragmenta<rao e atomiza<riio do so-cial. Esse aspecto da depressao nao aparece na analise de Ehrenberg. Ele passa por alto tam-hem a violencia sistemica inerente

a

sociedade de desempenho, que produz infartos psiquicos.

0 que causa a depressao do esgotamento nao e o imperativo de obedecer apenas a si mes-mo, mas a pressiio de desempenho. Visto a par-tir daqui, a Sindrome de Burnout nao expressa

· o si-mesmo esgotado, mas antes a alma con-sumida. Segundo Ehrenberg, a depressao se expande ali onde os mandatos e as proibi<r6es da sociedade disciplinar dao fogar

a

respon-sabilidade pr6pria e

a

iniciativa. 0 que torna doente, na realidade, nao e o excesso de res-ponsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade p6s-moderna do trabalho.

Alain Ehrenberg equipara equivocadamen-te o tipo humano da atualidade com o homem

27 11 I I I I

(15)

soberano nietzscheano:

«o

homem sobera., no, igual a si mesmo, e cuja vinda Nietzsche anunciou, esta prestes a tornar-se realidade en masse. Nada ha acima dele que lhe possa di-zer quern ele deve ser, pois ele da mostras de obedecer apenas a si mesmo"11

• Precisamente

Nietzsche diria que aquele tipo humano esta em vias de tornar-se realidade en masse; sobe-rano nao

e

o super-homem, mas o ultimo ho-mem, que apenas ainda trabalha12

Essa

sobe-rania esta precisamente ausente daquele novo tipo humano, exposto e entregue indefeso ao excesso de positividade. 0 homem depressivo

e

aquele animal laborans que explora a·si mes-mo e, qui<ra deliberadamente, sem qualquer coa<rao estranha.

E

agressor e· vitima ao mes-mo tempo. 0 si-mesmo em sentido enfatico

e

ainda uma categoria imunol6gica. Mas a de-pressao se esquiva de todo e qualquer

esque-11 Ibid., p. 155.

12 O ultimo homem de Nietzsche eleva a saude

a

categoria de uma deusa: "louvamos a saude - 'n6s encontramos a felicidade' - dizem os ultimas homens e piscam os olhos" (Also sprach Zarathustra - Kritische Gesamtausgabe, 511 se-~ao, vol. 1, p. 14).

28

ma imunol6gico. Ela irrompe no momenta em que o sujeito de desempenho nao pode mais poder. Ela

e

de principio um cansaro de fazer e de poder. A lamuria do individuo depressi-vo de que nada

e

possivel so se torna possivel numa sociedade que ere que nada

e

impossivel. Nao-mais-poder-poder leva a uma

autoacusa-<rao destrutiva e a uma autoagresssao. 0 sujeito

de desempenho encontra-se em guerra consigo mesmo. 0 depressivo

e

o invalido dessa guerra internalizada. A depressao

e

o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de po-sitividade. Reflete aquela humanidade que esta em guerra consigo mesma.

0 sujeito de desempenho esta livre da instancia externa de dominio que o obriga a trabalhar ou que poderia explora-lo.

E

senhor e soberano de si mesmo. Assim, nao esta sub-misso a ninguem ou esta subsub-misso apenas a si mesmo.

E

nisso que ele se distingue do su-j eito de obediencia. A queda da instancia do-minadora nao leva

a

liberdade. Ao contrario, faz com que liberdade e coa<rao coincidam. Assim, o sujeito de desempenho se entrega

a

29

(16)

liberdade coercitiva ou

a

livre coerfiio de

maxi-mizar o desempenho13

• 0 excesso de trabalho

e desempenho agudiza-se numa

autoexplora-<;:ao. Essa

e

mais eficiente que uma explora<;:ao

do outro, pois caminha de maos dadas com o

sentimento de liberdade. 0 explorador

e

ao

mesmo tempo o explorado. Agressor e vitima nao podem mais ser distinguidos. Essa autor-referencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude <las estruturas coercitivas que lhe sao inerentes, se transforma em violencia. Os adoecimentos psiquicos da sociedade de desempenho sao precisamente as manifesta-<;:6es patol6gicas dessa liberdade paradoxal.

13 Em seu sentido verdadeiro, a liberdade esta ligada com a negatividade. E sempre uma liberdade da coai;ao que provem do outro imunol6gico. Onde a negatividade cede lugar ao excesso de positividade, desaparece tambem a enfase da liberdade, que surge dialeticamente

a

negai;ao da negai;ao.

30

3

O tedio profundo

0 excesso de positividade se manifesta tambem como excesso de estimulos,

infor-ma<;:6es e impulsos. Modifica radicalmente a

estrutura e economia da atern;ao. Com isso se fragmenta e destr6i a aten<;:ao. Tambem a crescente sobrecarga de trabalho torna neces-saria uma tecnica espedfica relacionada ao

tempo e

a

aten<;:ao, que tern efeitos novamente

na estrutura da aten<;:ao. A tecnica temporal e

de atern;ao multitastasking (multitarefa) nao

representa nenhum progresso civilizat6rio. A

multitarefa nao

e

uma capacidade para a qual

s6 seria capaz o homem na sociedade

traba-lhista e de informa<;:ao p6s-moderna. Trata-se

antes de um retrocesso. A multitarefa esta am-plamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma tecnica de

(17)

aten<;:ao, indispensavel para sohreviver na vida selvagem.

Um animal ocupado no exerdcio da mas-tiga<;:ao de sua comida tern de ocupar-se ao mesmo tempo tamhem com outras atividades. Deve cuidar para que, ao comer, ele pr6prio nao acahe comido. Ao mesmo tempo tern de vigiar sua prole e manter o olho em seu(sua) parceiro(a). Na vida selvagem, o animal esta ohrigado a dividir sua aten<;:ao em diversas atividades. Por isso, nao e capaz de

aprofun-damento contemplativo - nem no comer nem

no copular. 0 animal nao pode mergulhar contemplativamente no que tern diante de si, pois tern de elahorar ao mesmo tempo o que tern atras de si. Nao apenas a multitarefa, mas

tamhem atividades coma jogos de

computa-dor geram uma aten<;:ao ampla, mas rasa, que

se assemelha

a

aten<;:ao de um animal

selva-gem. As mais recentes evolu<;:oes sociais e a mudan<;:a de estrutura da aten<;:ao aproximam cada vez mais a sociedade humana da vida selvagem. Entrementes, o assedio moral, por exemplo, alcan<;:a uma despropor<;:ao

pande-mica. A preocupa<;:ao pelo hem viver,

a

qual

faz parte tamhem uma convivencia

hem-suce-dida, cede lugar cada vez mais

a

preocupa<;:ao

por sohreviver.

Os desempenhos culturais da humanida-de, d~s quais faz parte tamhem a filosofia, de-vem -sea uma aten<;:ao profunda, contemplati-va. A cultura pressupoe um ambiente onde seja possivel uma aten<;:ao profunda. Essa aten<;:ao profunda e cada vez mais deslocada por uma forma de aten<;:ao hem distinta, a hiperaten-<;:ao (hyperattention). Essa atenhiperaten-<;:ao dispersa se caracteriza por uma rapida mudan<;:a de foco entre diversas atividades, fontes informativas e

· processos. E vista que ele tern uma tolerancia

hem pequena para o tedio, tamhem nao admi-te aquele admi-tedio profundo que nao deixa de ser importante para um processo criativo. Walter Benjamin chama a esse tedio profundo de um ((passaro onirico, que choca o ovo da experien-cia"14. Seo sono perfaz o ponto alto do descan-so fisico, o tedio profundo constitui o ponto

14 BENJAMIN, W. Gesammelte Schriften. Vol. II /2.

(18)

alto do descanso espiritual. Pura inquietac;:ao nao gera nada de novo. Reproduz e acelera o ja existente. Benjamin lamenta que esse ninho de descanso e de repouso do passaro onirico esta desaparecendo cada vez mais na moder-nidade. Nao se "tece mais e nao se fia)). 0 tedio seria um ccpano cinza quente, forrado por den-tro com o mais incandescente e o mais colo-rido revestimento de seda que ja existiu" e no qual ((nos enrolamos quando sonhamos)). Nos ccarabescos de seu revestimento estariamos em casa''15

• Com o desaparecimento do

des-canso, teriam se perdido os ''dons do escutar espreitando" e desapareceria a «comunidade dos espreitadores': Nossa comunidade ativa e diametralmente oposta aquela. 0 "<lorn de es-cutar espreitando" radica-se precisamente na capacidade para a atern;ao profunda, contem -plativa, a qual o ego hiperativo nao tern acesso. Quern se entedia no andar e nao tolera es-tar entediado, ficara andando a esmo inquieto, ira se debater ou se afundara nesta ou naquela

15 BENJAMIN. Passagen-Werk - Gesammelte Schriften.

Vol. V/1. Frankfurt a.M., 1982, p. 161.

34

atividade. Mas quern e tolerante com o tedio, depois de um tempo ira reconhecer que pos-sivelmente e o pr6prio andar que o entedia. Assim, ele sera impulsionado a procurar um mo-vimento totalmente novo. 0 correr ou o cavalgar nao e um modo de andar novo. E um andar ace-lerado. A. danc;:a, por exemplo, ou balanc;:ar-se, representa um movimento totalmente distinto. S6 o homem pode danc;:ar. Possivelmente no andar e tornado por um profundo tedio, de tal modo que por essa crise o tedio transponha o passo do correr para o passo da dam;a. Compa-rada com o andar linear, reto, a danc;:a, com seus movimentos revoluteantes,

e

um luxo que foge totalmente do prindpio do desempenho.

Com o titulo Vita contemplativa nao deve-ria ser reconjurado aquele mundo no qual esta estava alocada originariamente. Ela esta ligada com aquela experiencia de ser, segundo a qual o belo e o perfeito e imutavel e imperecivel e se retrai a todo e qualquer lanc;:ar mao huma-no. Seu humor de fundo e o espanto a respei-to do ser-assim das coisas, afastado de toda e qualquer exequibilidade e processualidade. A

(19)

duvida moderna cartesiana dissolve o espanto. A capacidade contemplativa nao esta

necessa-riamente ligada ao ser imperedvel. Justamen

-te o oscilan-te, o inaparen-te ou o fugidio s6 se abrem a uma atern;:ao profunda,

contemplati-a 16 S' d

v . o o emorar-se contemplativo tern

aces-so tambem ao longo folego, ao lento. Formas ou estados de durac;:ao escapam a hiperativida-de. Paul Cezanne, esse mestre da atenc;:ao pro-funda, contemplativa, observou certa vez que

podia ver inclusive o perfume <las coisas. Essa

visualizac;:ao do perfume exige uma atenc;:ao profunda. No estado contemplativo, de certo modo, saimos de n6s mesmos, mergulhando nas coisas. Merleau-Ponty descreve a conside-ra<;:ao contemplativa da paisagem como uma alienac;:ao ou desinterioriza<;:ao: «De prindpio ele tentou ganhar claridade sobr~ as camadas geol6gicas. Depois nao se moveu mais do

lu-16 Assim escreve Merleau-Ponty: "Nos esquecemos cons-tantemente os fenomenos fluentes e multissignificativos e por entremeio destes nos entregamos imediatamente as coisas que sao por estes apresentadas" (MERLEAU-PONTY, M. Das Auge und der Geist - Philosophische Essays. Ham-burgo, 1984, p. 16).

gar e apenas olhava, ate que, como dizia Mada -me Cezanne, os olhos lhe saltassem da cabec;:a. [ ... ] A paisagem, dizia ele, pensa-se em mim,

eu sou sua consciencia"17

E

s6 a atenc;:ao

pro-funda que interliga a "instabilidade dos olhos"

gerando o recolhimento, que esta em

condi-c;:oes de "delimitar as maos errantes da

natu-reza". Sem esse recolhimento contemplativo, 0

olhar perambula inquieto de ca para la e nao traz nada a se manifestar. Mas a arte e uma "ac;:ao expressiva". 0 pr6prio Nietzsche, que

substituiu o ser pela vontade, sabe que a vida

humana finda numa hiperatividade mortal se dela for expulso todo elemento contemplativo: '(Por falta de repouso, nossa civilizac;:ao cami-nha para uma nova barbarie. Em nenhuma outra epoca os ativos, isto e, os inquietos, va-leram tanto. Assim, pertence as correc;:6es ne-cessarias a serem tomadas quanta ao carater da humanidade fortalecer em grande medida

o elemento contemplativo"18

17 Ibid., p. 15.

18 NIETZSCHE, F. Menschliches, Allzumenschliches 1-Kritische Gesamtausgabe, 4!! se~ao, vol. 2. Berlim, 1967, p. 236.

(20)

4

Vita activa

Em seu escrito Vita activa, Hannah Arendt procura reabilitar a vida ativa contra o pri-mado tradicional da vida contemplativa, rear-ticulando-a em seu multiplo desdobramento interno. Em sua opiniao, a vita activa foi

de-. gradada de forma injusta na tradi<;ao

a

mera agita<;ao, nec-otium ou a-scholia19

Ela

esta-19 Em contraposic;ao

a

concepc;ao de Arendt, tambem na tradic;ao crista nao se preza primariamente uma prevalen-cia unilateral da vita contemplativa. Ao contrario, postu-la-se uma mediac;ao entre vita activa e vita contemplativa.

Assim escreve tc1mbem Sao Gregorio: "Temos de saber: Quando exigimos um born programa de vida, que passe da

vita activa para a vita contemplativa, entao, muitas vezes, e util sea alma retorna da vida contemplativa para a ativa, de tal modo que a chama da contemplac;ao que se acen-deu no corac;ao transmita toda sua perfeic;ao

a

atividade. Assim, a vida ativa deve levar-nos

a

contemplac;ao, mas a contemplac;ao, partindo daquilo que contemplamos

(21)

inte-belece uma liga'rao de sua nova defini<rao da vita activa com o primado da a'rao. Ali, como seu mestre Heidegger, ela se dedica a abor-dar o ativismo heroico. Porem, o primeiro Heidegger pautou o agir decisivo no tema da morte. A possibilidade da morte imp6e limi-tes ao agir e torna a liberdade finita. Hannah Arendt, ao contrario, orienta a possibilidade da a'rao no nascimento, o que concede ao agir uma enfase mais heroica. 0 milagre consis-tiria no proprio nascimento do homem e no novo come'ro; em virtude de seu carater nas-civo, os homens deveriam realizar esse novo come'ro pela a<rao. Em lugar da fe, que opera

milagres, entra a a1rao.

E

a1rao heroica que cria

milagres; a a<rao humana se ve comprometida a isso por seu nascimento. Assim, a a1rao con-tern uma dimensao quase religiosa: ((o milagre consiste no fato de os seres humanos pura e simplesmente nascerem, e junto com esses,

riormente, deve reconduzir-nos para a atividade" {apud HAAS, A.M. "Die Beurteilung der Vita contemplativa und

activa in der Dominikanermystik des 14. Jahrhunderts". In:

VICKERS, B. (org.). Arbeit Musse Meditation. Zurique, 1985, p. 109-131; aqui p. 113).

dar-se o novo come1ro que eles podem realizar

pela a'rao em virtude de seu ser-nascido. [ ... ] 0

fato de termos confian1ra no mundo e o fato de podermos ter esperan1ra para o mundo talvez em parte alguma tenha sido expresso de forma tao lapidar e bela coma nas palavras onde os oratorios natalinos anunciam a "Boa-nova":

"Nasceu-nos um menino"20

Segundo Arendt, a sociedade moderna, en-quanto sociedade do trabalho, aniquila toda possibilidade de agir, degradando o homem a um animal laborans - um animal trabalhador. 0 agir ocasiona ativamente novos processos. 0 homem moderno, ao contrario, estaria

passiva-. mente exposto ao processo an6nimo da vida.

Tambem o pensamento degeneraria em calculo

como fun1rao cerebral. Todas as formas de vita

activa, tanto o produzir quanta o agir, decaem ao patamar do trabalho. Assim, Arendt ve a Mo-dernidade, que come1rou inicialmente com uma ativa'rao heroica inaudita de todas as capacida-des humanas, findar numa passividade mortal.

20 ARENDT, H. Vita activa oder Vom tatigen Leben. Muni-que, 1981, p. 317.

(22)

A explica<;:ao de Arendt para o triunfo do

animal laborans nao resiste a um teste

com-probat6rio nas recentes evolu<;:6es sociais. Ela afirma que a vida do individuo na Modernida -de estaria «totalmente mergulhada na corrente do processo de vida que domina a gera<;:~o" e que a unica decisao indivi4ual ativa consistiria apenas ainda em "como que soltar-se, renunciar a sua individualidade': para poder «fun -cionar" melhor21

• A absolutiza<;:ao do trabalho

caminha de maos dadas com a evolu<;:ao

se-"'

gundo a qual, ('em ultima instancia, a vida da especie humana se imp6e como a unica abso-luta no surgimento e difusao da sociedade"22

Arendt acredita inclusive poder denotar sinais de perigo· «de que o homem poderia estar em vias de transformar-se na especie animal da qual ele parece descender desde Darwin''23

• Ela admite que todas as atividades humanas, bas-ta que sejam observadas a partir de um ponto sufi.cientemente distanciado no universo, nao

21 Ibid., p. 406. 22 Ibid., p. 409. 23 Ibid., p. 411.

42

mais apareceriam como atividades,. mas como processos biol6gicos. Assim, por exemplo, para um observador do espa<;:o, a motoriza<;:ao portar-se-ia como um processo de muta<;:ao biol6gico em cujo decurso o corpo humano, como faz um caracol, se recobre de uma casa de metal, e como fazem as bacterias reagindo aos antibi6ticos ao se modificarem em espe-cies mais resistentes24.

As descri<;:6es do animal laborans moderno

de Arendt nao correspondem as obs~rvac;:6es que podemos fazer na sociedade de desempe-nho de hoje. 0 animal laborans p6s-moderno

nao abandona sua individualidade ou seu ego para entregar-se pelo trabalho a um proces-so de vida anonimo da especie. A proces-sociedade laboral individualizou-se numa sociedade de desempenho e numa sociedade ativa. 0 ani-mal laborans p6s-moderno e provido do ego

ao ponto de quase dilacerar-se. Ele pode ser tudo, menos ser passivo. Se renunciassemos a sua individualidade fundindo-se completa-mente no processo da especie, teriamos pelo

24 Ibid.

(23)

menos a serenidade de um animal. Visto com precisao, o animal laborans p6s-moderno e tudo menos animalesco.

E

hiperativo e hiper-neur6tico. Deve-se procurar um outro tipo de resposta

a

questao que pergunta por que todas as atividades humanas na P6s-modernidade decaem para o nivel do trabalho; por que alem disso acabam numa agitac;:ao tao nervosa.

A perda moderna da fe, que nao diz res-peito apenas a Deus e ao alem, mas

a

pr6pria realidade, torna a vida humana radicalmente transit6ria. Jamais foi tao transit6ria como hoje. Radicalmente transit6ria nao e apenas a vida humana, mas igualmente o mundo como tal. Nada promete durac;:ao e subsisten-cia. Frente a essa falta do Ser surgem nervosis-mos e inquieta<;:6es. A pertenc;:a

a

rac;:a poderia

ajudar ao animal que trabalha para a mesma a uma serenidade animalesca. Todavia, o eu pos-moderno esta totalmente isolado. Tam-bem as religi6es enquanto tecnica da morte, suprimindo o medo da morte e produzindo um sentimento de durac;:ao, tornaram-se obsole-tas. A desnarrativizac;:ao (Entnarrativisierung)

44

geral do mundo reforc;:a o sentimento de tran-sitoriedade. Desnuda a vida. 0 pr6prio tra-balho e uma atividade desnuda. 0 tratra-balho desnudo e precisamente a atividade que cor-responde

a

vida desnuda. 0 trabalho desnudo ea vida desnuda condicionam-se mutuamen-te. Em virtude da falta de tecnicas narrativas de morte surge a coac;:ao de conservar a vida desnuda incondicionalmente sadia. 0 pr6prio Nietzsche dissera que ap6s a morte de Deus a saude se erige como uma deusa. Se houvesse um horizonte de sentido que se eleva acima da vida desnuda, a saude nao poderia ser absolu-tizada nessas proporc;:6es.

Mais desnuda que a vida do homo sacer e a vida hoje. Homo sacer e originalmente alguem que foi excluido da sociedade em virtude de um delito. Ele pode ser morto, sem que o autor seja penalizado por isso. Segundo Agamben, o

homo sacer representa uma vida

absolutamen-te passive! de ser morta. Ele descreve como

ho-mines sacri tambem os judeus nos campos de

concentra<rao, os prisioneiros de Guantanamo, os que nao tern documentos, os que pedem

(24)

asilo, que aguardam em um local neutro para sua deporta<rao ou tambem os doentes em estagio terminal das UTis, que apenas ainda vegetam presos aos seus tubas. Se a sociedade p6s-moderna do desempenho reduz a todos n6s como vida desnuda, entao nao apenas as pessoas que estao ~ margem da sociedade ou as pessoas em situa<r6es excepcionais, portan-to nao apenas os excluidos, mas portan-todos n6s, in-distintamente, somos homines sacri. Todavia, eles tern a especificidade de nao serem abso-lutamente passiveis de serem mortos, mas de serem absolutamente nao passiveis de serem mortos. Sao como que mortos-vivos. Aqui, a palavra sacer nao significa "amaldi<roadd: mas "sagrado". Ora, a pr6pria vida desnuda, despi-da

e

sagrada, de modo que deve ser conserva-da a qualquer pre<ro,

Precisamente frente

a

vida desnuda, que acabou se tornando radicalmente transit6ria, reagimos com hiperatividade, com a histeria do trabalho e da produ<rao, Tambem o acelera-mento de hoje tern muito a ver com a carencia de ser. A sociedade do trabalho ea sociedade do desempenho nao sao uma sociedade livre. 46

Elas geram novas coer<r6es. A dialetica de se-nhor e escravo esta, nao em ultima instancia, para aquela sociedade na qual cada um e livre e que seria capaz tambem de ter tempo livre para o lazer. Leva ao contrario a uma socie-dade do trabalho, na qual o pr6prio senhor se transformou num escravo do trabalho. Nessa sociedade coercitiva, cada um carrega consigo seu campo de trabalho. A especificidade des-se campo de trabalho e que somos ao mesmo tempo prisioneiro e vigia, vitima e agressor. Assim, acabamos explorando a n6s mesmos. Com isso, a explora<rao e possivel mesmo sem senhorio. Pessoas que sofrem com a depres-·sao, com o TPL ou SB desenvolvem sintomas iguais aos que apresentavam tambem aqueles mu<rulmanos* nos campos de concentras:ao. Os mus:ulmanos sao prisioneiros fracos e consumidos, que se tornaram completamente apaticos com a depressao aguda e que nem se-quer conseguem ainda distinguir entre o frio

* Mur;ulmano era o apelido pejorativo dado aqueles pri-sioneiros dos campos de concentra~ao, na II Guerra Mun-dial, que, em fun~ao de sua debilidade ffsica e mental, nao passavam de "esqueletos ambulantes" (N.T.J.

(25)

fisico e o comando do guarda. Nao podemos nos isentar da suspeita de que o animal labo-rans p6s-moderno, com seus tlabo-ranstornos

neu-ronais, seria tambem um muc;:ulmano, com a diferenc;:a, porem, de que, diversamente do muc;:ulmano, esta bem-nutrido e, nao raras ve-zes, bastante obeso.

0 ultimo capitulo da Vita activa de Hannah

Arendt trata do triunfo do animal laborans.

Frente a essa evoluc;:ao social, Arendt nao of erece nenhuma alternativa efetiva. Apenas · constata, resignada, que a capacidade de agir fica restrita a poucos. Depois, nas ultimas pa-ginas de seu livro, ela conjura diretamente o pensar. 0 pensamento seria o que menos pre-juizos teve daquela evoluc;:ao social negativa. Embora o futuro do mundo nao dependa do pensamento, mas do poder <las pessoas que agem, o pensamento nao seria irrelevante para o futuro <las pessoas, pois, dentre as atividades da vita activa, o pensamento seria a mais ativa

atividade, superando todas as outras ativida -des quanto

a

pura atua~ao. Assim, ela encerra seu livro com as seguintes palavras: "Aqueles

que estao familiarizados com a experiencia do pensamento dificilmente deixarao de concor-dar com o proverbio de Cato [ ... ]: 'Jamais see tao ativo como quando, vista do exterior, apa-rentemente nada se faz, jamais se esta menos s6 do que quando se esta s6 na solidao con-sigo mesmo": Essas frases conclusivas soam coma um auxilio emergencial. 0 que podera erigir aquele puro pensamento em que se pro-nuncia "de forma a mais pura" a "experiencia do ser-ativo"? Justo a enfase no ser-ativo tern muito em comum com a hiperatividade ea histeria do sujeito de desempenho p6s- mo-derno. Tambem esse proverbio de Cato, com

· o qual Arendt encerra seu livro, esta um tanto deslocado, pois em seu tratado De re publica,

Cicero reporta-se originalmente a ele. Na pas-sagem mencionada por Arendt, Cicero inter-pela seus leitores a afastar-se do "forum'' e do

"burburinho da multidao" e retirar-se para a solidao de uma vida contemplativa. Assim, logo ap6s ter citado a Cato, ele louva propria -mente a vida contemplativa. Nao a vida ati-va, mas s6 a vida contemplativa e que torna

(26)

o homem naquilo que ele deve ser. A partir

dai, Arendt quer louvar a vita activa. Tambem

aquela solidao da vida contemplativa nao se coaduna, sem mais, com o "poder do homem ativo': conjurado sempre de novo por Arendt.

Por volta do final de seu tratado Vita activa,

sem querer, Arendt acaba falando a linguagem da vida contemplativa. Ela nao consegue ver que precisamente a perda da capacidade con -templativa, que nao por ultimo depende da

absolutiza'rao da vita activa, e corresponsavel

pela histeria e nervosismo da sociedade ativa moderna.

50

5

Pedagogia dover

A vita contemplativa pressup6e uma

peda-gogia especifica dover. No Crepusculo dos

ido-los, Nietzsche formula tres tarefas, em vista <las

quais a gente precisa de educadores. Devemos

aprender a ler, devemos aprender a pensar,

devemos aprender a falar e a escrever. A meta

desse aprendizado seria, segundo Nietzsche,

a "cultura distinta': Aprender a ver significa

"habituar o olho ao descanso,

a

paciencia, ao

deixar-aproximar-se-de-si': isto e, capacitar o

olho a uma atern;:ao profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento. Esse

aprender--a-ver seria a "primeira pre-escolariza'rao para

o carater do espirito" ( Geistigkeit). Temos de

(27)

estimulo, mas tomar o controle dos instintos inibit6rios, limitativos". A falta de espirito, fal-ta de cultura repousaria na «incapacidade de oferecer resistencia a um estimulo: Reagir de imediato e seguir a todo e qualquer impulso ja seria uma doern;:a, uma decadencia, um sinto-ma de esgotamento. Aqui, Nietzsche nada mais prop6e que a revitalizac;:ao da vita contemplati-va. Essa vida nao

e

um abrir-se passivo que diz sim a tudo que advem e acontece. Ao contrario, ela oferece resistencia aos estimulos opressivos, intrusivos. Em vez de expor o olhar aos impul-sos exteriores, ela os dirige soberanamente. En-quanto um fazer soberano, que sabe dizer nao,

e

mais ativa que qualquer hiperatividade, que

e

precisamente um sintoma de esgotamento espiritual. A dialetica do ser-ativo que escapa a Arendt consiste no fato de que a agudizac;:ao hiperativa da atividade faz com que essa se converta numa hiperpassividade, na qual se da anuencia irresistivelmente a todo e qualquer impulso e estimulo. Em vez de liberdade, ela acaba gerando novas coerc;:6es.

E

uma ilusao acreditar que quanto mais ativos nos tornamos tanto mais livres seriamos.

Sem aqueles "instintos limitativos': o agir se deteriora numa reac;:ao e ab-reac;:ao inquieta e hiperativa. A atividade pura nada mais faz do que prolongar o que ja existe. Uma virada real para o outro pressup6e a negatividade da interrupc;:ao. S6 por meio da negatividade do parar interiormente, o sujeito de ac;:ao pode dimensionar todo o espac;:o da contingencia que escapa a uma mera atividade.

E

bem ver-dade que o hesitar nao representa uma ac;:ao positiva, mas

e

indispensavel para que a ac;:ao nao decaia para o nivel do trabalho. Hoje, vivemos num mundo muito pobre de inter-rupc;:6es, pobre de entremeios e tempos in:. termedios. No aforismo "A principal carencia do homem ativo': escreve Nietzsche: '~os ativos falta usualmente a atividade superior [ ... ] e nes-se nes-sentido eles sao preguic;:osos. [ ... ] Os ativos rolam como rola a pedra, segundo a estupidez da mecanica"25

• Ha diversos tipos de atividade.

A atividade que segue a estupidez da mecanica

e

pobre em interrupc;:6es. A maquina nao pode

25 NIETZSCHE, F. Menschliches, Allzumenschliches I. Op.

(28)

fazer pausas. Apesar de todo o seu desempenho computacional, o computador e burro, na me-dida em que lhe falta a capacidade para hesitar.

No empuxo da acelera\'.ao geral e da hipe-ratividade desaprendemos tambem a ira. A ira tern uma temporalidade hem espedfica, que nao se coaduna com a acelera\'.ao geral e com a hiperatividade. Essa nao admite nenhuma folga temporal. 0 futuro se encurta numa atualida-de prolongada. Falta-lhe qualquer negativida-de, que permitiria olhar para o outro. A ira, ao contrario, coloca definitivamente em questao o presente. Ela pressup6e uma pausa interruptora no presente.

E

nisso que ela se distingue da irri-ta\'.ao. A dispersao geral que marca a sociedade de hoje nao permite que surja a enfase ea ener-gia da ira. A ira e uma capacidade que esta em condi\'.6es de interromper um estado, e fazer

com que se inicie um novo estado. Hoje, cada vez

mais ela cede lugar

a

irrita\'.ao ou ao enervar-se, que nao podem produzir nenhuma mudan\'.a decisiva. Assim, irritamo-nos tambem por cau-sa do inevitavel. A irrita\'.ao esta para a ira como o medo esta para a angustia. Contrariamente ao

54

medo que se refere a um objeto determinado, a angustia esta referida ao ser como tal. Ela atin-ge e abala toda a existencia. Tambem a ira nao se refere a um unico estado de coisas. Ela nega o todo. Nissa consiste sua energia da negativi-dade. Ela representa um estado de exce\ao. A crescente positiva\'.ao do mundo torna-o pobre em estados de exce1rao. Agamben passa ao largo dessa positividade crescente. Contra seu diag-n6stico de que o estado de exce\'.ao se estende para um estado de normalidade, a positiva1rao geral da sociedade hoje absorve todo e qual-quer estado de exce\ao. Assim o estado de nor-malidade torna-se totalitario. Justo a crescente positiva\'.ao do mundo desperta muita aten1rao para conceitos como "estado de exce1rao'' ou ('imunidade': Porem, essa aten\'.ao nao

e

prova de sua atualidade, mas de seu desaparecimento. A crescente positiva1rao da sociedade en -fraquece tambem sentimentos como angustia e luto, que radicam numa negatividade, ou seja, sao sentimentos negativos26

• Se o

pensa-26 Tanto a "angustia" de Heidegger quanto a "nausea" de Sartre sao rea~oes tipicamente imunol6gicas. 0

(29)

mento mesmo fosse uma "rede de anticorpos e de prote<;:ao imunol6gica natural"27

, a ausencia

da negatividade transformaria o

pensamen-to num calculo. Possivelmente o computador

conte de maneira mais rapida que o cerebro humano, e sem repulsa acolhe uma imensidao de dados, porque esta livre de toda e qualquer

alteridade.

E

uma maquina positiva. Justo por

causa de sua autorrela<;:ao autista, por causa da

falta de natividade, o idiot savant gera

aque-les desempenhos que s6 seria capaz de reali-zar uma maquina computacional. No empuxo daquela positiva<;:ao geral do mundo, tanto o homem quanta a sociedade se transformam

numa maquina de desempenho autista.

Po-deriamos tambem dizer que precisamente o

esfor<;:o exagerado por maximizar o desempe

-nho afasta a negatividade, porque essa atrasa o processo de acelera<;:ao. Se o homem fosse

cialismo

e

o discurso filos6fico de cunho fortemente imu-nol6gico. A enfase da filosofia da existencia na liberdade deve sua for~a a alteridade ou estranheza. Justo essas duas obras principais do seculo XX indicam que este foi um se-culo imunol6gico.

27 BAUDRILLARD. Transparenz des Bosen. Op. cit., p. 71.

um ser da negatividade, a total positiva<;:ao do

mundo teria um efeito que seria nocivo.

Se-gundo Hegel, e precisamente a negatividade que mantem viva a existencia.

Ha duas formas de potencia. A potencia

positiva e a potencia de fazer alguma coisa. A

potencia negativa, ao contrario, e a potencia de nao fazer, para falar com Nietzsche; para dizer nao. Mas a potencia negativa distingue-se da mera impotencia, a incapacidade de fazer alguma coisa. A impotencia e simplesmente o

contrario da potencia positiva. Ela

e,

ela

pr6-pria, positiva na medida em que esta ligada com algo. Ela nao e capaz de alguma coisa. A potencia negativa supera a positividade, que

esta presa em alguma coisa.

E

uma potencia de

nao fazer. Se, desprovidos da potencia

negati-va de nao perceber, possuissemos apenas a po-tencia positiva de perceber algo, a percep<;:ao estaria irremediavelmente exposta a todos os estimulos e impulsos insistentes e intrusivos. Entao nao seria possivel haver qualquer «a<;:ao do espirito',. Se possuissemos apenas a poten-cia de fazer algo e nao tivessemos a potenpoten-cia

(30)

de nao fazer, incorreriamos numa hiperati-vidade fatal. Se tivessemos apenas a potencia de pensar algo, o pensamento estaria disper-so numa quantidade infinita de objetos. Seria impossivel haver reflexao (Nachdenken), pois a potencia positiva, o excesso de positividade, so admite o continuar pensando (Fortdenken).

A negatividade do nao-para e tambem um trac;:o essencial da contemplac;:ao. Na me-ditac;:ao zen, por exemplo, tenta-se alcanc;:ar a negatividade pura do nao-para, isto e, o vazio, libertando-se de tudo que aflui e se imp6e. As-sim

e

um processo extremamente ativo, e algo bem distinto que passividade.

E

um exerdcio para alcanc;:ar em si um ponto de soberania, de ser centro. Se possuissemos apenas a poten -cia positiva, estariamos, ao contrario, expos-tos de forma totalmente passiva ao objeto. A hiperatividade e paradoxalmente uma forma extremamente passiva de fazer, que nao admi-te mais nenhuma ac;:ao livre. Radica-se numa absolutizac;:ao unilateral da potencia positiva.

58

6

0 Caso Bartleby

0 relato de Melvilles "Bartleby", que foi objeto de diversas interpretac;:6es metafisicas ou teol6gicas28

, admite tambem uma leitura

patologica. Essa "hist6ria provinda da Wall Street" descreve um universo de trabalho desumano, cujos habitantes, todos eles, sao degradados a animal laborans. Apresenta-se detalhadamente a atmosfera sombria, hostil do escrit6rio espessamente rodeado de ar-ranha-ceus. A menos de tres metros ergue-se "alto o muro de tijolos, que se tornou preto por causa da idade e por es tar sempre

a

som

-28 Assim escreve Deleuze: "Mesmo enquanto catat6nico e anorexico, Bartleby nao

e

o doente, mas o medico da America enferma, o homem da medicina, o novo Cristo ou irmao de todos n6s" (Bartleby oder die Formel. Berlim, 1994, p. 60).

(31)

bra': Ao ambiente de trabalho, que parece uma caixa de agua, falta todo e qualquer tra<;o de

((vida'' (deficiente in what landscape painters call "life"). A melancolia e o mau-humor, de que se fala constantemente no relato, forma a atmosfera fundamental da narrativa. Os auxiliares do advogado sofrem todos eles de disturbios neuroticos. "Turkey': por exemplo,

e

acometido por uma azafama estranha, infla-mada, confusa e sem rumo (a strange, infla-med, flurried, lighty recklessness of activity). 0

auxiliar "Nippers': exageradamente ambicio-so,

e

atormentado por um disturbio intestinal psicossomatico. Durante o trabalho ele range os dentes e esta constantemente xingando. Com sua superatividade e excita<;:ao neur6tica, eles formam um polo oposto a Bartleby, que se cala e fica como que petrificado. Bartleby de-senvolve sintomas caracteristicos da neuraste-nia. Vista dessa forma, a sua formula "I would prefer not to" nao expressa nem a potencia ne-gativa do nao-para nem o instinto inibitorio que seria essencial para o "carater espirituar

( Geistigkeit). Representa, ao contrario, a falta

de iniciativa e a apatia pela qual Bartleby aca-ba inclusive sucumbindo.

A sociedade descrita por Melville

e

ainda uma sociedade disciplinar. Assim, todo relato esta perpassado de muros e paredes, elemen-tos de uma arquitetura da sociedade discipli-nar. "Bartleby"

e

propriamente uma ((historia de Wall street': Muro ( wall)

e

uma da palavras mais empregadas. Muitas vezes fala-se de "dead wall": The next day I noticed that Bartle-by did nothing but stand at his window in his dead wall revery. 0 pr6prio Bartleby trabalha atras de uma parede divisoria e olha totalmen -te distraido para uma dead brick wall. 0 muro sempre vem associado com a morte29

• Nao por ultimo o tema recorrente da prisao com fortes muralhas, que Melville chama de tumulos, se aplica tambem para a sociedade disciplinar. Ali, toda vida foi apagada. Tambem Bartleby instala-se nos tombs e morre em total isola-mento e solidao. Ele representa ainda um su-jeito de obediencia. Ele ainda nao desenvolve

29 Na tradu~ao vernacula "tabique" (Brandmauer = cor-ta-fogo) ou "parede cega de tijolos" desaparece total-mente o aspecto da morte.

(32)

sintomas daquela depressao que e uma marca caracteristica da sociedade do desempenho pos-moderna. Os sentimentos de insuficien

-cia e de inferioridade ou de angustia frente ao fracasso ainda nao fazem parte da economia dos sentimentos de Bartleby. Ele nao conhece autoacusac;:6es e autoagress6es constantes. Ele nao se ve confrontado com aquele imperativo de ter de ser ele mesmo, que marca a socie-dade de desempenho pos-moderna. Bartleby nao fracassa no projeto de ser eu. 0 copiar monotono, a unica atividade que ele tern de executar, nao lhe deixa espac;:o livre para -onde fosse necessaria ou possivel - uma ini-ciativa propria. 0 que faz Bartleby adoecer e aquele excesso de positividade ou de possibi-lidade. Ele nao suporta o peso do imperati-vo pos-moderno, de comec;:ar a abandonar o

pr6prio eu. Copiar e precisamente a atividade

que nao admite qualquer iniciativa. Bartleby, que ainda vive na sociedade <las convenc;:6es e instituic;:6es, nao conhece aquele exagero de trabalho do eu, que leva a um cansaro do eu

depressivo.

62

A interpretac;:ao ontoteologica de Bartle-by feita por Agamben, que abstrai de todo e qualquer aspecto patologico, ja fracassa nos dados da narrativa. Ela tampouco leva em considerac;:ao a mudanc;:a da estrutura psiquica da atualidade. Problematicamente, Agamben eleva Bartleby a uma figura metafisica de pura potencia: ((esta ea constelac;:ao filosofica a que pertence Bartleby, o escrivao. Enquanto escri-turario que deixou de escrever, ele representa a forma extrema do nada, donde surge toda a criac;:ao, e ao mesmo tempo a exigencia ine-xoravel desse nao, em sua potencia pura e ab-soluta. 0 escrivao se tornou a escrivaninha, a partir dai ele nada mais e que sua propria folha em branco,,30

• De acordo com isso, Bartleby

in-corpora o ((espirito': o "ser de pura potencia': que indica a escrivaninha vazia, na qual ainda nada foi escrito31

Bartleby e uma figura sem referenda para consigo mesmo ou algo outro. Ele nao tern

30 AGAMBEN. Bortleby oder die Kontingenz. Berlim, 1998,

p. 33. 31 Ibid., p. 13.

(33)

mundo, esta ausente e apatico. Se ele fosse uma ((folha em branco': seria porque esta esva-ziado de toda referenda de mundo e de senti-do. Ja os olhos cansados e turvos (dim eyes) de Bartleby dep6em contra a pureza da potenda divina, que supostamente ele incorporaria. Pouco convincente e tambem a afirma<;:ao de Agamben de que, com sua recusa teimosa de escrever, Bartleby continua na potencia per-severante no poder-escrever, que sua recusa radical ao querer anunda uma potentia abso-luta. A nega<;:ao de Bartleby, segundo isso, se-ria anundante, querigmatica. Ele incorpora o puro (Cser, sem qualquer predicado'~ Agamben transforma Bartleby num mensageiro angeli-co, num anjo da anunda<;:ao, que no entanto ((nao afirma nada de nada"32Mas Agamben

ignora que Bartleby rejeita todo "curso do mensageiro'' (errand). Assim, ele se nega tei-mosamente a ir ao correio: "Bartleby", said

I, "Ginger Nut is away; just step round to the Post Office, won't you?"[. .. ] '1 would prefer not to". Sabe-se que a hist6ria se encerra com o

32 Ibid., p. 40.

64

p6s-relato estranho de que Bartleby teria tra-balhado por um tempo como empregado em uma agenda de cartas mortas, nao entregues

(Dead Letter Office): "Dead letters! Does it not sound like dead men? Conceive a man by nature and misfortune prone to a pallid hope-lessness, can any business seem more fitted to heighten it than that of continually handling these dead letters and assorting them for the flames?" Cheio de duvidas, clama o advogado:

"On errands of life, these letters speed to death".

A existenda de Bartleby

e

um ser negativo para a morte. A interpreta<;:ao ontoteol6gica de Agamben que eleva Bartleby a anundador de uma segunda cria<;:ao, de uma ''des-cria<;:ao': contradiz essa negatividade; essa "des-cria<;:ao" dissolve as barreiras entre aquilo que foi e aquilo que nao foi, entre o ser e o nada.

E

bem verdade que, em meio aos tombs,

Melville deixa surgir uma minuscula semente de vida, mas frente

a

massiva desesperan<;:a, a massiva presen<;:a da morte, a pequena mancha de relva ( imprisoned turf) como que da enfase

(34)

a palavra de consolo que o advogado dirige ao

preso Bartleby soa totalmente irnitil: "Nothing

reproachful attaches to you by being here. And see, it is not so sad a place as one might think.

Look, there is the sky and here is the grass". A

isso Bartleby responde nao muito

impressio-nado: "I know where I am". Agamben aponta

tanto o ceu quanto a relva como sinais messia-nicos. A pequena mancha de relva como uni-co sinal de vida em meio ao reino dos mortos

reforc;:a ainda mais o vazio sem esperanc;:a: '' On

errands of life, these letters speed to death,,

e,

quern sabe, a mensagem da narrativa. Todos

os esforc;:os em favor da vida levam

a

morte.

0 artista faminto de Kafka, ao contrario, nao esta carregado com essas ilusoes. Sua morte, da qual ninguem se da conta, da um grande alivio aos envolvidos, um "desafogo inclusive para os que tern o sentido embota-do': Ora, sua morte abre espac;:o para a jovem pantera, que encarna a alegria despretensiosa da vida: "os guardas lhe traziam, sem refletir muito, o alimento que ela mais gostava; pa-recia-lhe nem sequer ter perdido a liberdade;

66

esse corpo nobre, dotado de tudo que e neces-sario ate quase para dilacerar, parecia trazer consigo ainda a liberdade. Quando mastigava, em parte alguma parecia-lhe que essa desapa-recia; e a alegria de viver vinha com tamanho ardor de sua garganta, que nao era facil para os observadores suporta-la. Mas eles se supe-ravam, se acotovelavam ao redor da jaula e de modo algum queriam sair dalC. Mas ao artista da fome, ao contrario, e s6 a negatividade da

negac;:ao que lhe· da o sentimento da

liberda-de, que e tao ilus6ria como aquela liberdade que conserva a pantera "ao mastigar': Tam-bem a Bartleby se associa o "Sr. Kotellet': que aparenta ser um pedac;:o de came. Ele elogia exageradamente o local, tentando convencer a

Bartleby a comer: "Hope you find it pleasant

here, sir; - spacious grounds - cool apartments,

sir - hope you'll stay with us some time - try

to make it agreeable. May Mrs. Cutlets and I have the pleasure of your company to dinner,

sir, in Mrs. Cutlets' private room?" As palavras

que o advogado dirige ao assombrado Mr. Ko-tellet, ap6s a morte de Bartleby tern um tom

(35)

quase ironico: "Eh! - He's asleep, aint he?" "With kings and counsellors", murmured I. A

narrativa nao se volta na direc;:ao de uma es-perarn;:a messianica. Com a morte de Bartleby, cai precisamente a "ultima coluna do templo decaido': Ele sucumbe como um "naufragio em meio ao Atlantico': A formula de Bartle-by "I would prefer not to,, afasta-se de qual-quer interpreta<;:ao messianico-cristol6gica. Essa "historia provinda da Wall Street» nao

e

uma hist6ria da "des-criac;:ao'' [Ent-schopfung], mas

uma historia do esgotamento [Erschopfung].

Queixa e acusa<;:ao, juntas, formam a invoca<;:ao com a qual se encerra a narrativa: "Oh Bartle-by!, Oh, humanidade!''

68

7

Sociedade do cansa~o

0 cansafO tern um corafdO amplo. Maurice Blanchot.

A sociedade do cansa<;:o, enquanto uma so-ciedade ativa, desdobra-se lentamente numa sociedade do doping. Nesse meio tempo,

tam-hem a expressao negativa "doping cerebral"

e substituida por "neuro-enhancement"

(me-lhoramento cognitivo ). 0 doping possibilita

de certo modo um desempenho sem desem-penho. Todavia, ha tambem cientistas serios que argumentam que sera de certo modo ir-responsavel nao utilizar tais substancias. Um cirurgiao que poderia operar de maneira mais concentrada com ajuda desse neuro-enhan-cer faria menos erros e poderia salvar mais

Referências

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