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O pensamento pedagógico de Rousseau e a pré-escola: um estudo de Émile

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(1)

PROGRAMA DE PóS~GRADUAÇXO EH EDUCACAO CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO

_.______í_._._.-‹-ú

a O PENSAHENTO PEDAGÓGICO DE ROUSSEAU E A Pflt-ESCOLA:

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um arm.: A

I

ANA BEATRIZ CERIZARA Orientada por: Prof. Dr. SELVINO JOSÉ ASSMANH

Florianópolis, Santa Catarina Julho de 1988

(2)

DA EDUCAÇÃO PROGRAMA DE Pós-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO

O PENSAMNTO PEDAGÓGICO DE ROUSSEAU E A PRE-ESCOLA: UM ESTUDO DE EMILE

DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO COLEGIADO DO

CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO DO CENTRO

DE CIENCIAS DA EDUCAÇÃO COMO EXIGENCIA

PARCIAL PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE

MESTRE EM EDUCAÇÃO.

O

APROVÊ/

ELA CO SSÃ INADORA EM 31/O8/1988.

Pvy Q 1

\zZI

ino J AsSšAnn (Prof. Dr UFSC) - Orientador

`

eda Schei ( Profa. Dra. UFSC)

'¿¡‹'^*'**'

1 ton elra do ascímento (Prof. Dr. USP)

- ANA BEATRIZ CERIZARA

Ç,O “Âm

Florianópolis, Santa Catarina

(3)
(4)

A memória de Luiz Roberto Salinas

(5)

V

AGRADEC I HENTOS

Ao INEP pelo Financiamento; ao Selvino que Fez muitíssimo mais que sua obrigação me desorientando orientando; ao

Uálter que revelou o Rousseau que havia dentro de mim; ao Philippe que me apontou o caminho das olimpíadas; a Mílton Meira

que me indicou os meandros das bibliotecas e as veredas do pensamento de Rousseau; ao Sérgio que conseguiu botar Rousseau no computador (e digerí-lo), a Françoise que me alfabetizou

em Francês; à Vera pela revisão do texto; a Teresa e Cida pela

solidariedade. E ao Pedro pelas vírgulas, parênteses e e×cla‹

(6)

RESUMO . . . .. RÉSUMÉ . . . . . . . ..

MEU ENCONTRO COM ROUSSEAU . . . . ... . . . . . . . ... . . . . .. O1

1.1 - DA PRIMEIRA LEITURA . . . . . ... . . . ... . . . . .. O4

1.2 - DOS PRIMEIROS QUESTIONAMENTOS ...

1.3 - DAS PRIMEIRAS DEFINIÇÕES . . . ..

z

1.4 - DA DISSERTAÇKO: OBJETIVOS E LIMITES

NOTAS DA PRIMEIRA PARTE . . . . . . . . . ..

ggggg NA OBRA DE Rousszàu .. . . . . ..

TATEANDO O LIVRO . . . . . . . . . ... . . . . . . . . ... . . . .. 31

3.1 - DO LIVRO PRIMEIRO . . . . . . . . ..

NOTAS DO LIVRO PRIMEIRO .. . . . . . . . . . . . . .. 97

3.2 - DO LIVRO SEGUNDO . . . . . . . . .. NOTAS DO LIVRO SEGUNDO . . . . . . . . . . .. 3.3 - DOS OUTROS LIVROS ... . . . . . . . . . . ..

NOTAS DOS OUTROS LIVROS .. . . .. 253

CONCLUSÃO: O FIH DO COMEÇO .. .. . . . . . . . . . . . ... . . . .. 257

ANEXO .. . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 264 › BIBLIOGRAFIA .. . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . ... .. 265 n - . a n u | n n u ¢ n u n n . n | ‹ ‹ n u n n | u u o u ; n u n u n I n | u | n . . . . . . . . . . . . ..2 . . . . . . . -. VII . . . . . . . . ..VIII . . . .. O6 12 16 21 22 ... . . . . . . .. 38 . . . . . . . . ..109 24 . . . . . . . . . . . . ..249

(7)

RESUMO

O trabalho tem por objetivo rediscutir os fundamentos da educação através da convivência com um texto clássico, no caso, o Émile Qu de Lzgggggtigg de Jean-Jacques Rousseau.

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica sobre o pensamento pedagógico de Rousseau, enfocando mais especificamente

a educação pré~escolar. Analisam-se os dois primeiros livros do

gmilg, em que o Autor discute a educação para a infância.

A primeira parte do trabalho procura situar o Émile na unidade da obra do Autor, apontando para a possível relação entre

política e pedagogia no pensamento rousseauniano, assim como entre o Émile e as demais obras de Rousseau.

A segunda parte trata da análise propriamente dita dos dois primeiros livros do ggiig onde, a partir do estudo da obra

de Rousseau no original, pretende~se retoma-lo e redimensionáflo, na tentativa de demonstrar o quanto o pensamento pedagógico contemporâneo e os historiadores da educação, ao simplificar e reduzir as contribuições do Autor ao espontaneísmo e ao ”laisse2- faire", têm deixado de perceber, não só a importância, como a

atualidade de suas idéias para a educação em geral e, em

particular, para a educação pré-escolar.

(8)

R$511!!!

Le but du travail est de redíscuter les fondements de

l'education à travers l'étude du texte classique Egilg gg de

liádgggtigg de Jean-Jacques Rousseau. ll s'agit d'une recherche

bibliographíque sur la pensée pedagogique de Rousseau, focalisant plus specifiquement l'èducation pré-scolaire. J'analyse les

deux premiere livres d'Égi¿g. dans Iesquels 1'auteur discute l'êducation pour 1'enfance. La première partie du travail essaye de situer Égilg dans l'unité de l'oeuvre de l'auteur en indiquant

la possible relation entre politique et pédagogie dans la pensée

de Rousseau, ainsi qu'entre Égiig et les autres oeuvres de l'auteur. La seconde partie traite l'analyse proprement dite des deux premiers livres d'§g¿¿g oü. a partir de l'ëtude de l'oeuvre

de Rousseau dans l'origina1, Je prétends la reprendre et la

redimensionner, dans la tentative de demonstrer combien la pensée

pédagogique contemporaine et les historias de l'éducation, en simplifiant et en réduisant 1'apport de 1'auteur au spontanefsme

et au laissez~faire, n'ont perçu ni l'importance ni l'actua1ité

de ses idées pour l'éducation en general, et en particulier pour I'éducation pré-scolaire.

(9)

_.

J.-J. Rsussssu.§m¿1â Qu és g;§gugsg¿9Q, Psràs, cisssâ- ques Garnier, 1951.

J.-J. Rousseau, ggíiig Qu da šdggggšg. Tradução de Sérgio Hiliiet. São Paulo, Difel. 1979

J--J- Rouflseauz QQ Qgnëzêäe ãssiêl 92 Bzinsisiss QQ Qiggigg Egligigg. São Paulo, Abril Cultural, 1973.

(Coleção os Pensadores)

J--J- R°u88@au. ãnêêie 59952 â Qcigsa Qês Linguas- São Paulo, Abril Cultural. 1973 (Coleção os Pensadores)

J.-J. Rousseau. Qiêâuzês êeëcâ ê 921929 â sê Eunéâmânz nos às Dsêiguêiéêáâ ânëcs ss ësmânâ- São Paulo. Abril Cultural, 1973. (Coleção os Pensadores)

J.-J. Rousseau. Qisâuzss ssëzâ és Qiênsiês 2 às 52222- São Paulo, Abril Cultural, 1973, (Coleção os Pensa- dores)

J--J- R°u=S°av- às Qsníiêêêââ 92 Qêênzéêssusë 3925: gggg. Rio de Janeiro, José Olympio, 1948.

J.-J. Rousseau. Qâ Qêxênslsê QQ sêminhênës âsliëásle- Editora da Universidade de Brasília. 1986.

J.-J. Rousseau. Qgggggg Qgggišggg. Tomo IV. Editions

(10)

1 - HEU ENCONTRO CDH ROUBBEAU

Este texto iniciaimente pretende descrever o processo pelo qual passei, até chegar a optar por uma dissertação sobre ÉQÀÀQ ›

de Rousseau. Em .outras palavras. como foi que uma pedagoga. professora do curso de pedagogia da UFSC há cinco anos, cursando o mestrado em educação; especiaiista em educação pre-escoiar, formada na PUC de Porto Alegre nos anos 70, chegou até Rousseau.

Durante os quatro primeiros semestres do curso de mestrado. no quai ingressei com o projeto de fazer uma dissertação sobre a

"Função Pedagógica da Pré-Escola no Brasil". tive acesso a

informações até então ignoradas por mim; e, à luz dum novo

referencial teórico tive a oportunidade de enfrentar antigos

questionamentos de uma forma nova menos amarrada e menos superfi- cial do que até então vinha fazendo. Frente a determinado

problema, comecei a tentar estabelecer tantas relações quantas

fossem possíveis, relativizando o pronto e o acabado, o certo e o errado. Descobria aos poucos o quanto esta atitude não só am- pliava o tema, como me fazia buscar outras fontes para fundamen-

tar minhas reflexões. -

Acho importante destacar o fato de que, mesmo atuando como professora universitária há três anos, somente então descobria a

importância e a necessidade de trabalhar com textos mais densos,

mais complexos, que, sem abandonar a abordagem direta de si-

tuaçöes práticas, pudessem auxiliar na busca de uma reflexão mais profunda.

4

(11)

Havia uma explicação muito clara para isso: o fato de ter feito um curso de graduação, onde os conhecimentos contemporâneos eram extremamente valorizados, em detrimento dos textos clássicos. Naquele curso, os "formadores de especialistas da pré-escola" sempre mais preocupados com o fazer na sala de aula,

do que com o pensar, acabavam por selecionar livros de determi- nada linha teórica; Piaget, Freinet ou Hontessori. Geralmente, nem os próprios autores eram lidos, mas sim seus intérpretes, que conseguiam "tirar das teorias" relações mais diretas com a práti-

ca da sala de aula, assumindo, assim, o papel inevitável de facilitadores, simplificadores das teorias e, conseqüentemente,

seus redutores.

O importante era o aqui e o agora. A reflexão não aparecia, até porque não se tinha tempo para isso. O conhecimento produzi- do pelos teóricos ia sendo pouco a pouco parcializado, simplifi-

cado, dilufdo em apostilas que pouca ou nenhuma relação mantinham com o original.

Tendo estas considerações como ponto de partida, foi que tomei a decisão de tentar aproveitar o tempo de que dispunha para

a elaboração da minha dissertação, de maneira a desenvolver um

trabalho que fosse, em última análise, uma recuperação do tempo perdido, uma vez que tinha um sentimento de perda de tudo aquilo

a que eu não tinha tido acesso e que teria sido fundamental para minha formação.

'

Feita esta primeira escolha, as outras foram se delineando. O trabalho de dissertação deveria ser uma pesquisa bibliográfica em que, através de estudos e leituras sistemáticas dos clássicos, pudesse aprofundar aspectos relacionados, de alguma forma, à

(12)

minha área de atuação, a pré-escola.

U objetivo era encontrar um autor que contemplasse. ao mesmo tempo. o conteúdo, a área de estudo e a maneira de abordar o

assunto.

Já tinha conhecimento da importância da contribuição de Rousseau para a educação. mais especificamente para a. educação

infantil, no entanto, não havia lido nenhuma de suas obras. dispondo apenas de algumas referências feitas nos livros e manuais de Pedagogia.

Assim que fiquei sabendo da existência de uma tradução em português do livro que Rousseau havia escrito tratando de educação (Émile) surgiu a vontade de tomá-lo como objeto de

estudo.

A idéia logo me entusiasmou. pois sendo da área da pré- escola e, sabendo muito por alto que Rousseau era o legítimo

defensor do "bom selvagem”, do ”espontanefsmo” e do "laissez- faire” em educação, seria interessante, finalmente, ler um teórico no original e confronta-lo com o uso que se tem feito dele na educação.

Esse primeiro entusiasmo, no entanto. se fez acompanhar do medo de enfrentar pela primeira vez o texto de um autor do porte de Rousseau. Esse medo se justificava mais ainda, na medida em que a idéia que eu fazia de um texto clássico_era a de que

deveria ser tão denso e tão ”metaf£sico" que eu não conseguiria fazer dele uma leitura compreensiva.

Finalmente. aceitei o desafio e resolvi ler o livro.

(13)

1.1 DA PRIHEIRA LEITURA

O contato direto com o livro não ajudou muito. Nada mais, nada menos do que 569 páginas, traduzidas na segunda pessoa do plural. O tradutor, Sérgio Milliet, carregando na formalidade do tratamento, talvez com o intuito de manter-se fiel ao texto original e_à época em que foi escrito (Franca, século XVIII), acabou por dificultar a relação do leitor brasileiro do século XX com o texto, ferindo o estilo próprio do autor. no qual elegân- cia e refinamento não significam rebuscamento.

No entanto, não desisti. A cada tentativa de me afastar, me apoiava na seguinte colocacãoz" "A discussão dos clássicos não

se esgota num mero gosto por erudição. Ao contrário, a reflexão

sobre as temáticas clássicas é um desafio para a compreenssão do

passado e sugere caminhos para a interpretação do presente".

(Célia Quirino, 1980; p.3)

Ao iniciar a leitura, apesar de não ter podido contextuali-

zar adequadamente nem o livro nem o autor no seu tempo histórico, sentia mesmo assim. que o texto ia exercendo uma profunda sedução

sobre mim. Vários foram os motivos que para isso contribuíram; dentre eles posso destacar; primeiro. o fato de descobrir que Rousseau havia escrito Émile, a partir de um' aluno imaginário,

que ele acompanharia desde o nascimento até a idade de 25 anos:

segundo, o fato de logo nas primeiras páginas verificar que Rousseau não se restringia às idéias "abstratas" para "filosofar" mas que utilizava para suas reflexões os exemplos mais práticos

(14)

do dia-a-dia de uma crianca, desde o choro, a alimentação, as

fraldas, até à escolha dos livros. Surpreendeu-me uma abordagem

tão pratica, tão ligada ao cotidiano, num trabalho filosófico. Não posso deixar de registrar o misto de espanto e encantamento que me envolveu. Certamente, tais fatores funcionaram como faci-

litadores da minha aproximação com o texto.

Na verdade, no texto de Rousseau, não necessariamente aquilo que parece ser, á. Explicoz não é pelo fato de ele utilizar exemplos concretos do dia-a-dia que suas reflexões são menos profundas, ou mais fáceis de serem apreendidas.

Isso só vem confirmar a ideia de que um bom livro, para ser

bem assimilado, deve ser lido inúmeras vezes; e isto aconteceu na minha leitura de §milg¿ U fato de a minha primeira leitura ter

sido superficial, descontextualizada e parcial, ajudou a que eu

não desistisse de continuar a fazë-la, na medida em que não tinha

condições de perceber a dimensão do trabalho a que me estava

propondo realizar, exatamente por ignorar a grandeza do autor com

que estava trabalhando.

H

Outro aspecto que não posso deixar de destacar foi o apare- cimento de uma certa paixão pelo texto. Sentia que o texto me atrafa, mas não conseguia explicar esse fascínio; quanto mais tentava. explicar racionalmente, mais difícil ficava, pois não concordava. necessariamente, com tudo o que estava escrito: maã mesmo não concordando, saía da leitura com a sensação de ter lido

algo bem escrito, com uma densidade e solidez que Jamais encon- trara em outra obra. Mais tarde, ao ler um trecho do próprio

livro, entendi o porquê do meu sentimento: "Perdoem-me. portanto, leitores de tirar por vezes meus exemplos de mim mesmo. Para

(15)

1 X

fazer bem este livro, é preciso que o faça com prazer". (E; 142)

lnclino-me a achar que um texto escrito com paixão, deve também

ser lido com paixão. .

Mesmo que o "namoro" com o texto estivesse indo muito bem, o processo não foi nem linear, nem tranqüilo e harmonioso. Muito pelo contrário, foi sinuoso. inseguro, intranqüilo e com muitos contratempos. Na verdade, acho que posso dizer que oscilava entre dois extremos, entre o amor e o ódio; no primeiro. entrega- va-me totalmente ao texto, no segundo, refutava suas ideias.

Havia trechos em que a leitura fiuía tranqüilamente, por

vezes em tom de concordância, em outras de descoberta, em outros de encantamento. Has os mais difíceis de superar foram menos os da discordância teórica, que os de falta de entendimento.

1.2 DCD PRIHEIROB QUEIJTIGHAHEHTOU

Com todos estes percalços no caminho, logo ao terminar a

leitura do Livro Primeiro, fui me convencendo de que aquele livro não tratava o problema da liberdade da forma reduzida e simplifi-

cada com que me fora sempre dito. Ao contrário, não só era muito mais complexa. como inovadora em relação ao pensamento contemporâneo. na maioria dos aspectos.

No entanto, mesmo percebendo que eu não conseguia entender o

texto na sua totalidade, intufa que devia me desprender dos meus

‹_.__._.--_.-._‹-___...-.-_._._____._‹-_-_-_

X Todas as citações do Émilg Foram refeitas por Françoise Galler Magalhães Gomes e revisadas por Ualter Carlos Costa.

(16)

preconceitos e deixar que o texto flufsse em mim. de acordo com sua própria lei interior. Em outras palavras, sabia que existia uma lei interna e uma mensagem, só que eu não estava pronta para absorve-la.

Aos poucos, fui percebendo que buscar em Rousseau coerência linearidade, princípios claros e definitivos. era procurar o me-

nor, o menos importante, pois seria negar a sua maior riqueza, ou

seja. a sua capacidade de aceitar que não é possível fechar

questão. Percebia que, na busca do entendimento de qualquer

«\

problemática, Rousseau não se contenta com a solução aparentemen-

te mais lógica e fácil, antes valoriza o percurso e aponta outras soluções e outras possíveis perguntas.

"Desse ângulo, o filósofo não se mostra como um autor de tratados teóricos, nem como um mestre a doutrinar discípulos; ele

dá o exemplo vivo da liberdade, da independência e da audácia no exercício do Juízo... " (Desne 1974, p. 72)

Era preciso, portanto, seguir a leitura aos' poucos;

tateando as palavras, procurando seus sentidos, seus significados próprios dentro do referencial Filosófico estabelecido por Rous~ seau. Percebia que ler um texto produzido no século XVIII ex- clusivamente com a visão do século XX estava prejudicando o meu

entendimento e fui tentar situar Rousseau e o Émile no seu tempo. .Procurei ler sobre a história do pensamento filosófico,

sobre o papel que Rousseau havia tido na França do século XVIII, alem de comecar a buscar estudos sobre Rousseau; Mesmo tendo uma

resistência inicial aos intérpretes, fui sentindo que não seria

pelo desconhecimento das diferentes interpretações da obra de Rousseau que eu iria conseguir legitimar a minha própria leitura

I

(17)

e muito menos garantir minha independência.

Foi nesse momento que vivi a crise definitiva, que poderia

ser explicada da seguinte maneira; como eu, uma pedagoga, me atrevia a trabalhar com um autor que influenciara a história do

pensamento universal, do ponto de vista político, filosófico e

pedagógico? Foi aí que deparei com a minha pequenez diante de

um "monstro sagrado". Se tantos pensadores tinham sido influen- ciados não «só pelos postulados de Rousseau como feito deles o

ponto de partida para suas obras, duas dúvidas se apresentavam: primeira. a de que eu não teria condições de "dar conta" de um

autor com a grandeza de Rousseau; e segunda, qual a importância

de realizar um trabalho como este, em que eu poderia acrescentar pouco ou nada ao mundo teórico que se Formara em torno desse

pensador 7 .

Mesmo sem conseguir responder a estas interrogações. senti

que o processo era irreversível, ou seja, que havia aceito o desafio e que, mesmo sabendo da responsabilidade de trabalhar com Rousseau. me sentia na obrigação de resgatar a contribuição que

ele trouxe para a educação, para de alguma forma tentar

socializar sua obra com os educadores de hoJe. Seria. portanto. uma leitura do ponto de vista pedagógico, inevitavelmente parcial

e limitada, mas nem por isso necessariamente inútil ou errada. O próprio Rousseau auxiliou-me nesta decisão, ao escrever:

"Lembre-se, lembre-se sem cessar de que a ignorância nunca

faz mal. de que só o erro 6 funesto e de que ninguém se perde

2

pelo que não sabe mas sim pelo que pensa saber”. (E;184)

E continuei meu percurso, tendo como pano de fundo, o que diz Cassirerz " Qualquer pessoa que penetre com profundidade

(18)

nesta obra e reconstrua a partir dela uma visão de Rousseau, do

homem, do pensador e do artista, sentirá imediatamente o quanto o esquema abstrato de pensamento que normalmente se apresenta como

o ensinamento de Rousseau" é insuficiente para apreender a

abundância interior que a nós se revela. U que para nós se descobre aqui não é uma doutrina fixa e definida. Trata-se antes, de um movimento de tal força e paixão que parece quase impossível, diante dele, refugiar-se na quietude da contemplação histórica ”obJetiva". Constantemente ele se impõe a nós e de modo constante nos arrasta consigo". (Cassirer 1980.p.378)

Sem que tivesse tomado consciência, de repente, outra "pre- tensão" minha poderia vir a se realizar. Explicoz ao me propor a

fazer uma dissertação de mestrado, a idéia que mais rejeitava

era a de cair num discurso formal, acadêmico, repetitivo, em que

a paixão não tivesse lugar. Pretendia fazer um trabalho que, sem negar a sistematização do saber, também contemplasse o "delírio

teórico", na intenção de fazer com prazer, um texto prazeroso. E

para conseguir isso, nenhum estímulo seria melhor do que traba:

lhar com um autor como Rousseau. Ainda segundo Cassirerz ”... O

que para ele estava estabelecido, aquilo a que tentou agarrar-se

com toda a força do pensamento e do sentimento, não era o objeti-

vo em direcão ao qual se dirigia, mas o impulso que seguia. E ele ousou entregar-se a este impulso; ao modo de pensamento essencialmente estático do século, opôs sua dinâmica inteiramente pessoal de pensamento, sentimento e paixão. Esta dinâmica ainda hoje nos mantém presos ao seu fascínio". (ibid. p.380)

Assim sendo, 'o caminho que se apresentava era o de tentar apropriar-me do texto, utilizando seus intérpretes sempre que

(19)

sentisse necessidade.

Concomitantemente a este processo, outra direção esboçava- se.

Durante o curso de mestrado, um dos autores com que trabalhamos foi Gramsci. Um dos aspectos mais destacados em sua busca do "princípio educativo” era a coerção, ou seja. o que levava o marxista italiano a se posicionar contra Rousseau em

sua crítica à "escola nova”. _

Em uma carta à cunhada, referindo-se a uma planta, ele

escreve: "Todos os dias me vem a tentação de podá-ias um pouco

para aJudar a crescer, mas permanece na dúvida entre as duas concepções do mundo e da educação: se agir de acordo com Rousseau

e deixar obrar a natureza que nunca se _esquiva e e

fundamentalmente boa, ou se ser voluntarista e forçar a natureza,

introduzindo na evolução a mão esperta do homem e o principio da

autoridade. Até agora a incerteza não acabou e na cabeça

disputam as duas ideologias”. (Gramsci 1978, p. 128). Se, nessa

época (1929) a dúvida permanece, no final acaba optanto pelo

autoritarismo/conformismo como modo de intervir no processo de formação do homem, ou sega, "contra Rousseau".

Mesmo não se encontrando nas obras de Gramsci, um estudo sistematizado sobre a educação na infância, suas anáiises sobre o

espontaneísmo e autoritarismo, foram pouco a pouco despertando em

mim o interesse de confrontar estas duas concepções ”espontaneísmo"gkousseau) e "autoritarismo" (Gramsci), a partir

das próprias obras de ambos os pensadores, tentando transpõ-las para a educação das crianças de zero a seis anos.

(20)

sua época.” também Gramsci, a partir da sua preocupação com a

transformação social. com a construção de uma sociedade mais

Justa e livre, elaborou uma proposta pedagógica também revolucionária - não mais contra o feudalismo como Rousseau, mas

contra o capitalismo e os resquícios de feudaiismo ainda presentes na sociedade italiana.

'

Além disso, um elemento que me estimulava a realizar este z

trabalho. era o fato de - através da leitura dos textos originais

dos dois autores - encontrar mais posições convergentes do que

antagônicas. De certa forma, podia-se questionar as

denominações dadas às suas idéias; U que seria, realmente, o

espontanefsmo em Rousseau ? Em que medida o autoritarismo - conformismo proposto por Gramsci diferia da proposta efetivamente feita por Rousseau ? Qual o papel que os intérpretes desses autores tiveram no processo de dicotomizaçäo das posturas teóricas de Rousseau e Gramsci ?

Tendo estas preocupações como ponto de partida, o

anteprojeto de dissertação. inicialmente, teve por tema "Espontanefsmo e/ou Autoritarismo na pré-escola : um confronto entre as idéias de Rousseau e Gramsci.” Sem dúvida nenhuma, um progeto bastante ambicioso. Assim que iniciei a leitura dos

textos originais. fui percebendo não só a dimensão do trabalho a

que me estava propondo. como também a necessidade de fazer novos

recortes. Era preciso delimitar mais o campo do estudo.

Foi assim que optei por trabalhar, neste primeiro momento, somente com Rousseau. deixando o estudo de Gramsci para um trabalho posterior.~ Feita esta escolha, voltei à minha leitura

(21)

áails-1.3 DAS PRIHEIRAS DEFHIIÇBEB

É importante frisar que, a esta altura, eu Já tinha definido

o tópico a priorizar na minha abordagem, pois. quanto mais avan- çava na leitura do Émile, mais sentia necessidade de fazer recor-

tes. Eram tantos os temas abordados, tão amplas as análises, que se fazia necessário selecionar o obJeto a ser prioritariamente

analisado.

As dificuldades que enfrentava eram: em primeiro lugar, o fato de que Rousseau tem sido considerado pelos educadores como

o

"pai do espontaneƒsmo", da "escola nova" ou o precursor do lais-_

sez-faire, no sentido de deixar a criança livre dos entraves _da

autoridade dos adultos I para que espontaneamente se desenvolvam:

e, em segundo lugar. a constatação feita atraves do estudo do

texto do autor, de que apesar de ter encontrado essas afirmações no livro, elas são ditas num contexto muito mais amplo, e que ignorar o teor deste contexto á. senão distorcer, pelo menos

reduzir a idéia de liberdade proposta por Rousseau.

Diante disso, eis que se esboçava o meu objetivo: conside- rando gousseau como fonte da corrente espontaneísta da educação, retomá-lo e redimensioná-lo de acordo com o texto original, na tentativa de demonstrar o quanto o pensamento pedagógico contem- porâneo. ao simplificar e reduzir suas contribuições, tem deixado de perceber não só a importância, como a atualidade de suas

z

ideias pedagógicas.

A maior dificuldade era explicar que, mesmo tendo-se assumi-

(22)

13

do espontaneísta, Rousseau não se mantinha assim. Havia alguma coisa que eu não tinha conseguido captar e que me frustrava sempre que buscava encontrar o "elo perdido", aquela explicação

que desvendaria o caminho percorrido pelo autor e que desemboca- ria, necessariamente, numa síntese superadora. Mais uma vez, eu buscava uma linearidade, uma lógica, que Jamais seria encontrada num autor como Rousseau. A

, O. que mais poderia ajudar a avançar no entendimento do seu

discurso~ talvez fosse a sua constante preocupação em tratar Ao

homem a partir da sua característica mais forte que e a contra-

dição, a convivência com os seus opostos; o conflito_entre a von-

tade `e a necessidade; o conflito entre o homem da natureza e o

homem do homem; entre o individual e o social. E o mais impor- tante, tratar essas contradições, na busca da complementariedade entre elas. É pela afirmação dos contrários que Rousseau tenta

superá-los. u

Por isso, ele utiliza o único recurso que lhe possibilita

conceber a coexistência desses opostos, ou seja, a invenção de um

mundo fictício. de um aluno imaginário, atraves do qual ele possa expressar seu pensamento a respeito do papel da educação na

formação do homem.

Rousseau aborda seu projeto de'educação a partir de um

preceptor e de um aluno integrantes de uma sociedade corrompida. Estranho paradoxo: educar Émile como homem, vivendo em uma socie- dade corrompida.

Por se dar conta de que o homem é um ser contraditório, 6 que ele aparentemente nega esta contradição como recurso para, explicitando-a constantemente, quer como crítica à sociedade da

(23)

.I

\

.

,. 14

flfpoca, quer como oposição à educação do seu tempo, ,buscar o

convívio necessário destes opostos. ~

-A

Rousseau acreditava no homem e na sua bondade original. No entanto, como conciliar essa bondade original com a sociedade ‹~›

artificial em que o homem vive ?

É para homens que Rousseau escreve, colocando-se enquanto homem, exercendo aquela capacidade, que segundo ele, 'é a um só

tempo sua fortuna e sua desgraça; a primeira, porque é pela

capacidade de pensar que o homem se distingue dos outros seres vivos; e a segunda, porque é ela que o afasta do seu estado de

origem, de harmonia, para colocá-lo entre os outros homens, num estado distante do inicial, uma vez que o estado de natureza supõe o homem sozinho.

O discurso de Rousseau no Émile constitui uma apologia da educação enquanto meio para ajudar o homem a viver em sociedade,

sem que isso signifique o'afastamento total do homem natural.

É, nesse sentido, que Rousseau vai tecendo sua rede e nos

remetendo, página após página, a enunciados defendidos num pri-

meiro momento como verdades definitivas, seguidas da sua própria relativização e quando não da sua negação. Dessa forma, o que parecia um todo pronto e fechado abre-se em novas perspectivas, fazendo prevalecer a idéia de que o verdadeiro é, dolorosa mas

obrigatoriamente relativo.

t ele mesmo quem nos alerta para essa dinâmica; "Leitores vulgares, perdoem meus paradoxos; é preciso fazer alguns quando se reflete e, apesar do que voces possam dizer, prefiro ser homem

de paradoxos do que homem de preconceitos". (Ez 82?

(24)

Rousseau 6 que, (...) o problema da liberdade é sempre lançado ao

leitor através de paradoxos. É então pelo que responde ou pelo que deixa de responder que Rousseau abre a questão e dá o que pñnsar". (Morais 1980, p. 8)

São as análises de Deleuze, sobre o paradoxo de Lewis Car- roll, que Emília Horais toma de empréstimo para tentar compreen- der o pensamento de Rousseau: ”a força

que eles não são contraditórios, mas nos da "contradição" ou (...) a potência do

absolutamente em seguir a outra direção.

sentido toma sempre os dois sentidos ao direções ao mesmo tempo. O contrário do

dos paradoxos reside em fazem assistir à gênese

paradoxo não consiste mas em mostrar que o mesmo tempo, as duas bom senso não é o outro sentido, o outro sentido é somente a recreação do espírito, sua

iniciativa amena”. (Morais 1980, p. 9)

Este é um possível caminho na tentativa de entender o dis- curso de Rousseau que, se não basta para explicar seu pensamento, pelo menos nos alerta para a necessidade de mantermos uma certa

flexibilidade diante de seu texto paradoxal.

Cabe ainda destacar a forma original com que é construído o

livro. ”0ra, no lugar de um tratado que nos mostraria Friamente como se dispõe esta ordem teremos dela uma representação, uma "mise en scene" e o livro todo será construído tendo como para- digma o teatro." (Fortes 1979, p. 81)

Esta representação, que traz consigo reflexões, máximas, conselhos, dúvidas, exemplos práticos, devaneios, ë que garante a

leitura de um texto fascinante, porque encontram desde confidências pessoais até

imprevisível, onde se as análises mais impie- dosas. Uscilando entre o tom pessoal - apaixonado e a

(25)

objetivi-dade crítica. Rousseau garante não só a atenção do leitor, como sua cumplicidade na educação do seu Émile.

1.4 DA DIBBERTAÇKO i OBJETIVOS B LIHITBB

Diante da opção de trabalhar com o Émilg, priorizando a

educação infantil, o estudo tem como objeto central a análise dos

dois livros do ggilg, que tratam desta faixa etária, respectivamente, o livro primeiro que vai do nascimento até os dois anos de idade; e o segundo, dos dois aos doze anos.

O trabalho desenvolve-se através de uma pesquisa bibliográfica, abrangendo obras da história do pensamento pedagógico; obras de intérpretes de Rousseau; obras escritas por Rousseau. No decorrer dessa investigação procuro ter presente, também, o debate em curso no Brasil e a própria ~ e complexa -

prática pedagógica vigente.

Na análise do texto da obra principal, são estabelecidos ítens a serem priorizadosz a especificidade da infância,

caracterização da criança, projeto pedagógico e projeto político._ relaçäo professor e aluno. educação e autonomia, liberdade, na-~ tureza, homem natural e homem social, entre outros. A listagem” destes ítens cumpre a função de delimitar o campo de análise e

encontra sua Justificativa na riqueza e amplitude da obra em _.,- estudo.

Desta forma, o "tateio" dos dois livros, faz-se orientado pelo princípio da análise imanente ao esforço descritivo. Em outras palavras, pretende-se não só apresentar análises a partir

(26)

_

17

de formulações próprias do Autor, como também expor suas idéias com o objetivo de desnudá-lo ao leitor.

Para conciliar estes dois aspectos, descrição e interpretação, utilizamos a técnica da montagem, na tentativa de

garantir a exposição mais fiel possível das idéias emitidas pelo

Autor. sem abdicar da nossa interpretação. A preocupação em conhecer as formulações originárias do Autor também tem por

objetivo questionar as classificações e interpretações que se têm feito, na área da educação, do pensamento pedagógico de Rousseau.

Não se trata, obviamente, de "salvar" Jean-Jacques de todos os ataques desferidos pelos inimigos da "pedagogia nova". mas de assinalar equívocos presentes nestas acusações e chamar a atenção

para a riqueza e problematicidade da abordagem rousseauniana da

educação, como contribuição para a discussão que hoje se faz

entre os educadores. .

Com este trabalho, pretende-se, também, debater sobre o valor dos clássicos - nem sempre evidente - num tempo de crise de

modernidade, num país que, as vezes. corre o risco de xenofobias intelectuais e de apelos insistentes para buscar apressadamente "novos" fundamentos pedagógicos e políticos para a sua educação

escolar, não raro pretensamente baseados na "sua realidade".

A análise do texto tenta obedecer o ritmo dado por Rousseau ao próprio livro. Os conceitos-chave vão surgindo sempre que aparecem no texto, sem que tenha havido uma preocupação em

\

preparar um quadro explicativo dos conceitos trabalhados por Rousseau, com a pretensão de esclarecer o texto e dar-lhe um aspecto de regularidade e de sistematicidade.

(27)

Autor, valendo-se de um alerta feito por Starobinski quando diz que. para respeitar a verdade de Jean-Jacques, importa não cobrir as lacunas que ele pode ter deixado em seu sistema. Mais do que dar respostas, tentou-se resgatar as perguntas e conflitos levan-

._-f

tadas pelo Autor no transcorrer do livro.

_ 1 _ › ____.-.

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Essa preocupação em não fechar as lacunas deixadas por Rousseau, não significa que, ao lê-lo ignore-se o contexto político e pedagógico de seu tempo. Ao contrário, a tentativa de

contextualizar Rousseau em relação à educação do sec. XVIII faz-

se com o objetivo de perceber quais elementos são específicos para sua época e quais os que se mantêm_atuais.

Além da descrição que acabamos de fazer o trabalho continua em duas partes: o capítulo Émile gg gggg dg gggggggg, tenta situar, brevemente, a possível relação entre o livro analisado e as demais obras do Autor, retomando uma antiga polêmica entre seus intérpretes, a respeito da relação entre educação e política

em Rousseau. De certa forma, tenta-se verificar qual a dimensão

que a pedagogia assume na filosofia de Rousseau.

O capítulo. Igtggggg 9 Liygg. trata do mapeamento feito dos dois primeiros livros do Émile. A análise do texto. conforme Já afirmamos anteriormente, busca entender como o Autor

en{nenta os problemas pedagógicos em toda sua complexidade e.

acima de tudo, permite uma melhor apropriação do texto em estudo. Após a análise dos dois primeiros livros, fazemos uma breve

apresentação dos outros três livros do Émile. com a intenção de,

mesmo que precariamente, mostrar o livro em seu conJunto. -

destacando os aspectos específicos de cada parte.

(28)

Rousseau reproduzidos no trabalho. A tradução do Émile existente no Brasil foi feita por Sérgio Hilliet e ao ser confrontada com o original em francês, apresenta várias diferenças que o ferem; por isso, considerando que uma das intenções deste trabalho e

resgatar as idéias de Rousseau, mantendo a maior fidelidade

possível ao texto original, foi realizada uma nova tradução das

citações utilizadas do Émile. Além disso, cada citação traduzida está acompanhada do original em francês.

Temos consciência de alguns limites do trabaihoz o primeiro

refere-se ao fato da revisão bibliográfica estar longe de ser exaustiva. O fato de não existir, no Brasii, uma tradição no estudo do pensamento pedagógico de Rousseau, faz com que praticamente não exista material bibliográfico disponível. Os poucos intérpretes brasileiros de Rousseau dedicam-se ao estudo do seu pensamento político e filosófico. Neste sentido. realizari

.no Brasil, um estudo sobre o pensamento pedagógico de Rousseau,

voltado para a pré-escola, significa trabalhar com uma

bibliografia predominantemente francesa, o que traz consigo dificuldades de acesso às obras fundamentais, devido tanto à

precariedade das bibliotecas, quanto à falta de referências na

área da educação. i

No entanto. mesmo sabendo que a bibliografia trabalhada é

limitada diante da produção mundial a respeito de Rousseau e

consciente dos limites do trabalho realizado, acredita-se que é possível realizar um estudo exploratório inicial com o material disponivel

Outra limitação inerente ao próprio objeto de trabalho. refere-se à incompletude de um estudo que trata apenas dos dois

(29)

primeiros livros do Émiig. O Émile é um livro que vai sendo construído aos poucos: as idéias centrais, os princípios norteadores vão aparecendo, gradativamente, no transcorrer do livro. Desta maneira, os Livros Primeiro e Segundo têm uma importância que lhes é peculiar, mas que não contemplam o con~ Junto do proJeto pedagógico de .Rousseau. Assim, o trabalho realizado, ao invés de apresentar um resultado, remete inevitá- velmente, não só à releitura de todo gmilg, como das demais obras

do Autor. O que, aliás, confirma uma das idéias geradoras deste trabalho, que é a de aproximar os leitores dos textos clássicos

(30)

ROTAS

Lecteurs. pardonnez-moi donc de tirer quelquefois mes exemples de moi-même; car, pour bien faire ce livre, ii

faut que Je le fasse avec plaisir. (Em; 134)

Souviens-toi, souvíens-toi sans cesse que 1'ignorance n'a Jamais fait de mal, que l'erreur seuíe est funeste, et qu'on s'egane point par ce qu'on ne sait pas, mais par ce qu'on croit savoir. (Emz 173)

Lecteurs vulgaires, pardonnez-moi mes paradoxesz ii en faut

faire quand on réfiéchit; et, quoi que vous puissiez dire, J'aime mieux être homme à paradoxes qu'homme à préJugès.

(31)

ll» - O IÊHILE NA OBRA DE RGUEBÊMI

Uma das questões mais polêmicas entre os intérpretes de Rousseau refere-se à presenca ou não de uma unidade de

inspiração em sua obra. A leitura de seus livros deixa sempre a

sensação de que interpreta-lo não è tarefa fácil. No entanto, a

falta de uma unidade racional na obra de Rousseau pode significar que não existe unidade alguma ?

Sabemos dos conflitos entre as interpretações feitas a

Rousseau e sua obra no nosso século. Embora não seja este o lugar para dirimir as divergências, gostaríamos, pelo menos, de delinear brevemente o problema, para que nossa leitura de Rous- seau fique razoavelmente contextuaiizada. Não nos será possível eliminar os riscos que uma investigação sobre o Émilg apresenta

e, conscientemente, assumimos tais riscos. É nesse sentido

que procuraremos apresentar alguns aspectos das controvérsias entre autores como Ernest Cassirer, Jean Starobinski, Jean _ “___ _ __ “___ .__ `. i

gl

_

_.

Château, Pierre Burgglin, Michel Launay, Alain Grosrichard e o brasileiro Luiz R, _§alinas Fortes entre outros, que tratam” da

questão da`uni§ade_de inspiração em Rousseau ou, “indo mais alem, da relação entge educação e_politica em Rousseau.

u

Í

A fim de avançar no entendimento do lugar que a pedagogia

assume no pensamento de Rousseau, e preciso descobrir em que medida os estudos realizados por esses estudiosos podem nos aJudar a entender o §milg mais profundamente,

Segundo Starobinski, Kant (1724 - 1804) e, mais

(32)

consideraram o pensamento teórico de Rousseau como um todo coerente. Eles encontraram em seus escritos uma dialética e um ritmo ternário de pensamento. Para conciliar os opostos (estado natural e sociedade civil) eles assinalam como decisiva a impor-

tãncia dada à educação na filosofia de Rousseau. U ponto de

chegada entre estes opostos seria a reconciliação da natureza e

da cultura numa sociedade que reencontra a natureza e supera as

injustiças sociais.×

Kant, aliás, foi um dos primeiros a afirmar que o pensamento de Rousseau segue um plano racional, tanto que o denominou de Newton do mundo moral.

Os trabalhos de Burgelin. Derathé. Cassirer e Launay, entre outros. também enfatizam a unidade de inspiração da obra de

Rousseau e vêem o Émile como parte integrante e inseparável das demais obras do Autor. Por isso. Burgelin considera questioná-

veis as interpretações de Chuquet, Faguet, Schinz, Hornet ou Meylan (cujas obras foram publicadas entre 1911 e 1929, que assinalam uma total oposição entre a política e a filosofia. ou

ainda, entre a educação e a política em Rousseau). Burgelin cita

alguns exemplos; Faguet não consegue relacionar o Qggtggtg ãggigl com as demais obras do pensador genebrino; Heylan não hesita em dizer que "para compreender o Émile. e preciso esquecer os Qi§su:§Q§"-

* Segundo Bobbio, ao contrário da maioria dos pensadores dos séc.

XVII e XVIIÍ que falam de uma concepção binária do desenvolvi- mento histórico da humanidade (estado de natureza e/ou estado civil), Rousseau apresenta uma visão triádica-estado

de

natureza - sociedade civil - república, em que o momento negati-

vo, o segundQ*__é_posto entre dois momentos_posfi` tiv osg . CÊ? . Bõb-

°5i°› N°rb@rt°- ãesiâëê Q ãëêëuê nella ãíleêeíiê eelišisê mséâcnêi

(33)

,z

É importante destacar que todas essas análises foram realizadas num período em que a fiiosofia era vista separada da

literatura. Nesse contexto, para entender o pensamento filosófi- co de Rousseau era preciso tomar as "obras teóricas” do autor e ignorar suas produções caracterizadas como auto-biográficas e

literárias.

`

Esta ruptura entre as obras de Jean-Jacques só poderia produzir a idéia de que não existe nem unidade, nem coerência

em suas obras. Somente a superação do antagonismo filosofia e

literatura, possibilitou uma nova ieitura de Rousseau, onde cada iivro é parte integrante do pensamento rousseauniano. Bento Prado Junior acrescenta que "esta nova cumpiicidade entre filoso- fia e literatura foi feita também para Jogar uma nova luz sobre a

obra de Rousseau.” (Júnior, 9i§s2:§2› P- 09 P 16>*

"Lecture de Rousseau" in Bggigtg

No entanto. para analisar os aspectos educativos em Rousseau, buscando entendê-los em sua profundidade, e necessário, segundo Château, ampliar em vez de restringir: ou seja, tentar analisar os problemas educativos. retomando o conJunto da obra

que, apesar das aparências, tem uma certa unidade de inspiração. Note~se que é usada a expressão "unidade de inspiração" e não

unidade racional ou teórica. VeJamos o que significa isso.

Cassirer, ao tentar justificar a presença dessa unidade,

alerta para o fato de que é preciso buscar _os princípios e atitudes mais profundas e não

* Ver

Pbileâeahiâ às Àiâëiêsânsâ QQ Ver também Chãuteau. Rousseau. in Qaáz Beuââsêu

os aparentes. Não há. diz ele,

Burgelin, L'unité de l'oeuvre de Rousseau, in Lg

Qaáa Beuâêâêu. P - 505-

Place de L'Émile dans l'oeuvre de Qhilsêephiâ és iiéássêëisn P-

(34)

91-"uma doutrina fixa e definida. Trata-se, antes, de um movimento de tal força e paixão que parece quase impossível, diante dele, refugiar-se na quietude da contemplação histórica `obJetiva'. Constantemente ele se impõe a nós e de modo constante nos arras- ta consigo."(Cassirer 1980, p.788) Dessa forma, longe de basear sua unidade em aspectos gerais como coerência entre a vida e a

obra ou uma unidade racional entre as obras, é preciso buscar no

movimento da obra de Rousseau a inspiração comum a toda sua

filosofia, sempre tendo a clareza do caráter inclassificávei do

Autor, devido à complexidade de suas análises e a forma paradoxai

pela qual Rousseau exprime seu pensamento.

No texto Q guggtãg dg Q¿Q¿ Qggggggu, Cassirer assinala que :

"Este conflito (de interpretação) não se limita a pormenores e pontos não essenciais, mas diz respeito, ao contrário, a

concepção fundamental quanto à natureza de Êousseau e sua visão

de mundo."(Ibid, p.783) Buscar uma unidade de inspiração, entretanto, não significa negar que Rousseau foi o homem das contradições e dos paradoxos, assim como foi, seguramente. o

homem das polêmicas. Lanson caracteriza, assim, a maneira como

Rousseau expressa seu pensamento: "Se ele foi longe demais em uma direção, a emoção que ele experimenta ao descobrir a outra

face das coisas, leva-o bruscamente para a direção contrária.

Sua maneira de obter o equilíbrio á de Justapor violentamente dois tons distintos."(Apud Burgelin 1952, p. 2)

E Burgelin acrescenta: "isto não 6 para ele um simples procedimento de estilo; as noções se oferecem a ele em pares de

oposição: bondade, maldade; ser , parecer; liberdade, escravidão;

(35)

distinção, torna-se contradição e luta."(lbid. p.2)

.Tendo essas considerações como pano de fundo e deixando de lado a tentação das classificações fáceis e redutoras. a

possível unidade de inspiração em sua obra pode ser vista, segundo as palavras de Château, da seguinte maneira: "Em Rousseau, a unidade procede de mais baixo, de forças mais

profundas; também as atitudes persistem, às vezes, sob diferentes cenários. É a estas atitudes profundas que será preciso nos

remetermos, se quisermos compreender sua obra e, em particular.

esta obra, o gmilg, que está no próprio centro da obra."(Château 1962. p. 24)

Para esclarecer melhor a possível unidade, pode-se tomar as

palavras do próprio Jean-Jacques, quando numa carta ao arcebispo

de Beaumont (1763) afirma a constância de seus sentimentos. de

sua inspiração: "Escrevi sobre diversos assuntos. mas sempre nos mesmos princípios. sempre a mesma moral. a mesma crença, as

mesmas máximas, ou sega, as mesmas opiniões. Entretanto,

fizeram-se Julgamentos opostos de meus livros, porque fui Julgado pelas matérias que tratei bem mais do que pelos sentimentos.”(Apud Château 1962. p.30)

No QQ* Qiglgggg, escrito em 1774-5. ele faz a mesma

afirmação: "seguindo o melhor possível o fio de suas meditações. eu vi em toda parte o desenvolvimento de seu grande princípio. que a natureza fez o homem feliz e bom, mas que a sociedade o

deprava e o torna miseráveñ."(ibid, p. 31)

A partir da percepção destas forças mais profundas. Burgelin considera o Émile e o Qggtggtg ãggigl como obras paralelas. Da mesma forma. Michel Launay, em seu livro Rousseau. Qçgiygin

(36)

Qgiitiggg mostra näo` a relação existente entre o Qggtggtg

ãggigi e o Émile, como a necessidade de serem lidos Juntos.

Rousseau Já dizba no livro IV do Émile que aqueles que quiserem tratar separadamente a política e a moral nunca entenderam nada

de nenhuma das duas. E Launay acrescenta; "Rousseau sabe que e

uma ilusão querer ensinar livremente um homem livre, numa socie- dade em que prevalece a desigualdade e que é uma ilusão esperar transformar a sociedade, se não se dispõem de homens livres. prontos a se sacrificar por esta liberdade, pela igualdade de

todos perante a lei; é preciso então fazer as duas coisas ao

mesmo tempo."(Émiie, Introduction Ed. Fiammarion, p.2á) Rousseau reafirma isso no livro IV; É preciso estudar a sociedade pelos

homens e os homens pela sociedade. Segundo Launay, é precisamen-

te por isso que Rousseau escreveu ao mesmo tempo o Êmilg e o ^

_... Qgnësêës ãssiêl

Todas essas afirmações supõem o entendimento de que tanto o

Qggtggtg ëggigi 'não e um manual prático de política, quanto o Émile não é um manual prático de educação. Burgelin acrescenta que não só eles não pretendem ser considerados como manuais, como se defendem disso: "eles estao ligados. ou pretendem estar, sobre o plano do a priori, destacam as condições abstratas, se colocam no ponto em que o normativo deve se inserir no real e de lá

comandam toda a educação, toda a política." ( Burgelin 1958, p.

476).

É importante, ainda, entender que a pedagogia interessa a

Rousseau enquanto parte de um problema mais geral que. no fundo. é filosófico; daí o próprio depoimento do Autor de que antes de ser um tratado pedagógico, o Émile e uma obra filosófica sobre a

(37)

bondade natural do homem.

Em carta escrita à Philibert Cramer (1764), Rousseau

escreve; "Você diz muito bem que é impossívei fazer um Émiie. Mas eu não posso acreditar que você considere o iivro como um verdadeiro tratado de educação. É uma obra bastante fiiosófica neste princípio adiantado pelo autor em outros escritos. de que o

homem e naturaimente bom. Para combinar este princípio com esta outra verdade não menos certa de que os homens são maus, seria preciso, na história do coração humano, mostrar a origem de todos

os vícios. É o que eu fiz neste iivro, freqüentemente com Justeza e afigumas vezes com sagacidade.” (Apud Burgeiin. 1958 p.

475) W

`

Em seus Qiáigggg , ele confirma a mesma posição: "U Émile, em

particular, este iivro tão lido, tão pouco entendido e tão mai

apreciado não é senão um tratado da bondade original do homem, destinado a mostrar como o vício e o erro, estranhos à sua

constituição se introduzem nele de fora e o alteram insensivelmente. (Apud Château 1962, p. 31)

Finalmente, a propria estrategia de publicação do gmiig e do

Qggtggtg ãggigi. demonstra que Rousseau pretendia que saíssem concomitantemente, confirmando a existência de uma reiação

constante entre a educação do homem ígmiig) e a f0PmaÇã0 ÔO

cidadão (gggtggtg gggiai), assim como a inciusão no Livro V do Émile, de um resumo do Qggtggtg ãggigi, parece reafirmar esta correlação.

Pode-se ver. a partir destas observações, uma possível

interpretação que afirmav a existência de uma unidade de

(38)

29

consequentemente, circunda e delimita o Émile, colocando-o num

novo patamar. _

Rousseau propôs-se a realizar diferentes tarefas, em cada um

de seus livros; cada um tem um obJeto central, que e diferente

dos demais. No entanto. os princípios filosóficos e as atitudes mais profundas são as mesmas. $uma carta. a H. de Eaiesherbes.

ele escreve: "este primeiro Qiegggee, aquele sobre as

Qâêisyêléêéêê H ° Izêëêëe siê §92sê꧚9› estas três Obras Sã°

inseparáveis e formam Juntas um todo" (Apud Château 1962. p. 32)

Nesse quadro, o gmmle não e unicamente uma obra pedagógica. nem a única obra pedagógica de Rousseau. Pode-se encontrar

elementos sobre os probiemas educativos na Qgze äeie¿ee (1760). quando trata da educação que Julie dá_aos fiihos, por exempio. Aparentemente, este livro tem sido visto apenas como um romance; no entanto, os mesmos princípios fiiosóficos do mmmie Ja estäo presentes nele. Em suas Qemfiieeeeg , Rousseau corrobora esta idéia: "Tudo o que há de atrevido no Qgmtgege ëgeiei, Já surgira antes no Qiêêuaêe êeelze as desigualdades: f-udø O que há de audi- cioso em Émile, Já o era em Qgile... ( C; 365)

V

Burgeiin, diante dessas análises, chega a afirmar que o

sistema pedagógico de Rousseau não pode ser compreendido senão em Função desta obra (Émile) tomada em sua íntegra.

Portanto. ionge da visão em que o Émile e o Qggggete §g§¿§L são obras que se excluem, tentaremos vê-los como obras que, mes- mo tratando de diferentes objetos. são complementares; m98mO 60m uma "aparente" oposição. apresentam uma unidade filosófica pro- funda.

(39)

dois primeiros livros do Égiig. a tarefa será de captar esses

princípios e atitudes mais profundas apontadas peios estudiosos da obra de Rousseau, buscando, mais do que tecnicas pedagógicas.

a sua fiiosofia de educação,

sobre os problemas educativos.

que e a base de suas concepções

Numa carta ao abade Maydeau (1770), Rousseau escreve: "Em

tai sistema, è preciso tudo

retomar o rumo das educacões vermelho”, do que seguir esta homem defeituoso. O que eu servilmente minhas idéias, ao

ou nada e seria cem vezes melhor comuns e fazer um pequeno "taião pela metade, para fazer somente um chamo tudo não significa seguir contrário, frequentemente trata-se de corrigí-ias, mantendo firme os princípios e seguindo exatamente as conseqüências com as modificações que exige necessariamente toda aplicação particular." (Apud Burgeiin 1958, 480)

Concluindo, tentar-se-ã dar ao Émiig o tratamento desejado

por Rousseau: o iivro será tomado como ponto de partida para novas reflexões, buscaremos menos conclusões do que questionamentos, tentaremos menos explicar do que compreender.

(40)
(41)

INTRDDUÇKG A FEDAOGGIÀ RÕUEÊÊÀUKIARÀ

Rousseau construiu seu livro em cinco partes, seguindo as

diferentes fases da vida de Émile, desde o seu nascimento até a

idade de 25 anos. Essa divisão sugere a intenção do Autor de

reconstruir a história da evolução do indivíduo humano da mesma

maneira como tratou a história da espécie no Qigggggg ggggg 3 exigem Q ea íunáêmântsa da desigualdade estas ea nessas-

A preocupação de Rousseau com as origens e com a história da

@v°1u¢ã°- '°aflf»° da @81=>é<=i@ <9i§§u:§9 §91=_›I;§ ê 921929 dês Línguas)-

quanto do indivíduo (Émile) coincide, de início, com as preocupações dos filósofos de seu tempo. Ou seja. existe em todas

as ciências uma preocupação com o aspecto histórico, exatamente pelo fato de o homem não poder ser tratado apenas como um esquema abstrato e sim como um ser concreto, real, e que deve, portanto, estar inserido no tempo. ”Reintegra-se o homem na história, esboçam-se dialéticas de seu desenvolvimento, seJa sob o plano

biológico (idéia da evolução das espécies em Diderot, "épocas" de Buffon), seja no plano psicológico (estátua animada de Condillac), seja no plano histórico (história das religiões em Voltaire, quadro dos progressos do espírito humano em Condorcetl." (Château 1962, p. 25)

Todo esse movimento repercutirá, de alguma forma. nas teorias da evolução, a história da Terra (geologia), história do

sistema solar (Kant, Laplacel e as sínteses históricas de Comte, Hegel e Marx. Dentro deste quadro, o que distinguiria Rousseau dos demais autores seria. parafraseando Château. o fato de que,

(42)

, Biblioteca Ún¡.,CrS¡tá“ ¬ " °

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X

33

enquanto os demais pensam, priorizando a obJetividade,_ele_pg2sa,

voluntariamente, num plano mais subjetivo. Por isso, sua psico- logia diferencial traz consigo um estudo do progresso da aima individual, do mundo interior mais íntimo de cada ser humano. podendo-se até pensar que esta psicologia subjetiva seja a base

da sua filosofia. Este caráter subjetivo evidencia-se, inclu- sive, pelo fato de Rousseau escrever na primeira pessoa o que e

uma das marcas distintivas do Autor em relação aos filósofos de seu tempo.

_ Enquanto todos se voltam para as explicações racionais e

obJetivas, onde a razão aparece como elemento central. Rousseau

mostra uma maneira própria de pensar. em que usa tanto o coração quanto o intelecto. No Émile, especificamente, o uso da síntese "emoção e razão”, enfatizada em algumas passagens pelo discurso na primeira pessoa, cria um clima em que, ao escapar do real, através de seus devaneios, o Autor não só transforma este real. como 0 recria. Recurso, aliás, utilizado não só no ggilg, como também nas Qgnfiigsëgg e nos Devaneios. evidenciando o caráter

pessoal da obra. Existe um constante diálogo do Autor consigo m@=m°› Beflde Qsênzáêssuâsi Juiz de Beusêâêu a sua mais clara

expressão. Assim, embora considerando que Rousseau trata dos mesmos problemas que os demais filósofos, é importante frisar que ele sempre o fará de forma nova, abrindo novas perspectivas para

a reflexão filosófica de seu tempo. Situa-se numa posição sin- gular e única. Esta posição peculiar e independente, acabou por levâ-lo a entrar em conflito. tanto com os filósofos ateus, como

(43)

34

confrontar-se com as formas de pensamento dominantes em sua época: com os Jusnaturalistas que pretendiam encontrar a essência

humana natural, dispensando o modelo cristão e, com os católicos,

que defendiam uma natureza humana contaminada pelo "pecado origi- nal". Rousseau desloca a análise para o social e, então, não se

trata de explicar tudo a'partir de uma essência, mas a partir da

observação dos fatos e da construção de modelos alternativos. O "bon sauvage” serve tanto como categoria para negar a visão

cristã, quanto a natureza igual originária dos Jusnaturalistas. Vejamos 0 que ele escreve em suas Qggfiggëggz ”Sempre sentira. apesar da lábia do padre Berthier, que os Jesuítas não gostavam de mim. não só como enciclopedista, como ainda porque todos os meus princípios eram ainda mais opostos as suas máximas e a seu

crédito do que a incredulidade de meus confrades, porque o fana-

tismo ateu e o fanatismo devoto. tendo em comum a intolerância.

podem unir-se mesmo como fizeram na China e como fazem contra

mim; ao passo que a religião racional e moral, não dando qualquer poder humano sobre as consciências alheias, não deixa arma ne- nhuma nas mãos dos árbitros daquele poder." (C: 515)

Conforme Já foi ressaltado, numa epoca em que a infância era

tão pouco considerada, dedicar um capítulo de seu livro aos dois primeiros anos da vida de uma crianca é uma atitude mais do que inovadora, principalmente se tomarmos como base a afirmacão de

Jean Delumeauz "Na civilização ocidental, a descoberta da crianca

acompanhou a afirmação do individualismo. Assim, operou-se

lentamente.” (Delumeau 1984. p.61)

No prefácio, Rousseau anuncia que não tratará nem da importância da educação. nem da má qualidade daquela que se

(44)

/'

na

pratica, embora o faca indiretamente. Seu assunto e a arte de formar homens, dedicando especial atenção à infância, pois, se-

gundo ele, com as falsas idéias que se têm dela, e impossível fazer uma boa educação. ”Comece, portanto, estudando melhor seus alunos; pois muito certamente você não os conhece; ora se você ler este livro neste prisma, acredito não ser ele sem utili- dade para você”. (E; 2%

Hesmo afirmando que o livro não foi escrito contra a

educação de seu tempo, percebe-se que Rousseau a tem sempre em mente e, apesar de nunca nomear diretamente os Jesuítas, o Émile

visa-os sem cessar.

A pnjmeira crítica à educacãg_§par§ce em relação ag. trata;

mento dado à infância ou. em outras palavras, à falta de um

tratamento específico para a infância. '

Outra questão que interessa a Rousseau é mostrar que, além do caráter geral da natureza da infância, á preciso considerar a

particularidade de cada criança: se. de um lado, todos nascem

potencialmente iguais, representando a natureza humana em sua

generalidade. cada uma possui características e traços de caráter que lhe são próprios. Além da desigualdade que surge social e politicamente há também uma desigualdade natural e biológica. Em seu discurso sobre a origem das desigualdades Rousseau Já afirmava: "Concebo na espécie humana dois tipos de desigualdade; uma, a que chamo natural ou ffsica,_ por ser estabelecida pela

natureza, e que consiste na diferenca de idades. de saúde, das forcas do corpo e das qualidades do espírito ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política. porque

(45)

depende de uma especie de convenção e é estabelecida, ou pelo menos autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos diferentes privilégios de que gozam alguns em prejuízo de outros, como o de serem mais ricos, mais homenageados, mais poderosos, ou mesmo o de se fazerem obedecer.” (D.D.H.; 241)

Assim, "toda criança é ao mesmo tempo a natureza e uma natureza."

(Grosrischard 1980, p. 10). Portanto, para educa-las ë preciso conhecer as duas.

t

Além disso, Rousseau estabelece que é preciso tomar o homem

tal como ele e, mas também tal como ele pode ser, mesmo que não

se possa precisar até onde o homem pode ir. Para isso, mesmo admitindo ser seu método quimérico e falso, ainda assim acredita que suas observações venham a ser úteis. Esta colocação tem

imediata correspondência com aquela que faz no Livro V. ao se referir ao Julgamento dos governos: "Entretanto, quem quer Julgar sensatamente os governos, tal como eles existem, é obriga- do a reunir ambos: é preciso saber o que deve ser para bem Julgar

o que é”. CE; 585)2 Além disso, é importante ressaltar que Rous-

seau não se contenta em Justificar as coisas como estão, mas,

através do seu pensamento, critica. denuncia esse estado de coisas e apresenta um proJeto. Em outras palavras, o Autor não se contenta em fazer ciência (análise do que é presente), ele trabalha além da política e da educação com valores morais e com o projeto (passado e futuro).

”Proponha o que pode ser feito, não cessam de pedir-me. É como se me dissessemz proponha fazer o que se faz; ou, ao

menos, proponha algum bem que se alie ao mal existente". (E; 3? Demonstra a sua independência frente as concepções vigentes

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‹.

na educação do seu tempo e, sem se preocupar com as críticas

possíveis às suas idéias, afirma sua autonomia com o que escreve. "Não é sobre as idéias dos outros que escrevo; é sobre as

4

minhas". (E;2) E isso será repetido na sua última obra: "Quanto a mim, quando desejei aprender, foi para saber e não para ensinar; sempre acreditei que antes de instruir os outros era preciso comecar por saber o suficiente para si mesmo..." (D;

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šesmo tendo consciência das dificuldades da tarefa que se propõe executar, encerra seu prefácio, dizendo: "Para mim basta que, onde quer que nasçam homens, se possa fazer deles o que proponho; e que tendo feito deieso que proponho, se tenha feito o que há de melhor. Tanto para eles como para os outros."(E; 3?

É importante ressaltar que Rousseau não está se referindo às técnicas educativas utilizadas na relação com as crianças, mas sim, aos princípios e atitudes que fundamentam esta prática e que mantêm estreita ligação entre o que se faz nas diferentes etapas da vida do homem e o projeto de homem e de sociedade que se quer formar, embora tenha a clareza de que, naquele momento, não é

mais possível conciliar o homem e o cidadão. Ser burguês é ser contraditório. Existe, portanto, uma proposta pedagógica sendo apresentada e que poderia ser vista como um "método de ensino”. O Autor, entretando, afirma inúmeras vezes que, pelo fato das aplicações variarem de acordo com as particularidades de cada caso, o que deve permanecer e ser considerado como central e

fundamental em toda sua proposta pedagógica são as grandes

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