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O que ficou calado, mas deve ser lembrado...

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Academic year: 2021

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Reflexão

O que ficou calado, mas deve ser lembrado...

Por Vera Brandão m abril deste ano (2013) publicamos na categoria Memória do Portal do Envelhecimento uma reflexão intitulada Sombras do Passado, na qual abordamos a questão do tempo absoluto das memórias, que parece não passar, tantos anos transcorridos de acontecimentos presentes até hoje.

A memória da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto ainda está, cotidianamente, na mídia – livros, depoimentos, estudos, filmes. Um tempo “pesado”, que não passa.

Publicamos ainda a memória de fatos mais recentes ocorridos, a partir dos anos 70, em vários países da América Latina, dentre os quais o Brasil, das torturas, mortes e desaparecimentos durante as ditaduras que impuseram um período de terror que não pode ser esquecido.

Um tempo mais longínquo aparece no artigo Asiya, a armênia que deve a vida à beleza da mãe, do repórter Chris Bohjalian para o jornal The Washington Post, publicado no jornal O Estado de S.Paulo, em junho de 2013.

Ele nos conta a experiência vivida recentemente na Turquia no encontro com Asiya, de 98 anos, última armênia sobrevivente em Chunkush, que ainda vive onde 10 mil armênios foram mortos, salva pelo amor de um soldado turco por sua mãe à beira do extermínio. Esclarece o autor da reportagem:

“Durante a Primeira Guerra, 1,5 milhão de armênios foram sistematicamente aniquilados - três em cada quatro deles viviam no Império Otomano. Em Chunkush, até 1915 vivia uma próspera comunidade de 10 mil armênios. Em alguns dias de pesadelo naquele verão, gendarmes turcos e brigadas assassinas curdas invadiram a aldeia e fizeram quase todos os armênios marcharem por duas horas até uma ravina chamada Dudan, onde os mataram a tiros, a golpes de baioneta ou simplesmente os atiraram no precipício de dezenas de metros de altura. Mas um dos gendarmes puxou a mãe de Asiya da beira do precipício porque a achou bonita. Ele resolveu se casar com ela. Assim, ela foi poupada”.

Episódio não tão presente nas mídias, ainda desconhecido para muitos, o massacre é ainda hoje um ferida que sangra. Para entender o fato histórico, lembramos que os armênios viveram sob o domínio do Império Otomano por mais de 600 anos e, segundo os historiadores, são considerados os pilares do desenvolvimento na economia, na política e nas artes.

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As perseguições sistemáticas contra os armênios se iniciam no final do século XIX por questões territoriais e ideais de autonomia por parte destes, recrudescendo com o passar dos anos sob diferentes formas de exclusão, perseguição e mortes. Os armênios passaram a ser considerados “inimigos internos”, quadro que se tornou dramático com o início da Primeira Guerra Mundial, quando o Império Otomano torna-se aliado da Tríplice Aliança. Nesse momento se iniciam o planejamento e as disposições organizadas para o extermínio dos armênios, considerados aliados dos inimigos do Império, período no qual milhares foram exterminados das mais variadas formas, e os que sobreviveram partiram em grande diáspora.

“No dia 24 de abril de 1915, 250 líderes e intelectuais foram presos em Constantinopla. A partir de então tropas turcas invadiram cidades e obrigaram famílias armênias a deixar suas casas em caravanas com destino a desertos, principalmente os da Anatólia e Der-el-Zor. Centenas de milhares de armênios foram deportados de suas casas, e suas cidades foram destruídas. Milhares morreram no caminho por assassinatos das tropas, milhares morreram executados em campos de concentração, milhares morreram queimados, milhares morreram enforcados, milhares morreram jogados amarrados ao rio Eufrates, mas muitos milhares morreram de inanição, a morte por total falta de água e alimento”.1

Esta data foi lembrada pela revista Carta Capital na reportagem de Paloma Rodrigues, publicada em 25/04/2013, Quase um século após genocídio, comunidade armênia luta contra o esquecimento, no dia da celebração, na

Igreja Apostólica Armênia São Jorge, em São Paulo, dos 98 anos desse fato. A

celebração é uma homenagem a mais de um milhão e meio de mortos no

genocídio comandado pelos turcos entre 1915 e 1917. A reportagem esclarece que

somente 21 países, até hoje, reconhecem os crimes, e o Brasil não está entre eles. “A Turquia se nega a assumir a violência e pressiona para que outros países façam o mesmo. Nações influentes, como os EUA, classificam o episódio como um ‘grande e triste massacre’, mas evitam a

palavra genocídio, temendo embaraços diplomáticos com os turcos. O discurso atual da Turquia é que entre 300 e 500 mil armênios morreram em decorrência

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de uma guerra civil – e não por perseguição étnica, conforme a versão armênia. Argumentam que cidadãos turcos também morreram no conflito”. A reportagem da Carta Capital apresenta alguns depoimentos dos participantes da cerimônia religiosa, entre os quais a do ator Arthur Haroyan: “O genocídio é uma questão política. Todos sabem o que aconteceu, não precisamos provar isso. Mas é importante que seja reconhecido por todos os países, porque quando você reconhece um crime, ele não se repete”.

Alguns intelectuais e escritores turcos defendem o reconhecimento do genocídio, entre eles o escritor mais proeminente da Turquia, Orhan Pamuk, o primeiro turco a receber o Prêmio Nobel na história, em 2006. O que deveria ser motivo de orgulho para o governo turco passou a ser ameaça após a declaração de Pamuk em uma entrevista em 2005:

Trinta mil curdos e um milhão de armênios foram mortos nestas terras, e ninguém, senão eu, ousa falar sobre isso. Afirmou ainda:

O que aconteceu aos Armênios Otomanos em 1915 era uma coisa importante que foi escondida desta nação turca, era um tabu. Mas temos que ser capazes de falar sobre o passado.

Em 29 de dezembro de 2005, procuradores do estado turco retiraram a acusação de que Pamuk insultara as forças armadas da Turquia, mas a acusação de “insultos à identidade turca” manteve-se.

O discurso antagônico é, até hoje, uma “brecha” entre duas culturas de raízes entrelaçadas.

Nesse quadro a reportagem sobre Asyia chama atenção, pois traz à luz um passado que não se revoga por leis. A experiência da dor individual e nacional permanece, e reaflora porque viva na memória de cada um, de toda a comunidade e como fato histórico.

O repórter Chris Bohjalian, de ascendência armênia, afirma que conheceu Asiya quando viajava com amigos por uma parte da Turquia denominada Armênia Histórica, visitando ruínas de igrejas e mosteiros armênios “restos de uma cultura obliterada desse canto da Terra no genocídio armênio”.

O encontro com a sobrevivente não foi planejado, e se deu pela insistência do genro dela. Afirma o repórter:

“Eu já havia conhecido sobreviventes do genocídio armênio, entre eles os meus avós. Mas conhecer Asiya foi diferente. Ela não estava em Washington, Paris ou Beirute. Ela não fazia parte da diáspora armênia, onde geralmente encontramos os poucos sobreviventes. Ali estava alguém cuja mãe estivera na

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beira do penhasco - e ainda estava vivendo onde seus avós haviam sido executados. Onde a cultura de seus ancestrais havia sido exterminada. Após o massacre, a cidadezinha de 10 mil armênios foi reinventada como uma cidadezinha de 10 mil curdos”.

Ela e sua família viveram no silêncio dos excluídos, os sobreviventes. A memória de quem viveu e sobreviveu que surge como indício de muitas outras histórias silenciadas para sempre, mas que ficarão como latência e desconforto, muitas vezes inconscientes, nas famílias e nas gerações de descendentes, como também na memória nacional, mesmo quando negada. Assim, completa o repórter:

“Resta apenas um punhado de sobreviventes do genocídio armênio. Quando chegar o centenário, em 2015, haverá ainda menos. Espero que Asiya esteja entre nós, porque pretendo voltar a Chunkush nesse ano. Ninguém na aldeia lembrará os 10 mil que morreram naquele precipício e caberá a pessoas como eu fazer o esforço”.

Eu gostaria de ver qualquer força deste mundo destruir esta raça, esta pequena tribo de pessoas sem importância, cujas guerras foram todas lutadas e perdidas, cujas estruturas foram todas destruídas, literatura não lida, música não ouvida, e as preces não são mais atendidas. Vá em frente, destrua a Armênia. Veja se consegue. Mande-os para o deserto sem pão ou água. Queimem suas casas e igrejas. Daí veja se eles não vão rir novamente, cantar e rezar novamente. Quando dois deles se encontrarem novamente, em qualquer lugar neste mundo, veja se eles não vão criar uma nova Armênia. William Saroyan

Leia mais

Sombras do Passado. Por Vera Brandão. Disponível em

http://portaldoenvelhecimento.org.br/noticias/memorias/sombras-do-passado.html. Acesso em 26/06/2013

Asiya, a armênia que deve a vida à beleza da mãe. Por Chris Bohjalian para o jornal The Washington Post, publicado em O Estado de S.Paulo. Tradução de

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http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,asiya-a-armenia-que-deve-a-vida-a-beleza-da-mae,1041726,0.htm. Publicado e acessado em 13 de junho de

2013

Quase um século após genocídio, comunidade armênia luta contra o esquecimento. Por Paloma Rodrigues. Disponível em

http://www.cartacapital.com.br/internacional/quase-um-seculo-apos-genocidio-comunidade-armenia-luta-contra-o-esquecimento-3027.html. Publicado e

acessado em 25/04/2013

Data de recebimento: 02/07/2013; Data de aceite: 10/07/2013. ___________________________

Vera Brandão. Pedagoga (USP). Mestre e doutora em Ciências Sociais-Antropologia (PUC-SP). Pesquisadora (CNPq PUC-SP). Docente do COGEAE (PUC-SP). Membro fundador do OLHE. Coeditora do Portal do Envelhecimento e da Revista Portal de Divulgação. E-mail: veratordinobrandao@hotmail.com

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