• Nenhum resultado encontrado

As raízes do povo de Deus: Abraão, Jacob e José

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "As raízes do povo de Deus: Abraão, Jacob e José"

Copied!
13
0
0

Texto

(1)

1. Evento fundacional do povo de Deus

A justa compreensão do ser e da vocação do povo de Deus resulta do discernimento e do entendimento da realidade em evento que o criou e recria. Efetivamente, o povo de Deus não foi nem é definido pelos seus preceitos, pelas suas estruturas, pelos seus conceitos ou pelas suas doutri-nas, mas sim pela sua realidade original e fundacional que o cria como um evento, uma experiência, uma história de vida.

Assim sendo, o povo de Deus não se resume a um relato, a um passado nem a uma perspetiva de entendimento. Na realidade, não se conhece um tratado nem um poder únicos que definam o povo de Deus. A leitura da

torah é críptica; por isso também, no interior do povo de Deus surgiram

a profecia, a sabedoria, a lei oral e escrita, a misná, e os talmudes, como resposta permanente do povo a Deus e o desejo de assumir a sua vontade1.

1 Cf. D. Klinghoffer, Why the Jews Rejected Jesus, New York 2005, 24.

As raízes do povo de Deus:

Abraão, Jacob e José

B

ernarDo

C

orrêa D

’a

lmeiDa

(2)

Em síntese, o empenho contínuo em responder em obediência a Deus é parte integrante do ser e da vocação do povo de Deus2.

Nesse sentido, o povo de Deus é a resposta contínua ao seu evento fundacional e original. Barclay sublinha que, mais importante que elencar os frutos desse evento do povo de Deus e tentar descobrir os principais elementos que o configuram (ou a partir desses definir o povo de Deus) é perceber o ser e a vocação de Israel, ou seja, entender o seu evento funda-cional e original3.

Segundo Barclay, o evento religioso que criou o povo de Deus ficou marcado pela sua etnicidade e pela sua condição de grupo em formação e em diferenciação4. Por isso, o povo de Deus percebeu-se como sendo um

evento comunitário, étnico e religioso na unidade e para a unidade. Esse grupo é uma descendência, uma linhagem, uma tradição, uma relação, que as tradições judaicas identificam na sua origem com a dos patriarcas, de um modo particular, a de Jacob e a de Israel5.

Assim sendo, na sua origem, no seu passado, presente e futuro, essa linhagem é a realidade única e eterna do povo que vive do evento vital que o criou e cria como descendência. As diversas tradições bíblicas revelam como essa relação se realiza, recriando-se a partir da dinâmica do seu even-to fundacional e original.

Como Leder propõe, o evento fundacional e original do povo de Deus é o ser e o reconhecer-se como a pessoa, a descendência, a família, a comu-nidade, o povo escolhido e tomado por Deus: tomar-vos-ei como meu povo,

e serei o vosso Deus (Ex 6,7)6.

2 Cf. J. BlenKinsopp, «The Development of Jewish Sectarianism», in O. lipsChits – G. N.

Knopples – R. alBertz, ed., Judah and the Judeans in the Fourth Century BCE, Winona Lake 2007,

385-404.

3 Cf. J. M. G. BarClay, Jews in the Mediterranean Diaspora. From Alexander to Trajan (323

BCE-117 CE), Berkeley 1999, 399 ss.

4 O autor procura prová-lo em cinco factos da documentação de então: a terminologia usada

pelos judeus; o entendimento que os gentios tinham dos judeus; a ressocialização dos prosélitos; o reconhecimento social da endogamia; a educação dos filhos na lei; cf. J. M. G. BarClay, Jews,

405-413.

5 Cf. G.W. ahlström, Who Were the Israelites?, Winona Lake 1986, 23.

6 Cf. D. leDer, «Yehoshua and the Intact Covenant», in B. Bruteau, ed., Jesus Through Jewish

(3)

Desse modo, em primeiro lugar, Israel é um povo, uma comunidade, um conjunto de pessoas, uma unidade, uma descendência, uma tradição, e, nesse sentido, também uma realidade com um estilo de vida próprio7.

Porém, Israel não é só um povo, é também o povo determinado e único; pois não existe outro povo de Deus nem outros povos de Deus con-correntes e divididos, mas sim um único povo criado por Deus. Ao mesmo tempo, por definição, o povo é constituído pela diversidade de cada uma das pessoas que o forma. Assim, o povo é ‘um’, ‘único’, ‘o’ e ‘uno’ na diver-sidade das pessoas que o integram8.

Israel é ainda o povo escolhido, pois vive em relação com Deus na medida em que responde, que reconhece, que obedece, que é parceiro da eleição original. É o escolhido, pois recebeu do Deus único – que tomou e toma a iniciativa – a sua condição de escolhido.

A sua eleição mede-se pela sua obediência, pertença, escuta ao Deus que o criou e que o recria continuamente. Israel não é o povo escolhido em oposição a outros povos não escolhidos. É o escolhido em oposição aos que não se reconhecem como escolhidos; e é-o na medida em que corresponde à eleição universal da humanidade feita pelo único Deus9.

Assim sendo, Israel é o povo de Deus, pois responde ao Deus único, a que tem por Deus, assumindo-se como posse e propriedade do Senhor, a quem reconhece e obedece na relação única de pertença que o define. Efetivamente, é a vivência de ser o povo escolhido que o define e o distin-gue de outros povos.

Concluindo, a originalidade do povo de Deus é a relação que o cons-titui e recria. O povo escolhido compreende-se e compromete-se no ca-minho de aliança e de ser testemunha de Deus num evento que o molda e dirige como comunidade nessa relação, onde é protagonista com Deus.

Desse modo, podemos dizer que o povo escolhido por Deus é ‘um’, ‘único’, ‘o’ (determinado) e ‘a unidade’ daqueles que vivem em relação de comunhão com o seu único Deus.

7 Cf. K. L. sparKs, Ethnicity and Identity in Ancient Israel, Winona Lake 1998, 23ss. 8 Cf. Z. zevit, The Religion of Ancient World, London 2001, 480ss.

(4)

Nessa relação original10, a compreensão que o povo tem de si, ao longo

das suas gerações, aprofunda-se na medida do seu encontro com Deus11.

Com efeito, o povo é o fruto do seu reconhecimento e da sua relação com o seu Deus, onde a eleição, a pertença, a obediência, a resposta a Deus são, desde o início, elementos vitais próprios.

A partir dessa realidade vital, brotam diferentes respostas internas à sua vivência em oposição à vivência de outros povos e, de um modo par-ticular, surgem e compreendem-se as suas principais instituições: a lei, o templo, e a terra.

A importância da única lei, do único templo e da única terra manifesta a compreensão da relação vital de pertença entre o único, o uno, o Senhor Deus e o seu único, uno e fiel povo. Por isso, a história do povo é a história da sua relação com Deus, que o faz ser imagem e semelhança do seu Deus.

2. Evento fundacional na história de Abraão, Jacob e José A história do povo de Deus é a história da sua resposta a Deus. Diante do Senhor, não houve nem há várias direções nem várias motivações; há sim a direção e a motivação do Senhor Deus, há filhos de Deus e outros que não se têm como seus filhos, há o povo de Deus e outros povos.

No entanto, o povo criado para ser de Deus vive, desde o seu início, em tensão entre o cumprir e o não cumprir a vontade de Deus, entre a unidade e a dispersão.

Adão, criado por Deus, não chegou a participar em plenitude das ma-ravilhas criadas por Deus devido à sua desobediência (cf. Gn 1,1ss). Moi-sés, por quem Deus deu a lei ao povo, não chegou a entrar na terra por causa da sua atitude contrária ao Senhor (cf. Dt 32,51; 34,1ss). David, a quem Deus confiou o início da monarquia e a construção do templo, pela mesma razão, não viu a prosperidade da primeira e a elevação do

10 Entre os termos hebraicos do AT para designar a escolha ou eleição do povo, a raiz bāhar

expressa de um modo particular o seu ser; indica a função ou ação das pessoas ou lugares escolhidos por Deus (cf. Dt 7,6). Israel é o povo escolhido nessa dinâmica vital de pertença, reciprocidade e atração ao evento que o criou e cria sempre como único e uno. Cf. B. mazar, Biblical Israel,

Jeru-salem 1992, 55ss.

(5)

segundo (cf. 2Sm 12,1ss). O povo, a quem Deus desejou a unidade na sua terra, dispersou-se por não o adorar (cf. Ez 3,1ss).

Assim, na obediência ou não a Deus, na harmonia ou não do mundo, na unidade ou na dispersão do povo, a história de Deus e do seu povo nasce e orienta-se para a unidade. Nesse sentido, importa perceber como o evento fundacional e original de Israel, em alguns dos principais momen-tos da sua história, realizou ou não realizou, se orientou ou não se orientou para a unidade do povo desejada por Deus. Partindo do relato da criação, olhamos como Abraão, Jacob e José, paradigmaticamente, surgem como modelos de resposta a essa vocação única do povo de Deus.

2.1 Criação e vocação do homem

De acordo com a torah, a história e o caminho do povo começam com a criação divina e completam-se avistando a terra prometida (cf. Gn 1,1ss). Em Adão, que representa o humano criado, a singularidade da pessoa hu-mana e toda a humanidade, abre-se a cada um e a todos os humanos o caminho para a terra, só possível segundo a vontade de Deus, que o criou à sua imagem e semelhança12.

Em síntese, o ser humano realiza-se em relação com o criador, com a humanidade e com a criação. Viver é relacionar-se como imagem e seme-lhança de Deus13.

Tendo por base a terra, que lhe deu um corpo, e o seu espírito, que lhe deu o seu ânimo, Deus criou o ser humano como uma unidade de ser, uma pessoa vivente. O humano é uma unidade com uma identidade (nefeš), uma força (rûah), uma materialidade e debilidade (bāśār) e uma

capacida-de capacida-de relação (’îš – ’iššâ). Assim sendo, viver é possuir essas forças e ser em relação, morrer é perdê-las e ser isolado14. Por isso, o ser humano, o único

12 Cf. A. Wenin, L’Homme biblique, Paris 20042, 33ss.

13 Cf. E. noort, «The Creation of Light in Gn 1,1-5», in G. H. van Kooten, ed., The

Creation of Heaven and Earth, Leiden 2005, 3-20.

14 Esta noção fundamental do homem bíblico não exclui outros modos de compreender o

ser humano. Filão assume a ideia platónica da preexistência da alma, justapondo matéria, espírito e ideias. Josephus aproxima-se dessa linha dualista: o homem é composto de corpo mortal e de alma imortal, parte da divindade que mora no homem. Cf. H.W. Wolff, Anthropologie des Alten

(6)

ser criado pela mão de Deus (cf. Gn 1,27; 2,7), foi criado e é recriado uni-do a Deus como sua imagem e semelhança.

Com efeito, a humanidade é uma unidade, pois todos os seres hu-manos são filhos de Adão, todos são criados pelo ‘toque’ de Deus. Não obstante, não existem dois seres humanos iguais.

A unidade e a diversidade do ser humano encontram na unidade e na diversidade dos dois sexos a sua maior expressão: a unidade deles gera vida; e a unidade realiza-se na sua diversidade (cf. Gn 1,28; 2,8.24).

Portanto, a unidade é o lugar do uno e do diverso. Nesse dinamismo vital, a humanidade experimenta a consumação do projeto edénico em toda a sua potencialidade e harmonia.

Desse modo, o ser humano é também definido pelo poder de conhe-cer e de ser livre. Ser em relação com Deus, que o criou, é ser humano. Em oposição, não conhecer, não ser em relação com Deus, desconfigura-o. Nesse sentido, a história do ser humano, da humanidade, abre-se e vive-se no sábado comunitário e para o sábado comunitário, ou seja, para a relação com o único Deus num compasso que toca a vida de todo o povo num ritmo semanal, anual, jubilar (cf. Gn 2,1-4).

Em Adão, Deus chamou toda a sua descendência para a perfeita rea-lização do seu projeto criativo, no qual todos os humanos são irmãos. O percurso iniciado com a criação realiza-se na relação vital e única com Deus, o criador do universo. Neste caminho adâmico, Abraão e os seus são chamados a ser a descendência em aliança com o seu Deus como seu modo de ser15.

2.2 Abraão e a sua descendência

Em Abraão, o caminho da criação expressou-se na aliança de Deus com um homem e com a sua família, como compreensão do desejo de Deus de reunir junto de si toda a humanidade.

15 Cf. F. Crüsemann, Die Tora. Theologie und Sozialgeschichte des alttestamentlichen Gesetzes,

(7)

A vocação de Abraão e da sua descendência orienta-se para a harmonia assegurada por Deus, realizável não como mera construção humana, mas na unidade dos diversos idiomas em relação ao único Deus (cf. Gn 6,5ss)16.

Nesse sentido, a história de Abraão é o início da história do povo chamado a ser povo de Deus. A descendência de Abraão foi e é chamada a testemunhar o ser humano e da humanidade nos valores divinos em cami-nho para a consumação da criação em aliança com o único Deus; por isso, a sua experiência é fundamentalmente decisiva no dinamismo do judaísmo (cf. Gn 12,1ss).

Deus chama Abraão, e ele responde-lhe seguindo o seu desígnio. A di-nâmica chamada-resposta define o ser e a vocação de Abraão. Deus chama--o a caminhar, chamachama--o a um modo de ser. Abraão deixa os seus caminhos, a sua família e a sua terra, para seguir a chamada de Deus.

Desse modo, o ser e a vocação de Abraão não dependem vitalmente de si, de lugares ou de tradições, mas sim da obediência a Deus. A dinâmica chamada-resposta é de tal modo vital, que lhe mudou o nome (cf. Gn 17,5), o ser, a identidade: passou a ser de Deus, da sua relação com Deus; o seu caminhar é o desígnio de Deus.

O ser em relação com Deus implicou uma especial existência, um modo de ser. Abraão é caracterizado pela obediência, pela conformação a Deus. O ser e a vocação de Abraão são em comunhão com o seu Deus17.

De facto, Abraão não é só nem é chamado a ser só. O seu ser e a sua vocação são o ser e a vocação da sua descendência. Abraão é chamado a ser numa descendência imensa, como as estrelas do céu e a areia do mar (cf. Gn 15,5; 22,17). A resposta, o caminho, a obediência de Abraão são a resposta, o caminho, a obediência da descendência que Deus lhe destina. O seu ser escolhido é o ser escolhido da sua descendência18.

Portanto, a totalidade do ser e da vocação de Abraão a Deus é a tota-lidade do ser e da vocação da sua descendência, que foi e é chamada vital-mente a ser total relação com Deus. Por isso, o povo é o povo de Deus ao entrar e ao ser em relação única e exclusiva de aliança com o Senhor, ao ser

16 Cf. J. L. sKa, «Nel segno dell’arcobaleno: il racconto biblico del diluvio (Gn 6-9)», in M.

lorenzani, ed., La natura e l’ambiente nella biblia, L’Aquila 1996, 41-66.

17 Cf. R. S. henDel, R. S., Remembering Abraham, New York 2005, 31ss.

18 Cf. K. müller, Tora für die Völker: Die noachidischen Gebote und Ansätze zu ihrer Rezeption

(8)

na vida, na existência, no caminho, na história, na comunhão, na lei, na terra, na prosperidade de Deus.

Na sua realidade humana, Abraão recebe de Deus a descendência cha-mada na unidade e à unidade como povo (cf. Gn 15,1ss). Em síntese, a fidelidade do povo ao seu Deus realiza-o e aproxima-o ao seu ser e à sua vocação de povo único e unido.

Assim sendo, o evento vital e paradigmático de Abraão e da sua des-cendência, como constante evento fundacional, move a história do povo na medida em que pessoalmente, comunitariamente e universalmente vive em relação com o Senhor Deus e assim chama a essa relação toda a huma-nidade19.

Como sinal da total e eterna pertença a Deus, Abraão dispôs-se a cir-cuncidar a sua descendência (cf. Gn 17,9-14). Por outras palavras, o povo é unidade, vive unido a Deus, é relação vital nele e nos seus descendentes (cf. Dt 10,12-22).

A Abraão, Deus pediu que ordenasse a seus filhos que guardassem o seu caminho, praticando a retidão e a justiça (cf. Gn 18,19); assim seria próspero na sua descendência e seriam abençoadas todas as famílias da terra (cf. Gn 12,3); ou seja, a justiça abraâmica tribal é chamada a ser uni-versal (cf. Gn 18,16ss). Renovada com Isaac e com Jacob, a aliança confir-mou-se como eterna num povo chamado a ser de Deus.

Em síntese, a história de Abraão (cf. Gn 11,27-25,11) mostra-nos, por um lado, o desígnio amantíssimo de Deus que reconcilia o homem consi-go, e, por outro, a aventura existencial e feliz de quem confia no Senhor. Não obstante os obstáculos malditos, herdados das suas gerações passadas, e as dificuldades de um futuro inesperado (cf. Gn 2-11), Abraão encontra na sua relação filial com o Senhor o santuário onde se realizam as promes-sas de Deus. Abraão é o depositário da aliança que fundamenta a esperança da sua descendência e da humanidade inteira.

(9)

2.3 Jacob e Israel

No seio da descendência de Abraão, a história de Jacob é vitalmen-te marcada pela bênção que recebe do Deus de seus pais (cf. Gn 27,1ss; 32,30ss), à qual corresponde continuamente.

Perante o conflito com o seu irmão Esaú, com o seu sogro Labão, com os seus filhos e com o próprio Deus, a vida de Jacob é uma contínua bên-ção do Senhor, ou seja, uma constante realizabên-ção da vontade de Deus nele. Nesse trajeto destacam-se três eventos fundamentais: o sonho de Jacob, a vitória de Israel e as doze tribos de Israel20.

Num sonho, Jacob vê uma escada assente na terra até ao céu, pela qual subiam e desciam mensageiros de Deus. No cimo dela, o Deus de Abraão e de Isaac promete-lhe: a terra, a descendência pelos quatro cantos do mun-do abençoanmun-do todas as famílias e a sua contínua presença protetora. Jacob percebe que aí era a casa de Deus e a porta do céu. De facto, declara, o Senhor estava realmente naquele lugar (cf. Gn 28,12ss).

Desse modo, Jacob vê a morada e a presença de Deus no mundo, en-contrando o único Deus num caminho de contínua bênção da terra ao céu como bênção para o mundo. A qualidade desse encontro e da morada de Deus no mundo depende da relação dos seus descendentes com Deus, que estabelece a sua habitação na terra na família dos seus adoradores21.

Com efeito, Deus não é só o criador da natureza e o Senhor da histó-ria, é o Pai da família que tem a sua morada na terra unida e em caminho à morada do céu. Jacob encontra Deus no cimo e no fundo da escada; não obstante a radical majestade de Deus, Deus revela a sua presença e abre a sua porta ao mundo22.

Num outro momento significativo da sua existência, no total silêncio e solidão da noite, na sua realidade total e autêntica, Jacob enfrenta Deus (cf. Gn 32,25ss)23. Ao surgir da luz do novo dia, na sua pura fidelidade,

e mesmo ferido por essa, vence; por isso, Deus dá-lhe o nome de Israel.

20 Cf. J. vermeylen, «Le vol de la bénédiction paternelle», in ID., Quand le voleur est béni par

Dieu. Une lecture de l’historie de Jacob (Gen 25-36), Bruxelles 1993, 20ss.

21 Cf. R. renDtorft, «Jakob in Bethel. Beobachtungen zum Aufbau und zur Quellenfrage in

Gen 28,10-12», ZAW 94 (1982), 511ss.

22 Cf. J. L. Kugel, The Ladder of Jacob, Princeton 2006, 9ss. 23 Cf. L. Basset, Sainte colère, Genève 2002, 119ss.

(10)

A alteração do nome de Jacob é total: de um nome pessoal e dado pelo pai, passa a um nome comunitário e dado por Deus: Israel. Portanto, Israel é pessoa e é comunidade.

Jacob não só enfrentara e vencera o destino cósmico diante de Deus e de toda a humanidade, como nele foi dada origem, por vontade divina, a Israel, sujeito da aliança com Deus. Desse modo, Jacob dá seguimento ao destino de unidade do seu povo e do mundo na relação com a bênção de Deus.

Assim sendo, Jacob é modelo para todo o Israel na sua dimensão pes-soal e comunitária (cf. Gn 32,28). Ao desejo de Jacob vencer, corresponde o seu novo nome. No desejo de ter a bênção divina, alcança-a. Peran-te Deus, Jacob experimenta a vitória24. Com efeito, depois de chamá-lo

Israel, o Senhor omnipotente exorta-o a multiplicar-se, pois uma nação reunida de povos provirá dele (cf. Gn 35,11ss).

Ao desejo de Jacob de conhecer o nome de Deus, este dá-lhe a sua bênção, a sua descendência, a sua promessa, a sua presença, que Jacob pe-dira logo após o seu embate (cf. Gn 32,27). Então Jacob conclui que, por ter visto Deus face a face, este permanecia vivo (cf. Gn 32,31). Perante o aparente insuperável abismo, Deus faz a ponte, une o céu e a terra, comu-nicando-se face a face e chamando Israel a não cessar de ir a si25.

Entre o seu sonho e a sua vitória, a bênção de Deus a Jacob manifes-ta-se de um modo particular no dom dos seus doze filhos, os herdeiros das doze tribos de Israel. A casa de Deus no mundo a caminho da sua morada no céu encontra na unidade das doze tribos a sua nova configuração, unin-do a descendência até então ainda dispersa. Assim, da experiência de Jacob nasce Israel na unidade e na diversidade dos seus doze filhos.

Antes de morrer, Jacob deixa a sua bênção a cada um dos seus filhos. Com José, primeiro traído e depois escolhido pelos irmãos como Senhor (cf. Gn 50,15ss), Jacob completa a série de bênçãos com um dom especial: seria coroado pelos irmãos.

Porém, não obstante a promessa de Jacob a José e a disposição dos seus onze irmãos de o servirem (cf. Gn 50,18), José não se coloca no lugar de

24 Cf. V. B. H. mirjam, Verso l’Uno, Bologna 2005, 27ss. 25 Cf. J.-L. sKa, «Genèse 25,19-34», MoBi 44 (2001) 11-21.

(11)

Deus e, antes de morrer, conforta-os, pois o Senhor cuidaria deles e os faria chegar à terra que jurou a seus pais (cf. Gn 50,19-24).

Em contraposição a José, Jacob começara por abençoar Rúben, o mais velho, que não se tornou o primeiro por causa da sua conduta, e por falar da dispersão de Israel em Simeão e Levi por causa da sua violência e do culto a deuses estranhos (cf. Gn 49,3-7). Depois, abençoou os restantes filhos, começando por destacar a primazia de Judá até à vinda daquele a quem pertencem todos os seus filhos e o mundo deve obediência (cf. Gn 49,8ss)26.

Efetivamente, a unidade e a diversidade das doze tribos são o fruto da experiência de Israel e pertencem ao que virá, a quem eles e o mundo de-vem obediência e que é razão da sua unidade. Por isso, após o seu embate com Deus, Jacob foi ao encontro do irmão Esaú com o desejo de voltar a ver o seu rosto como se visse o rosto de Deus (cf. Gn 33,10ss).

Os dois colocam-se a caminho juntos e Jacob só pede ao irmão bom acolhimento. Em síntese, Jacob, Israel, confirma o desejo de Deus para cada um dos seus descendentes e para todo o seu povo: acolher os seus filhos como morada de Deus no mundo, como caminho para Deus27.

Concluindo, a história de Jacob (cf. Gn 25,12-37,1), depois da breve história de seu Pai Isaac (cf. Gn 25,12-27,46), manifesta como o amor de Deus é sempre fiel. De facto, o Senhor revela em momentos centrais da vida de Jacob a sua presença contínua e desejosa da salvação da sua des-cendência. Jacob manifesta uma densa e apurada complexidade de vida, muitas vezes feita de intrigas, litígios e favorecimentos. Não obstante, o Se-nhor é sempre fiel e recorda que apenas partindo dele e reconciliados com o próximo podemos chegar à reconciliação com os nossos irmãos.

2.4 José, o pai e os irmãos

No seguimento da história dos seus antepassados, muito particular-mente a de Abraão, Isaac e Jacob, a história de José (cf. Gn 37,2-50,26) é

26 Cf. g. von raD, From Genesis to Chronicles: Explorations in Old Testament Theology, H. C.

Hanson, ed., Minneapolis 2005, 75ss.

(12)

modelo de sabedoria na gestão do bem comum e da justiça entre irmãos, em vista da pedagógica reconciliação fraterna.

José é o homem providencial, a quem a Palavra do Senhor surge sem-pre como selo de verdade e de justiça, verificando assim o desejo maior de seu pai, a unidade dos seus filhos. Nesse sentido, destacam-se três dimen-sões fulcrais na história de José: a discórdia dos irmãos; José, o Pai e os irmãos; e a reconstrução da unidade da família.

A história de José e dos seus irmãos, ao jeito do sucedido nas histórias de Caim e Abel, e de Jacob e Esaú, começa em tensão e transforma-se em divisão. Na realidade, o ciclo de José inicia-se com as desavenças entre José e os seus irmãos. O texto descreve as motivações profundas dos irmãos para com o irmão mais novo, filho do mesmo pai (cf. Gn 37,1ss).

De acordo com a compreensão dos irmãos de José, é o facto do Pai preferir José, por ser o mais novo, e de este atentar ao poder, que provoca um crescendo de ódio dos irmãos para com ele, o qual vai terminar com uma tentativa de homicídio e com uma deliberada mentira apresentada a Jacob, pai de todos eles.

O desejo de poder dos irmãos é expresso no texto pela túnica (cf. Gn 37,3.23). Contudo, como nos dirá a história presente no texto, o enten-dimento do Pai e de José acerca do poder distingue-se claramente em re-lação à compreensão que os demais irmãos assumem em rere-lação ao poder. Assim, o texto coloca-nos diante de uma perceção e de um julgamento diferenciados, pois, por um lado, o poder do pai e de José é o amor familiar entre irmãos e, por outro, o poder dos irmãos é o domínio de um sobre os outros.

Nesse sentido, a discórdia entre os irmãos será uma oportunidade para que os mesmos revejam as suas motivações e se disponham a acolher o de-sejo do pai, que é a unidade dos irmãos. Por isso, como diz o texto, José era o amado do pai, por ser o mais pequeno (cf. Gn 37,3), o mais frágil, assim como será mais tarde Benjamim.

Tanto assim é que o facto de José ser vendido será mais um episódio de um grande itinerário cognitivo, ou melhor, de conversão, que os seus ir-mãos serão chamados a fazer. Isso mesmo acontecerá com as várias sequên-cias de releituras que os próprios irmãos farão do seu pecado, ao ponto de se lhes abrirem o entendimento e se disporem a acolher o poder do Pai e de José, que no essencial é a unidade da família.

(13)

Podemos destrinçar na história de José o seguinte tripé: o Pai, os ir-mãos e José. O desejo do Pai é a unidade dos seus filhos, ou melhor, que eles se amem como o Pai os ama. Os irmãos pretendem o poder para que um possa dominar sobre os outros. José, que ama os irmãos com o amor do Pai, será um instrumento providencial de Deus que guiará os irmãos à conversão, ou seja, ao amor recíproco segundo o amor do Pai.

Assim sendo, ao contrário daquilo que os irmãos desejam e invejam em José, o seu irmão mais novo alcançará o poder máximo neste mundo, igualando o próprio Faraó, não para que dominasse alguém, menos ainda para que pudesse dominar os seus irmãos, mas sim para reconduzir os ir-mãos ao amor recíproco segundo o desígnio do pai Jacob.

Nesse sentido, a grande missão de José é a de permitir aos seus irmãos que se libertem do pecado, isto é, do desejo de dominar o outro, e para isso é necessário que se convertam, ou seja, que tomem consciência da sua er-rada compreensão e se disponham a acolher o amor do Pai e do seu irmão José e assim se amem reciprocamente28.

O caminho de conversão será marcado pela austeridade material e, sobretudo, pelo constante amor do Pai para com os filhos, particularmente os mais novos, e pela estratégia que José utiliza para que os seus irmãos, relendo a sua própria história, cheguem à conversão, ou seja, ao poder do pai e de José: o amor familiar entre irmãos como poder configurador da reconstrução da unidade familiar.

Referências

Documentos relacionados

Data limite para as Coordenações de Cursos Superiores encaminharem à CORAE os processos de Colação de Grau, Atas de Apresentação do TCC, Termo de Aprovação, convalidação de

Por exemplo, se um Asuriní é detérminado pelo Encarregado do Pôsto para caçar ou pescar, sem companhia, geralmente não se esforça paracon­ seguir mais que o

16.1 -Toda a gasolina, seja para os treinos ou para a corrida é fornecida pelo Euroindy. Cada equipa é responsável pela autonomia do combustível e reabastecimento do kart. Antes de

Os estudos originais encontrados entre janeiro de 2007 e dezembro de 2017 foram selecionados de acordo com os seguintes critérios de inclusão: obtenção de valores de

Caso a resposta seja SIM, complete a demonstrações afetivas observadas de acordo com a intensidade, utilizando os seguintes códigos A=abraços, PA=palavras amáveis, EP= expressões

contendo alta energia cinética (seja ela íons ou partículas neutras), gerando assim maior concentração de defeitos superficiais no óxido e, finalmente,

Dor em uma ou ambas as articulações (pólo lateral e/ou tecidos retrodiscais), durante a palpação; 2) uma ou ambas as condições seguintes a, b: a): crepitação grosseira na

Se for demonstrada a elevada similaridade entre o biossimilar e o seu biológico de referência e se estes são comparáveis em termos de qualidade, segurança e eficácia numa IT, os dados