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Sob a influência da lua: António Nobre

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Academic year: 2021

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(1)Sob a influência da lua: António Nobre Pedro Marques Doutor em Teoria e História Literária - UNICAMP Professor da Faculdade Comunitária de Campinas - Unidade 3 Editor do site Crítica & Companhia e-mail: pedro_marques77@hotmail.com. Resumo. Abstract. “Da Influência da Lua” auxilia a compreensão da curta e pujante obra de António Nobre. Além de proporcionar a reflexão sobre pontos específicos da estética simbolista delineados na poética nobreana, o poema re-elabora de maneira particular um dos grandes lugares-comuns da lírica, para não dizer do imaginário, ocidental: a Lua. Mais que a observação pessoal do satélite natural da Terra, o poeta utiliza a lua para cifrar as tensões da criação poética e, operando técnicas características de um Mallarmé ou um de Cruz e Souza, para sobrepor várias sugestões de leituras que não necessariamente se harmonizam.. “About Moon’s Influence” helps to understand the short and powerfull work by António Nobre. The poem provides readers to think about the specifics components that this poetry admits on the simbolist aesthetic. Its verses still develop with originality a large cliché of occidental lyric: the Moon. The poet uses it to codify the poetic creation, more than a personal look about the natural satellite of Earth. In this way, he operates some typhical technics of Mallarmé and Cruz e Souza styles, to propose several possibilities of readings that don’t need to be harmonious among themselves.. Palavras-chave: análise e interpretação de poesia, António Nobre, simbolismo, literatura portuguesa.. Key-words: analysis and interpretation of the poetry, António Nobre, simbolism, portuguese literature.. I. intrínseca, foco e ponto de partida da boa interpretação literária, infiltrada por dados exteriores mas relevantes no texto. Para introduzir e complementar a exegese poética relevo, em princípio, alguma notícia biográfica de António Nobre o qual, poeta subjetivo de ascendência romântica, não se furtou a espalhar pela obra fragmentos da vida. Em seguida, rastreio os elementos que justificam sua inserção e contribuição ao que hoje entendemos como técnica ou estética simbolista. Não se espere, porém, a conexão determinista entre obra, indivíduo criador e contexto histórico. Apenas para lembrar um clássico da teoria literária, lançado nos finais dos anos de 1940, “os verdadeiros problemas começarão (...) quando valoramos, comparamos e isolamos os fatores individuais que se considera determinarem a obra de arte”. (WELLEK; WARREN, 1976, p. 85.) Eis uma afirmação típica das principais correntes teóricas do século XX, e que exemplifica com clareza a mudança de enfoque nos estudo literários, da individualidade criadora (homem ou autor) para a individualidade expressiva (obra).. Este artigo foi pensado como exercício circunscrito de análise literária. Começando pela relevância do texto comentado, trata-se de ventilar um poema aparentemente secundário de um poeta cuja posição é imprescindível para a compreensão de sua contemporaneidade literária. António Nobre (1867-1900), como se sabe, sedimentou-se como um dos pilares da poesia portuguesa que desfecha o século XIX. Seu único volume de versos (Só, 1892) embora reunindo pouco mais de cinco dezenas de peças, animou toda uma geração em Portugal e, também, no Brasil. Os sensíveis e às vezes confessados influxos que exerceu por estas paragens sobre um Manuel Bandeira, e além mar sobre um Camilo Pessanha e um Fernando Pessoa, bastariam para demonstrar a presença marcante em alguns dos principais agentes que, inclusive, iriam esboçar novos rumos para a poesia do idioma a partir das primeiras décadas do XX. Sobre o método de análise, procuro conciliar duas práticas apenas aparentemente conflitantes: a sondagem. 211.

(2) II Da influência da lua Outono. O Sol, qual brigue em chamas, morre Nos longes d’água... Ó tardes de novena! Tardes de sonho em que a poesia escorre E os bardos, a cismar, molham a pena! 05 Ao longe, os rios de águas prateadas Por entre os verdes canaviais, esguios, São como estradas líquidas, e as estradas, Ao luar, parecem verdadeiros rios! Os choupos nus, tremendo, arrepiadinhos, 10 O xale pedem a quem vai passando... E nos seus leitos nupciais, os ninhos, As lavandiscas noivam piando, piando! O orvalho cai do Céu, como um ungüento. Abrem as bocas, aparando-o, os goivos; 15 E a laranjeira, aos repelões do Vento, Deixa cair por terra a flor dos noivos. E o orvalho cai... E, à falta d’água, rega O vale sem fruto, a terra árida e nua! E o Padre Oceano, lá de longe, prega 20 O seu Sermão de Lágrimas, à Lua! A Lua! Ela não tarda aí, espera! O mágico poder que ela possui! Sobre as sementes, sobre o Oceano impera, Sobre as mulheres grávidas influi... 25 Ai os meus nervos, quando a Lua é cheia! Da Arte novas concepções descubro, Todo me aflijo, fazem lá idéia! Ai a ascensão da Lua, pelo Outubro! Tardes de Outubro! ó tardes de novenas! 30 Outono! Mês de Maio, na lareira! Tardes... Lá vem a Lua, gratiae plena, Do convento dos Céus, a eterna freira! Porto, 1886. (NOBRE, 1998, pp. 146-147). Antes de avançar a análise imanente, por assim dizer, alguns dados biográficos do escritor e a razão pela qual escolhi a composição acima. Há duas datas possíveis para o nascimento de António Pereira Nobre. A primeira, que consta do registro paroquial da igreja de Santo Ildefonso, no Porto, relata que um dos mais 212. importantes poetas portugueses do final do século XIX, nasceu em 1867, às cinco horas da manhã do dia 7 de agosto. A segunda, considerada verídica, foi anotada por seu pai: “nasceu o menino António em 16 de Agosto de 1867, pelas cinco da manhã”. A informação é importante porque o único livro de Nobre – Só – privilegia o movimento de exploração criativa do material biográfico. Na apreciação de Maria Ema Tarracha Ferreira (1998, p, 7), cujo rico estudo de cerca de setenta páginas introduz uma das edições atuais de Só, António Nobre explora as circunstâncias de seu nascimento metaforizando-as a partir de duas instâncias que se tornaram símbolos de sua poesia: a terça-feira e a lua, sobretudo quando desaparecida. No poema “António” enuncia-se: “Ao mundo vim, em terça-feira / Um sino ouvia-se dobrar”. E no poema “Memória”: “Debaixo dum signo mofino, / Pela lua-nova, nasceu um menino”. O trabalho com esses dois temas gerais, mesmo que não necessariamente num mesmo poema, recebe uma tradução bastante específica sendo, a um só tempo, distintivo dessa produção que sempre coloca em pauta “o fatalismo e a Morte”. De fato, a terça-feira é tradicionalmente desafortunada para os portugueses. É como se o mau agouro desse dia da semana tivesse malfadado o destino do menino que, tuberculoso, morreria jovem. A ocultação da lua, por seu turno, tende a representar morte em inúmeras cosmogonias, inclusive tribais. A noite escura despojada de seu grande farol, propicia a melancolia, a falta de iluminação criativa e todo um mergulhar em si comum em mais de um poema de Nobre. Daí o comparecimento do corpo celeste em “Da Influência da Lua” desenhar, dentre outros, o desejo de reverter a má sorte original de um eu lírico baseado no homem António Nobre. Longe de ocorrer de maneira estrita ou simplesmente como referência ilustrativa, tal estratégia desenrola uma técnica apurada, e que procura antes transfigurar a realidade que descrevê-la. Ou seja, “muita da referência nobreana não tem a ver com o real mas com um efeito de real ardilosamente montado” (VOUGA, 1993, p. 98). As experiências de vida não aparecem como confissões, ao entrarem para a construção artística como mais um material são absolutamente transformadas, recebem tratamento literário particular constituindo um suporte poético que, aí sim, caracteriza aquilo que chamamos de autoria ou personalidade textual de António Nobre. Ritmicamente, Nobre foi um craque em manejar e enriquecer a metrificação tradicional. Era capaz de versificar bem por dentro da convenção, como o.

(3) comprovam seus sonetos, mas também de praticar uma polimetria (emprego de mais de um metro numa mesma peça poética) moderna à beira da prosa poética. Leiase, por exemplo, a mistura inusitada - sobretudo entre decassílabos, hendecassílabos e alexandrinos - que dá aos versos de “Purinha” um traçado rítmico nunca arriscado na lírica lusitana. Já ao abraçar os conteúdos, mesmo os pessoais, era movido por aquela imaginação ficcional que conduz os melhores poetas a refundir os dados da realidade perceptível. Assim, num poema como “Lusitânia do Bairro Latino”, em que prevalece o tom memorialista, assistimos não a uma biografia objetiva, mas a uma insinuação quase misteriosa do que teria sido a infância do poeta. Ora, são justamente essas técnicas que justificam o enquadramento de António Nobre na estética simbolista. Primeira, a de conseguir ritmos insólitos mesmo a partir de metros tradicionais. Segunda, a de simbolizar qualquer conteúdo ainda que simples, ou seja, preferese sempre sugerir a relatar. De entrada, “Da influência da Lua” prende a atenção por sua linguagem fluente. Seus decassílabos oscilam quase musicalmente entre sáficos (acentos fortes na 4ª., 8ª. e 10ª. sílabas métricas) e heróicos (acentos fostes da 6ª. e 10ª.) Colaboram para tanto, as repetições de algumas palavras e estruturas frasais, como a reincidência da conjunção coordenativa [e], a qual fornece ao poema um colorido oral de quem conta uma história. Outras duas características saltam aos olhos e ajudam a refletir sobre as alternativas de António Nobre. Por um lado, a difícil tarefa de medir no texto os possíveis ecos das correntes literárias que rivalizavam em sua época: o romantismo popular e neo-garretista, o simbolismo melódico à maneira de Verlaine (1844-1896) e Eugênio de Castro (1869-1944) ou o decadentismo pessimista e esteticista de J.–K. Huysmans (1848-1907) consagrado no romance Às Avessas (1884). Por outro lado, como sugere o título do poema, a presença decisiva da lua na obra. Poetizada a todo instante, é cartaz em muitas reflexões tecidas sobre a condição humana geral e pessoal. Espécie de relógio natural marcando a passagem da vida, ela figura até numa formidável quadra popular, composta em redondilhas maiores e integrante da série “Para as raparigas de Coimbra”: 16 Nossa Senhora faz meia Com linha branca de luz: O novelo é a Lua cheia, As meias são pra Jesus. (NOBRE, 1998, p. 117). Da literatura de Almeida Garrett (1799-1854), os versos de “Da influência da Lua” recuperam a ambientação campestre, tão difundida num dos romances que inauguram o romantismo português e para o qual, não por acaso, António Nobre escreveu um poema homônimo: Viagens na Minha Terra (1846). O Portugal do interior rural, das vindimas, da pesca, da vida de trabalho em contato com a natureza, sem a complexidade e as etiquetas urbanas entendidas, em geral, como nocivas, esse país aqui mostrado sob as cores quentes do entardecer e depois sob as frias do luar. O próprio lirismo romântico, a linguagem literária permeada por usos coloquiais que Garrett imprimiu aos poemas de Folhas Caídas (1853) germina nos versos de Nobre. Leia-se: “Tardes de sonho em que a poesia escorre / E os bardos, a cismar, molham a pena!” Ou a face popular frisada, sobretudo, no uso do diminutivo: “Os choupos nus, tremendo, arrepiadinhos”. Conseguimos imaginar o espaço físico narrado, mas o compromisso da linguagem é pouco linear. Não se exibe a precisão espetacular da poesia parnasiana, que, aliás, nunca fez escola em Portugal, tampouco a nitidez cotidiana esbanjada nas estrofes de “O Sentimento dum Ocidental”, de Cesário Verde (18551886). Ao contrário, sobrepõe-se a sugestão musical das palavras, isto é, ante de remeter ou compor um quadro literário, o desenho sonoro das palavras tendem a jogar nossa atenção para si próprias. O esforço para aproximar a arte poética da musical, em alguns artífices simbolistas como Mallarmé (1842-1898) e Cruz e Souza (1862-1898), avançou sobre a fronteira da incomunicabilidade, ofereceu poemas herméticos e, contraditoriamente, abertos à imaginação de cada leitor. António Nobre jamais chega a tanto, sua musicalidade rara vezes se converte em interdição de leitura, operando muito mais como oralização da linguagem literária: “...São como estradas líquidas, e as estradas...”. Repare a forte aliteração em dentais [t,d] e a assonância com a vogal [a] formando um desenho melódico, caracterizando um artifício da poesia de todas as épocas mas transformada em palavra de ordem apenas pelos simbolistas. III Olhando o poema em seqüência, todos os versos alternam-se entre decassílabos sáficos e heróicos, gerando um ritmo nuançado e menos previsível. As rimas são cruzadas e perfeitas, obedecendo em cada estrofe ao esquema a / b / a / b. A primeira estrofe mostra o dia 213.

(4) na hora do lusco-fusco, num ambiente outonal de fim de tarde: “O Sol, qual brigue em chamas” esmorece abrindo caminho para a participação decisiva da lua. Cenário propício para a poesia dos “bardos”, isto é, dos poetas de extração romântica como António Nobre. Sublinha-se o artista da palavra que precisa de inspiração, de uma fagulha externa para impulsionar o processo de concepção artística. Se a lua é capaz de auxiliar a hora do nascimento do homem, também pode ser a parteira da idéia poética. Por isso quando a vêem, “os bardos, a cismar, molham a pena” e começam a escrever. Trata-se de um estímulo erótico de escrita, como a mulher nua para o pintor. A voz poética da primeira estrofe começa um pouco sem ânimo, apenas olhando a paisagem tediosamente, mas vai aumentando a fúria inventiva até chegar ao êxtase final, à conclusão do poema. A lua cheia no desfecho torna-se, assim, um emblema do clímax criador. A segunda e terceira estrofes vão carregando o leitor para a noite, que sob a luz da lua faz com que os homens redefinam a percepção. Acostumada com a luz do dia ou, se quisermos, também com uma poesia mais solar e objetiva, é preciso readaptar a visão a fim de enxergarmos todo o meio físico agora sob tons graves e confusos. E, diga-se de passagem, que à época praticamente não existia iluminação elétrica, ainda mais no interior de um país pobre como Portugal. Daí ser proposital a inversão na descrição dos rios e das estradas, atribuindo-se características dos primeiros às segundas e vice-versa. As estrofes dois e três sobressaltam a percepção visual das paisagens alteradas sob a lua. O mesmo rio cristalino, a mesma estrada empoeirada se fundem numa imagem embolada, insinuada pela escassa e onírica luminosidade da lua. Ela também estimula a sexualidade dos seres, frisada agora pelo enlace festivo dos passarinhos (lavandiscas). Continuando o movimento ascensional da lua, as duas estrofes seguintes primam pelas estruturas anafóricas que sublinham a ação contínua do orvalho umedecendo e fertilizando tudo, incluindo a imaginação do eu lírico: “O orvalho cai do Céu, como um ungüento / E o orvalho cai... E, à falta d’água, rega”. A utilização das reticências reforça um pouco mais o sentido e o paralelismo da frase “o orvalho cai”. Também é na estrofe quatro que surge o “Vento”. Em seguida, na estrofe cinco o “Padre Oceano”. É de se notar que várias entidades do universo natural se iniciam com maiúscula, sem contar a palavra Arte. Em maiúsculas – Sol, Céu, Vento, Oceano e Lua – reforçam a deificação da natureza e sua integração com o eu poético. A Lua é a última a aparecer porque sua beleza 214. e influência superam os outros, porque acaba sendo o objeto e o meio de inspiração artística por excelência do poeta. A sexta estrofe potencializa a influência tanto factível quanto imagética do satélite natural. Dos entes miúdos (sementes), passando pelo ser humano adulto e em estágio fetal (“Sobre as mulheres grávidas influi...”), até a força mais incontrolável da natureza (Oceano, que no singular e iniciado com maiúscula pode representar todos os oceanos do planeta) a lua exerce seu “mágico poder”. Os conhecimentos lunares que os povos acumularam secularmente e as constatações da ciência estão irmanados. É inquestionável a relevância da lua sobre essas três atividades para as quais o homem teve que desenvolver técnicas avançadas para sua melhor sobrevivência: a agricultura para poder se alimentar independente da oferta natural do meio; o parto para poder se multiplicar em mais mão-de-obra, maiores exércitos, etc; e, por fim, os grandes oceanos cujas marés controladas pela lua os navegantes (sobretudo os portugueses) precisaram domar para encurtar as distancias e descobrir novos mundos. A instância sete revela o eu artístico possuído pela inspiração. A lua manifesta-se como símbolo da divagação ou da sanha criativa (“Ai os meus nervos, quando a Lua é cheia! / Da Arte novas concepções descubro”). De fato, não raro chamamos de aluado ou lunático aquele que, à maneira de determinados poetas, caminha por aí dispersivo como se estivesse preste a parir uma idéia original, como que sob influência da lua. É o retrato do gênio estabelecido a partir do final do século XVIII e, em certo sentido, incorporado até hoje em nosso imaginário. Veja-se o que escreveu Shelley (1792-1822), um dos expoentes da poesia romântica inglesa, num poema em louvor à lua: “Você, irmã eleita do Espírito” (“Thou chosen sister of the Spirit”) (1988, pp. 48-49). Até mesmo a distribuição dos poemas de Só está parcialmente subjugada às fazes da lua. São oito seções, e repartindo o livro ao meio, a quarta e a quinta respectivamente denominadas “Lua-Cheia” e “Lua Quarto-Minguante”. De todo modo, aqui também é preciso lembrar dos versos de “Plenilúnio”, em que Raimundo Correia (1859-1911) exagera ainda mais acintosamente o influxo da lua sobre a escrita poética, chegando a fundir um ao outro: “Um luar amplo me inunda, e eu ando / Em visionária luz a nadar, / Por toda a parte, louco arrastando O largo manto do meu luar” (1922, p. 157). O estar recluso, trancado no quarto para escrever e esperando a ação lunar, que no fundo representa toda.

(5) e qualquer pulsão de vida e de criação, também caracteriza a melancolia sentida na produção de António Nobre. Trata-se de uma percepção doentia de si e do mundo tornada lugar-comum em algumas individualidades poéticas a partir do período romântico. É o nosso tédio, o spleen inglês ou o ennui francês. É o que Massaud Moisés diagnosticaria em Nobre, é verdade que com certa dose de exagero, como “solipsismo doentio e narcisista”. (MOISÉS, 1964, P. 315) Num capítulo essencial de O Gênio do Cristianismo (1802), Chateaubriand (1969, pp. 50-51) definiria essa patologia como principal tormento do individuo moderno (mal du siécle). Constituído de aptidões jovens, ativas e altivas – ou seja, em tese predisposto para a ação – esse homem não seria capaz de objetivá-las. Sem finalidade, toda essa energia reprimida se voltaria para si mesma, explodindo em angústia desesperadora: “o coração se retorce e se curva de cem maneiras para empregar as forças que sente lhe serem inúteis”. Chateaubriand acreditava que os antigos – ocupando o tempo com a política, jogos e disputas do Fórum e da praça pública – pouco conheciam desta “inquietude secreta”, desta acidez de “paixões sufocadas”. As máscaras poéticas criadas por Nobre, portanto, buscariam em vão alcançar a felicidade e a tranqüilidade dos antigos, os quais, muito ligados aos afazeres externos, “não deixavam nenhum espaço para o tédio do coração”. As estrofes seis e sete, além de tudo, preparam o céu e anunciam a apoteose do luar que ocorrerá na última estrofe. Ou seja, o poema se fecha no momento do grande fulgor lunar, do plenilúnio, quando a lua redonda atinge o pico do céu. Momento máximo da noite, como o sol a pino durante um dia de verão. Depois de tanto se inspirar e buscar simbolizá-la, o poeta termina por nos entregar, sugestivamente, a própria lua feita poesia. Por isso “Da Influência da Lua” inicia, exatamente, a quarta seção de Só, batizada de “Lua-cheia”. Nosso satélite natural, propõe Maria Ema, “tem função simbólica: astro dos ritmos da vida em todos os níveis cósmicos” (FERREIRA, 1998, p. 67). Nesse poema, muito mais que isso, ela opera como verdadeira caixa metafórica para o poeta, uma vez que consegue ser interpretada como a inspiração, a poesia, a força motriz da natureza e, também, como o próprio corpo celeste. Por fim, além de possuir a primazia frente às outras entidades naturais e cósmicas, a lua ganha de António Nobre uma significação cristianizada. Lá do alto, podendo filmar o que há de bom e mal, o que há de alegria e de tristeza nos homens, a lua se compadece, jamais deixando de nos conceder seu fluxo de vida: “Do. convento dos Céus, a eterna freira!”. No céu, portanto perto da divindade que a criou, é através da lua que o poeta, falho porque humano, se comunica com o inventor maior. Mediadora entre o gênio artístico e Deus, sua imagem de ternura e piedade surge coerentemente fundida a da Virgem Maria. Assim, para aquela que gerou em seu ventre Jesus Cristo, também ele ponte entre os homens e Deus que fez encarnar seu filho, os cristãos oram: “Ave Maria, cheia de graça” (no latim: Ave Maria, gratia plena). Assim, António Nobre roga a sua lua polissêmica e cheia de sugestões: “Lá vem a Lua, gratiae plena”. Referências Bibliográficas Chateaubriand, François-René. “Du Vague des passions”, in Le Génie du Christianisme, apud Lagarde, André; Michard, Laurent. Collectoin Littéraire – XIXe Siècle. Paris – Montréal, Les Éditions Bordas, 1969. Correia, Raimundo. Poesias. Rio de Janeiro / Lisboa / Porta: Anuário do Brasil / Seara Nova / Renascença Portuguesa, 4ª. edição, 1922. FERREIRA, Maria Ema Tarracha. “Introdução”, in NOBRE, António. Só. Lisboa: Editora Ulisseia, 2ª. edição 1998. GARRETT, Almeida. Folhas Caídas. Introdução de José Gomes Ferreira. Lisboa: Portugália Editora, 2ª. edição, 1969. ___. Viagens na minha terra. Edição dirigida e apresentada por Antônio Soares Amora. Rio de Janeiro: Ediouro, s / d. HUYSMANS, J.-K. Às Avessas. Tradução e estudo crítico de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. MALLARMÉ, Stéphane. Mallarmé. Organização, estudos, seleção de poemas e tradução de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Edição bilíngüe. São Paulo: Editora Perspectiva, 3ª. edição, 2003. MOISÉS, Massaud. “António Nobre”, in A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 5ª. edição, 1967. NOBRE, António. Só. Introdução por Maria Ema Tarracha Ferreira. Lisboa: Editora Ulisseia, 2ª. edição 1998. SHELLEY, Percy Bysshe. “Poemas”, in Grandes poetas da língua inglesa do século XIX. Seleção, tradução e organização de José Lino Grünewald. Edição Bilíngüe. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. SOUZA, Cruz e. Obra completa. Organização geral, introdução, notas, cronologia e bibliografia por Andrade Muricy. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1961. VERDE, Cesário. O Livro de Cesário Verde. Lisboa: Publicações Europa-América, s / d. VERLAINE, Paul. Passeio sentimental - poemas. Seleção, tradução, prefácio e notas de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Círculo do Livro, 1989. 215.

(6) VOUGA, Vera Lúcia. “António Nobre: os versos radicais”, in Colóquio / Letras nº 127-128 Janeiro-Junho, Lisboa: 1993. WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. Tradução de José Palla e Carmo. Lisboa: Publicações Europa-América, 3ª. edição, 1976. Recebido em 26 de junho de 2007 e aprovado em 01 de agosto de 2007.. 216.

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